RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABUSO SEXUAL
MENOR DEPENDENTE
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES
PERSEGUIÇÃO
PENA PARCELAR
DUPLA CONFORME
IRRECORRIBILIDADE
REJEIÇÃO PARCIAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. Apesar de ter sido admitido in totum, é de rejeitar, por inadmissibilidade, nos termos dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f) 420.º, n.º 1, al. b), 432.º, n.º 1, al. b) a contr. e 414.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, o recurso do arguido quanto às questões respeitantes aos crimes pelos quais foram aplicadas penas inferiores a cinco anos de prisão.
II. A pena única do concurso, formada no sistema de cúmulo jurídico, que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.
III. Não merece censura a fixação da pena única em onze (11) anos de prisão, numa moldura entre 3 anos e 2 meses de prisão (limite mínimo, correspondente à pena parcelar mais elevada) e 25 anos de prisão (face à regra do art. 77.º, n.º 2, do CP, sendo a soma material das penas parcelares de 293 anos de prisão), relativamente à prática de 92 crimes de abuso sexual de menor dependente, pp. pp. pelos artigos 172.º, n.º 1, al. b) e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, 1 crime de ofensa à integridade física simples e 1 crime de perseguição, parecendo-nos contemplar, adequadamente, um forte fator de compressão da medida das penas remanescentes que integram a relação do cúmulo jurídico, ficando abaixo do ponto médio da moldura penal do concurso.

Texto Integral


1. Por acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de .../Juiz ..., de 6 de novembro de 2024 (Ref.ª Citius ......86), o arguido e ora Recorrente AA, melhor identificado nos autos, foi absolvido e condenado, entre outras determinações, nos seguintes termos:

«a) Absolver o arguido AA dos demais crimes de que vinha acusado; e

b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso real, de 92 crimes de abuso sexual de menor dependente, previstos e puníveis pelos artigos 172º, n.º 1, b) e 177º, n.º 1, b) do Código Penal, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão por cada um;

c) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo artigo 143º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;

d) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de perseguição, previsto e punível pelo artigo 154º-B, n.ºs 1, 3 e 4 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;

e) Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 11 anos de prisão efetiva.

Mais se julga o pedido de arbitramento oficioso de indemnização a BB procedente e, em consequência, condena-se AA a pagar-lhe € 20.000,00 pelos danos morais sofridos, com juros de mora a partir desta decisão

(…)».

2. Dessa decisão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto (doravante, também “TRP”) em 05-12-2024 (Ref.ª Citius ......76), quer da decisão em matéria de facto quer em matéria de direito, tendo este tribunal superior deliberado, por acórdão de 05-03-2025 (Ref.ª Citius ......07), além de determinar a correção de erros de escrita do acórdão do tribunal de 1.ª Instância, não conceder provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

3. De tal acórdão, recorreu o arguido, em 08-04-2025 (Ref.ª Citius ....96), apresentado as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O PRESENTE RECURSO TEM POR OBJETO A MATÉRIA DE DIREITO DO ARESTO CONDENATÓRIO PROFERIDO NOS PRESENTES AUTOS E

A MEDIDA DA PENA (PARCELARES E ÚNICA) APLICADA AO

RECORRENTE.

2. CONCRETAMENTE TEM POR OBJETO:

A) A CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO OU ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA

B) A INSUFICIÊNCIA PARAA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA;

C) A VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA E IN DUBIO PRO REO, REFERENTE À CONDENAÇÃO DO RECORRENTE PELOS CRIMES DE ABUSO SEXUAL DE MENOR AGRAVADO E DE PERSEGUIÇÃO.

D)AINCONSTITUCIONALIDADE DANORMACONSTANTE DO ARTIGO 127.º

DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NA DIMENSÃO NORMATIVA COM QUE

FOI APLICADA PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO NO ACÓRDÃO RECORRIDO;

E) A MEDIDA DA PENA (PARCELARES E ÚNICA)APLICADAAO RECORRENTE.

3. O DOUTO ACÓRDÃO PADECIA DE CONTRADIÇÃO ENTRE A

FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO, SENDO ESSE DEFEITO

ESTRUTURAL EVIDENTE DO TEXTO DA DECISÃO.

4. A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO DO TRIBUNAL DE 1.ª

INSTÂNCIA IMPUTA AO ARGUIDO A PRÁTICA DE ATOS SEXUAIS

COM A MENOR POR DUAS VEZES POR MÊS ENTRE 2011 E 2015,

FAZENDO REFERÊNCIA A RELAÇÕES SEXUAIS DE CÓPULA

COMPLETA, PORÉM, NA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO MAIS

PROPRIAMENTE NO TERCEIRO PARÁGRAFO, DE FLS 26 CONSTA

QUE “ASSIM, POR REFERÊNCIA AOS ATOS PROVADOS E

CONSULTANDO O CALENDÁRIO, AO PRIMEIRO ATO DESCRITO NOS

FACTOS A 10º E AO SEGUNDO ATO DESCRITO NOS FACTOS 11º A 16º,

SEGUIRAM-SE, À RAZÃO DE PELO MENOS DUAS VEZES POR SEMANA

NO PERÍODO DE 31 12-2011 A 06-10-2015, 90 RELAÇÕES DE CÓPULA

VAGINAL, O QUE NOS CONDUZ AO TOTAL DE 92 CRIMES P. E P. PELO

ARTIGO 172º, N.º 1, B) QUE O ARGUIDO COMETEU”.

5. O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO DECIDIU, SEM QUALQUER

FUNDAMENTO FÁTICO APARENTE, POIS QUE NÃO O ENUNCIOU NA

SUA DECISÃO, BASEANDO-SE SOMENTE NA SUA PRÓPRIA CRENÇA

TER-SE TRATADO DE UM MERO LAPSO DE ESCRITA,

TRANSFORMANDO A FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-CONCLUSIVA E

JURÍDICA PARA “ASSIM, POR REFERÊNCIA AOS ATOS PROVADOS E

CONSULTANDO O CALENDÁRIO, AO PRIMEIRO ATO DESCRITO NOS

FACTOS 7.º A 10.º E AO SEGUNDO ATO DESCRITO NOS FACTOS 11.º A

16.º, SEGUIRAM-SE, À RAZÃO DE PELO MENOS DUAS VEZES POR MÊS

NO PERÍODO DE 31-12-2011 A 06-10-2015, 90 RELAÇÕES DE CÓPULA

VAGINAL, O QUE NOS CONDUZ AO TOTAL DE 92 CRIMES P.E P. PELO

ARTIGO 172.º, N.º 1, B) QUE O ARGUIDO COMETEU”.

6. NÃO TINHA O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO ELEMENTOS

SUFICIENTES QUE LHE PERMITISSEM DECIDIR DA CONTRADIÇÃO

E AO INVÉS DE DETERMINAR, COMO DETERMINOU, A CORREÇÃO

POR CONSIDERAR QUE SE TRATAVA SOMENTE DE “UM VERDADEIRO

LAPSO DE ESCRITA”, DEVERIA TER ORDENADO O REENVIO DO

PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO RELATIVAMENTE A ESTA

QUESTÃO CONCRETAMENTE DELIMITADA: A FREQUÊNCIA COM

QUE OS ALEGADOS ABUSOS TERIAM SIDO LEVADOS A CABO PELO

ARGUIDO!

7. O TRIBUNAL A QUO ACABOU POR SE PRONUNCIAR PARA ALÉM

DAQUILO QUE LHE ERA POSSÍVEL CONHECER, POIS QUE NÃO

TINHA ELEMENTOS, NEM BASES SUFICIENTES PARA SUPRIR TAL

VÍCIO.

8. O DOUTO ACÓRDÃO DE QUE SE RECORRE É NULO POR EXCESSO

DE PRONÚNCIA, NOS TERMOS DO DISPOSTO NO ARTIGO 379.º, 1,

ALÍNEA C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, EX VI ARTIGO 425.º,

N.º 4, DO MESMO DIPLOMA.

9. O QUE O FULMINA DE NULIDADE, DEVENDO SER DETERMINADO

O REENVIO DO PROCESSO PARA O TRIBUNAL AD QUO QUE, POR SUA

VEZ DEVERÁ DETERMINAR O REENVIO DO MESMO PARA NOVO

JULGAMENTO EM 1.ª INSTÂNCIA DA QUESTÃO EM CONCRETO: A

FREQUÊNCIA COM QUE TERÃO SIDO PRATICADOS OS CRIMES DE

ABUSO SEXUAL DE MENOR DEPENDENTE AGRAVADO.

10. PARA O PREENCHIMENTO DO TIPO DE ILÍCITO DE

PERSEGUIÇÃO, NECESSÁRIO SE TORNA QUE O AGENTE, “DE MODO

REITERADO”, PERSIGA OU ASSEDIE OUTRA PESSOA, POR

QUALQUER MEIO, DIRETA OU INDIRETAMENTE, DE MODO

ADEQUADO A PROVOCAR-LHE MEDO OU INQUIETAÇÃO OU A

PREJUDICAR A SUA LIBERDADE DE DETERMINAÇÃO.

11. DA FACTUALIDADE DADA COMO PROVADA SUPRA CITADA,

RESULTA QUE NÃO ESTAMOS PERANTE ACTOS REITERADOS, NEM

ACTOS DE PERSEGUIÇÃO… NEM QUANDO APRECIADOS

ISOLADAMENTE, NEM SEQUER QUANDO ANALISADOS NO

CONTEXTO EM QUE SE SUCEDERAM.

12. TANTO DO ESPÍRITO DO ARGUIDO COM AS ALEGADAS

PRÁTICAS DE PERSEGUIÇÃO OU DE ASSÉDIO, COMO DAS PRÓPRIAS

PRETENSAS ATITUDES PERSECUTÓRIAS OU DE ASSÉDIO RESULTA

QUE, EM MOMENTO ALGUM, O ARGUIDO PRETENDEU OU TEVE

CONSCIÊNCIA DE PRATICAR FACTOS SUSCETÍVEIS DE PREENCHER

ESTE TIPO DE CRIME PELO QUAL FOI CONDENADO.

13. O ACÓRDÃO RECORRIDO VIOLOU OS PRINCÍPIOS DA

PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA E IN DUBIO PRO REO REFERENTE ÀS

SUAS CONDENAÇÕES PELOS CRIMES DE ABUSO SEXUAL DE MENOR

AGRAVADO, OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA E PERSEGUIÇÃO.

14. O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO, ATRAVÉS DO JULGAMENTO DA

MATÉRIA QUE LHE FOI DADA A APRECIAR, DEU POR PROVADOS

FACTOS QUE, AINDA QUE NÃO TOTALMENTE INCOMPATÍVEIS

ENTRE SI, SE APRESENTAM MANIFESTAMENTE INCONCILIÁVEIS

QUER COM A PROVA PRODUZIDA EM AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO,

QUER COM A QUE SE ENCONTRA JUNTA AOS AUTOS.

