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PROCEDIMENTO CAUTELAR DE ARRESTO
NAVIO
DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
TRIBUNAL MARÍTIMO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário
I - O Tribunal Marítimo é incompetente, em razão da matéria, para conhecer de um procedimento cautelar de arresto de navio, no qual a requerente, concessionária de uma marina, invoca, sobre o requerido, um crédito emergente de um contrato pelo qual lhe concedeu, mediante o pagamento de um valor, a utilização privativa de um posto de amarração da sua embarcação. II - Incidindo o objecto daquele contrato sobre um bem pertença do domínio público marítimo, a competência para conhecer das questões a ele atinentes cabe à jurisdição administrativa.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO:
Marina de Vilamoura, S.A., intentou o presente procedimento cautelar de arresto contra C…, L.da (Zona Franca da Madeira), formulando o seguinte pedido:
«a) Que o presente procedimento cautelar seja liminarmente admitido;
b) Nesta sequência, que seja solicitado ao Capitão do Porto de Faro que tome as urgentes providências adequadas à respetiva guarda e retenção do barco X… melhor identificado no artigo 5 da presente ação, que se encontra amarrado na Marina de Vilamoura, nos termos do disposto no artigo 12.º, n.º 2 da Lei n.º 35/86, de 4 de Setembro;
c) Que seja julgado procedente o procedimento cautelar de arresto, por provado, e em consequência, determinado o arresto do barco X… melhor identificado no artigo 5. da presente ação, sem a audição prévia da Requerida».
Alega, em síntese, que se dedica à actividade de «administração e exploração de portos de recreio, bem como a administração e exploração de concessões e/ou licenças de utilização privativa de bens do domínio público marítimo, incluindo unidades balneares, apoios de praia e corredores marítimo-turísticos, e, bem assim, a detenção de participações em sociedades que explorem quaisquer dessas actividades»[1]. No âmbito dessa actividade, é concessionária da Marina de Vilamoura[2], cabendo-lhe a sua exploração, celebrou com a Requerida um contrato de utilização temporária de posto de amarração e/ou estacionamento no parque seco, relativo à embarcação X…[3], propriedade da Requerida, encontrando-se por pagar, desde 11/7/2024, a contrapartida daquela utilização, no valor de € 29.535,99[4], não obstante as diversas interpelações efectuadas pela Requerente. Mais refere que a Requerida vem apresentando um resultado líquido negativo, tendo um passivo inferior ao activo, acumulando dívidas que não tem condições de solver e correndo risco de insolvência, sendo certo que o único bem que a Requerente lhe conhece é precisamente a embarcação X…. Conclui que, caso não seja decretado o arresto, corre risco de perder a única garantia patrimonial do seu crédito.
Foi proferido despacho liminar, que, entendendo que a competência para conhecer do procedimento cautelar cabe aos TAF, concluiu com o seguinte dispositivo:
«Assim sendo, indefiro liminarmente esta providência cautelar, por não ser este o Tribunal materialmente competente para da mesma conhecer.
Custas a cargo da Requerente ‘Marina de Vilamoura, SA’. (art. 527.º 1 e 2, do CPC)».
Não se conformando com esta decisão, dela apelou a Requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso de apelação tem por objeto os segmentos decisórios contidos na Decisão Final proferida pelo Tribunal a quo, a 14 de maio de 2025, referência n.º606609, nos termos dos quais, em primeiro lugar, o Tribunal indeferiu liminarmente a providência cautelar por se julgar materialmente incompetente para da mesma conhecer e, em segundo lugar, condenou a Requerente/Recorrente ao pagamento de custas processuais.
2. Isto porque, sintetizando o entendimento do Tribunal recorrido, na sua perspetiva, o litígio dos presentes autos tem por objeto a execução de um contrato administrativo, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alíneas d) e e), do ETAF.
3. Nesta sequência, o Tribunal a quo, considerada – erradamente, diga-se – que são competentes e para conhecer do mérito da causa os Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos dos artigos 1.º e 4.º do ETAF.
4. Acontece que, a decisão colocada em crise pela aqui Requerente/Recorrente se fundamenta numa errada aplicação dos artigos 1.º e 4.º do ETAF.
