RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABUSO SEXUAL
MENOR
PENA PARCELAR
DUPLA CONFORME PARCIAL
IRRECORRIBILIDADE
REJEIÇÃO PARCIAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
PENA ÚNICA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I - Um acórdão de um tribunal da relação que confirma a condenação da 1.ª instância e aplica penas parcelares não superiores a 5 anos de prisão não é recorrível para o STJ.
II - Essa irrecorribilidade mantém-se mesmo que o tribunal de 1.ª instância tenha aplicado uma pena de prisão inferior à decidida pelo tribunal da Relação.
III - Não se pronunciando o STJ sobre as penas parcelares (dado essa decisão ser irrecorrível) é manifestamente improcedente o recurso que assenta o pedido de diminuição da pena única numa esperada (mas não verificada) diminuição daquelas penas parcelares.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:

A - Relatório

A.1.A decisão da primeira instância.

Através de acórdão proferido a 07 de outubro de 2024, pelo Juízo Central Criminal de ... (Juiz...), no Proc. nº 601/22.6..., AA foi condenado, designadamente e no que ora interessa, nos seguintes termos:

• Pela prática de 8 (oito) crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 171º, nº 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, por cada um dos crimes;

• Em cúmulo jurídico das penas referidas, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão;

• Foi também decidido suspender a execução desta pena única pelo período de 4 (quatro) anos, sujeita a regime de prova;

A.2. O recurso do Ministério Público

O Ministério Público não se conformou com essa decisão, pelo que dela recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra o qual, através de acórdão proferido a 22 de janeiro de 2025, revogou a decisão acima referida e condenou o arguido nas seguintes penas:

1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão por cada um dos 8 (oito) crimes de abuso sexual de menor, previsto e punível pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal;

5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, pena única resultante do cúmulo jurídico operado relativamente às penas anteriormente referidas.

A.3. O recurso do arguido para o STJ

Inconformado com esta decisão recorre agora o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição integral):

“CONCLUSÕES:

1 - Por douta decisão do Tribunal de Instância Central Criminal de ..., foi o arguido aí condenado:

- Pela prática de 8 crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido pelos artigos 171 nº 1 do C. Penal (na pessoa da menor BB)

2 - Não se conformando com a douta decisão do Tribunal de Instância Central Criminal de Leiria, dela interpôs recurso o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra, que viria a ser julgado procedente, tendo aquele Venerando Tribunal, por douto acórdão recorrido, alterado aquela douta decisão e condenado o arguido na pena de 1 ano e 8 meses por cada crime e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva.

3 - Com a douta decisão do Tribunal da Relação na parte que alterou a pena de prisão de 4 anos, suspensa por igual período, por uma pena efectiva de prisão de 5 anos e 6 meses, não se pode o arguido conformar, salvo melhor opinião aplicou de forma incorreta os pressupostos do artigo 71 do Código Penal, e assim aplicou, uma pena demasiado pesada para o caso em apreciação nos presentes autos.

4 - Com base nos factos considerados provados e, no demais aí referido e, ainda recorrendo à referência a situações genéricas, no que se inclui o que consta do site da APAV e, estudos mundiais, o Tribunal recorrido alterou a pena individual de cada crime anteriormente fixada pelo Tribunal de Leiria em 1 ano e 3 meses, para um 1 ano e 8meses, aplicando a final a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva.

5 - Com o devido respeito por posição contrária, o Tribunal da Relação de Coimbra efectuou uma errada determinação da medida da pena.

6 - No caso concreto, além dos demais factos aí constantes, resultou provado que o arguido tem uma vida familiar e profissional estável, tem 3 filhos entre os 4 e os 13 anos, reside com a companheira há 18 anos e, do Certificado do Registo Criminal nada consta, tudo conforme melhor consta dos factos provados sob os nºs 16 a 30 da douta decisão recorrida.

7 - E, do Relatório Social elaborada a 29/08/2024 de fls .., consta aí nas conclusões, que o arguido mantém uma relação de 18 anos com CC, que o casal tem 3 filhos menores, e que o enquadramento familiar aparenta ser estável, de ligação e de partilha de valores comuns.

8 - Mais resulta aí descrito que, o arguido desde os 15 anos que está inserido no mercado de trabalho sem períodos de inactividade, e que é considerado uma pessoa com hábitos enraizados de trabalho.

9 - Mais resulta das conclusões do referido relatório, que o arguido não mantém com a ofendida qualquer contacto, e que o presente processo crime é apenas do conhecimento da companheira do arguido e da filha mais velha de ambos, as quais prestam apoio emocional ao arguido, resultando ainda do aí descrito que, caso o arguido venha a ser condenado, reúne as condições para o cumprimento de uma medida penal de execução na comunidade sem intervenção da DGRSP, tudo conforme consta das conclusões do referido Relatório Social.

