RECURSO DE APELAÇÃO
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
DILAÇÃO DO PRAZO
PRAZO DE CADUCIDADE
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
GRAVAÇÃO DA AUDIÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
Sumário


Para que o apelante beneficie do acréscimo do prazo de 10 dias para a interposição do recurso de apelação é suficiente que o requerimento correspondente contenha a manifestação clara da vontade do recorrente de impugnar a decisão da matéria de facto com fundamento no erro na apreciação das provas objecto do registo sonoro.

Texto Integral


Proc. 1705/21.8T8TVD.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório.

Por sentença, proferida no dia 27 de Março de 2024 – notificada eletronicamente às partes no dia 28 do mesmo mês – a Sra. Juíza de Direito do Juízo Central Cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, julgou improcedente a acção proposta por Gym-Off, Lda., contra Balance Company, Lda., e a reconvenção deduzida pela última contra a primeira.

A autora e a ré interpuseram desta sentença, através de requerimentos apresentados por via electrónica no dia 13 de Maio de 2024 e 30 de Junho de 2024, recursos ordinários, independente ou principal e subordinado, de apelação, respectivamente, para o Tribunal da Relação de Lisboa.

A autora alegou, como fundamento do recurso, designadamente, que foram considerados provados factos cuja prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento é inequívoca e que são relevantes para a boa decisão da causa, transcreveu o depoimento de uma testemunha oferecida pela recorrida, ouvida na audiência – AA – que o tribunal de 1.ª instância deveria ter julgado provado que a) a recorrente não retirou qualquer benefício do contrato e, b) que a recorrida nada fez para renegociar o contrato assinado para que o mesmo pudesse ter execução – e concluiu, designadamente, que o tribunal errou na apreciação da prova, desde logo não considerou o depoimento da testemunha da recorrida – director da marca – do qual resultou inequívoco que o contrato assinado entre a recorrente e a recorrida não chegou a ser executado e que assim era forçoso o Tribunal “a quo” dar como provados aqueles dois factos.

Todavia, a Sra. Juíza Desembargadora Relatora, depois de ouvida a autora recorrente, por despacho de 9 de Janeiro de 2025, decidiu não tomar conhecimento do recurso, tendo adiantado, para justificar esta decisão a motivação seguinte:

Na conclusão 2. da alegação da recorrente lê-se:

«2. Assim era forçoso o Tribunal “a quo” dar como provados os seguintes factos:

a) a Recorrida nada fez para renegociar o contrato assinado para que o mesmo pudesse ter execução.

b) a Recorrente não retirou qualquer benefício do contrato de franchising assinado.».

Decorre do art. 638º nº 7 do Código de Processo Civil que se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias.

A reapreciação da prova gravada tem de ter como finalidade que sejam julgados provados ou não provados factos.

Ora, não pode a parte valer-se da estratégia de qualificar conclusões como factos, para beneficiar do alargamento do prazo para interposição do recurso.

No caso concreto, é óbvio a apelante pretende que seja julgado provado algo que não passa de conclusões.

Assim, porque nenhum facto é indicado pela recorrente, inexiste fundamento legal para o acréscimo de 10 dias, sendo inevitável concluir que o recurso foi interposto extemporaneamente.

A autora reclamou deste despacho para a conferência, mas esta, por acórdão proferido, no dia 19 de Março de 2025, com um voto de vencido, com fundamento em que não basta que a parte anuncie que impugna a decisão sobre a matéria de facto para que beneficie do prazo adicional de 10 dias para interpor o recurso, que tem de impugnar essa decisão, concretizando:

- os factos que não foram considerados pela 1ª instância e que no seu entender deveriam ter sido julgados provados, e/ou

- concretizando os factos que foram julgados provados pela 1ª instância e que no seu entender deveriam ter sido julgados não provados, e/ou

- concretizando os factos que a 1ª instância julgou não provados e que no seu entender deveriam ter sido julgados provados, que, no caso concreto, é uma evidência que a apelante nenhum facto concretiza que deva ser julgado provado, pois o que qualifica como factos não passa de conclusões e que, assim, como a reapreciação da prova gravada não se destina a aditar conclusões à matéria de facto, manteve a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.