5. Na medida em que se impunha ao Tribunal a quo, ao invés daquelas normas, aplicar o disposto no artigo 113.º, n.º 1, alínea i), da LOSJ e no artigo 4.º, alínea i), da Lei n.º 35/86, de 04 de Setembro.
6. Com efeito, a realidade é que, analisando-se todos os elementos constantes dos autos, não persistem dúvidas de que se encontra em discussão um litígio emergente de uma relação jurídico privada, nomeadamente o não cumprimento do contrato celebrado entre as partes e o justo receio de perda de garantia patrimonial, os quais se encontram regulados na lei civil.
7. Apesar de a Requerente/Recorrente ser concessionária da Marina de Vilamoura, a mesma não está impedida de relações de direito privado com terceiros, como se vislumbra no contrato sub judice nos presentes autos.
8. Ademais, ficou claro que a causa de pedir da presente ação se fundamenta no não cumprimento do referido contrato e no justo receio de perda de garantia patrimonial da Requerente/Recorrente.
9. Mas mais, sendo certo que a aqui Requerente/Recorrente é a entidade concessionária da Marina de Vilamoura, mostra-se também claro que o contrato celebrado com a Requerida não equivale a um contrato administrativo, quer seja por natureza, quer seja por determinação da lei, quer seja por qualificação das partes, não se podendo qualificar a Requerente/Recorrente como sujeito público, nem como atuando no exercício do poder público, não sendo esta, ainda, uma entidade adjudicante.
10. Como tal, é patente que não se verifica assim o condicionalismo ínsito na alínea e), do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF.
11. Deste modo, podemos concluir que o objeto do presente litígio não integra as referidas alíneas do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, uma vez que o que está em causa é o (não) cumprimento de um contrato de direito privado pela Requerida e o justo receio de perda de garantia patrimonial da Requerente/Recorrente, não sendo evidenciado qualquer exercício de poder público e não existindo, no contrato celebrado a criação de uma relação jurídica administrativa,
12. Pelo que se conclui que será competente a jurisdição comum para conhecer do mérito da ação.
13. Como tal, em face do exposto, entende a aqui Recorrente que deverá o Doutro Tribunal ad quem revogar todos os segmentos decisórios objeto desta apelação, contidos na Decisão Final, substituindo-os por outra decisão que determine o prosseguimento dos autos.
14. O que aqui expressamente se requer.
Termos em que, com o Douto Suprimento de V. Exas., muito respeitosamente, se requer que sejam dado provimento ao presente recurso de apelação e, em resultado, sejam revogados os segmentos decisórios contidos no Despacho proferido pelo Tribunal a quo, a 14 de maio de 2025, referência n.º 606609, nos termos do qual se indeferiu liminarmente a providência cautelar de arresto, por se ter entendido que o Tribunal não seria competente para apreciar a mesma, e se condenou a Requerente/Recorrente ao pagamento de custas processuais, substituindo-se estes segmentos decisórios por outra decisão que determine o prosseguimento dos autos.
Assim se fará a sã e costumeira JUSTIÇA!»
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635.º n.º4 e 639.º n.º1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões formuladas pela recorrente nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3.º n.º3 e 5.º n.º3 do Código de Processo Civil). Note-se que «as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa». Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022 – 7.ª ed., págs. 134 a 142; Ac. STJ de 7/7/2016, proc. 156/12, disponível em http://www.dgsi.pt].
A esta luz, é a seguinte a questão que cumpre apreciar:
- [In]competência do tribunal recorrido, em razão da matéria, para conhecer do procedimento cautelar.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para a decisão relevam as ocorrências fáctico-processuais supra transcritas no relatório, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
A única questão que nos ocupa é, como se disse, averiguar da competência material para conhecer do presente procedimento, tendo o tribunal a quo concluído pela incompetência do Tribunal Marítimo, por entender serem competentes os TAF.
Nos termos dos arts. 64.º, 65.º, 96.º a) e 278.º n.º1 a) do Código de Processo Civil (em consonância com o art. 211.º da Constituição da República Portuguesa), são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, sendo as leis de organização judiciária que determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada. A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, caso em que o juiz se deve abster de conhecer do pedido e absolver o réu da instância.