15. NA VERDADE, O QUE GLOBALMENTE SE TEVE COMO PROVADO

ESTÁ EM MANIFESTA DESCONFORMIDADE COM O QUE

REALMENTE SE PROVOU E NÃO PROVOU EM AUDIÊNCIA DE

JULGAMENTO, SENDO AS CONCLUSÕES VERTIDAS NO ACÓRDÃO

RECORRIDO, EM PARTE, CLARAMENTE ILÓGICAS E INACEITÁVEIS.

16. A PROVA JUNTA AOS AUTOS E PRODUZIDA EM AUDIÊNCIA DE

JULGAMENTO JAMAIS PERMITIRÁ FUNDAR UM JUÍZO

CONDENATÓRIO DO RECORRENTE PELA TOTALIDADE DOS CRIMES

EM QUE FOI CONDENADO.

17. O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO DEU POR PROVADOS,

ELENCANDO DESSE MODO NOS MENCIONADOS ITENS DA

FACTUALIDADE PROVADA, MATÉRIA SEM QUALQUER

FUNDAMENTO OU SUPORTE PROBATÓRIO QUE O ATESTE.

18. A VERDADE É QUE SUBSUMINDO ESSAS FACTUALIDADES NAS

DIMENSÕES PROTETORAS DOS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DA

INOCÊNCIA E DO IN DUBIO PRO REO CONSTATA-SE QUE O

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO VIOLOU ESTES PRINCÍPIOS.

19. DA PRÓPRIA FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO

RETIRA-SE UMA MANIFESTA INSUFICIÊNCIA DA PROVA PARA A

DECISÃO A QUE O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO LOGROU

CHEGAR QUANTO AOS ILÍCITOS CUJA PRÁTICA VINHA IMPUTADA

AO RECORRENTE, O QUE FAZ COM QUE ESTA NÃO ASSENTE

SEQUER NOS FACTOS PROVADOS, E SEJA ANTES, CONSEQUÊNCIA

DE UMA CONSTRUÇÃO LÓGICO-DEDUTIVA TOTALMENTE

DESFASADA DA REALIDADE E CONTRÁRIA À FACTUALIDADE,

VERDADEIRAMENTE, APURADA.

20. O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO DECIDIU TENDO POR BASE

FACTOS QUE PARA ALÉM DE NÃO PROVADOS, ALGUNS DELES NEM

SEQUER FORAM ALEGADOS, O QUE, POR SI SÓ, PREJUDICA O

PRÓPRIO SILOGISMO JUDICIÁRIO.

21. DECORRE DE TODA A PROVA JUNTA AOS AUTOS QUE O

RECORRENTE NÃO PRATICOU OS CRIMES EM QUE FOI

CONDENADO, PARA ALÉM DE TER SIDO CRIADA UMA CLARÍSSIMA

DÚVIDA RAZOÁVEL QUANTO À GLOBALIDADE DOS FACTOS PELOS

QUAIS FOI CONDENADO EM 1.ª INSTÂNCIA E QUANTO À CULPA

DESTE.

22. ASSIM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO VIOLOU O

PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA, PORQUANTO DA PROVA

PRODUZIDA EM JULGAMENTO, DECORRE QUE A ABSOLVIÇÃO DO

RECORRENTE, TERIA SIDO A ÚNICA ATITUDE JUSTA E LEGÍTIMA A

ADOTAR, ASSIM TENDO VIOLANDO O N.º 2 DO ARTIGO 32.º DA

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, N.º 2, DO ARTIGO 6.º

DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM E, N.º 1, DO

ARTIGO 48.º DA CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO

EUROPEIA - E O PRINCÍPIO DO IN DÚBIO PRO REO.

23. ALÉM DO MAIS, DECORRE DO ACÓRDÃO RECORRIDO QUE O

VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, NA APRECIAÇÃO

DA PROVA QUE LHE FOI SUBMETIDA JULGAR E APRECIAR, LANÇOU

MÃO DO PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PLASMADO

NO ARTIGO 127.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

24. É INCONSTITUCIONAL A NORMA DO ARTIGO 127.º DO CÓDIGO

DE PROCESSO PENAL, NA DIMENSÃO NORMATIVA COM QUE FOI

APLICADA NO ARRESTO RECORRIDO, SEGUNDO A QUAL A LIVRE

CONVICÇÃO DO JULGADOR É SUFICIENTE PARA, SEM PROVA

DIRETA, SEM INDICAÇÃO DE FACTOS BASE E SEM INDICAÇÃO DE

REGRAS DE EXPERIÊNCIA OU DE CIÊNCIA EM CONCRETO,

ADQUIRIR POR DEDUÇÃO, OU PRESUNÇÃO NATURAL A PROVA DE

FACTOS EM JULGAMENTO, VIOLANDO, CONSEQUENTEMENTE, O

VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, COM A DECISÃO

QUE PROFERIU, O PRINCÍPIO DA NORMALIDADE NA UTILIZAÇÃO

DA PROVA INDIRETA.

25. APENAS É CONSTITUCIONALMENTE CONFORME À

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, A DIMENSÃO

NORMATIVA DO ARTIGO 127.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL,

SEGUNDO A QUAL AS PRESUNÇÕES DEVEM SER GRAVES, PRECISAS

E CONCORDANTES, PERMITINDO QUE PERANTE OS FACTOS

CONHECIDOS (OU UM FACTO PRECISO), SE ADQUIRA OU SE ADMITA

A REALIDADE DE UM FACTO NÃO DEMONSTRADO, NA CONVICÇÃO,

DETERMINADA PELAS REGRAS DE EXPERIÊNCIA, DE QUE NORMAL

E TIPICAMENTE (ID QUOD PLERUMQUE ACCIDIT) CERTOS FACTOS

SÃO A CONSEQUÊNCIA DE OUTROS, NO VALOR DA CREDIBILIDADE

DO ID QUOD, E NA FORÇA DA CONEXÃO CAUSAL ENTRE DOIS

ACONTECIMENTOS, ESTÁ O FUNDAMENTO RACIONAL DA

PRESUNÇÃO E NA MEDIDA DESSE VALOR ESTÁ O RIGOR DA

PRESUNÇÃO.

26. O ARESTO RECORRIDO AFIRMANDO FIXADOS, POR PRESUNÇÃO

NATURAL, FACTOS QUE NEM ESTÃO INDICIADOS POR QUAISQUER

FACTOS BASE, NEM DECORREM, POR RACIOCÍNIO LÓGICO, DA

APLICAÇÃO AOS FACTOS BASE DE QUAISQUER REGRAS DE

EXPERIÊNCIA, IMPORTA UMA DIMENSÃO MATERIALMENTE

INCONSTITUCIONAL DO ARTIGO 127.º DO CÓDIGO DE PROCESSO

PENAL, SOBRETUDO, COMO NESTES AUTOS QUANDO

INTERPRETADO NO SENTIDO DE QUE A LIVRE CONVICÇÃO DO

JULGADOR É SUFICIENTE PARA - SEM PROVA DIRETA, SEM

INDICAÇÃO DE FACTOS BASE E SEM INDICAÇÃO DE REGRAS DE

EXPERIÊNCIA OU DE CIÊNCIA - ADQUIRIR POR DEDUÇÃO, OU

PRESUNÇÃO NATURAL A PROVA DE FACTOS EM JULGAMENTO, SEM

FAZER APELO AO PESO ESPECÍFICO DAS PRESUNÇÕES, QUE DEVEM

SER “GRAVES, PRECISAS E CONCORDANTES”.

27. É INCONSTITUCIONAL A NORMA INSERTA NO ARTIGO 127.º DO

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NA DIMENSÃO NORMATIVA COM QUE

FOI APLICADA NO ACÓRDÃO RECORRIDO PELO VENERANDO

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO POR AFRONTA DIRETA AO QUE

SE ENCONTRA CONSTITUCIONALMENTE CONSAGRADO NO TEXTO

E PRINCÍPIOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA.

28. EM TODO O CASO IMPÕE-SE UMA REAPRECIAÇÃO DAS PENAS

PARCELARES DE CADA UM DOS CRIMES PELOS QUAIS FOI

CONDENADO POR MANIFESTAMENTE EXCESSIVAS E INFUNDADAS

EM FACE DE TODA A PROVA PRODUZIDA EM JULGAMENTO E

ENTRANHADA NOS AUTOS.

19. A PENA INFLIGIDA AO RECORRENTE É NATURALMENTE

DESPROPORCIONAL E DESADEQUADA PERANTE AS NECESSIDADES

DE JUSTIÇA QUE O CASO DE PER SI RECLAMA, ATENTO O

CONTEXTO DOS ALEGADOS CRIMES PRATICADOS E O MODO E

INCIPIÊNCIA EM QUE OS MESMOS FORAM PRATICADOS

20. A PENA ÚNICA DE ONZE ANOS DE PRISÃO EFETIVA REVELA UM

EXCESSIVO SANCIONAMENTO DA AXIOLOGIA DA SUA CONDUTA

22. DESTE MODO ACREDITA-SE QUE, SE TIVER DE SER CONDENADO

PELA PRÁTICA DOS ILÍCITOS QUE COLOCA EM CRISE NO ACÓRDÃO

RECORRIDO, OUTRA PENA - PARCELARES E ÚNICA - EM CONCRETO

MAIS BENÉVOLA, LOGO MAIS JUSTA, SERÁ A ADEQUADA A

SATISFAZER AS PREMISSAS DE TUTELA QUE O CASO CONCRETO

REIVINDICA, NÃO SE FRUSTRANDO A JUSTIÇA COM ISSO, ANTES

PELO CONTRÁRIO, SERÁ ELA SEM QUALQUER DÚVIDA, COMO

V/EX.AS MELHOR JULGARÃO, A SUA GRANDE VENCEDORA!

NESTES TERMOS, NOS MELHORES E DEMAIS DE DIREITO QUE OS COLENDOS CONSELHEIROS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA SUPRIRÃO, DEVE PRESENTE RECURSO DO RECORRENTE AA OBTER PROVIMENTO E, EM CONSEQUÊNCIA,

SER REVISTA A DECISÃO DE DIREITO QUE SOBRE A MESMA RECAIU, CONHECENDO-SE TODAS AS QUESTÕES SUSCITADAS, NO MESMO, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS DAÍ ADVENIENTES.

OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, SE CONSIDERE POR ALTERADA A MEDIDA DAS PENAS PARCELARES E DA PENA ÚNICA APLICADAS AO RECORRENTE PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, ATENUANDO-SE O QUANTUM DAS MESMAS PARA VALORES MAIS COMEDIDOS, DESIGNADAMENTE DAS PENAS PARCELARES NÃO MUITO AFASTADAS DOS LIMITES MÍNIMOS DE CADA UM DOS ILÍCITOS E UM PENA ÚNICA NÃO SUPERIOR A 5 ANOS.

MAS SEMPRE, CONHECENDO-SE E DECLARANDO-SE A INCONSTITUCIONALIDADE QUE SE SUSCITA.

DESSE MODO, FARÃO V.ªS EX.ªS A TÃO ACOSTUMADA JUSTIÇA.»

4. Admitido o recurso, por despacho da Senhora juíza Desembargadora no TRP, de 09-04-2025 (Ref.ª Citius ......20), respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, em 11-04-2025 (Ref.ª Citius ....92), em muito judiciosa peça processual, na qual pugna pela improcedência do recurso do arguido, e pela consequente manutenção da decisão recorrida.

Em tal peça, conclui nos termos seguintes (transcrição):

«Na presença da matéria de facto dada como provada, não se encontra fundamento que permita contrariar as conclusões alcançadas por este T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto em aplicação quer do artigo 71º quer do artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, respetivamente, na tríplice ponderação parcelar e, em termos de cúmulo jurídico, na apreciação do conjunto dos factos e da personalidade do arguido, para chegada àquela pena única. Penas parcelares e pena única que, determinadas sob os respetivos critérios legais, se contêm dentro das finalidades das penas, das necessidades de prevenção geral e especial, da medida da culpa e respeitam o princípio da proporcionalidade nas suas três vertentes, da necessidade, da adequação e da justa medida – Acórdão do S.T.J. – Supremo Tribunal de Justiça de 25/10/2023 in www.dgsi.pt .

(…)

Em jeito conclusivo, com o devido respeito, que para além de sincero é superlativo, os elementos de racionalidade jurídica, factual e intelectual em que se apoiam os alicerces da retórica argumentativa utilizada pelo recorrente na presente instância recursória, não obstante a inteligência, argúcia, elegância e erudição que manifestamente apresentam, são francamente assépticos, estruturalmente frágeis, globalmente estéreis, tendencialmente omissos e todos sem cabimento legal, razões pelas quais, o recurso está votado ao insucesso e não merece provimento7.

Nessa conformidade, essencialmente pelo exposto, sem necessidade de mais aturadas considerações, tudo visto, analisado e ponderado, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, à reflexão doutrinária e jurisprudencial que as questões equacionadas tem merecido, à plêiade, força e validade dos argumentos aduzidos, à dogmática vigente, numa interpretação sistémica, integrada e entrelaçada das normas legais pertinentes, compatibilizando o que é conciliável, não desvalorizando o que deve ser valorizável e face à altíssima complexidade de tudo o que é humano, bem como, no empoderamento de um acto prudencial de eliminação, esbatimento ou minimização do risco para patamares socialmente suportáveis inerente a qualquer decisão judicial cujo objecto diga directamente respeito aos direitos, liberdades e garantias como aquela que criteriosamente se proferirá, afigura-se-me que se deverá julgar o presente recurso improcedente e manter-se o Acórdão recorrido nos seus precisos e exactos termos, com todas as legais consequências substantivas e adjectivas.

COMO É DE JUSTIÇA»

5. Remetido a este Supremo Tribunal de Justiça, foi emitido parecer nos termos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, pelo Senhor procurador-geral-adjunto aqui em funções, em 30-04-2025 (Ref.ª Citius ......70), no qual expende pertinentes considerações, concluindo «(…) que o recurso deve ser rejeitado na parte já conhecida e confirmada pelo Tribunal da Relação, por haver dupla conforme, e julgado improcedente no demais, desde logo no que respeita à medida da pena única aplicada, mantendo-se a decisão recorrida».

6. Notificado tal parecer ao recorrente, para, querendo, se pronunciar, nada foi requerido.

7. Colhidos os vistos, não tendo sido requerida audiência, foram os autos julgados em conferência - artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

II.1. Fundamentação de facto

8. Encontra-se estabelecido o seguinte acervo factual jurídico-criminalmente relevante (transcrição):

«1. BB nasceu a... de ... de 1997 na ... e é filha de CC e DD.

2. Após se ter separado de CC, DD iniciou relacionamento amoroso com o arguido AA por volta do ano de 2006.

3. BB tem dois irmãos, EE, filho de CC e DD e mais velho do que BB, e FF, filho de DD e do arguido AA, nascido a ... de ... de 2007

4. No ano de 2007, BB, os irmãos, a mãe e o arguido saíram da Bulgária e foram viver para Espanha, situação que se manteve até ao ano de 2011.

5. Pelo menos no ano de 2011 a família veio viver para Portugal, em concreto para ..., onde residiram até ao ano de 2017, aproximadamente, primeiro num apartamento situado no centro da cidade, perto do hospital, e depois na Rua ....

6. Em 2017, aproximadamente, a família mudou-se para uma residência sita em ....

Isto posto,

7. Em 2011, quando BB tinha completado 14 anos, o arguido AA, numa manhã, aproveitando-se do facto de estar sozinho com a jovem em casa, sita em ..., abeirou-se da mesma e abraçou-a, acariciou-a no corpo e levou-a para o seu quarto e de DD.

8. De seguida, no quarto, o arguido tirou o pijama que BB trajava, baixou-lhe as cuecas e deitou-a de costas sobre a cama.

9. Ato contínuo, o arguido desapertou as suas calças e expôs o seu pénis ereto, debruçou-se sobre BB e, segurando o pénis, roçou com o mesmo, por várias vezes, na vagina de BB, onde também o tentou introduzir, o que não conseguiu.

10. Depois o arguido, à frente de BB, friccionou o seu pénis, em movimentos de vai-e-vem até ejacular.

11. Algumas semanas depois, o arguido, depois de ter estado com BB num estabelecimento de café, ao final do dia, levou-a, na sua viatura, para um local montanhoso, situado em ..., onde parou o veículo.

12. Nessa altura o arguido desceu o banco do lugar do passageiro, onde BB se encontrava, tirou-lhe as calças que usava, assim como as cuecas.

13. Depois o arguido desapertou o cinto das suas calças, baixou-as, e introduziu o pénis ereto na vagina de BB, provocando-lhe dores.

14. Como BB se queixou com dores, o arguido disse “não, está calada que eu… que eu sei. Estou habituado a isto”.

15. Depois de introduzir o pénis ereto na vagina de BB, o arguido fez movimentos de vai-e-vem.

16. Perto do momento de ejacular o arguido tirou o pénis de dentro da vagina de BB, abriu a porta do veículo e ejaculou no exterior.

17. A partir deste dia, o arguido agiu do modo descrito, levando BB para diferentes montes situados em ... ou nas suas proximidades, pelo menos duas vezes por mês, até ao ano em que mudaram para ....

18. Assim, para além dos factos referidos de 7) a 16), pelo menos entre 31-12-2011 e 06-10-2015, o arguido, pelo menos duas vezes por mês, teve relações sexuais de cópula completa com BB.

19. Para comemorar o seu vigésimo quarto aniversário, BB convidou alguns amigos e familiares, onde se incluíram a mãe e o padrasto, para um almoço que iria ter lugar no dia 10 de outubro de 2021 num restaurante em ....

20. Porém, dias antes, no dia 8 de outubro de 2021, o arguido, após BB chegar a casa do trabalho, por volta das 24:00, foi ter com a mesma ao seu quarto e mostrou-se desagradado com o programado almoço de aniversário e afirmou que já havia cancelado o mesmo, justificando que a mesma iria gastar muito dinheiro.

21. BB retorquiu, afirmando que o arguido não podia ter agido dessa forma, e o mesmo, ato contínuo, desferiu-lhe murros na cabeça e na face.

22. Com a conduta descrita o arguido deu causa, de modo direto e necessário, ficasse com dores e mal-estar, assim como hematomas na face, em particular junto ao olho esquerdo.

23. No dia 11 de dezembro de 2021 BB saiu da casa onde ainda residia com o arguido e com a sua mãe e foi viver para a Rua do ....

24. Desde o dia 20 de outubro até, pelo menos, o dia 3 de fevereiro de 2022, o arguido continuou a enviar mensagens para BB a dizer, entre outras coisas incompreensíveis atenta a escrita do arguido, que se queria encontrar com a mesma, que tinha saudades suas, bem como lhe enviou uma fotografia, a 1 de janeiro de 2022, da sua viatura estacionada à frente da porta de sua casa, mostrando que sabia onde BB morava.

25. Nesse período, o arguido deslocou-se várias vezes a ..., vagueando não só perto da casa BB, como do seu local de trabalho no “Café ...”, sito em ..., vigiando-a.

26. O arguido tinha pleno conhecimento da idade de BB.

27. O arguido sabia que BB era filha da pessoa com quem vivia com se de marido e mulher se tratassem, que coabitava com a mesma, aproveitando-se desse facto para levar a cabo as condutas supra descritas, indiferente à relação familiar que tinha com a menina.

28. Sabia que atuava contra a vontade daquela e que, em todo o caso, face à idade da mesma, nunca poderia manter com a BB qualquer relacionamento sexual, nomeadamente os acima referidos.

29. Entre 31-12-2011 a 06-10-2015, o arguido agiu ainda do modo descrito aproveitando-se não só da idade de BB, como também do ascendente que sobre a mesma exercia devido à circunstância de ser companheiro da sua mãe, de coabitar com a jovem desde o ano de 2006, e ainda devido aos atos sexuais, de que BB se envergonhava e que com o mesmo vinha a praticar há anos por vontade do arguido.

30. O arguido, ao agir como agiu, quis e sabia que, com a sua conduta, atentavam contra a autodeterminação sexual da então menor BB, podendo vir a afetar o seu livre e sadio desenvolvimento sexual.

31. Não obstante tal conhecimento o arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente com o fito de satisfazer os seus desejos sexuais, sujeitando aquela a contacto sexual, assim como tendo com a mesma relações sexuais de cópula completa.

32. Ao agir do modo supra descrito no dia 8 de outubro de 2021, o arguido quis atingir a integridade física de BB, o que logrou conseguir.

33. O arguido, ao vaguear próximo da residência de BB e do seu local de trabalho, assim como a enviar-lhe mensagens, designadamente da viatura da mesma estacionada junto a casa daquela, mostrando ser sabedor do local onde morava, agiu com o único propósito, conseguido, de provocar naquele inquietação e receio, sabendo que os seus comportamentos eram suscetíveis de provocar medo e inquietação na visada e de prejudicar a sua liberdade de determinação.