10 - Resulta ainda do 5º parágrafo de fls. 4 do Relatório Social que:“No actual lugar de residência, AA é conhecido pelo agregado familiar que compõe, pela sua dedicação à família e pelos seus hábitos de trabalho. Aquando da deslocação efectuada ao meio, nos contactos efectuados, não surgiram referencias a condutas similares à que está acusado ou referência ao presente processo, pelo que a situação processual do arguido aparenta ser desconhecida.”

11 - E do parágrafo 6 de fls. 4 do mesmo Relatório, consta o seguinte: “Este é o primeiro contacto de AA com o sistema de justiça penal, pelo qual manifesta preocupação, se o mesmo vier a ser conhecido nos meios onde interage, quer social ou profissional, e das consequências que possam recair na sua família. O arguido tem um discurso alinhado com valores contrários à conduta que lhe é imputada, identifica condutas do ponto de vista do dever ser jurídico e normativo e consciência do dano para as vitimas.”

12 - Resulta assim do exposto que o arguido é uma pessoa social e profissional bem integrada e, como a sua situação familiar estável com 3 filhos menores que dele dependem, sem qualquer passado criminal.

13 - Mais resulta que os crimes foram praticados sob uma única pessoa em relação à qual não consta dos provados que tenha ficado a padecer de qualquer sequela em consequência dos factos em que o arguido foi condenado.

14 - Assim, atendendo à situação pessoal, profissional e familiar do arguido, à ausência da na prática de qualquer crime anterior ao presente, entende-se que a censura do facto e, a ameaça de execução de pena de prisão, serão aptos a assegurar as finalidades da punição, afastado o arguido do cometimento futuro de factos semelhantes.

15 - Pelo que, atendendo à situação em apreciação, entende-se que a pena aplicada ao arguido pelo Tribunal recorrido, é manifestamente excessiva para a situação em apreciação nestes autos.

16 - Salvo melhor opinião, a douta decisão anteriormente proferida pelo Tribunal de 1ª Instância mostra-se mais adequada e justa, tanto mais que além da pena de 4 anos suspensa por igual período, foi aplicado ao arguido um regime de prova e, diversas sanções acessórias.

17 - Assim, tratando-se de 8 crimes de abuso sexual cujas penas de prisão varia entre os 1 a 8anos, mostra-se justa e adequada a pena de 1 anos e 3 meses por cada crime tal como foi decidido em 1ª Instância e, em cúmulo jurídico na pena única de 4 anos, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova e sanções acessórias.

18 - Devendo assim a douta decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra ser alterada e, substituída por outra que fixe ao arguido, tal como o fez Tribunal de Primeira Instância, uma pena única de 4 anos suspensa por igual período de tempo sujeita ao regime de prova decidido em 1ª Instância, mantendo ainda todas as sanções acessórias constantes da douta decisão de Primeira Instância, sob pena de se estar a violar o preceituado no artigo 71 do C. Penal, ou caso assim se não entenda, deverá sempre a pena ser suspensa.

A.4. Resposta do MP

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra opinou no sentido da manutenção do decidido, fundamentando a sua resposta nos fundamentos constantes do acórdão da primeira instância e acrescentando, apenas, o seguinte:

“Apenas se poderá acrescentar, em sede de determinação de medida da culpa do arguido, que para além da gravidade dos factos por si reiteradamente praticados e da censurabilidade da motivação que o levou a tal prática, o respectivo grau de culpa é ainda acentuado pela sua conduta processual de absoluta negação de qualquer responsabilidade por esses mesmos factos, demonstrativa duma total ausência de arrependimento e de reconhecimento dos danos causados à vítima – em termos que serão, salvo melhor opinião, susceptíveis de ponderação à luz do disposto na alínea e) do nº 2 do art. 71º do C. Penal.”

A.5. Parecer

Neste Supremo Tribunal de Justiça o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto apresentou parecer, no qual acompanha a posição do seu Colega, aditando, designadamente, o seguinte (transcrição parcial):

“Ora, no caso dos autos, as exigências de prevenção geral mostram-se particularmente elevadas, atenta a dignidade que assume o bem jurídico aqui em causa.

Já no que concerne à prevenção especial, e tendo em vista um objetivo fulcral das penas, pretende-se, através da aplicação de sanções penais a reintegração do arguido na sociedade e o seu afastamento da prática de crimes, o que significa que a pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, que o recorrente pretende ver-lhe aplicada seria irrisória e totalmente desadequada aos objetivos que acabámos de referir.”

A.6. Contraditório

Devidamente notificado nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não apresentou qualquer resposta.

* * *

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B - Fundamentação

B.1. âmbito do recurso

O âmbito do recurso delimita-se, como já atrás se referiu, pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença ( artigo 379º, nº do Código de Processo Penal).

Assim e em suma, as questões a apreciar no presente recurso reportam-se à medida das penas parcelares e única em que o arguido ficou condenado.

B.2. Matéria de facto dada como provada

Para proceder a essa apreciação importa, antes de mais, consignar a matéria de facto dada como provada e não provada e que serviu de fundamento à aplicação dessas penas

Assim, foi dada como provada a seguinte matéria de facto:

«1. BB nasceu a ... de ... de 2009.