O referido art. 64.º, como ensina o Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Coimbra, 1982, pág. 201), «enuncia o critério geral de orientação para a solução do problema da determinação do tribunal competente em razão da matéria»: «as causas que não forem atribuídas pela lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal comum». «A lei, ao criar e organizar os tribunais especiais, deve delimitar, cuidadosamente, e delimita na verdade, a sua zona de competência, isto é, deve especificar as causas para as quais é competente. Todas as causas que, por lei, não são da competência dalgum tribunal especial pertencem ao foro comum. De modo que a competência dos tribunais especiais determina-se por investigação directa: vai-se ver qual é, segundo a lei orgânica do tribunal, a espécie ou espécies de acções que podem ser submetidas ao seu conhecimento. Pelo contrário, a competência do foro comum determina-se por exclusão: apurado que a causa de que se trata não entra na competência de nenhum tribunal especial, conclui-se que para ela é competente o tribunal ou juízo comum. Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais especiais e de se ter verificado que nenhuma disposição de lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial».
As regras de competência em razão da matéria que permitem determinar as causas atribuídas a cada tribunal encontram-se previstas na LOSJ (L 62/2013 de 26-8), em cujo art. 40.º se determina que:
«1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada».
Vigora, pois, a regra da competência residual dos tribunais judiciais.
Por seu turno, no art. 130.º n.º1, do mesmo diploma, prevê-se que os juízos locais cíveis e de competência genérica possuem competência quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada. Também aqui vigora, pois, o critério da competência residual: se a causa não couber na competência de um juízo especializado, a competência para a apreciar cabe aos juízos locais cíveis [ou de competência genérica, consoante a organização territorial], pelo que, perante determinada acção, há, desde logo, que verificar se a mesma cabe, ou não, na competência legal de um tribunal especializado.
A demarcação da competência das diversas espécies de tribunais obedece, assim, a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes (cfr. art. 211.º n.º1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94), sendo certo que, para efectuar tal demarcação, «as normas adjectivas e as que respeitam à organização judiciária devem pautar-se pela clareza, de modo a evitar discussões em torno da simples identificação da secção do tribunal com competência especializada para a apreciação dos litígios. Para que esse objectivo não seja postergado, é necessário também que na interpretação das normas sobre a distribuição de competências não se extraiam delas soluções que não foram inequivocamente assumidas pelo legislador. É o legislador e não propriamente o intérprete ou o julgador que deve velar pela correcta distribuição das competências, devendo evitar-se interpretações de que resultem soluções que não foram inequivocamente assumidas. Se o legislador limita a competência especializada através de uma exaustiva enunciação que não torna aconselhável a introdução de outras acções», não parece «ajustado que se amplie por via jurisprudencial ou doutrinal a competência que o legislador avisadamente pretendeu circunscrever à que decorre» da norma que prevê a competência de determinado juízo especializado (cfr. Ac. do STJ de 1/6/2017, proc. 5874/15, disponível em http://www.dgsi.pt).
Relativamente ao Tribunal Marítimo, rege o art. 113.º da LOSJ, de acordo com o qual[5]:
«1 - Compete ao tribunal marítimo conhecer das questões relativas a:
a) Indemnizações devidas por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima, nos termos gerais de direito;
b) Contratos de construção, reparação, compra e venda de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, desde que destinados ao uso marítimo;
c) Contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal;
d) Contratos de transporte por via fluvial ou por canais, nos limites do quadro n.º 1 anexo ao Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/72, de 31 de julho;
e) Contratos de utilização marítima de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, designadamente os de fretamento e os de locação financeira;
f) Contratos de seguro de navios, embarcações, outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo e suas cargas;
g) Hipotecas e privilégios sobre navios e embarcações, bem como quaisquer garantias reais sobre engenhos flutuantes e suas cargas;
h) Processos especiais relativos a navios, embarcações, outros engenhos flutuantes e suas cargas;
i) Procedimentos cautelares sobre navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, respectiva carga e bancas e outros valores pertinentes aos navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, bem como solicitação preliminar à capitania para suster a saída das coisas que constituam objecto de tais procedimentos;
j) Avarias comuns ou avarias particulares, incluindo as que digam respeito a outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo;
k) Assistência e salvação marítimas;
l) Contratos de reboque e contratos de pilotagem;
m) Remoção de destroços;
n) Responsabilidade civil emergente de poluição do mar e outras águas sob a sua jurisdição;
o) Utilização, perda, achado ou apropriação de aparelhos ou artes de pesca ou de apanhar mariscos, moluscos e plantas marinhas, ferros, aprestos, armas, provisões e mais objetos destinados à navegação ou à pesca, bem como danos produzidos ou sofridos pelo mesmo material;
p) Danos causados nos bens do domínio público marítimo;
q) Propriedade e posse de arrojos e de coisas provenientes ou resultantes das águas do mar ou restos existentes, que jazam nos respetivos solo ou subsolo ou que provenham ou existam nas águas interiores, se concorrer interesse marítimo;
r) Presas;
s) Todas as questões em geral sobre matérias de direito comercial marítimo;
t) Recursos das decisões do capitão do porto proferidas em processo de contraordenação marítima.