A autora interpôs deste acórdão recurso de revista normal ou comum e, subsidiariamente, de revista excepcional, no qual pede a sua revogação e substituição por outro que determine a admissão do recurso rejeitado.

Os fundamentos da revista, expostos nas conclusões, são os seguintes:

1. O recurso de apelação interposto é tempestivo e tem que ser conhecido.

2. O que se faz neste no Acórdão revidendo é rejeitar a reapreciação da matéria de facto, sem que se fundamente, apenas concluindo que o que está em causa não são factos, mas matéria conclusiva, mas sem apreciar o recurso.

3. No quadro do litígio tal como está configurado – a existência de um contrato de execução continuada – que para um dos lados não teve qualquer concretização e por isso nenhum proveito tirou do mesmo, que permita concluir pela aplicação do artigo 434º n.º 2 do Código Civil, que determina que nos contrato de execução continuada a resolução não abrange as prestações já efetuadas é matéria factual relevante.

4. Se o douto tribunal entende que os factos que se pretendem ver aditados, como factos provados, são matéria conclusiva, que não têm relevância para a determinação da matéria de facto provada e que a prova gravada a que se alude, não é relevante, então tem que apreciar o recurso, fundamentando tal entendimento e não declará-lo intempestivo.

5. o prazo adicional de 10 dias, a que se refere o artigo 638.º, n.º 7, do CPC, no caso de o recurso ter por objeto a reapreciação da prova gravada - é prévio e independente do conteúdo ou teor da impugnação – até porque estes 10 dias, visam dar tempo ao recorrente de ouvir a prova gravada e transcrevê-la para o seu recurso;

6. Qualquer outra interpretação que faça depender o alargamento do prazo, do cumprimento os ónus previstos no artº 640º do C.P.C conduz a uma restrição que a norma não contempla e, ademais, à incerteza jurídica quanto a uma questão que deve ser perfeitamente clara e que é a do prazo de recurso aplicável.

7. A não ser assim, gerar-se-ia uma situação de enorme insegurança sobre o prazo de interposição dos recursos, o que na prática fará com que usar os dez dias adicionais para transcrever a provar se torne numa aventura processual, num risco de consequência imprevisíveis, o que, certamente, não esteve na mente do legislador!

8. Ao decidir como decidiu o Tribunal da Relação viola o artigo 638º, n.º 7 do CPC e o artigo º da Constituição da República Portuguesa.

9. E decide, no caso sub judice, em contradição com a jurisprudência, aplicada em casos em tudo idênticos e que foram proferidos no domínio da mesma legislação quer da própria Relação de Lisboa, designadamente, Acórdão da Relação de Lisboa n. 7241/18.2T8LRS-A.L1-2 de 27/10/2022, cuja certidão se junta,

10. Quer com a Jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça proferida em 28.04.2016 (proferido no proc. nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, Abrantes Geraldes), cuja certidão se junta.

11. Para o caso do presente recurso ser tramitado como Revista Excepcional, ao abrigo do disposto no arts.672º, nº1, al. c) do Código do Processo Civil, a questão a dilucidar, é o facto do Tribunal da Relação, no seu aresto, ao não conhecer do recurso interposto pela recorrente, como o fez, decidiu em contradição com Acórdãos quer da Relação quer do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente a expendida no Acórdão da Relação de Lisboa n. 7241/18.2T8LRS-A.L1-2 de 27/10/2022 e no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferida em 28.04.2016 (proferido no proc. nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, Abrantes Geraldes), cujas certidões se junta e segundo os quais: A consideração do prazo de interposição do recurso e da sua tempestividade – inclusivamente com a consideração do acréscimo de 10 dias, a que se refere o artigo 638.º, n.º 7, do CPC, no caso de o recurso ter por objeto a reapreciação da prova gravada - é prévia e independente do conteúdo ou teor da impugnação e da observância, ou falta de cumprimento, dos ónus de impugnação a que se reporta o artigo 640.º do CPC.

12. A questão fundamental de direitos ali constante é em tudo idênticos ao vertente, ou seja, - na avaliação da tempestividade de um recurso, tendo sido feito uso do alargamento do prazo previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, há que verificar se faz parte do objecto desse recurso a reapreciação de prova gravada, o que é independente da observância dos ditames do art. 640º do CPC.