2. O arguido conhece BB por ser amiga da sua filha DD, e por terem sido vizinhos e por residirem na mesma rua, na ....

3. Por força da amizade de BB com EE, filha do arguido, no ano de ..., BB começou a frequentar a residência do arguido, ali pernoitando, sobretudo aos fins de semana e pelo menos uma vez por mês.

4. Em dia não concretamente apurado do ano de 2017, mas tendo BB 8 (oito) anos de idade, e no interior da residência do arguido e de madrugada, aproveitando o facto da BB se encontrar a dormir, o arguido deslocou-se ao quarto onde a menor estava e aproximou-se da mesma.

5. De seguida, o arguido acariciou os seios de BB, colocando a sua mão por debaixo da sua roupa de dormir.

6. Após, o arguido introduziu a sua mão por debaixo da cueca de BB e acariciou-lhe as nádegas e, depois, colocou a mão sobre a sua vagina, por cima da cueca, e acariciou a vagina da mesma.

7. Tais factos sucederam pelo menos 7 (sete) vezes, seguramente entre os anos de 2017 e 2020 e sempre do modo descrito.

8. Em dia não concretamente apurado, mas durante o Inverno de 2021, na residência do arguido sita em ...1, tendo BB ali ido pernoitar, o arguido, durante a noite, aproveitando-se de a menor estar a dormir, dirigiu-se ao quarto onde aquela estava e aproximou-a da mesma.

9. Em ato seguido, o arguido acariciou os seios da menor, colocando a sua mão por debaixo da sua roupa.

10. De seguida, introduziu a sua mão por debaixo da cueca da menor e acariciou-lhe as nádegas e, depois, colocou a mão sobre a sua vagina, por cima da cueca, e acariciou a vagina da mesma.

11. O arguido sabia a idade de BB, aquando da prática de todos os factos.

12. Sabia ainda o arguido que, em função da sua idade, BB não tinha discernimento suficiente para se autodeterminar sexualmente, nem para avaliar tais práticas, e que não poderia consentir ou anuir nas mesmas.

13. O arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos libidinosos, os quais não soube nem quis refrear, conforme satisfez, utilizando para tanto a menor, bem sabendo que esta era menor de 14 anos, e indiferente à idade desta e às consequências de tal atuação sobre a mesma, aproveitando-se da relação de proximidade e confiança e do fácil contacto que mantinha com a mesma.

14. Mais sabia o arguido que, ao atuar da forma supra descrita, perturbava e prejudicava, de forma séria, o desenvolvimento da personalidade da menor, que ofendia os seus sentimentos de criança, pondo em causa o sentimento de vergonha e o pudor sexual da mesma e o seu normal e saudável desenvolvimento psicológico, afetivo e sexual.

15. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se apurou:

Da Situação Pessoal do Arguido:

16. À data dos factos, o arguido e o seu agregado familiar (composto pela companheira e 2 filhas menores) alternavam residência entre a localidade da ... e de ....

17. Tal alternância ocorreu entre 2016 e 2020, e deveu-se ao facto de o arguido e a sua companheira trabalharem em restaurante dos pais da companheira do arguido, na ..., descansando ali o casal durante a semana e regressando à residência de ... nos períodos de folgas.

18. Atualmente, e há cerca de 3 anos, o arguido e o seu agregado residem no lugar de ..., em ..., numa casa cedida pela entidade patronal do arguido.

19. O casal tem agora 3 filhos, com idades entre os 13 e os 4 anos.

20. O arguido mantém relacionamento com a companheira há 18 anos.

21. O arguido completou o 6º ano de escolaridade e, aos 15 anos de idade, abandonou os estudos, começando a trabalhar como servente da pintura civil.

22. Alguns meses depois, iniciou funções como armador de ferro, profissão que manteve durante 12 anos.

23. Para prover a maior estabilidade financeira da sua família, em 2012, passou a exercer as funções de montador refletivo, o que fez até 2016. Trabalhou em vários países da Europa, por jornadas de 3 semanas fora e uma a descansar em Portugal.

24. Em 2016, passou a exercer as funções de chefe de sala, no restaurante dos pais da sua companheira.

25. Em 2020, por força da pandemia e do decréscimo de faturação do restaurante, começou a trabalhar como manobrador de máquinas, em pedreira nos ....

26. Em 2021, tornou-se empregado com vínculo laboral, na mesma pedreira, auferindo cerca de € 1.000,00 mensais.

27. A companheira do arguido é auxiliar de geriatria num Lar, auferindo € 890,00 mensais.

28. O casal orienta os seus rendimentos para o cuidado dos filhos e para a reconstrução de casa herdada pela companheira do arguido, onde pretendem vir a morar

.

29. As atuais despesas de habitação (pagamento de utilização e consumos domésticos) da casa onde atualmente residem, no valor médio de € 400,00 mensais, são descontadas das horas extraordinárias que o arguido realiza, durante a semana e aos sábados.

30. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta».

E foi considerado não provado, o seguinte:

«Com relevo para a boa decisão da causa, não se logrou provar que os factos descritos em 4 a 6 dos factos provados ocorreram pelo menos nove vezes».