2 - A competência a que se refere o número anterior abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
3 - Nas circunscrições não abrangidas pela área de competência territorial do tribunal marítimo, as competências referidas nos números anteriores são atribuídas ao respetivo tribunal de comarca».
Conforme se refere, entre outros, no Ac. do STJ de 21/9/2010 (proc. 1096/08, disponível em http://www.dgsi.pt), a apreciação da competência material dos tribunais afere-se em função do pedido e da causa de pedir expostos na petição inicial [pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante].
Assim, o que releva, para a determinação da competência, é a relação material controvertida, tal como a mesma é configurada, na petição inicial, pelo autor, em confronto com as normas delimitadoras da competência, sem que o tribunal, ao efectuar tal operação, entre na apreciação do mérito da causa (designadamente, procedendo a diversa qualificação jurídica dos factos – a não ser que haja lapso manifesto do autor na invocação das normas aplicáveis).
Compulsados o pedido (arresto de uma embarcação) e a causa de pedir no presente procedimento, não restam dúvidas de que, caso se conclua pela competência dos tribunais judiciais para dele conhecer, tal competência caberá, enquanto tribunal especializado, ao Tribunal Marítimo, em conformidade com o disposto no n.º1 i), daquele art. 113.º da LOSJ [que, aliás, constitui a reprodução do art. 4.º i) da L 35/86 de 4-9].
No entanto, tal como se disse, apenas se poderá considerar que o procedimento cautelar sub judice pertence à competência residual dos tribunais judiciais se o mesmo não foi atribuído a outra ordem jurisdicional, como é o caso da administrativa.
De acordo com o art. 212.º n.º3 da Constituição da República Portuguesa, «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Por seu turno, em concretização daquele preceito constitucional, o art. 4.º do ETAF dispõe que[6]:
«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de actos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo acções de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de actos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respetivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes acções de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva».
O tribunal recorrido entendeu que o crédito que a Requerente pretende acautelar mediante o procedimento cautelar se integra no n.º1 e) daquele art. 4.º, enquanto a ora recorrente entende que não.
Vejamos.
Tal como plasmado no Ac. RC de 12/9/2017 (proc. 1021/16, disponível em http://www.dgsi.pt), «segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial. A jurisdição administrativa é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 1º, nº 1, do ETAF e 212º, nº 3, da CRP). Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa. Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «“por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”».
O que vem alegado pela Requerente como causa de pedir no procedimento cautelar é a titularidade de um crédito sobre a Requerida e o receio de perda da garantia patrimonial disponível. Na versão apresentada no requerimento inicial (que, como vimos, é a relevante), aquele seu crédito emerge da celebração, entre Requerente e Requerida, de um contrato, mediante o qual a primeira cedeu à segunda o gozo temporário e remunerado de um posto de amarração de uma embarcação, tendo a Requerida incumprido a sua obrigação de pagamento da contrapartida pecuniária fixada no preçário da marina.