34. Agiu o arguido sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

35. No âmbito do processo de contra-ordenação n.º ..........75 da Segurança Social, iniciado por denúncia na ACT, foi levantado auto em 11-11-2011 contra Firmino & Filhos, Cafetaria e Snack-Bar, Lda., sociedade/entidade empregadora representada por GG, por factos respeitantes, além do mais, à não comunicação da admissão da trabalhadora BB, a qual se encontrava à data da admissão a receber prestação de desemprego.

36. AA não tem registos no seu certificado do registo criminal.

37. À data dos factos, o arguido residia com a companheira e com o descendente menor do casal, bem como, até 11-12-2021, com BB, descendente da companheira, fruto de anterior relação.

Atualmente, e desde a separação do casal ocorrida em março de 2024 decorrente do aprofundamento da conflitualidade pela qual se encontrava em acompanhamento no âmbito da suspensão provisória do processo inerente ao processo nº 61/23.4..., o arguido passou a residir sem morada fixa, em unidades hoteleiras/pensões situadas na zona de ..., onde exerce atualmente a sua atividade profissional.

Habilitado com o 4º ano de escolaridade e com percurso laboral desde os 14 anos de idade, à data dos factos o arguido exercia atividade profissional na área da construção civil, atividade da qual auferia um vencimento equivalente ao salário mínimo nacional, beneficiando ainda o agregado do vencimento da companheira, em valor similar ao do arguido, retaguarda económica com a qual suportavam a renda da habitação onde residiam, no valor de 350,00 euros, assim como o valor de 95,00 euros referentes ao fornecimento de energia e água.

Atualmente, o arguido conserva a atividade profissional que detinha, assim como o vencimento mensal correspondente ao salário mínimo, beneficiando do suporte das despesas referentes ao alojamento e alimentação por parte da entidade empregadora.

No período correspondente aos factos, a rede social do arguido decorria frequentemente no seu meio residencial, onde era avaliado positivamente.

Atualmente, a gestão do quotidiano do arguido desenvolve-se no exercício da sua atividade profissional, assim como no acompanhamento do descendente menor inserido num clube de futebol em Lisboa.

O arguido conserva o acompanhamento no âmbito da suspensão provisória do processo referente ao processo nº 61/23.4... Não obstante, mantém um posicionamento de minimização e externalização relativamente aos factos pelos quais foi indiciado.

Na decorrência da instauração do presente processo, assim como do agudizar da conflitualidade no seio do agregado, o arguido terminou a relação com a companheira/progenitora da vítima, com a qual terá cessado contactos, não obstante manter proximidade ao descendente de ambos.

A instauração do presente processo é ainda apresentada com preocupação pelo arguido, pelo impacto que possa vir a ter na qualidade do relacionamento que estabelece com regularidade com o descendente que acompanha no âmbito do desporto praticado por este.

No meio de residência, onde residiu até março de 2024, não foram detetadas referências aos factos subjacentes à instauração do presente processo, não existindo rejeição à sua presença e onde não foram reportados outros desajustes comportamentais.»

Factos não provados (transcrição):

«BB foi uma adolescente problemática, com dificuldades em cumprir regras, recorrendo frequentemente à intriga e à mentira no seio familiar.»

II.2. Mérito do recurso

9. Os poderes de cognição do tribunal de recurso delimitam-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 434.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de Jurisprudência STJ n.º 7/95, DR-I.ª Série, de 28-12-1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), os quais, analisado o acórdão recorrido, não se verificam.

10. Das conclusões da motivação de recurso do arguido, extrai-se que o mesmo pretende colocar à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça, as questões seguintes:

i. Vício de contradição entre a fundamentação e a decisão e nulidade do acórdão por excesso de pronúncia – Conclusões 1., 2., 3. a 12.;

ii. Violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo quanto aos crimes de abuso sexual de menor, de ofensa à integridade física e de perseguição – Conclusões 2., 13. a 23.;

iii. Inconstitucionalidade do art. 127.º do CPP, na dimensão normativa com que foi aplicada no arresto recorrido, segundo a qual a livre convicção do julgador é suficiente para, sem prova direta, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência em concreto, adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento – Conclusões 2., 24. a 27.;

iv. Medida das penas, parcelares e única, aplicadas – Conclusões 2., 28. até final;

Apreciemos.

11.

i. Vício de contradição entre a fundamentação e a decisão e nulidade do acórdão por excesso de pronúncia – Conclusões 1., 2, 3. a 12.;

ii. Violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo quanto aos crimes de abuso sexual de menor, de ofensa à integridade física e de perseguição – Conclusões 2., 13. a 23., e

iii. Inconstitucionalidade do art. 127.º do CPP, na dimensão normativa com que foi aplicada no arresto recorrido, segundo a qual a livre convicção do julgador é suficiente para, sem prova direta, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência em concreto, adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento – Conclusões 2., 24. a 27.

Relativamente a estas três questões, impõe-se abordar a existência de uma questão prévia comum às mesmas, que se reconduz à inadmissibilidade do recurso nesses segmentos, por verificação de uma situação de “dupla conforme”.

O recurso do arguido foi admitido na sua totalidade, como se disse supra, por despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRP, de 09-04-2025 (Ref.ª Citius ......20).

Todavia,

o arguido-recorrente AA foi condenado, no tribunal de 1.ª Instância, nos seguintes termos:

b) (…) pela prática, em autoria material e concurso real, de 92 crimes de abuso sexual de menor dependente, previstos e puníveis pelos artigos 172º, n.º 1, b) e 177º, n.º 1, b) do Código Penal, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão por cada um;

c) (…) pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelo artigo 143º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;

d) (…) pela prática, em autoria material, de um crime de perseguição, previsto e punível pelo artigo 154º-B, n.ºs 1, 3 e 4 do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;

e) (…), em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 11 anos de prisão efetiva.

Tais condenações foram integralmente mantidas pelo acórdão recorrido.

Importa recordar as normas que disciplinam diretamente a admissibilidade dos recursos.

Dispõe o art. 400.º, n.º 1, alíneas e) e f) do CPP (Decisões que não admitem recurso), o seguinte:

«1 - Não é admissível recurso:

(…)

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;

f. De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª Instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

(…)».

Por seu turno, o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b) do CPP (Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça), tem a seguinte redação:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

(…);

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

(…).»

Todas as penas parcelares aplicadas ao arguido são inferiores a cinco anos de prisão, o que inviabiliza, desde logo, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. e) do CPP, a admissibilidade do recurso e a reapreciação das questões colocadas a propósito dos crimes assim punidos, ficando vedada ao arguido a possibilidade de o seu recurso ser conhecido quanto às questões acima enumeradas atinentes a tais crimes e às respetivas penas concretas parcelares.

Sucede, ainda, que a decisão recorrida do TRP confirma a anterior decisão condenatória do tribunal de 1.ª Instância, mantendo as referidas penas, sem que seja, por isso, aplicável a ressalva da parte final do disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, uma vez que não houve absolvição por nenhum deles.

Relativamente à norma do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, a jurisprudência constitucional já se pronunciou em bastantes ocasiões. No acórdão Tribunal Constitucional (doravante, também “TC”) n.º 101/2018, de 21-02, decidiu-se “não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21-02, interpretado no sentido de ser irrecorrível o acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, revogando a suspensão da execução de pena de prisão decretada pelo tribunal de primeira instância.” Jurisprudência que o Tribunal Constitucional tem reafirmado, como sucedeu, mais recentemente, no Acórdão n.º 884/2023 que confirmou a Decisão Sumária n.º 641/2023, que decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21-12, interpretada no sentido de não ser admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que, reapreciando a decisão da 1.ª instância que condenou o arguido numa pena de substituição (suspensão da execução da prisão), apliquem ao arguido uma pena de prisão efetiva.”

Resulta do exposto que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em recurso, é irrecorrível na parte em que fixa, mantendo-as, as penas parcelares não superiores a cinco anos, aplicadas ao arguido pela prática, como autor material e em concurso real, dos suprarreferidos crimes.

Para além disso, sempre vigoraria a regra emergente da alínea f) do n.º 1 do art. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b) a contr., do CPP (“dupla conforme”).

Esta solução quanto à irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelo Tribunal da Relação, enquanto confirmativas da deliberação da primeira instância, que tenha aplicado pena de prisão igual ou inferior a oito anos, não ofende qualquer garantia do arguido, nomeadamente, o direito ao recurso, expressamente incluído na parte final do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição pela 4.ª Revisão Constitucional (introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro – Diário da República, I-A, n.º 218/97, de 20-09-1997, entrada em vigor em 5 de outubro de 1997).

No caso vertente nos autos, a verificação da situação de «dupla conforme» traduz-se na manutenção pelo TRL das penas parcelares de prisão aplicadas ao arguido, todas inferiores a cinco anos, na decisão de 1.ª Instância, sendo certo que não houve qualquer reversão de absolvição.

Como é reconhecido pela doutrina e jurisprudência constitucionais, o legislador tem alguma latitude para conformar o regime de recursos, nomeadamente em matéria penal, desde que as soluções não atentem contra o núcleo do princípio do direito ao recurso, contra o princípio da legalidade ou contra o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrados, respetivamente, nos artigos 32.º, n.º 1, in fine 29.º, n.º 1, e 20.º, n.º l, todos da Constituição da República Portuguesa, considerando-se não ser obrigação do legislador a previsão sistemática de um duplo grau de recurso (ou triplo grau de jurisdição).

No tocante à norma do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, o Tribunal Constitucional tem considerado, de forma sistemática e reiterada, não ser a mesma desconforme à Constituição (cfr., entre outros, os Acórdãos TC n.ºs 385/2011, 186/2013, 156/2016, 260/2016, 418/2016, 212/2017, 286/2017, 372/2017, 724/2017, 151/2018, 232/2018, 248/2018, 592/2018, 599/2018, 659/2018, 677/2018, 443/2019, 655/2019, 84/2020, 96/2021, 207/2021, 399/2021, 745/2021, 898/2021, 400/2022, 590/2022, 261/2023).

A inadmissibilidade do recurso prevista no art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, vale, separadamente, para as questões atinentes às consequências dos crimes e da determinação das respetivas penas parcelares e para as questões respeitantes à pena conjunta, podendo acontecer que todas ou algumas das penas parcelares não sejam recorríveis, mas já o ser a pena única [a título de exemplo v. os acórdãos do STJ de 21 de dezembro de 2020, processo 32/14.1SULSB-G.L1.S1, e de 15 de setembro de 2021, processo 1249/16.0JAPRT.P1.S1, ambos rel. Cons. Eduardo Loureiro, e de 27 de janeiro de 2022, processo 960/19.8JAAVR.P2.S1, rel. Cons. Maria do Carmo Silva Dias (www.dgsi.pt)].