B.4. O Direito

B.4.1. Questão prévia

Como atrás se referiu o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a condenação do arguido e ora recorrente na prática de 8 (oito) crimes de abuso sexual de menor - previsto e punível pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal -, mas agravou a pena aplicada a cada um desses crimes, que passou a ser de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão2

Ora, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 432º do Código de Processo Penal, é lícito recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça das decisões proferidas pelos tribunais da relação que não sejam irrecorríveis.

Por outro lado, nos termos do disposto na al. e) do nº 1 do artigo 400º do mesmo diploma legal, não é admissível recurso das decisões dos tribunais da relação que, em recurso, apliquem pena de prisão não superior a 5 anos.

E, conforme jurisprudência deste Alto Tribunal, tal irrecorribilidade mantém-se, mesmo que o tribunal da relação tenha agravado a pena aplicada na primeira instância

Neste sentido e por todos, veja-se a decisão sumária deste Alto Tribunal de 26 de outubro de 2021 (proc. 5932/17.4T9AMD.P1.S1), com seguinte sumário

“É irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão condenatório da Relação que, em recurso, agrava a pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos e revoga a suspensão da execução da pena de prisão decidida em 1.ª instância.”3

Acrescente-se que vem sendo jurisprudência uniforme deste Alto Tribunal e também do Tribunal Constitucional, também acolhida doutrinalmente, que esta linha de pensamento, por nenhuma forma, bule com as garantias de defesa do arguido, nomeadamente quanto ao direito ao recurso, constitucionalmente acolhido, pelo menos, num grau, o suficiente para assegurar o duplo grau de jurisdição, em respeito pelos ditames dos seus artigos 18º, 20º e 32º, que consagram o direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva e as garantias do processo criminal, e correspondentes instrumentos de direito internacional a que Portugal se encontra vinculado, designadamente a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDH – artigo 2.º do Protocolo n.º 7), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE – artigo 48º) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP - artigo 14º, nº 5)

Na realidade, mostra-se inquestionável, que o artigo 32º, nº 1, da CRP, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição, isto é, um duplo grau de recurso em relação a quaisquer decisões condenatórias.

Finalmente, sempre se diga que, por força do plasmado no artigo 414º, nº 3 do Código de Processo Penal, a decisão de admissão do recurso e, bem assim, a fixação do seu efeito e regime de subida, pelo tribunal recorrido, são pronunciamentos que não vinculam o tribunal superior, o qual pode rejeitar aquele e modificar o efeito e / ou o regime de subida

Face a todo o exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 432º, nº1, al b) a contrario sensu, 400º, nº 1. al. e), 414º, nº 2 (primeiro segmento) e 420º, nº 1, al. b, todos do Código de Processo Penal, rejeita-se o recurso no que concerne às penas parcelares aplicadas ao recorrente, mantendo-se, neste domínio, a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra.

B.4.2. A medida da pena única

B.4.2.1. A motivação relativa à pretendida diminuição da pena única

Como decorre do atrás consignado, no recurso apresentado o arguido desenvolve a sua argumentação exclusivamente no que concerne à medida das penas parcelares aplicadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Ou seja, o recorrente apenas se reporta à redução da pena única para “4 anos suspensa por igual período de tempo e sujeita ao regime de prova” referindo que a mesma é “demasiado pesada para o caso em apreciação nos presentes autos.”

Com efeito, o recorrente fundamento tal pedido no pressuposto de que o recurso será provido quanto à diminuição das penas parcelares.

E, assim, não apresenta, com a ressalva do atrás consignado, argumentos ou fundamentos para o caso de este Supremo Tribunal de Justiça manter tais penas parcelares.

Aliás, em todo o texto não se encontra uma única referência ao disposto no artigo 77º do Código Penal…

Ora, os nºs 1 e 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal dispõem que:

“1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:

a. As normas jurídicas violadas

b. O sentido em que no entendimento do recorrente o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e eu sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e

c. Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente deve ser aplicada”

No caso em análise, o recorrente apresenta o referido pedido de redução da pena única, mas, para além da argumentação apresentada para fundamentar o pedido de redução das penas parcelares, não “enuncia” – muito menos “especificamente”“as razões do pedido” de diminuição da pena única, nem sequer indica “a norma violada” com a aplicação de tal pena única, reportando-se, apenas, ao artigo 71º do Código Penal e já não ao artigo 77º do mesmo diploma legal, que tem por epígrafe “Regras de punição do concurso”.

Acontece que este Supremo Tribunal de Justiça não pode debruçar-se sobre a medida das penas parcelares dado que, quanto a essa parte e pelas razões atrás expostas, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra é irrecorrível.

Tanto bastaria para que se considerasse que o recurso é manifestamente improcedente, já que não cabe a este Alto Tribunal corrigir a estratégia do Recorrente, nem suprir as deficiências do recurso apresentado, quanto à, in casu, falta de indicação das razões que porventura poderiam fundamentar o pedido de diminuição da pena única.