Ora, é certo que, como refere o tribunal a quo, a Requerente, na qualidade de concessionária, que lhe foi atribuída pelo Estado Português, administra bens do domínio público, já que a marina de Vilamoura se situa no domínio público marítimo - cfr. arts. 3.º, 4.º e 9.º n.º2 da L 54/2005 de 15-11. No entanto, tal circunstância não impede que a Requerente, no exercício de tal actividade, estabeleça com terceiros relações de carácter jurídico-privatístico, ou seja, relações nas quais não surja dotada de poderes de autoridade, não atribua direitos ou imponha deveres públicos aos particulares, nem tenha perante estes restrições de interesse público.
Tudo está, pois, em saber se o contrato a que se reporta o requerimento inicial pode considerar-se integrado na previsão do art. 4.º n.º1 e) do ETAF, ou se antes se configura que é regulado por normas de direito privado.
É que, de acordo com o art. 200.º do CPA[7], aplicável à Requerente por força do art. 2.º, do mesmo diploma[8], as entidades administrativas podem celebrar contratos administrativos, sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo, ou contratos submetidos a um regime de direito privado. São contratos administrativosos que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicosou em legislação especial.
Como se refere no Ac. STJ n.º5/2022 de 21-6[9], do art. 4.º n.º1 e) do ETAF resulta «que a jurisdição administrativa, em matéria de contratos, não se circunscreve aos contratos administrativos, continuando a estender o âmbito da jurisdição administrativa a “quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas de direito público ou outras entidades adjudicantes”, ou seja, “o âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos é mais amplo do que a categoria dos contratos administrativos: o critério do contrato administrativo é um dos critérios adotados pelo art. 4.º/1 do ETAF, mas não é o único critério do qual ele faz depender a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos, pois há outro critério, o da submissão do contrato a regras de contratação pública”». Assim, estão «sujeitos à jurisdição administrativa, em matéria de litígios sobre contratos, quer os contratos administrativos (isto é, os contratos que apresentem alguma das notas de administratividade constantes das alíneas do art. 280.º/1 do CCP[10] - preceito que, antes, correspondia ao art. 1.º/6 do CCP), quer os contratos, independentemente da sua qualificação ou não como contratos administrativos, submetidos a regras de contratação pública.
Efetivamente, de acordo com as 4 alíneas do art. 280.º/1 do CCP (idênticas às do inicial art. 1.º/6 do CCP) são qualificáveis como contrato administrativo:
a) Os contratos administrativos por natureza, que são submetidos a um regime de direito administrativo em razão da natureza pública do seu objeto ou do seu fim, integrando este grupo os contratos a que se referem as alíneas b), c) e d) do art. 280.º/1 do CCP;
b) Os contratos administrativos por determinação da lei, que abrange os tipos contratuais que, ainda que não sejam contratos administrativos por natureza, a própria lei opta por qualificar como administrativos, submetendo-os a um regime substantivo de direito público (cf. alínea a) do art. 280.º/1 do CCP): são os contratos administrativos típicos previstos no título II da parte III do CCP e os demais contratos administrativos típicos ou nominados previstos na legislação avulsa; e
c) Os contratos administrativos por qualificação das partes, que abrange contratos administrativos atípicos que poderiam ser contratos de direito privado, mas são contratos administrativos apenas porque assim as partes o querem e determinam (cf. alínea a) do art. 280.º/1 e 3.º/1/b) e 8.º do CCP).
Sucedendo, como já se referiu, que, além do «critério do contrato administrativo», também o «critério do contrato submetido a regras de contratação pública» continua a atribuir, segundo a alínea e) do art. 4.º/1 do ETAF (na redação da revisão do ETAF de 2015, ao caso aplicável), competência à jurisdição administrativa: «desde que um contrato seja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir devem ser objeto de uma ação a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais - e isto, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo, nos termos do CCP».»
No caso dos autos, como já por demais foi sublinhado, a Requerente reporta-se a um contrato mediante o qual foi cedido o gozo temporário e exclusivo de um posto de amarração de uma embarcação numa marina de cuja administração e exploração a Requerente é concessionária.
Embora resulte da própria designação da Requerente que a mesma é uma sociedade anónima de direito privado, o certo é que, no uso dos poderes que lhe foram concedidos pelo contrato de concessão celebrado com o Estado Português, cabe-lhe a administração e exploração de um bem pertença do domínio público marítimo, exercendo, assim, uma função materialmente administrativa.