Pelo Ac. do Plenário do TC n.º 186/2013, foi, aliás, decidido «Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.»

Por outro lado, a irrecorribilidade da decisão por «dupla conforme» respeita a toda a decisão que implica a valoração da prova e determinação da culpa e suas consequências penais, nomeadamente quanto à qualificação jurídica da factualidade, e não apenas quanto à questão da determinação da pena. Na verdade, a irrecorribilidade por dupla conforme, abrange todas as questões processuais ou substanciais que digam respeito a essa decisão, tais como, v.g., os vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP; respetivas nulidades (artigos 379.º e 425.º, n.º 4, do CPP); aspetos relacionados com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões atinentes à apreciação da prova ou à a reapreciação da matéria de facto, seja em termos amplos (erro de julgamento) seja no âmbito dos vícios do artigo 410.º, do CPP (erro-vício), ou que envolvam respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) ou pelo princípio in dubio pro reo ou que se relacione com questões de proibições ou invalidade de prova; à qualificação jurídica dos factos ou que tenham que ver com a determinação das penas parcelares ou única, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do Código de Processo Penal, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ, de 13-05-2021, Proc. n.º 45/14.3SMLSB.L1.S1, rel. Cons. António Gama, de 12-01-2023, Processo n.º 757/20.2PGALM.L1.S1, rel. Cons. Orlando Gonçalves ou ainda o de 22-06-2023, Proc. n.º 275/21.1JAFUN.L1.S1, rel. Cons. Agostinho Torres).

Mais recentemente, cumpre recensear o Ac. TC n.º 230/2025, de 20-03-2025, de acordo com o qual foi decidido «Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões dos tribunais da relação que apliquem penas parcelares de medida igual ou inferior a 8 anos de prisão, quando se trate de crimes cujo bem jurídico protegido é eminentemente pessoal.»

Pelo exposto, e apesar de o recurso do arguido ter sido admitido in totum pelo despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRP – o que, nos termos do art. 414.º, n.º 3, do CPP, não vincula o tribunal superior –, ao abrigo do disposto nos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f) e 432.º, n.º 1, al. b) a contr., do CPP, não se admite o recurso do arguido por o mesmo ser interposto de acórdão da Relação que decidiu em recurso aplicar parcelares não superiores a 5 anos de prisão, sem que tivesse havido reversão de qualquer decisão absolutória, e confirmar, em “dupla conforme”, a aplicação de tais penas parcelares.

Em consequência do aqui decidido, fica prejudicada a possibilidade de apreciar as demais questões, incluindo a de inconstitucionalidade do art. 127.º do CPP, como suscitadas no recurso do arguido.

Pelo exposto, decide-se rejeitar, por inadmissibilidade, nos termos dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f) 420.º, n.º 1, al. b), 432.º, n.º 1, al. b) a contr. e 414.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, o recurso do arguido quanto às questões supra enunciadas em 10. i), ii), iii) e iv) (na parte respeitante à medida das penas parcelares aplicadas aos crimes pelos quais o arguido foi concretamente condenado).

Sobre a apreciação da questão respeitante à medida da pena única.

12.

iv. Medida da pena única aplicada – Conclusões 2., 28. até final;

Em função do que supra se decidiu, sobrará, assim, a apreciação do recurso no tocante à questão da medida da pena única.

O recorrente questiona a medida da pena única, resultante do cúmulo jurídico a que se procedeu, com base, em suma, na seguinte argumentação:

«Com efeito, quanto a este ponto, impõe-se afirmar que a Pena infligida ao Recorrente (onze anos de prisão) é naturalmente desproporcional e desadequada perante as necessidades de Justiça que o caso de per si reclama, atentos quer a ausência de condenações anteriores (sendo primário), quer a inserção social e laboral do Recorrente na presente data.

De qualquer modo, se se estabelecer uma comparação e analogia com outros Autos, similares e idênticos em que existem bens jurídicos como a integridade física, liberdade pessoal e a autodeterminação sexual afetados, em que as Penas aplicadas não raras vezes senão suspensas na sua execução, são manifestamente inferiores àquela que lhe foi aplicada.

Sendo certo que o Direito não é matemática nem ciência exata, é também certo, porém, que a Justiça impõe e a Sociedade reclama que casos idênticos, sejam censurados em sede de Culpa e Medida da Pena em quantuns senão iguais, pelo menos aproximados. O que, bem vistas as coisas, não ocorreu no Acórdão Recorrido, para mais quando são conhecidos - e V/Ex.as sabê-lo-ão melhor que o Recorrente - outros Autos em que as Penas aplicadas em iguais circunstâncias, por reiteração e preenchimento de um número de crimes de igual natureza e perpetrados em contextos agravados, em que os bens integridade físicaliberdade pessoal e autodeterminação sexual, são colocados em perigo, foram, e ainda que não se compreenda e aceite, hão de continuar a ser, inferiores à que foi aplicada ao Recorrente pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto.

Consabidamente, as Penas, todas elas, visam a proteção dos Bens Jurídicos (fim público) e a Reinserção do agente do crime no tecido social, por forma a impedir que o ostracize (artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal).

A maior ou menor necessidade de proteção dos Bens Jurídicos é aferida em função da sua importância, decalcada, de resto, na amplitude da moldura penal abstrata para o Tipo Legal, por razões de prevenção do crime e de defesa da Ordem Jurídica (Cfr. Claus Roxin, in “Culpabilidad y Prevención”, pág. 115).

E na medida em que representa uma intromissão na esfera do Cidadão, a compressão dela derivada, deve reduzir-se ao mínimo essencial à realização daquela teleologia (artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa) defrontando-se o julgador, nessa tarefa de determinação judicial, com regras nucleares de Direito (artigo 40.º, n.º 1, e artigo 71.º do Código Penal) não podendo ignorar-se que o acto decisório comporta, para além disso, uma “componente individual” que não é controlável plenamente de modo racional, já que se trata, segundo Jescheck – in “Derecho Penal, Parte General, II” pág. 1192 - de converter justamente a quantidade de culpabilidade em magnitudes penais e os princípios que regem a determinação da Pena não comportam a mesma concisão que os elementos do Tipo.

Essa discricionariedade, na tarefa de fixação da Medida Concreta da Pena, é, porém, balizada por aquilo que não se mostra positivado na Lei, fora disso o Direito Penal Moderno fornece regras centrais para a determinação da Pena, funcionando, como dissemos, a Culpa como seu limite inultrapassável, devendo tomar-se em conta os seus efeitos sobre a pessoa do Delinquente (prevenção especial) e sobre a Sociedade em geral (prevenção geral) (artigos 40.º, n.º 1 e 2, e 71.º do Código Penal).

A Medida Concreta da Pena é um puro derivado da posição tomada pelo Ordenamento Jurídico-Penal e Constitucional em matéria de sentido, limites e finalidades das penas (Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime”, pág. 258), cabendo à Culpa fornecer o limite máximo da Pena a aplicar no caso concreto, nos termos do artigo 40.º do CP, sendo em função de considerações de Prevenção Geral e Especial de Ressocialização, que deve ser determinada abaixo daquela moldura máxima, e em função daquelas submolduras, a Medida Concreta.

A Culpa ao funcionar como limite da Pena serve de antagonista da Prevenção, pois quaisquer que sejam as necessidades de Prevenção jamais apoderão ultrapassar. Há um ponto ótimo de proteção dos Bens Jurídicos, reclamada pela coletividade, mas abaixo desse pode encontrar-se um outro, agora inultrapassável, pois a Sociedade já não tolera a perda de eficácia preventiva da Pena, ainda consentâneo com tal eficácia e que integra o limiar mínimo da Pena encontrado em função das necessidades de Prevenção Especial (Cfr. Prof.a Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, Ano 12, N.o 2 – Abril-Junho, 2002) onde se jogam aquelas circunstâncias que, não fazendo parte do Tipo de Ilícito, depõem a favor ou contra o Agente do Crime - artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.

É, pois, este o ponto em que assenta a pretensão do Recorrente: será necessário, para a tutela da Prevenção Geral, aplicar Penas Parcelares e Pena Única tão elevadas a este homem, aqui Recorrente da Vossa Justiça, quando em outros Autos de iguais circunstâncias - por maiores número de crimes de igual natureza praticados, em contextos bastante mais graves e em que os bens integridade física, liberdade pessoal e autodeterminação sexual são afetados e colocados em risco com maior intensidade - são aplicadas Penas, Parcelares e Única, inferiores àquela que lhe foi aplicada?

Isto dito, assinale-se repetidamente que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, na sindicância das Penas aplicadas, não pode deixar de se prender com o disposto no artigo 40.º do Código Penal, nos termos do qual toda a Pena tem como finalidade “a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

É que em matéria de Culpabilidade, diz-nos o n.º 2 daquele preceito que,“Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Com esta norma, fica-nos a indicação de que a Pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da Culpa.

Do mesmo modo, a chamada “expiação da culpa” ficará remetida para a condição de consequência positiva, caso venha a ter lugar, mas não de finalidade primária da Pena.

No pressuposto de que por “expiação” se entende uma interiorização do desvalor da Ilicitude, e a aceitação da Pena que o condenado tem para cumprir, com o que tal significa enquanto consequente reconciliação voluntária com a Sociedade.

Assim, a ponderação da Culpa do agente serve propósitos que são fundamentalmente garantísticos e, portanto, do interesse do Arguido, aqui Recorrente.

Aliás, com este entendimento, tem-se visto uma consonância com o imperativo constitucional do n.º 2, do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual “A lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Na verdade, a defesa de Bens Jurídico-Penais é, ela mesma, em geral, o desiderato de todo o Sistema Penal globalmente considerado, e não um fim que se possa considerar privativo das Penas.

Já Terêncio, que viu imortalizada a sua mais conhecida máxima por Karl Marx, referia que Homo sum, humani nihil a me alienum puto («Sou homem e nada do que é humano me é estranho»).

Donde, falando de Penas aplicadas por homens a homens, não se pode deixar de afirmar, na esteira de pensamento de Anabela Miranda Rodrigues, que ...a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto... alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág.570).

Deste modo acredita-se que outra Pena, Parcelares e Única, em concreto mais benévola, logo mais Justa, será a adequada a satisfazer as premissas de tutela que o caso concreto reivindica, não se frustrando a Justiça com isso, antes pelo contrário, será ela sem qualquer dúvida a sua grande vencedora!

Razão pela qual o Recorrente discorda da dosimetria das Penas Parcelares e da Pena Única que lhe foi aplicada, e pugna, no essencial, por outras mais adequadas aos critérios de Justiça que o caso em concreto reclama(…)».