De qualquer forma, sempre se acrescentará algo mais.

B.4.2.2. A motivação da pena única

O Tribunal Recorrido fundamentou a pena única aplicada nos seguintes termos (transcrição parcial)4:

“Este homem tem muito poucas atenuantes, à luz do artigo 71º do CP, contando-se entre elas apenas o facto de não ter antecedentes criminais e a sua situação pessoal e familiar, estabilizadas q.b.

As circunstâncias agravantes são plúrimas e de relevo.

Não poderemos olvidar a situação deste homem, pai de família, que não hesitou em agredir sexualmente uma amiga de sua filha EE, por 8 vezes, desde 2017 até 2021 (a jovem foi vítima de abusos entre os seus 8 e os 12 anos), na calada da noite, mesmo sabendo que a filha EE ali dormia em cama ao lado.

Note-se que já em outra residência (...) não se coibiu de voltar a atacar sexualmente esta menina, então com 12 anos, não tendo desistido destes ímpetos predadores mesmo depois de um ano (no Inverno de 2021).

Portanto, prevaricou sete vezes em 4 anos (de 2017 a 2020), voltando ao quarto da filha, onde pernoitava de novo a BB, durante o inverno de 2021, praticando, assim, o 8º crime.

Renovou a decisão criminosa de forma absolutamente revoltante, voltando a praticar actos sexuais de relevo com uma jovem em crescimento.

(…)

Estamos perante toques intoleráveis, inaceitáveis e injustificados (nunca há colaboração da vítima aos 8, 9, 10, 11 e 12 anos de idade)…

Entende ainda a defesa que o arguido não parece ser assim tão perigoso que mereça ir para uma cadeia.

Contudo, a verdade é que nem só os arguidos perigosos «vão para a cadeia», mas os que atentam contra os valores intrínsecos de uma sociedade civilizada e erguida num Estado de Direito, quando se reconhece que as outras penas não detentivas não satisfazem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

E este homem foi perigoso para com esta menina, criando danos no seu espírito e na sua mente, equivalentes tantas vezes a balas no corpo.

Por outro lado, contra ele militam outras tantas circunstâncias.

Não confessou a ilicitude do seu comportamento, nem sequer se compadeceu com o sofrimento da BB, optando por atribuir culpas alheias para a mentira de que se disse alvo.

(..)

Foram cerca de 5 anos de abusos na pessoa de uma jovem, praticando inegáveis actos sexuais de relevo sobre o seu corpo de criança, renovando em cada acto a sua resolução criminosa (nem sequer tendo parado a sua vil acção após a mudança de casa em 2021).

E quando se fala em prevenção geral neste domínio, somos facilmente remetidos para as considerações de que este delito pretende obviar a uma das formas mais graves de violência, a violência sexual, em que as crianças são usadas, vilmente, como instrumentos de satisfação dos apetites sexuais dos adultos, violando-se assim a sua autodeterminação a este nível tão estrutural da dimensão do Ser Humano.

De facto, já aqui o deixámos escrito, também são elevadas as necessidades de prevenção geral no que tange ao sentimento comunitário de insegurança, face à constante violação da norma.

3.6. A pena de cúmulo foi fixada em QUATRO anos, a partir de uma moldura penal abstracta entre 1 ano e 3 meses de prisão e 10 anos de prisão.

Face às penas parcelares agora por nós aplicadas, a moldura do cúmulo passa a ser a seguinte, à luz dos critérios normativos do artigo 77º, nº 2 do CP:

1 ano e 8 meses de prisão a 12 anos e 4 meses de prisão.

Que dizer desta pena unitária?

Haverá assim, agora, que determinar a concreta medida da pena de cúmulo, considerando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º/1 do CP).

O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente».

A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado.

Tal decisão não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

(…)

Vejamos o nosso caso.

Nesta nossa situação, optou-se por uma pena de prisão de 4 ANOS, estrategicamente aí situada para permitir a suspensão prevista no artigo 50º do CP, pena essa que rotulamos como inadequada, face até à subida que se fez nas penas parcelares (subimos para 1 ano e 8 meses de prisão por cada um dos 8 crimes).

A pena aplicada em cúmulo não reflecte o elevado desvalor da acção, entendendo antes este tribunal de recurso que a pena de cinco anos e seis meses de prisão – ainda assim abaixo da linha média da moldura - é mais adequada, não ultrapassando a medida da culpa (que é intensa, assumindo a forma de dolo directo e reiterando-se em comportamentos múltiplos e sucessivos que revelam uma personalidade com um elevado grau de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico penal, maxime atendendo ao tipo de actos que o arguido praticou com uma criança, aos 8, 9, 10, 11 e 12 anos dela), sendo ainda adequada a responder às necessidades de prevenção geral (prementes) e especial (muito prementes) que no caso se verificam.

