Não sendo o empregador uma empresa de construção civil, a implementação de medidas de proteção contra quedas em altura é, ainda assim, obrigatória quando esse risco efetivamente existir face a um juízo de prognose.
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,
Generali Seguros, S.A., Ré na presente ação declarativa especial emergente de acidente de trabalho intentada pelo Ministério Público em representação do sinistrado AA, em que também é Ré Auto Reparadora de Arnelas Lda., veio interpor recurso de revista do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-12-2024.
Em representação do sinistrado o Ministério Público formulou o seguinte pedido:
“Nestes termos e ao abrigo do disposto nos artigos 2º, 8º, 18º nºs 1 e 4, al, c), 23º, 39º, 47, nº 1. al. a) e c), 48°, nº 3, al. c), d) e e), 71 º, 75° e 79°, nº 3, da Lei 98/2009, de 4/09 e nos mais de direito aplicável, deve a presente ação ser julgada procedente e provada e, por via dela, determinar-se qual das R.R. é responsável pela reparação do devido ao A. em consequência das lesões que lhe advieram do acidente, condenando-a a pagar-lhe, no mínimo, o seguinte:
- Uma pensão anual e vitalícia agravada, nos termos do art. 18.º, n.º 4, al. c) da LAT (a Ré Seguradora responde sempre pelo pagamento da pensão caso não houvesse atuação culposa nos termos do disposto no art. 79.º n.º 3, da LAT).
- A diferença que se vier a encontrar nas indemnizações por incapacidades temporárias.
As Rés contestaram.
Foi indeferido o requerimento formulado pela Ré entidade empregadora para intervenção principal passiva provocada do F.A.T.
Foi proferido despacho saneador.
Realizou-se audiência final.
Por Sentença de 09.01.2024, o Tribunal de 1ª instância decidiu:
IV – Decisão:
Nestes termos, julgo a presente ação procedente, por provada, e em consequência:
a) fixo ao sinistrado, AA, a incapacidade permanente parcial de 20,50% desde 13-10-2021, dia seguinte à data da alta;
b) condeno a Ré Generali Seguros, S.A., a par com a Ré Auto Reparadora de Arnelas Lda, e sem prejuízo do eventual direito de regresso da Ré Seguradora nos termos do art. 79.º da LAT, a pagar ao sinistrado as seguintes prestações:
- a indemnização pelo período das incapacidades temporárias sofridas pelo sinistrado devida e ainda não paga no valor de € 1.140,57;
- o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de €2.410,80, vencida desde 13-10-2021.
- a quantia de € 20,00 a título de despesas de transporte;
- juros de mora sobre as prestações atribuídas, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada prestação até efetivo e integral pagamento.
c) Mais condeno a Ré Auto Reparadora de Arnelas Lda. a pagar ao sinistrado as seguintes prestações:
- a indemnização pelo período das incapacidades temporárias sofridas pelo sinistrado devida e ainda não paga no valor de €1.888,00;
- o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de €1.033,20, vencida desde 13-10-2021.
- juros de mora sobre as prestações atribuídas, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada prestação até efetivo e integral pagamento.
Fixo o valor da ação em € 3.048,57 acrescido do capital de remissão e juros que sejam, entretanto, apurados (art. 120.º do CPT).
Custas pelas entidades responsáveis na proporção do decaimento – cfr. art. 527º do CPC.”.
A Ré empregadora interpôs recurso de apelação.
Por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.12.2024 decidiu-se o seguinte:
“Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
- Julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto;
- Julgar procedente a apelação revogando a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré Auto Reparadora de Arnelas Lda.
Confirmar no mais a sentença recorrida.”.
A Ré Generali Seguros, S.A. interpôs recurso de revista, defendendo que o acidente de trabalho deveria considerar-se causado por falta de observação pelo empregador das regras de segurança no trabalho, à luz do disposto no artigo 18.º n.º 1 da LAT (Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro).
A Ré Auto Reparadora de Arnelas Lda., respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e sustentando não ter havido da sua parte violação de regras de segurança.
O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo a improcedência do mesmo.