E, através do contrato sub judice, cedeu (alegadamente) à requerida, mediante contrapartida monetária, a utilização privativade um posto situado na marina de Vilamoura que, como já referimos, faz parte do domínio público marítimo.
Como refere Fernando Alves Correia[11], «o uso privativo surge, em regra, concebido como um dos modos de utilização dos bens do domínio público pelos particulares. Face ao uso comum, o uso privativo apresenta duas notas distintivas essenciais a compreender nas suas cumplicidades: a necessidade da existência de um título jurídico-administrativo e a exclusividade. A ideia de exclusividade aponta em dois sentidos: por um lado, para o facto de o uso privativo possuir beneficiários determinados ou individualizados; por outro lado, para a circunstância de estes últimos serem titulares do direito de extrair dos bens dominiais um proveito pessoal, directo e imediato, com a faculdade de afastar quaisquer outros sujeitos que pretendam retirar da coisa utilidades, cujo aproveitamento se revele total ou parcialmente incompatível com aquele direito.
A existência de um título jurídico-administrativo constitui uma consequência da imprescindibilidade da individualização dos beneficiários do uso privativo. Tal título individualizador e individualizado (…) é outorgado pela Administração no exercício de um poder discricionário e reveste um carácter pessoal (…) Desse título constará uma referência ao âmbito de possibilidades de utilização (os fins e os limites do direito de uso privativo, como se lhes refere o legislador), aos deveres emergentes para as partes (designadamente, quanto ao pagamento de taxa pelo concessionário), assim como a descrição da parcela dominial objecto do uso privativo, em termos que permitam a respectiva identificação física. (…)
[A] atribuição do uso privativo pode ser efectuada mediante concessão ou autorização (neste último caso, e de acordo com a terminologia da lei, mediante uma licença). (…)
A terminologia legal (seguida, em alguns casos, pela doutrina) aponta, então, para uma dualidade de títulos constitutivos, a que faz corresponder uma dualidade de formas de actuação administrativa. O legislador refere-se a licença de uso privativo, quando a outorga do mesmo é efectuada mediante acto administrativo, o qual origina para o particular uma posição mais precária, precariedade essa que, em geral, resulta da previsão de um prazo menor de duração e da circunstância de a respectiva revogação não dar lugar a uma indemnização. Por outro lado, a alusão a concessão de uso privativo reporta-se às hipóteses em que este é atribuído ao particular através de um contrato administrativo, colocando-o numa posição mais estável, tal como resulta - e ao contrário do que vimos com a «licença» - do prazo superior por que são outorgadas e do direito que o particular tem a uma indemnização em caso de rescisão unilateral por imperativo de interesse público. (…)
Enquanto a autorização se refere precipuamente a actividades pertencentes ao sector privado que excepcionalmente se encontram retiradas da esfera dos particulares, a concessão implica a constituição ex novo na esfera dos particulares de faculdades que derivam de uma posição da Administração. Ora, em termos técnico-jurídicos, enquadra-se nesta última hipótese a outorga de um uso privativo a um particular: o que significa que o título atributivo do uso privativo assume sempre a natureza de concessão, independentemente de a forma de actuação administrativa em causa ser um acto administrativo ou um contrato administrativo. Efectivamente, não pode afirmar-se que existe na esfera jurídica dos particulares, antes de qualquer actuação administrativa nesse sentido, o poder de aproveitar privativamente certas utilidades do domínio público: apenas nos bens cuja função pública se cumpre através de uma utilização colectiva, o uso (comum) está universalmente aberto, em regra, sem necessidade de uma actuação administrativa (…).
Se, através da concessão, ao particular é conferido o direito de uso privativo para a realização de uma finalidade essencialmente privada (…), estaremos indubitavelmente perante uma concessão constitutiva. Já se se tratar da atribuição do uso privativo para a instalação de construções que representem o suporte para o exercício de uma actividade de serviço público, o título consubstanciar-se-á numa concessão translativa, dado que a prossecução daquela actividade se encontraria já na esfera da Administração (…).