Devem aqui sublinhar-se os factores relativos à personalidade do arguido, manifestada na matéria de facto, de onde ressalta o facto de ter levado a efeito estes actos inenarráveis, aproveitando-se da presença em sua casa de uma amiga de sua filha para satisfazer com ela os seus instintos libidinosos e roubando-lhe (sem possibilidade de restituição) a possibilidade de viver a inocência da sua infância a partir dos 8 anos, bem como colocando-a na angústia de não poder contar a terceiros factos tão relevantes de que estava a ser vítima…

O relatório psicológico é claro em dizer que esta jovem ficou marcada com o abuso de que foi vítima.

Aí terá verbalizado o seguinte (fomos também ouvir o seu depoimento prestado em 5.5.2023, em declarações para memória futura):

«Eu com isto comecei a ficar mais alerta com tudo, mais desconfiada e não gosto do toque físico com outras pessoas...».

Nesse mesma perícia foi apurada na sua pessoa:

«- a presença de desregulação emocional ou afetiva (i.e., depressão?);

- a presença de problemas comportamentais;

- a presença de evidências de um desenvolvimento perturbado da personalidade;

- a presença de acontecimentos traumáticos na infância (i.e., abuso sexual?)».

A perícia conclui assim:

«Face ao exposto, à data da realização da perícia psicológica forense (e reunidos os elementos indispensáveis à apreciação do presente caso e atendendo aos resultados psicométricos obtidos), conclui-se que a examinada:

«não apresenta défices intelectuais/cognitivos;

apresenta um desenvolvimento perturbado da personalidade;

apresenta psicopatologia significativa e desestruturante;

apresenta uma vinculação insegura;

não apresenta limitações adaptativas e/ou cognitivas/intelectuais, que afetem a sua capacidade de testemunho».

Já sabemos que o tribunal considerou o seu depoimento como absolutamente credível.

Por outro lado, a perícia é veementemente assertiva no sentido de considerar que esta jovem sofreu e sofre por causa destes actos do arguido:

«Relativamente ao quesito "avaliação da credibilidade do relato da ofendida", através da análise direta à examinada, dos elementos obtidos na entrevista clínica e forense e da interpretação dos resultados obtidos nos instrumentos psicométricos que integraram o protocolo de avaliação forense, constatou-se a presença de sintomas psicopatológicos que são comuns em casos verdadeiros de abuso.

(…)

No caso concreto da examinada, para além de perturbação de stress pós-traumático, esta manifesta: ansiedade, agitação psicomotora, sintomas depressivos, baixa autoestima {e fraco autoconceito), sentimentos de desânimo e impotência, sentimentos de insegurança e desconfiança relativamente aos adultos em geral (e.9., dificuldades na relação entre pais-filha, hostilidade e sentimentos negativos para com os pais) e alterações de natureza psicossomática (i.e., alterações na fome e perturbações do sono).

(…)

Relativamente ao quesito "se dos alegados factos ocorridos resultaram para a mesma sequelas e/ou algum sofrimento psicológíco", através da análise direta à examinada, dos elementos obtidos na entrevista clínica e forense e da interpretação dos resultados obtidos nos instrumentos psicométricos que integraram o protocolo de avaliação forense, constata-se a presença de problemas de natureza psicopatológica, com vários sintomas presentes, perturbadores e com elevada intensidade, que resultam em sofrimento psicológico».

O que nos reconduz a salientar, por isso, o enorme peso das consequências da conduta do arguido na pessoa desta criança – sabemos, de conhecimento adquirido de muita leitura científica, que a imagem destes 8 abusos vai perdurar para sempre na sua mente e na geometria da memória do seu corpo, por muito que não se note!

Note-se que no relatório de avaliação psicológica da BB, cujo teor a fls 138 e ss é também fundamento da convicção do tribunal recorrido (resultando do mesmo que esta jovem não apresenta sinais de ter estado a mentir), se deixa claro que as experiências vividas pela menina às mãos do arguido tiveram impacto na sua estruturação psico-emocional.

Deve ainda salientar-se, relativamente à muito elevada censurabilidade do comportamento do arguido, que este não foi sensível, sequer, ao natural escrúpulo que deveria para si decorrer da tenra infância desta criança e da relação de quase-natureza familiar que tinha com ela, agindo num ambiente de segredo.

E, relativamente ao acentuado grau de ilicitude dos factos, é também de acentuar o longo tempo por que perdurou a conduta do arguido – cerca de 5 anos, o que é muitíssimo para uma criança - no que diz respeito ao abuso sexual e a gravidade relativa daquela conduta entre os diversos comportamentos descritos no tipo do artigo 171º, nº 1 do Código Penal.

Não foi uma vez que a BB, criança com nome e identidade, foi acariciada em partes do seu corpo (e estamos longe de relativizar estes abusos tácteis face aos que provocam maior alarme, consubstanciados em penetrações de órgãos sexuais pois todo o abuso sexual mata!).

Nem duas,

Nem três.

Nem quatro.

Nem cinco.

Nem seis.

Nem sete.

Foram OITO VEZES que o seu corpo foi tocado por quem nunca o poderia fazer.

Não foi uma vez que a BB, criança com nome e identidade, foi tocada nos seios, nas nádegas e na vagina.