Uma vez que o Ministério Público patrocina o sinistrado não há lugar ao Parecer previsto no artigo 87.º n.º 3 do Código do Processo de Trabalho.
Fundamentação
De Facto
Foram os seguintes os factos dados como provados nas instâncias:
1. O Autor nasceu no dia 25 de janeiro de 1968.
2. No dia 28 de setembro de 2020, pelas 10h, em ..., no exercício da sua atividade de ... de automóveis, ao serviço da segunda Ré, sob as suas ordens, direção e fiscalização, o Autor, por determinação da representante legal da empresa (BB), subiu ao telhado para proceder à colocação de uma telha, e no decurso da execução da tarefa, ao colocar o pé diretamente sobre uma das telhas de fibrocimento, esta partiu-se e provocou a sua queda.
3. No momento e lugar referido em 2) o sinistrado subiu por uma escada encostada à parede que, depois, estendeu sobre o telhado, para alcançar a telha a substituir.
4. Depois de se deslocar de cócoras até ao fim da escada, impunha-se sair da escada para a deslocar mais, o que o sinistrado fez pisando uma telha de fibrocimento.
5. Ao fazê-lo, a telha partiu com o peso do seu corpo e o sinistrado caiu para o interior do edifício, numa altura de cerca de seis metros.
6. Não existia no local da obra qualquer equipamento de proteção contra o risco de quedas em altura, nomeadamente passadiços sobre o telhado.
7. Não foi utilizado equipamento de proteção individual, designadamente arnês e cinto de segurança, criação de uma linha de vida, botas e capacete de proteção (alterado pelo Tribunal da Relação; o teor inicial era o seguinte: Não foi utilizado equipamento de proteção individual adequado, designadamente arnês e cinto de segurança, criação de uma linha de vida, botas e capacete de proteção)
8. A Entidade empregadora não avaliou a extensão do telhado em placas de fibrocimento, o peso do Sinistrado, com 1,79 m de altura, não deu formação a este sobre os riscos do trabalho em altura e não implementou medidas de proteção coletiva, nomeadamente linhas de vida ou material que permitisse a utilização de arnês [alterado pelo Tribunal da Relação; o teor original era o seguinte: A Ré entidade empregadora não avaliou os riscos do local (extenso telhado em placas de fibrocimento, peso do sinistrado, com 1,79 m de altura), não deu formação ao sinistrado sobre os riscos do trabalho em altura e não implementou medidas de proteção coletiva, nomeadamente linhas de vida ou material que permitisse a utilização de arnês].
9. À data do evento em apreço o sinistrado não tinha experiência profissional na execução de trabalhos em altura, nem lhe foi ministrada formação específica para o efeito.
10. Antes do momento referido em 2), tendo começado a cair alguns pingos de chuva no sítio em que o Autor fazia o seu trabalho de chapeiro, e perturbavam o seu desempenho, a Ré empregadora contratou com uma empresa de construção civil o serviço de substituição da placa defeituosa do telhado, de cerca de 1,5 m por 1,5 m.
11. A empresa contratada para realizar o serviço faltou à palavra, não aparecendo na data marcada, nem a seguir, qualquer empregado seu.
12. A inclinação da cobertura é suave, não constituindo perigo de escorregadela.
13. O tempo estava seco e as placas não estavam húmidas
14. As vigas de metal em que assentam as ditas placas são espaçadas cerca de 1 m entre elas.
15. Foi o sinistrado quem sugeriu o emprego de uma escada de alumínio composta de duas partes, deitada sobre o telhado, em cima da qual ia deslocar-se, o que permitia não fazer incidir o peso do corpo sobre qualquer placa, mas distribuí-lo pela superfície da escada.
16. Em consequência daquele evento sofreu o Autor as lesões descritas e examinadas nos autos de exame médico de fls. 112 e 113, designadamente, no membro superior esquerdo, défice de extensão do cotovelo de 25%.
17. Resultando do mesmo para o Autor uma I.T.A. de 29-9-2020 até 22-10-2020 e de 15-92021 a 11-10-2021, uma I.T.P. desde 8-5-2021 até 4-6-2021 de 40% e uma I.T.P. desde 5-6-2021 até 14-9-2021 de 20%.