Deve entender-se que o direito de uso privativo do domínio público implica para o respectivo titular a faculdade de, durante um lapso temporal determinado, retirar de uma parcela dominial identificada todas as utilidades nos termos e para os fins constantes do título constitutivo, tendo, em regra, como contrapartida o dever de pagamento de uma prestação pecuniária (…).
[E]m regra, a atribuição de um uso privativo do domínio público pressupõe a nota da onerosidade ou rentabilidade. Repare-se, porém, que a característica da rentabilidade opera nos dois sentidos: em relação ao concessionário, uma vez que a concessão há-de vigorar por um prazo suficientemente longo, que lhe permita recuperar os investimentos efectuados e cumprir as suas expectativas económicas; em relação à Administração, dado que esta exige, em regra, como contrapartida o pagamento de uma prestação pecuniária.
Se dúvidas ainda persistissem acerca da natureza jurídica desta prestação pecuniária, as mesmas são, hoje, esclarecidas em diplomas diversos, desde logo, na Lei Geral Tributária (Decreto-Lei n.° 398/98, de 17 de Dezembro, emitido no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.° 41/98, de 4 de Agosto), que, embora não distinguindo as situações de uso comum e de uso privativo, qualifica genericamente como taxa a prestação exigida como contrapartida pela utilização de um bem do domínio público (artigo 4.°, n.° 2)».
Se analisarmos o contrato de que, alegadamente, emerge o crédito invocado pela Requerente, logo vemos que se encontram preenchidas todas estas características[12], supra mencionadas: mediante tal contrato terá sido concedido pela Requerente, no uso de competências administrativas, a um particular (a Requerida) o uso de um bem perfeitamente identificado (posto de amarração) do domínio público (marítimo), com carácter de exclusividade, para uma finalidade privada, mediante o pagamento de um valor fixado pela Requerente, sendo certo que o poder da Requerida de aproveitar dessas utilidades do domínio público não existia previamente à celebrado do contrato. Note-se que, apesar de no contrato se referir a existência de um preçário, o nomen juris atribuído pelas partes é irrelevante, porquanto, de acordo com o já citado art. 4.º n.º2 do DL 398/98 de 17-12, a contrapartida que a Requerida, alegadamente, terá deixado de pagar corresponde a uma taxa.
Estamos, portanto, perante um contrato administrativo de concessão que, não só é administrativo por natureza (já que o seu objecto inclui a constituição de um direito pessoal de gozo público), como integra um contrato administrativo típico - cfr. art. 280.º n.º1 a), b) e c) do CCP. Isso mesmo resulta também do disposto nos arts. 27.º e 28.º do DL 280/2007 de 7-8[13], que prevêem que «os particulares podem adquirir direitos de uso privativo do domínio público por licença ou concessão» (art. 27.º). Essa aquisição decorre de «acto ou contrato administrativos», que confiram «a particulares, durante um período determinado de tempo, poderes exclusivos de fruição de bens do domínio público, mediante o pagamento de taxas» (art. 28.º n.º1).
Tal foi, aliás, reconhecido pelo Ac. do Tribunal dos Conflitos de 27/9/2023[14], que entendeu que um contrato de utilização de posto de amarração semelhante ao dos autos, celebrado entre determinada entidade e a Marina de Leixões, constitui um contrato administrativo, porque, em síntese: dele constam poderes de autoridade da Marina (como a modificação unilateral do lugar de amarração); o objecto do contrato participa do interesse público subjacente à disciplina da concessão do uso privativo de um bem do domínio público; as regras do regulamento de utilização da marina fazem parte do contrato; as taxas aplicáveis à utilização do posto encontram-se disciplinadas no regulamento.
Também pelo Ac. TCAS de 29/10/2020[15] se entendeu que «a cedência do direito de utilização temporário e exclusivo dos postos de amarração nºs G1, G2 e G3, do Porto de Recreio de Oeiras, à Recorrida, foi efectuada através de contrato que, face ao disposto no transcrito art.º 28.º, n.º 1, deve ser tido como um contrato administrativo, dado que tem por objecto o uso e fruição de bens que se integram no domínio público marítimo. A natureza administrativa do contrato é ainda confirmada pelos critérios de administratividade que constam do art.º 280.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CCP, aqui aplicáveis. Estamos perante um contrato com objecto passível de acto administrativo (no caso, como se viu, a lei prevê que o direito de uso privativo dos postos de amarração pode ser adquirido por meio de licença) e perante um contrato que, em função do seu objecto confere ao co-contratante direitos especiais sobre coisas públicas».