As necessidades de prevenção especial são prementes no caso “sub-judice”, por força de uma personalidade que não respeitou os naturais motivos inibitórios deste crime que aos laços de proximidade quase familiar devem andar ligados.

Também as exigências de prevenção geral, em face do aumento e visibilidade pública dos crimes relacionados com a liberdade e autodeterminação sexual e à coacção sobre crianças [crimes incluídos na categoria de «criminalidade especialmente violenta», à luz do artigo 1º, alínea l) do CPP], que geram sentimentos de repulsa na comunidade, sobretudo quando são praticados em meio familiar, demandam uma intervenção punitiva com peso suficiente para repor no espírito comunitário a confiança na validade e vigência da norma violada.

As preocupações de ressocialização, em face do conjunto dos factos em análise, demandam, pois, uma pena com dimensão suficiente para dissuadir o arguido da prática de futuros crimes.

Como se aduziu em aresto do STJ de 13/7/2005:

“A finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades”.

A globalidade dos factos provados nestes autos, que integram os crimes em concurso, indicia uma “pluriocasionalidade” (8 vezes prevaricou, sem dó nem piedade no corpo de uma amiga de sua filha também menor de idade) que está a um passo muito curto de uma verdadeira “carreira criminosa”, o que adensa a necessidade de uma reacção penal adequada a fazer o arguido inflectir o seu percurso, percebendo em definitivo que não pode praticar actos do tipo daqueles por que vai condenado nestes autos e contrariando as tendências desvaliosas da sua personalidade.

E a vítima?

Onde fica ela em tudo isto?

Fazem-se ouvir os ecos da Convenção de Istambul.

A criança é hoje vítima, contra ventos antigos, ao abrigo das novas luzes lançadas pela Lei nº 57/2021, de 16 de Agosto de 2021 que veiculou, aos sete novos ventos, que «Vítima é a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica».

O STJ, em 2003, já dava o sinal de alarme (Recurso nº 1090/03-5):

(..)

E é constante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que, nos crimes de abuso sexual de crianças, as exigências de prevenção geral têm uma “finalidade primordial, e a medida de prevenção deve ser essencialmente determinada pela projecção da ilicitude dos factos” (vide os acórdãos do Supremo Tribunal, de 2003.05.08, processo nº 1090/03, de 2003.06.05, processo nº 1656/03, de 2003.11.29, processo nº 2729/03 e de 2003.11.05, processo nº 201/03).

O Abuso Sexual Infantil é definido como a exposição de uma criança a estímulos sexuais impróprios para a sua idade, o seu nível de desenvolvimento psicossocial e o seu papel na família.

As vítimas de abuso sexual também falam.

E querem falar, tantas vezes através de hesitações, esgares, silêncios comprometidos e constrangedores, sinais…

Nem sempre produzem palavras.

Porque o acto de que foram vítima é, por demais, monstruoso para caber num catálogo de sílabas e ditongos, substantivos e adjectivos.

E, quando se fala em crianças, tal ainda é mais verdadeiro.

(…)

E o depoimento desta menina foi suficientemente esclarecedor relativamente à morte que lhe ofereceram em vida.

(…)

Finalmente, tendo em conta o tipo de actos praticados, é de esperar que apareçam outras mudanças, nomeadamente no comportamento sexual, como por exemplo:

«Dificuldade da vítima em estabelecer relações íntimas e saudáveis com os outros;

Dificuldade em respeitar o “não” de outra pessoa e os limites que ela lhe impõe (exº: não compreender que a outra pessoa não queira ter contactos sexuais);

Ter comportamentos sexuais de risco (exº ter diferentes parceiros/as sexuais, não utilizarem métodos contracetivos)».

Ou seja:

Muitas vítimas de abuso sexual, incluindo crianças, sofrem traumas profundos.

A sua vida, se o(s) evento(s) traumático(s) não forem tratado(s), passa a ser organizada de forma condicionada, como se o que causou o trauma ainda estivesse a acontecer, sem alteração e com a mesma intensidade. É isso que define, de forma simples, um evento traumático.

Cada nova experiência é contaminada pelo evento passado, como se uma gota de petróleo tivesse caído numa bacia de água límpida.

Ao contrário de experiências traumáticas de episódio único, como acidentes, catástrofes naturais e outras em que o estímulo ocorre e a vítima pode ter uma resposta adaptativa adequada (fugir/enfrentar/congelar) que pode ser desativada, após o perigo passar, no abuso sexual ou na violência doméstica isso não acontece.

No caso do abuso sexual ou da violência doméstica, a vítima é constantemente "bombardeada" com estímulos que activam os mecanismos associados ao stress e não pode acionar os mecanismos de fuga/enfrentamento ou congelamento, pois está aprisionada, sem possibilidade de procurar solução imediata (criando o chamado stress crónico, na feliz acepção de António Castanho).

Isto é particularmente grave nas crianças, pois a constante activação dos mecanismos de resposta ao stress pode causar danos na estrutura cerebral, em desenvolvimento, com todas as consequências associadas.