18. Ficando afetado duma I.P.P. de 20,50% desde a data da alta a 12-10-2021.
19. À data do evento o Autor auferia o salário mensal de € 1 200 x 14 meses;
20. A Ré entidade empregadora havia transferido a sua responsabilidade infortunística para a Ré seguradora através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...13, pela indicada retribuição anual;
21. O Autor gastou a quantia de € 20 em transportes para se deslocar ao I.N.M.L. e ao tribunal.
22. O sinistrado recebeu da Ré Seguradora a quantia de € 773,30 a título de indemnizações referentes ao período de I.T.A.
23. Antes da queda descrita em 5) o Autor não tinha sofrido qualquer lesão ou apresentado qualquer queixa no membro superior esquerdo, limitativa do exercício da sua atividade.
24. O sinistrado sente dificuldade em trabalhar chapas por necessidade de muita força no membro superior que suporta as peças a martelar.
25. Na tentativa de conciliação a Ré seguradora aceitou: a existência e a caracterização do acidente dos autos como de trabalho; a transferência de responsabilidade pela retribuição salarial anual reclamada pelo Autor.
26. Não aceitando, contudo, a responsabilidade pelo sinistro uma vez que entende que houve violação das regras de segurança por parte da entidade empregadora.
27. Por sua vez, na mesma tentativa de conciliação aceitou a Ré empregadora: o acidente como de trabalho; o nexo causal entre as lesões sofridas e o mesmo; o resultado do exame médico efetuado no I.N.M.L.
28. Não aceitando, contudo, pagar ao Autor qualquer quantia por entender não ter havido violação de normas de segurança.
29. A Ré entidade empregadora foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 2021 no âmbito do processo 280/21.8..., tendo o referido processo sido declarado encerrado por homologação de plano de insolvência.
De Direito
A única questão suscitada no presente recurso é a de apurar se existe ou não responsabilidade agravada do empregador, pelo acidente de trabalho ocorrido, por aplicação do artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro (doravante designada por LAT), com a consequente atribuição ao segurador, em conformidade com o artigo 79.º n.º 1 do mesmo diploma, do direito de regresso contra o empregador relativamente a todas as quantias que o segurador tenha pago ao trabalhador por força do seguro de acidentes de trabalho.
A 1.ª instância respondeu afirmativamente, ao passo que o Tribunal da Relação, no Acórdão recorrido, pronunciou-se pela negativa.
No seu recurso de revista o segurador sustenta que “[a]inda que se tenha em linha de conta a alteração da matéria de facto operada pelo Tribunal da Relação do Porto, deveria manter-se a condenação da demandada entidade patronal por manifesta violação das regras de segurança”.
Para decidir a questão, importa, desde logo, ter presente que o trabalhador desempenhava, à data do acidente, as funções de chapeiro, sendo que o empregador não era uma empresa de construção civil, mas sim uma oficina de reparação de automóveis. Não podem, pois, aplicar-se, ao menos diretamente, normas legais como as que respeitam aos trabalhos em estaleiros temporários ou móveis, mormente as que constam do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de julho, o qual por força do seu artigo 2.º se circunscreve a “todos os trabalhos de construção de edifícios e de engenharia civil”. Também não são diretamente aplicáveis normas legais que regem trabalhos de construção civil, como as que constam dos artigos 40.º e 41.º (Aberturas nos soalhos ou plataformas de trabalho semelhantes) e, sobretudo, 44.º a 46.º (obras em telhados) do Decreto n.º 41821/58, de 11 de agosto (Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil). Tal não significa que não existam normas legais aplicáveis à situação dos autos como é o caso, desde logo, das obrigações gerais do empregador em matéria de segurança e saúde no trabalho constantes do artigo 15.º da Lei n.º 102/2009 de 10 de setembro e do artigo 36.º (“Disposições gerais sobre trabalhos temporários em altura”) do Decreto-Lei n.º 50/2005 de 25 de fevereiro. O artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, consagra, com efeito, obrigações gerais do empregador em matéria de segurança e saúde no trabalho, entre as quais se contam, com efeito, a «priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual” (alínea j) do n.º 2), bem como a obrigação de dar informações e formação adequada (n.º 4 do artigo 15.º). Acresce que o trabalho em altura é expressamente referido pela Lei n.º 102/2009, no seu artigo 79.º, alínea a) como trabalho de risco elevado: “Para efeitos da presente lei, são considerados de risco elevado (...) trabalhos (...) com riscos de quedas de altura”.