13 . Tendo o Acórdão revidendo sido proferido no domínio da mesma legislação.

14. Estão assim preenchidos os requisitos da al.c) do nº1 e do nº2 do art.672º do Código do Processo Civil.

Não foi oferecida resposta.

2. Determinação do âmbito objectivo da revista e individualização da questão concreta controversa a solucionar.

A decisão impugnada na revista é que, com fundamento na caducidade do direito de interposição do recurso de apelação, recusou conhecer do seu objecto. Caducidade que, segundo a orientação maioritária do acórdão, radica nesta causa precisa: a impossibilidade de a apelante beneficiar do acréscimo do prazo de 10 dias para a interposição do recurso com que lei privilegia o recorrente que impugna a decisão da matéria de facto por erro na apreciação das provas pessoais produzidas oralmente na audiência e objecto de registo fonético, dado que não impugna aquela decisão, por ser uma evidência que a apelante nenhum facto concretiza que deva ser julgado provado, pois o que qualifica como factos não passa de conclusões.

Como o âmbito objetivo da revista é delimitado, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação, é uma só a questão concreta controversa que importa resolver: a de saber se o direito da apelante de impugnar a sentença da 1.ª instância foi, ou não atingido pela caducidade. Problema que vincula a que indague se a apelante pode ou não prevalecer-se do maior prazo de interposição do recurso de apelação, por esta ter por fundamento a reapreciação das provas pessoais produzidas em audiência, objecto do registo sonoro (art.ºs 635.º n.º 4, 639.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, ex-vi art.º 663.º, n.º 2, do CPC)

3. Fundamentos.

3.1. Fundamentos de facto.

Os factos, puramente procedimentais, que relevam para a resolução da questão concreta controversa enunciada, relativos às datas da notificação da decisão impugnada no recurso de apelação e de interposição deste recurso e ao conteúdo da alegação daquele recurso e do acórdão impugnado na revista, são os que, em síntese estreita, o relatório documenta.

3.2. Fundamentos de direito.

Os prazos são no Direito,, em geral, e no processo civil, em particular, uma inevitabilidade - senão mesmo uma fatalidade. Eles traduzem fortes limitações aos direitos processuais das partes com a agravante de, muitas vezes, não estarem patentes. Não obstante, eles são necessários: na sua falta toda a administração da justiça se tornaria impossível. Trata-se de um curioso feito de retorno: os próprios direitos das partes ficariam, afinal, imersos em incerteza. Há, pois, que respeitar os prazos sob diversas cominações.

Tanto a reclamação como o recurso estão sujeitas a prazos peremptórios cujo decurso importa a extinção, por caducidade, do direito a impugnação (artº 139.º, n.ºs 1 a 3, do CPC). A razão da sujeição da impugnação a prazos peremptórios explica-se por si: evitar o estado permanente de incerteza sobre a eficácia da decisão proferida. A impugnação caduca quando se extingue ope legis, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade tendente a esse resultado, em consequência de certo evento a que a lei atribui efeito extintivo – o decurso do prazo peremptório a que está sujeita. Verificado esse evento, e a partir do momento em que se verifique, o direito à impugnação cai por si. A omissão da impugnação não tem, por definição, um carácter negocial.

Mal vale a perder uma palavra para explicar que além de peremptório o prazo de impugnação é contínuo, está sujeito a tolerância, mediante o pagamento de multa ou por verificação do justo impedimento, e é prorrogável, ainda que uma só vez e por igual período, por acordo das partes (art.ºs 138.º n.º 1, 140.º e 141,º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Note-se, porém, que, na ausência de impugnação, o trânsito em julgado da decisão se verifica no terminus ad quem do prazo normal da sua dedução.

O recurso de apelação deve ser interposto no prazo de 30 dias, contado da notificação da decisão nele impugnada (art.º 638.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC). A este prazo acresce o de 10 dias quando o recurso tiver por objecto a impugnação da decisão da matéria de facto, mas apenas se envolver a reponderação da prova gravada, embora se não trate de dois prazos sucessivos, mas apenas de um único prazo ininterrupto (art.º 638.º, n.º 7, do CPC). Esta ampliação do prazo de interposição justifica-se, decerto, pela necessidade de dar ao recorrente a oportunidade para cumprir o particular ónus de impugnação da decisão da matéria de facto a que a lei o adstringe (art.º 640.º do CPC).