E, na conclusões e pedido final da motivação:

«28. EM TODO O CASO IMPÕE-SE UMA REAPRECIAÇÃO DAS PENAS PARCELARES DE CADA UM DOS CRIMES PELOS QUAIS FOI CONDENADO POR MANIFESTAMENTE EXCESSIVAS E INFUNDADAS EM FACE DE TODA A PROVA PRODUZIDA EM JULGAMENTO E ENTRANHADA NOS AUTOS.

19. A PENA INFLIGIDA AO RECORRENTE É NATURALMENTE DESPROPORCIONAL E DESADEQUADA PERANTE AS NECESSIDADES DE JUSTIÇA QUE O CASO DE PER SI RECLAMA, ATENTO O CONTEXTO DOS ALEGADOS CRIMES PRATICADOS E O MODO E INCIPIÊNCIA EM QUE OS MESMOS FORAM PRATICADOS

20. A PENA ÚNICA DE ONZE ANOS DE PRISÃO EFETIVA REVELA UM EXCESSIVO SANCIONAMENTO DA AXIOLOGIA DA SUA CONDUTA

22. DESTE MODO ACREDITA-SE QUE, SE TIVER DE SER CONDENADO PELA PRÁTICA DOS ILÍCITOS QUE COLOCA EM CRISE NO ACÓRDÃO RECORRIDO, OUTRA PENA - PARCELARES E ÚNICA - EM CONCRETO MAIS BENÉVOLA, LOGO MAIS JUSTA, SERÁ A ADEQUADA A SATISFAZER AS PREMISSAS DE TUTELA QUE O CASO CONCRETO REIVINDICA, NÃO SE FRUSTRANDO A JUSTIÇA COM ISSO, ANTES PELO CONTRÁRIO, SERÁ ELA SEM QUALQUER DÚVIDA, COMO V/EX.AS MELHOR JULGARÃO, A SUA GRANDE VENCEDORA!

NESTES TERMOS, NOS MELHORES E DEMAIS DE DIREITO QUE OS COLENDOS CONSELHEIROS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA SUPRIRÃO, DEVE O PRESENTE RECURSO DO RECORRENTE AA OBTER PROVIMENTO

E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVISTA A DECISÃO DE DIREITO QUE SOBRE A MESMA RECAIU, CONHECENDO-SE TODAS AS QUESTÕES SUSCITADAS, NO MESMO, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS DAÍ ADVENIENTES.

OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, SE CONSIDERE POR ALTERADA A MEDIDA DAS PENAS PARCELARES E DA PENA ÚNICA APLICADAS AO RECORRENTE PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, ATENUANDO-SE O QUANTUM DAS MESMAS PARA VALORES MAIS COMEDIDOS, DESIGNADAMENTE DAS PENAS PARCELARES NÃO MUITO AFASTADAS DOS LIMITES MÍNIMOS DE CADA UM DOS ILÍCITOS E UM PENA ÚNICA NÃO SUPERIOR A 5 ANOS.»

O Ministério Público junto do tribunal recorrido e deste Supremo Tribunal de Justiça manifestou a sua discordância relativamente a tal pretensão, pronunciando-se pela manutenção do acórdão recorrido no tocante à medida das penas aplicadas (parcelares e única).

Como se observa no pedido final da peça de motivação do seu recurso, o arguido pugna pela aplicação de uma pena única «mais benévola» e «mais comedida», que apontou para que não fosse superior a cinco anos de prisão, na necessária pressuposição de que as penas parcelares se fixassem em medida próxima do mínimo legal.

Apreciemos o acerto e correção do acórdão recorrido no tocante à determinação da pena única aplicada ao arguido.

No acórdão recorrido, depois de ter confirmado as medidas das penas parcelares aplicadas ao arguido, o TRP considerou, a respeito da determinação da pena única, o seguinte:

«De igual modo, não merece qualquer censura a pena única determinada pelo tribunal a quo, de 11 anos de prisão, numa moldura que oscila entre 3 anos e 2 meses e 25 anos.

As regras da punição do concurso de crimes estabelecem que, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, em cuja fixação são observados os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal), assim como os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal), ou seja, a personalidade do agente manifestada no facto, no qual se consideram as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita.

A pena única assim encontrada irá sancionar o arguido, não apenas pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, pelo facto global, o qual apresenta a dimensão e gravidade global do comportamento do arguido, tudo se passando “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» E “De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”23

No caso em análise, da avaliação global da personalidade do arguido manifestada nos factos praticados fica patente e ressalta um padrão comportamental no que respeita aos crimes contra a autodeterminação sexual.

O arguido, pelo menos desde o momento em que a ofendida completou 14 anos de idade e ao longo de 4 anos, manteve com esta relações de cópula completa com a regularidade de, pelo menos, duas vezes por mês, sendo a ofendida filha da sua companheira, coabitando na mesma casa. Fê-lo em total desrespeito pelas suas obrigações de assistência e de educação, prevalecendo-se do seu ascendente decorrente de viver em união de facto com a mãe da ofendida e coabitar com a então menor.

Também nesta sede se aponta a elevadíssima ilicitude e exigências de prevenção geral, traduzidas na necessidade de manter a confiança da sociedade nos bens jurídico-penais violados.

Por sua vez, ao contrário do que pretende o arguido, é de reduzida importância o facto dado como provado de “No meio de residência, onde residiu até março de 2024, não foram detetadas referências aos factos subjacentes à instauração do presente processo, não existindo rejeição à sua presença e onde não foram reportados outros desajustes comportamentais.”, ou a sua inserção profissional e familiar. Na verdade, a ausência de qualquer ressonância ética quanto à (extrema) gravidade dos factos, é contrapeso significativo que aponta elevadas necessidades de prevenção especial.

Nestes termos, também quanto à pena única foram respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis, bem como o limite da culpa, não havendo lugar à alteração da doseometria da pena. Na avaliação do ilícito global perpetrado mostra-se ter sido ponderada a conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes, a sua relação com a personalidade do arguido, e um ilícito global desvalioso.

Pelo exposto, entendemos não se verificar fundamento que possa constituir motivo para intervenção corretiva no quantum da pena única aplicada, negando-se, também aqui, provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a decisão recorrida.»

O artigo 77.º do Código Penal estabelece as regras da punição do concurso de crimes, dispondo no n.º 1 que «[q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena», em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente». O n.º 2 do mesmo preceito estabelece «[a] pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão (…), e como limite mínimo, a mais elevada daquelas penas concretamente aplicadas aos vários crimes».

Sobre a pena única e para os casos em que aos crimes correspondem penas parcelares da mesma espécie, considera Maria João Antunes que «o direito português adopta um sistema de pena conjunta, obtida mediante um princípio de cúmulo jurídico» (Consequências Jurídicas do Crime, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Ed., 2015, p. 56).

A pena única do concurso, formada nesse sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.

Na determinação da pena conjunta, impõe-se, igualmente, atender aos “princípios da proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso” (Ac. STJ de 10-12-2014, processo n.º 659/12.6JDLSB.L1.S1, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, Ano de 2014), impregnados da sua dimensão constitucional, pois que «[a] decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas, tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta – dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber – como já se aludiu – se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou actuação irreflectida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido», sem esquecer, que «[a] medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (embora de difícil prognóstico pelos antecedentes)» (assim, Ac. STJ de 27-06-2012, processo n.º 70/07.0JBLSB-D.S1).

Como este Supremo Tribunal de Justiça vem considerando de forma reiterada e preponderante, o critério da determinação da medida da pena conjunta do concurso – determinação feita em função das exigências gerais da culpa e da prevenção – impõe que do teor da decisão conste uma especial fundamentação, em função de tal critério. «Só assim – afirma-se no acórdão de 06-02-2014, proferido no processo n.º 6650/04.9TDLSB.S1- 3.ª Secção – se evita que a medida da pena do concurso surja consequente de um acto intuitivo, da apregoada e, ultrapassada, arte de julgar, puramente mecânico e, por isso, arbitrário».

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-12-2006 (Proc. n.º 06P3379), «na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita a avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso». Ainda no mesmo acórdão, pode ler-se que «na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente».

Cumpre sublinhar também que, como é referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de novembro de 2010, proferido no processo n.º 93/10.2TCPRT.S1-3.ª Secção: «Com a fixação da pena conjunta não se visa ressancionar o agente pelos factos de per si considerados, isoladamente, mas antes procurar uma “sanção de síntese”, na perspectiva da avaliação da conduta total, na sua dimensão, gravidade e sentido global, da sua inserção no pleno da conformação das circunstâncias reais, concretas, vivenciadas e específicas de determinado ciclo de vida do arguido em que foram cometidos vários crimes».

Neste âmbito, regista-se ainda o que no acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-05-2015, proferido no processo n.º 220/13.8TAMGR.C1.S1- 3ª Secção, se refere:

«(…) o Supremo Tribunal tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com “(…) a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, e, assim, [i]mportante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos (-), tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele(-)» (Acórdão de 12-09-2012, processo n.º 605/09.4PBMTA.L1.S1 – 3.ª Secção).

No processo de apreciação da escolha e da medida da pena, em sede de recurso, é pacífico que a intervenção do tribunal superior assume um carácter essencial de “remédio jurídico”, impondo-se, especialmente, identificar incorreções ou erros manifestos atinentes ao processo hermenêutico-aplicativo das normas constitucionais, convencionais e legais mobilizáveis, por parte da instância recorrida.

Só nessa medida é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena, quer parcelar, quer conjunta, em caso de cúmulo jurídico resultante do concurso efetivo de crimes. Assim, não pode proceder-se como se não existisse decisão anteriormente proferida, a qual, tendo respeitado aqueles procedimentos hermenêuticos e aplicativos, não legitima a intervenção do tribunal de recurso em termos de modificar, para mais ou para menos, a medida concreta da pena aplicada.

O escrutínio da adequação ou correção da medida concreta da pena em sede de recurso impor-se-á apenas em caso de manifesta desproporcionalidade (injustiça) ou de violação da racionalidade e das regras da experiência (arbítrio) no tocante às operações da sua determinação impostas por lei, como a indicação e consideração dos fatores de medida da pena. Só em tais circunstâncias se justifica uma intervenção corretiva do tribunal de recurso que altere a escolha e determinação da medida concreta da pena.

Tal consideração vale tanto para as operações de aplicação de penas parcelares, como para as da pena única.

Como refere Cristina Líbano Monteiro, o Código Penal rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto, para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente. A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares, à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes («A Pena “Unitária” do concurso de crimes», RPCC, Ano 16.º, N.º 1, pp. 151 a 166).