Este Tribunal, é certo, como refere o empregador nas suas contra-alegações, já teve ocasião de afirmar1 que, fora do domínio da construção civil, pode, excecionalmente não ser necessária a adoção de medidas de segurança, dizendo-se, a respeito, que “a implementação de medidas de proteção contra quedas em altura só é obrigatória quando esse risco efetivamente existir face a um juízo de prognose (...) não resultando provado que se impusesse à entidade empregadora em termos de normal previsibilidade dos riscos profissionais, a implementação preventiva de quaisquer medidas de segurança – aquando da deslocação pontual do sinistrado ao telhado, visando apenas a marcação dos pontos de drenagem das águas pluviais”2. Efetivamente, se no domínio da própria construção civil está ainda hoje em vigor o artigo 44.º do Decreto 41821/58 de 11 de agosto que dispõe que “[n]o trabalho em cima de telhados que ofereçam perigo pela sua inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, tomar-se-ão medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo (…)”, então, como se escreveu no referido Acórdão de 11-07-2019, “não se vislumbra porque é que a lei deveria ser interpretada de modo mais exigente fora do domínio da construção civil”.
Mas importa atentar ao estado do telhado no caso dos autos. Com efeito, enquanto no processo n.º 1564/15.0... se deu como provado que o telhado se apresentava “em bom estado de conservação” (facto 28 desse processo), tendo o acidente ocorrido porque o telhado tinha algumas placas de plástico translúcidas que o sinistrado tinha sido advertido de que não deveria pisar, mas acabou por fazê-lo (factos 22, 26 e 27), no caso em apreço nos presentes autos ao trabalhador sinistrado foi ordenada a substituição de uma “placa defeituosa do telhado, de cerca de 1,5 m por 1,5 m” (facto 10), com um vão de “cerca de um metro de largura” entre as telhas de fibrocimento (facto 14), telhas essas que o tempo desgasta e fragiliza; e “numa altura de cerca de seis metros” (facto 5), sendo que o trabalhador não tinha recebido qualquer formação profissional para este tipo de trabalho e não foram adotadas quaisquer medidas de segurança, coletivas ou individuais (factos 8 e 9).
A própria natureza do telhado impunha que o empregador tivesse adotado, pelo menos, as mínimas medidas de segurança de proteção individual, previstas no nosso ordenamento jurídico para as possíveis quedas em altura – como por exemplo, o arnês ou cinto de segurança -, como determinam os supra citados normativos.
Ou seja, no caso agora em juízo, o mau estado de conservação do telhado era (ou, pelo menos, devia ser) do conhecimento do empregador, o qual tentara, aliás, contratar uma empresa especializada para efetuar a reparação do mesmo (factos 10 e 11), e a delicadeza da reparação resultava evidente da própria sugestão do sinistrado (facto 15) para tentar evitar incidir o peso do corpo sobre qualquer placa, mas antes distribuí-lo pela superfície da escada que utilizou. O que significa que a operação envolvia um risco evidente que o empregador não podia, ou não devia, desconhecer.
Há, pois, que revogar o Acórdão recorrido e repristinar a sentença, reconhecendo que o acidente de trabalho se ficou a dever à violação pelo empregador das regras sobre segurança no trabalho (artigo 18.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro).
Decisão: Deferida a revista, repristinando-se a sentença.
Custas pelo Recorrido
Lisboa, 25 de junho de 2025
Júlio Gomes (Relator)
Domingos José de Morais
Paula Leal de Carvalho
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2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/01/2013 (FERNANDES DA SILVA), processo n.º 507/07.9TTVCT.P1.S1. O sublinhado é nosso.↩︎