Este Tribunal Supremo tem decidido, consistente e constantemente1 – com a concordância da doutrina2- que para o apelante beneficie desse maior prazo se exige apenas que impugne, com uma densidade ou concludência mínima, a decisão da matéria de facto, com fundamento no erro sobre as provas objecto do registo sonoro, sendo irrelevante, para o problema da tempestividade da impugnação, tanto o não cumprimento pontual dos especiais ónus de impugnação da decisão da quaestio facti a que lei de processo é terminante em vinculá-lo, como o (de)mérito dessa impugnação. Dito doutro modo: desde que o apelante exteriorize, com clareza, a sua vontade de impugnar a decisão da matéria de facto, por erro sobre as provas foneticamente registadas, aquele beneficia do maior prazo apontado – e, portanto, o recurso deve considerar-se tempestivamente interposto - ainda que haja fundamento para rejeitar, in limine, essa impugnação, com fundamento no não cumprimento dos especiais ónus de impugnação da decisão daquela matéria que o recorrente deve satisfazer e que essa impugnação seja patentemente improcedente, dado que uma coisa é a tempestividade da manifestação da vontade de recorrer e de impugnar a decisão da matéria de facto, por erro sobre provas registadas, outra, bem diversa, o cumprimento pontual daqueles ónus ou o bem ou mal fundado dessa impugnação. Jurisprudência que é inteiramente correcta, atento o distinguo entre a admissibilidade e o mérito do recurso.

No caso, a recorrente, apelante, foi terminante na afirmação – tanto no corpo da alegação, como nas conclusões com que a rematou – de que pretende impugnar a decisão da matéria de facto por erro na avaliação ou na aferição da força persuasiva do depoimento de uma testemunha prestado oralmente na audiência final e objecto do registo sonoro – de que transcreveu os passos que considerou relevantes – e na indicação dos enunciados de facto que, no seu ver, foram julgados em erro. O requerimento de interposição do recurso de apelação contém, pois, a manifestação inequívoca da vontade de recorrer da decisão da matéria de facto, por erro na aferição ou valoração das provas pessoais produzidas oralmente na audiência, objecto de registo fonético. A questão de saber se os enunciados que a recorrente reputa de erroneamente julgados são ou não factos ou antes meras conclusões respeita à concludência da alegação e, portanto, a falta de bondade do fundamento em que assenta a impugnação, sendo, assim, inteiramente estranha ao problema da inadmissibilidade do recurso, por extinção, por caducidade, do direito à impugnação.

Assim, reiterando a orientação constante deste Tribunal Supremo, supra apontada, a conclusão a tirar é a de que a recorrente beneficia, realmente, do maior prazo de interposição do recurso de apelação e, portanto, que não deixou extinguir, por caducidade, o direito de o interpor. A decisão maioritária contida no acórdão impugnado é, pois, incorrecta. E face a essa incorrecção, a sua revogação é meramente consequencial.

A proposição conclusiva mais saliente, determinante da procedência da revista é a seguinte:

- Para que o apelante beneficie do acréscimo do prazo de 10 dias para a interposição do recurso de apelação é suficiente que o requerimento correspondente contenha a manifestação clara da vontade do recorrente de impugnar a decisão da matéria de facto com fundamento no erro na apreciação das provas objecto do registo sonoro.

A recorrida suportará, por virtude sua sucumbência no recurso, as respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido, declara-se a tempestividade da interposição do recurso de apelação da autora, Gym-Off, Lda., e determina-se o prosseguimento, se a isso nenhuma outra circunstância obstar, como for de direito, da respectiva instância.

Custas pela recorrida.

2025.06.17

Henrique Antunes (Relator)

Jorge Leal

Maria João Vaz Tomé

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1. Acs. de 23.10.2015 (2394/11), 28.04.2016 (1006/12), 06.06.2019 (2215/12) e de 14.09.2021 (18853/13); também assim, v.g., o Ac. da RG, de 19.12.2023 (5540/19).↩︎

2. José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3,º, 3.ª edição, Almedina, pág. 86, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, actualizada, Almedina, pág. 167, nota 297, Abrantes Geraldes/ Paulo Pimenta/ Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 766.↩︎