Acresce que a amarração não se esgota na utilização do posto cedido, incluindo também as manobras da embarcação na marina: como se refere no art. 2.º n.º6 do Regulamento (UE) n.º2017/352 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Fevereiro de 2017 (embora não aplicável directamente, mas de onde se pode extrair o conceito legal de amarração), «amarração» define-se como «os serviços de atracação e desatracação, incluindo manobras ao longo do cais, necessários para permitir que as operações dos navios no porto ou na via navegável de acesso ao porto sejam realizadas com segurança». Ora, estas manobras encontram-se previstas no Regulamento de Exploração da Marina (Regulamento n.º1/91 de 17 de Janeiro[16]), que contém prerrogativas de autoridade da Requerente, sendo certo que, mediante as cláusulas 12 e 13 do contrato em causa nos autos, o «cliente» declara aceitar cumprir tal regulamento, bem como as sanções que lhe poderão ser impostas em caso de inobservância das obrigações constantes daquele documento. A faculdade de exercício desses poderes de autoridade pela Requerente é uma característica que reforça o carácter administrativo do contrato - cfr. art. 409.º do CCP.
Em suma, trata-se de um contrato que cabe na previsão do art. 4.º n.º1 e) do ETAF, pelo que a competência para conhecer das questões a ele atinentes cabe à jurisdição administrativa. Assim sendo, também o conhecimento dos procedimentos cautelares respectivos cabe àquela jurisdição e não aos tribunais judiciais - cfr. art. 2.º n.º1 e n.º2 q) e art. 3.º n.º3 do CPTA[17].
Deve, pois, manter-se a decisão recorrida, improcedendo o recurso.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente - art. 527.º do Código de Processo Civil.
Lisboa, 17-06-2025,
Alexandra de Castro Rocha
Paulo Ramos de Faria
Ana Mónica Mendonça Pavão
_______________________________________________________ [1]Conforme certidão permanente que constitui o documento 1 do requerimento inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzida. [2] Conforme documento 2 do requerimento inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, intitulado «contrato administrativo de concessão da construção e exploração de um porto destinado ao serviço da navegação de recreio, junto da povoação da Quarteira, no Algarve, com vista ao aproveitamento turístico da região», documento esse datado de 24/7/1970, com um aditamento efectuado em 19/7/2004, celebrado entre o Estado Português e Lusotur, S.A. (esta, entretanto, incorporada na aqui Requerente). [3] Conforme documento 5 do requerimento inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta a declaração de que a Requerente reconhece ao «Cliente» o direito de amarrar uma embarcação de recreio, no posto de amarração e cais, obrigando-se o «Cliente» a pagar, no acto da assinatura do documento, «o valor estipulado no preçário da Marina». [4] Conforme factura que constitui o documento 7 do requerimento inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 11/7/2024. [5] Sublinhado nosso. [6] Sublinhado nosso. [7] Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo DL 4/2015 de 7-1. [8] O qual dispõe que as disposições do CPA relativas à actividade administrativa são aplicáveis à conduta de quaisquer entidade, independentemente da sua natureza, adoptada no exercício de poderes públicos ou regulada por disposições de carácter administrativo. [9] Disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/5-2022-184965300 [10] Código dos Contratos Públicos - DL 18/2008 de 29-1. [11]In Direito e Justiça (2005), (Especial), págs. 101 a 116, estudo disponível em https://revistas.ucp.pt/index.php/direitoejustica/article/view/11333 . [12] Embora a aqui relatora já tenha defendido posição diversa, aqui revê tal posição, face aos argumentos expostos de seguida. [13] Regime Jurídico do Património Imobiliário Público. [14] Proc. 010976/21, disponível em https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9da592b098dfb7fe80258a4400461629?OpenDocument . [15] Processo n.º 534/20, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/1d95190a9dca75948025861000574c56?OpenDocument . [16] Disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-regulamentar/1-495326 . [17] L 15/2002 de 22-2.