(…)

E a pena que irá cumprir dar-lhe-á conta do enorme desvalor do seu acto, fazendo-o reflectir sobre o que fez ao corpo da BB, acreditando-se ainda que «um erro na vida não significa uma vida de erros» e que o AA será capaz de se sublimar, entregando-se a uma terapêutica adequada, que também pode ser eficaz em reclusão.

3.7. A pena do cúmulo deverá, pois, constituir, também, a resposta exigida pela necessidade de reafirmação valorativa das expectativas comunitárias para “recompor” a concreta ofensa sofrida por estes profundos valores sociais com a grave e censurável conduta do arguido reflectida nos crimes sexuais praticados.

Assim, tendo em consideração o disposto no artigo 77º do CP e visto, agora em termos unitários, o circunstancialismo agravativo e atenuativo já ponderado na determinação das penas parcelares e, em geral, o conjunto dos factos praticados, com o denominador comum constituído pela personalidade do arguido, tem-se por justo e adequado condená-lo na pena única de CINCO ANOS E SEIS MESES de prisão efectiva, defendendo-se de vez a aplicação de penas concretas mais elevadas para os crimes contra as pessoas, benevolamente sancionados face a uma tradicional maior dureza das penas aplicadas aos crimes contra a propriedade, o que não deixa de ser pernicioso.”

B.4.2.3. Conclusão

É jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que:

“ IV. Sendo os recursos remédios jurídicos, mantendo o arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, a sindicabilidade da medida da pena abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”.

8 de novembro de 2023 – Proc 808/21.3PCOER.L1.S15

Voltando ao caso concreto, não se vislumbra – sendo que o recorrente não o alega nem, muito menos, o demonstra - que o acórdão recorrido tenha desrespeitado princípios gerais de aplicação das penas ou aplicado incorretamente as operações da sua determinação, sendo evidente que indicou e fundamentou, de forma extraordinária e extremamente profusa e detalhada, as circunstâncias e fatores que conduziram à determinação da pena única.

Por outro lado, também não se vislumbra que tenham sido violadas regras da experiência ou que a quantificação da pena seja desproporcionada ou que ultrapasse a medida da culpa do recorrente.

Face a todo o exposto e também quanto a esta matéria, o recurso é manifestamente improcedente e, por isso, deve ser rejeitado.

C. Tributação

Nos termos do disposto nos artigos 513º do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Judiciais e da sua Tabela III anexa, o recorrente deve ser condenado em custas, variando a taxa de justiça entre 5 e 10 unidades de conta (UC).

Face à não complexidade do processo fixa-se essa taxa de justiça em 6 (seis) Unidades de Conta

Por outro lado, a rejeição do requerimento por inadmissibilidade implica ainda a condenação do requerente no pagamento de uma importância entre 3 e 10 UC (que não são meras custas judiciais, tendo antes natureza sancionatória), por força do disposto no artigo 420º, nºs 1 b) e 3, do Código de Processo Penal.

Com efeito, são cumulativas a condenação em custas do incidente e em multa, no caso de recurso inadmissível, pois elas visam propósitos diferentes: uma tributa o decaimento num ato processual a que deu causa e a outra censura a apresentação de requerimento sem a prudência ou diligência exigíveis (Salvador da Costa, As custas Processuais, Coimbra: Almedina, 6.ª ed., 2017, p. 86).

Atendendo, por um lado, à pouca complexidade do objeto da decisão e, por outro, à manifesta improcedência do requerimento, considera-se ajustado fixar essa importância em 5 (cinco) unidades de conta.

D – Decisão

Com os fundamentos atrás indicados decide-se:

Rejeitar o recurso interposto, no que concerne às penas parcelares aplicadas ao recorrente, dado o mesmo não ser admissível, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432º, nº. 1, al. b), 400º, nº. 1, al. e) e 420º, nº. 1, al. b) e 414º nº 2, todos do Código de Processo Penal;

Rejeitar igualmente o recurso no que tange à pena única aplicada a AA dado o mesmo ser manifestamente improcedente, nos termos do artigo 420º, nº 1, al. a) do mesmo diploma legal;

Condenar o recorrente no pagamento de 6 (seis) U.C., relativas às custas devidas, a que acrescem 5 (cinco) U.C., nos termos do artº 420º, nº. 3, do Código de Processo Penal.

Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada

(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Celso Manata (Relator)

Jorge Gonçalves (1º Adjunto)

Jorge Bravo (2º Adjunto)


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1. Leia-se «Moleanos» [artigo 380º, nº 1, alínea b) e nº 2 do CPP].

2. Na primeira instância essa pena tinha sido fixada em 1 ano e 3 meses de prisão.

3. Neste processo o arguido tinha sido condenado, em 1ª instância, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, tendo o tribunal da relação agravado a pena para 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão efetiva.

4. Incluiu-se uma parte da motivação quanto às penas parcelares já que, na motivação da pena única, para a mesma se remete. Pelo contrário, não se transcrevem as notas de rodapé por serem muito extensas e se afigurar desnecessário faze-lo.

5. In www.dgsi.pt