Conforme também refere José de Faria Costa, «Seria redundante dizer-se que se prefere o sistema do cúmulo jurídico ao do material porque este último se revela de difícil exequibilidade, pois obrigaria o condenado ao cumprimento sucessivo das diferentes penas a que se chegou em cada uma das condenações. No entanto, embora esta razão seja inteiramente válida, aqueloutra pela qual o sistema do cúmulo jurídico se apresenta de maior justeza reside no facto de, com ele, se evitar que os factos penais ilícitos, após a aplicação das respetivas penas, ganhem uma gravidade exponencial porque vistos isoladamente ou compartimentados uns dos outros. Gravidade essa que, obviamente, se refletirá, em um primeiro momento, em uma culpa igual ou proporcionalmente grave e, em momento posterior, em pena de igual dosimetria à culpa. Isto é, a culpa reportada a cada facto ganha (...) um efeito multiplicador. Como consequência do que se acabou de dizer, sendo a culpa relativa a cada facto ilícito-típico, tal redundará na ultrapassagem do limite da culpa (...) podemos concluir que só o sistema do cúmulo jurídico é suscetível de ser dogmaticamente justificável porque é através dele que obtemos a imagem global dos factos praticados e, bem assim, do seu igual desvalor global. Apenas efetuando (...) um exame dos factos em conjunto podemos perscrutar a ligação que os factos ilícitos isolados mantêm uns com os outros. Só através do cúmulo jurídico é possível, enfim, proceder à avaliação da personalidade do agente e, dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas, ou se, ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não radica na sua personalidade, mas antes em fatores exógenos. (...) através do sistema do cúmulo jurídico a culpa é adequadamente valorada e, em consequência, a pena encontrada é, inquestionavelmente, mais justa» («Penas acessórias – Cúmulo jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]», Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 136.º, N.º 3945, pp. 326-327).

Nessa linha de abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no art. 71.º do Cód. Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 01-10-1995, com a proclamação de princípios ínsita no art. 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo art. 77.º, n.º 1, do CP – o que significa que o específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, passando pelo efetivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.

Por seu turno, conforme diz Figueiredo Dias, «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.» (As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, Editorial de Notícias-Æquitas, 1993, p. 286).

No caso em apreço, para além das elevadas exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir – pertinentemente assinaladas no acórdão recorrido, sendo as de prevenção especial relativamente ao arguido algo residuais, dado ser “primário” (não tendo passado criminal registado) –, importa atentar nas graves implicações das suas condutas criminosas para a vítima, pessoa filha da sua companheira (assimilada a sua “enteada”) que consigo residia e sobra a qual exercia ascendente, cujo processo de amadurecimento e socialização ficou indelevelmente marcado por comportamentos que violaram não só a sua liberdade de autodeterminação sexual, mas também o livre e equilibrado desenvolvimento da sua personalidade, a sua autoimagem e autoestima e o seu direito a não ser violentada na sua intimidade e no seu pudor, a sua dignidade; enfim, os seus direitos humanos mais essenciais. Todos estes funestos e lamentáveis eventos não deixarão de ter significativo impacto no seu futuro enquanto mulher e como pessoa, a quem o direito à cidadania plena foi violentado numa idade em que se forma a personalidade. Tais resultados apenas remota e indiretamente poderão ser mitigados pela decisão condenatória do arguido, a que o Estado se encontra obrigado, desde logo pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e as Raparigas e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21-01 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 13/2013, de 21-01, entrada em vigor em 01-08-2014), aplicável diretamente e indiretamente, através da adesão à mesma pela União Europeia, a partir de 01-10-2023 – artigos 1.º, n.º 1, al. a), 3.º, alíneas a), e) e f) e 36.º (Violência sexual, incluindo violação).

Por outro lado, a República Portuguesa subscreveu os principais instrumentos internacionais neste domínio – designadamente da Convenção de Lanzarote1 –, encontrando-se obrigado a incriminar a prática de atos sexuais com, em ou perante uma criança que não tenha atingido a idade legalmente prevista para o efeito; abusando de reconhecida posição de confiança, autoridade ou influência sobre acriança, incluindo o ambiente familiar; ou abusando de uma situação de particular vulnerabilidade, nomeadamente devido a uma situação de dependência.

E, por imposição do direito derivado da União Europeia – concretamente da Diretiva 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13-12-20112 –, está também obrigado a punir com pena máxima de prisão não inferior a cinco anos quem praticar atos sexuais com uma criança que não tenha atingido a maioridade sexual – art. 3.º, n.º 4; «Maioridade sexual», [é] a idade abaixo da qual é proibida, segundo a legislação nacional, a prática de atos sexuais com crianças» – art. 2.º, al. b). A prática de ato sexual de relevo com, em, perante menor de14 anos de idade, ou que se leva a praticar, é punida [em termos criminais] indiferentemente da sua capacidade para entender, anuir, ou, até, de provocar ativamente os referidos atos.

Portugal está também obrigado a sancionar com uma pena máxima não inferior a oito anos de prisão quem praticar atos sexuais com uma criança, “recorrendo ao abuso de uma posição manifesta de confiança, de autoridade ou de influência sobre a criança” se esta não tiver atingido a maioridade sexual, e não inferior a três anos, se a criança tiver atingido essa maioridade; a punir com penas de prisão de igual moldura penal máxima a prática de atos sexuais com uma criança recorrendo ao abuso de uma situação particularmente vulnerável da criança, nomeadamente em caso de uma situação de dependência – art. 3.º, n.º 5.

A Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, e, posteriormente, a Lei n.º 15/2024, de 29 de janeiro, vieram, por seu turno, adequar as normas incriminatórias de condutas sexuais, agravando-as, de acordo com aqueles instrumentos normativos internacionais e da União, visando transpor para o ordenamento jurídico interno as disposições da Diretiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, bem assim cumprir as obrigações assumidas por Portugal com a ratificação da Convenção do Conselho da Europa para Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais [Convenção de Lanzarote]. A Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto, veio reforçar o quadro sancionatório e processual em matéria de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores e estabelecer deveres de informação e de bloqueio de sítios contendo pornografia de menores, concluindo a transposição da Diretiva 2011/93/UE.

Por seu turno, a “coabitação” não constituindo elemento do tipo de crime em apreço, é, isso sim, uma circunstância que funciona como agravante deste e de um alargado elenco de crimes contra a liberdade e contra a autodeterminação sexual, acrescentada pelo legislador ao art. 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal na alteração operada pela Lei n.º 103/2015, que, como se antecipou, visou essencialmente transpor para o ordenamento jurídico-criminal interno as recomendações da Convenção de Lanzarote e o regime da Diretiva 2011/93/UE que, repete-se, no art. 9.º, al. b) impõe o agravamento do crime de abuso sexual de menores, entre outras situações, também quando é cometido “por uma pessoa que coabita com a criança”, conquanto esta circunstância não constitua elemento do tipo.

Estes comandos impõem-se de forma imperativa ao Estado português, logo aos seus tribunais, não podendo o nosso sistema sancionatório penal deixar de se estruturar de acordo com os mesmos.

No caso em apreço nos autos, o quadro de atuações criminosas apurado nos autos, praticadas pelo arguido, é, inequivocamente, de elevada gravidade.

A culpa do arguido é elevada, sendo que a circunstância de a vítima, BB, ser filha da sua companheira é já contemplado como circunstância modificativa agravante na previsão típica da conduta.

Por outro lado, ainda, a persistência do arguido na prática dos crimes de abuso sexual de menor dependente relativamente à vítima, num período relativamente longo (cerca de quatro anos), indicia tratar-se de alguém com uma personalidade que não tem autocensura e que é indiferente às apontadas consequências para a vítima dos seus atos.

Importa relembrar que o arguido-recorrente praticou factos de abuso sexual no interior da residência em que a vítima habitava, no ambiente que deveria ser por eleição o de proteção e segurança de BB, aproveitando-se da situação de acessibilidade e indefesa.

Nos demais factos criou essa desproteção da vítima, conduzindo-a a locais ermos.

No tocante à ofensa à integridade física, agiu por motivo fútil e causou lesões visíveis a BB, agredindo-a no seu ambiente íntimo.

Quanto à perseguição, adotou vários tipos de atos que a preenchem, durante mais de 3 meses.

Conforme salienta alguma doutrina, «A dimensão traumática que a concretização de um crime sexual comporta para a vítima é um dado absolutamente evidente. (…) No que respeita aos menores vítimas de abuso sexual, a Perturbação de Stress Pós Traumático (PST) assume uma especial relevância como um dos efeitos essenciais de abuso sexual.» (assim, Mouraz Lopes e Caiado Milheiro, Crimes Sexuais - Análise substantiva e processual, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pp. 41 e ss.).

Segundo Teresa Pizarro Beleza, a ideia de atentado ao pudor foi substituída pela de desrespeito pela autodeterminação sexual, pois «já não é o pudor da criança ou do jovem (...) que está em causa – ele pode, até, ser inexistente e nem por isso o crime deixa de existir ou o Direito ficciona um pudor inexistente – mas a convicção legal (iuris et de iure, dir-se-ia) de que abaixo de uma certa idade ou privada de um certo grau de autodeterminação a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual.

O bem jurídico ofendido por um acto sexual de relevo, que seja praticado com, em ou perante uma criança, já não é o pudor» – salienta esta autora –, «mas as potencialidades de desenvolvimento, não excessivamente condicionado ou traumatizado por experiências demasiado precoces» (“O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, I Volume, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 1996, p. 169).

O crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º do Código Penal, protege um bem jurídico eminentemente pessoal – a autodeterminação sexual de uma forma muito especial, ou seja, a prática de atos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica gravemente o desenvolvimento global do próprio menor: abaixo de uma certa idade ou privada de um certo grau de autodeterminação «a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual», também nas palavras de Teresa Beleza (loc. cit., p. 169).

Por seu turno, a jurisprudência deste STJ tem afirmado de forma consistente que «O abuso sexual de crianças representa uma catástrofe na vida da vítima, produzindo uma devastação da sua estrutura psíquica. O abuso afecta o corpo da vítima do abuso sexual, o núcleo mais pessoal, mais íntimo da sua identidade» (assim, acs. de STJ de 28-04-2016 e de 25-10-2023, proc. n.º 321/19.9JAPDL.L3.S1: rel. Cons. Ernesto Vaz Pereira).

Como se fundamentou no Ac. STJ de 10-10-2012, Proc. n.º 617/08.5PALGD.E2.S1: rel. Cons. Armindo Monteiro, «O abuso sexual de crianças repugna à consciência colectiva, tanto no plano ético como moral, por um lado por ser um grave atentado a seres indefesos, salutar e desejável, em termos de interesse comunitário, que as crianças cresçam e se desenvolvam harmonicamente, por outro por ser frequente a prática de crimes desta natureza, gerando graves consequências à pessoa das vítimas, e também alarme e intolerância social, ataque à paz social, não se dispensando uma intervenção firme dos tribunais, como forma de apaziguar o tecido social afectado e demover potenciais delinquentes».

E, por outro lado, «Importa reafirmar serem prementes e muito elevadas as razões de prevenção geral que se fazem especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a autodeterminação sexual de crianças – e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, maxime, nos últimos anos, em que estas questões passaram a assumir muito maior visibilidade, justificando uma resposta punitiva firme, sendo ainda deter em conta os danos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas.» (ac. STJ de 28-04-2016, Proc. nº 252/14.9JACBR: Cons. Manuel Matos).

E como se sublinhou em mais recente ac. do STJ de 19-01-2022, Proc. 327/17.2T9OBR.S1: rel. Cons. Nuno Gonçalves, «O abuso sexual de crianças e de menores dependentes, violando a autodeterminação sexual e o harmonioso desenvolvimento da personalidade global das crianças na esfera sexual, demandam assertiva reafirmação da validade do bem jurídico e da vigência da proteção penal.»

Importa, assim, averiguar do acerto e proporcionalidade da medida da pena única aplicada.

Não se ignora que, como já referido, é gravíssimo o atentado aos valores e bens jurídicos vulnerados que estão em causa nos autos: autodeterminação sexual, ofensa à integridade física e segurança e tranquilidade da vítima.

A culpa do arguido é elevada, contribuindo para a perturbação de um normal e sadio processo de desenvolvimento pessoal da vítima, que dificilmente ultrapassará os traumas sem adequado e especializado acompanhamento.

Todavia, a aplicação da pena não prescinde da observação de uma ecofisiologia sistémico-jurisprudencial, que perscrute a solução e decisão em casos idênticos, a fim de se procurar uma tendencial coerência na aplicação das penas.

Assim, fazendo um exercício comparativo com um acervo de decisões jurisprudenciais em casos semelhantes jugados neste STJ – que confirmaram ou alteraram as decisões dos tribunais recorridos em casos de arguidos atuando isoladamente e com pluralidade de crimes e de vítimas –, e descontando, naturalmente, as especificidades e particularidades de cada um, podem observar-se em súmula, os seguintes resultados:

- Ac. STJ de 21-02-2024, Proc. 424/21.0PLSNT.S1.L1.S1: rel. Cons. Lopes da Mota: 34 crimes de abuso sexual de criança e de menor dependente – pena única de 9 anos de prisão;

- Ac STJ de 07-12-2023, Proc. 382/21.0JDLSB.L1.S1: rel. Cons. Leonor Furtado: 9 crimes de abuso sexual de criança e um crime de violência doméstica – pena única de 14 anos de prisão;

- Ac. STJ de 04-05-2023, Proc. 34/22.4JDLSB.L1.S1: rel. Cons. Teresa Almeida: 94 crimes de abuso sexual de menores dependentes e 4 crimes de pornografia de menores – pena única de 9 anos de prisão;

- Ac STJ de 15-03-2023, Proc. 4991/21.0JAPRT.S1: rel. Cons. Teresa Almeida: 10 (dez) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada – pena única de 6 anos de prisão;

- Ac. STJ de 27-09-2023; Proc. 2822/21.0JABRG.S1: rel. Cons. Lopes da Mota: 141 crimes de abuso sexual, da previsão dos artigos171.º, n.º 1, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, al. b) (coabitação) – pena única de 9 anos de prisão;

- Ac. STJ de 19-01-2022, Proc. 327/17.2T9OBR.S1: rel. Cons. Nuno Gonçalves: seis crimes de abuso sexual de menores dependentes e um crime de abuso sexual de crianças agravado – pena única de 10 anos e 6 meses de prisão;

- Ac. STJ de 24-02-2022, Proc. 889/20.7GLSNT.S1: rel. Cons. Adelaide Sequeira: 3 crimes de abuso sexual de criança, 1 crime de importunação sexual e 1 crime de violação – pena única de 8 anos de prisão;

- Ac. STJ de 13-07-2022, Proc. 429/20.8JACBR.C1.S1: rel. Cons. Ana Barata Brito: 14 (catorze) crimes de abuso sexual de crianças do art. 171.º, n.º 1, do CP, 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças, do art. 171.º, n.º 2, do CP, 6 (seis) crimes de violação sexual agravada, dos arts. 164.°, n.º 2, al. b), na versão da Lei nº 83/2015, de 05.08, e 177.º, n.º 6, ambos do CP, e 2 (dois) crimes de actos sexuais com adolescentes, do art. 173.º, n.º 1 do CP – pena única de 10 anos de prisão;

- Ac. STJ de 23-11-2022, Proc. 754/20.8JABRG.G1.S1: rel. Cons. Lopes da Mota: 6 crimes de abuso sexual de criança e de menor dependente – pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, numa moldura abstrata da pena aplicável aos crimes, em concurso, de 3 anos e 8 meses a 12 anos e 8 meses de prisão;

- Ac. STJ de 14-07-2022, Proc. 42/19.2JAPTM.E1.S1: rel. Cons. Helena Moniz: 5 crimes de abuso sexual de criança de tenra idade – pena única de 10 anos de prisão;

- Ac. STJ de 07-10-2021, Proc. 39/18.0JAPTM.E1.S1; rel. Cons. Helena Moniz: dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e um crime de violação agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos164.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma – pena única de 10 anos de prisão;

- Ac. STJ de 06-09-2021, Proc. 218/21.2JACBR.C1.S1: rel. Cons. Teresa Almeida: 4 crimes de abuso de sexual de menor adolescente e um crime de pornografia de menores agravado – pena única de 7 anos e 6 meses de prisão;

- Ac. STJ de 07-07-2021, Proc. 325/20.9PLSNT.S1: rel. Cons. Ana Brito: 10 crimes de abuso sexual de crianças, na forma agravada e 1 crime de abuso sexual de crianças - pena única de 10 anos de prisão;

- Ac. STJ de 05-02-2020, Proc. 366/17.3JAAVR.S1; rel. Cons. Conceição Gomes: 587 crimes de abuso sexual de criança previsto e punido pelos artigos 171º nº 1 e 177º nº 1 alínea b) do Código Penal, 116 (cento e dezasseis) crimes de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos artigos 171º nº 2 e 177º nº 1 alínea b) do Código Penal, 9 (nove) crimes de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos artigos 171º nº3 alínea b) e 177º nº1 alínea b) do Código Penal, e 4 (quatro) crimes de pornografia de menores agravado previsto e punido nos artigos 176º nº 1 alínea b) e 177º nº 1 alínea b) e nº 6 do Código Penal - pena única de 9 (nove) anos de prisão;

- Ac. STJ de 01-10-2020, Proc. 308/18.9GACDV.L1.S1: rel. Cons. Clemente Lima: 8 crimes de abuso sexual de criança e de 13 crimes de abuso sexual de criança - pena única de 6 anos e 6 meses de prisão;

- Ac. STJ de 22-05-2013, Proc. 93/09.5TAABT.E1.S1: rel. Cons. Armindo Monteiro: 4 crimes de abuso sexual de criança, 2 crimes de coação, 1 crime de detenção de arma proibida – pena única de 9 anos de prisão;

Como evola deste acervo comparativo de decisões jurisprudenciais do STJ, não pode considerar-se exagerada, desproporcional ou injusta – antes pelo contrário – a pena única que foi aplicada ao arguido no presente processo, no acórdão recorrido.

Reaproximando-nos da configuração do caso em apreço nos presentes autos – e face à imodificabilidade da medida das penas parcelares aplicadas –, a moldura penal do cúmulo jurídico é estabelecida entre o limite mínimo de 3 anos e 2 meses de prisão (pena parcelar aplicada mais elevada) e os 25 anos de prisão (limite máximo legal, uma vez que a soma total de todas as penas parcelares aplicadas o excede em muito, sendo a soma material das penas parcelares aplicadas de 293 anos de prisão – art. 77.º, n.º 2, do Cód. Penal).

Ponderando, como atrás se antecipou, a gravidade objetiva das atuações do arguido, o período pelo qual perduraram os abusos, o grau e intensidade elevados da sua culpa, embora sem passado criminal registado, sendo certo que, não tendo de responder com verdade, o arguido ensaiou uma versão de negação da autoria dos factos, não evidenciando, portanto, qualquer arrependimento ou interiorização do desvalor das condutas, afigura-se-nos que a fixação da medida da pena única não pode deixar de quedar-se num ponto como o que foi fixado pelo tribunal recorrido.

A fixação da pena única em onze (11) anos prisão parece-nos contemplar adequadamente um forte fator de compressão da medida das penas remanescentes que integram a relação do cúmulo jurídico, ficando muito abaixo do ponto médio da moldura, só assim se garantindo as exigências de prevenção geral e especial o a tendencial igualdade na aplicação de penas.

Parece, assim, de acordo com os critérios conformadores da fixação da pena única subjacentes à decisão, que nenhuma censura se justifica fazer ao decidido no acórdão recorrido.

Em consequência, não merecendo o acórdão recorrido qualquer censura, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se o ali decidido.

III. Decisão

Por tudo quanto se expôs, acordam os juízes Conselheiros desta secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- rejeitar, por inadmissibilidade, nos termos dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f) 420.º, n.º 1, al. b), 432.º, n.º 1, al. b) a contr. e 414.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, o recurso do arguido quanto às questões enunciadas em 10. i), ii), iii) e iv) (na parte respeitante à medida das penas parcelares aplicadas aos crimes pelos quais o arguido foi concretamente condenado);

- em consequência, não tomar conhecimento da invocada inconstitucionalidade do art. 127.º do CPP, na dimensão normativa apontada pelo arguido, e

- no mais, julgar improcedente a questão relativa à medida da pena única, supra elencada em 10. iv), confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UC – artigos 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, e Tabela III anexa – sendo ainda condenado em 4 (quatro) UC, nos termos do art. 420.º, n.ºs 1, al. b) e 3, do CPP.

Notifique.

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Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 12-06-2025

Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator, sendo eletronicamente assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos (art. 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

Os juízes Conselheiros

Jorge dos Reis Bravo (relator)

Ana Paramés (1.ª adjunta)

José Piedade (2.º adjunto)


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1. Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, assinada em Lanzarote em 25 de outubro de 2007, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 90/2012 de 28 de maio e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 75/2012, pub. no DR 1.ª série - N.º 103 - 28 de maio de 2012, entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa em 01-12-2021 (cfr. https://www.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-do-conselho-da-europa-para-protecao-das-criancas-contra-exploracao-sexual-e--0).

2. Numeração retificada pela declaração publicada no JOUE de 21-02-2012, L 18/7, de 21 de janeiro de 2012, uma vez que na publicação original era designada como «Diretiva 2011/92/EU». Cfr. nota 19 do Parecer do CC da PGR n.º 35/2016, de 23-03-2017.