NULIDADE DA DECISÃO
INCOMPETÊNCIA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
CONHECIMENTO OFICIOSO
ESCRITURA PÚBLICA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
PODERES DO TRIBUNAL
DOMICÍLIO
CASO JULGADO FORMAL
TRÂNSITO EM JULGADO
CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Sumário


I - A resolução de uma situação de conflito negativo de competência (artigo 109.º, n.º 2, do CPC), (no caso, dois tribunais judiciais de 1.ª instância atribuem-se mutuamente competência, negando a própria, para conhecerem da presente acção) não pode recair, simplesmente, no recurso ao caso julgado formal.
II – Entendeu o legislador que esse impasse teria de ser ultrapassado por decisão cometida ao presidente do tribunal com competência para o efeito, por forma a assumir uma intervenção clarificadora, e mesmo liderante, com repercussão em litígios futuros.
III - A incompetência territorial é do conhecimento oficioso apenas nos casos em que a lei o prevê (artigo 578.º, do CPC).
IV – É nula a decisão que conhece oficiosamente da excepção dilatória da incompetência territorial excedendo os seus poderes.

Texto Integral


Processo n.º 4457/24.6T8OER.S1


Relatório

1. AA e sua mulher BB, residentes em ..., na China (tendo indicado como sua morada em Portugal a da sua representante fiscal, sita em ..., Oeiras), intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e DEEP ORDER, LDA, ambos com domicílio na freguesia de ..., Porto.

Formularam os seguintes pedidos:

declarando nula a procuração falsa, alegadamente outorgada pelos AA. a favor do 1ºR.;

- declarando a ineficácia da referida procuração em relação aos AA.;

- declarando a ineficácia do contrato de compra e venda em relação aos AA.;

- declarando a falsidade da escritura de compra e venda referida em 4.;

- declarando a nulidade da supra referida escritura

- declarando nulo qualquer registo pretendido com base na referida escritura e consequentemente

- determinando o cancelamento do registo efectuado sobre o prédio urbano, sito na Rua..., na União das freguesias de ... e ..., ... e ..., concelho de Oeiras,, inscrito na matriz da referida freguesia sob o artigo ...22 e descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., sob o nº 281, efectuado pela AP ...58 de 2024/09/04.”.

Indicaram, como valor da acção, € 30.000,01.

2. Por despacho de 10-01-2025, o Juízo Local de Oeiras (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, fixou o valor da causa em € 300.000,00 e declarou a incompetência relativa do tribunal em razão do valor da acção.

Decidiu, igualmente, nesse despacho que “atenta a pretensão dos Autores (obter a declaração de nulidade de uma procuração e de uma escritura), o Tribunal competente será o do domicílio dos Réus e não o do foro do imóvel, nos termos do art.º 80.º do CPC. Acresce que todos aos atos alegadamente ilícitos foram praticados na mesma área que a do domicílio dos Réus (Porto)”. Consequentemente determinou que “transitada em julgado esta decisão, se remetam os autos aos Juízos Centrais Cíveis do Porto (art.º 102.º e 105.º, n.º 3, do CPC.”.

3. Remetidos os autos, o Juízo Central Cível do Porto (Juiz 6) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por despacho de 11-03-2025, julgou-se incompetente em razão do território para conhecer a acção e atribuiu a competência ao Juízo Central Cível de Oeiras (rectius de Cascais). Fundamentou, em síntese, que a incompetência do Tribunal em razão do território, por preterição da regra do artigo 80.º, do Código de Processo Civil (doravante CPC), não é de conhecimento oficioso pelo que o tribunal competente é o Juízo Central Cível de Oeiras. Entende que depois de este juízo se ter declarado incompetente em razão do valor, não poderia conhecer de qualquer outra incompetência relativa, mesmo que fosse do conhecimento oficioso. Acrescentou, ainda, que a regra prevista no artigo 105.º, n.º 2 do CPC, não impede que o Tribunal a quem foi atribuída a competência por outro Tribunal a possa pôr em causa.

4. Por despacho de 23-04-2025, o Juízo Central Cível de Cascais (Juiz 4) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, defendendo que o trânsito em julgado do despacho de 10-01-2025 impede nova reapreciação da questão da competência, nos termos do disposto no artigo 625.º, do CPC, decidiu atender ao caso julgado formado em primeiro lugar correspondente à decisão proferida pelo Juízo Local Cível de Oeiras, determinando a devolução dos autos ao Juízo Central Cível do Porto (Juiz 6) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.

5. Remetidos os autos, o Juízo Central Cível do Porto (Juiz 6) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por entender estar em causa um claro conflito de competência, nos termos do artigo 109.º, n.º 2, do CPC, suscitou a sua resolução junto do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 110.º, n.º 2 e 111.º, n.º 1, do CPC).

6. Cumprido o n.º2 do artigo 112.º do CPC, o Ministério Público, em seu douto parecer, pronuncia-se no sentido de o conflito suscitado ser resolvido no sentido de a atribuição da competência para a acção ser cometida ao Juiz 6 do Juízo Central Cível do Porto, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto. Considera para o efeito que “tendo primeiramente transitado em julgado a decisão do JLCível de Oeiras, no segmento referente à competência territorial, atribuindo essa competência ao JCCível do Porto, a mesma prevalece sobre a proferida por este tribunal no sentido da sua incompetência em razão do território, face ao disposto no art.º 625.º do CPC.”.

II – Apreciando e decidindo

1. Nos termos do disposto do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n. 3, do CPC).

No presente caso, o Juiz 4 do Juízo Central Cível de Cascais e o Juiz 6 do Juízo Central Cível do Porto, declinam mutuamente a competência territorial própria para conhecer da presente acção atribuindo-a um ao outro.

Configura-se, assim, um conflito negativo de competência, nos termos do artigo 109.º, n.º 2, do CPC, cujo conhecimento não pode recair simplesmente no recurso ao caso julgado formal.

Com efeito e conforme referido, dois tribunais judiciais de 1.ª instância atribuem-se mutuamente competência, negando a própria, para conhecerem da presente acção.

O legislador entendeu que esse impasse teria de ser ultrapassado por decisão cometida ao presidente do tribunal com competência para o efeito, por forma a assumir uma intervenção clarificadora e mesmo liderante com repercussão em litígios futuros.

Assim, por estarem em causa decisões com a área de competência de diferente tribunal da Relação cabe ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a competência para resolução de conflito, por ser este o Tribunal superior com hierarquia imediata sobre os Juízes conflituantes - cfr. artigo 110.º, n.º 2, do CPC.

2. Na situação dos presentes autos verifica-se que a acção interposta pelos autores foi distribuída ao Juízo Local Cível de Oeiras (Juiz 3) do Tribunal Judicial de Lisboa Oeste, que declarou a incompetência relativa, em razão do valor da causa (já que superior a € 50.000,00), e fixou a competência para conhecer da acção aos Juízos Centrais Cíveis. Por outro lado, atenta a pretensão dos Autores (obter a declaração de nulidade de uma procuração e de uma escritura) considerou ainda que o tribunal competente para conhecer da causa era o tribunal do domicílio dos Réus e não o do foro do imóvel, nos termos do artigo 80.º, do CPC, e também porque todos os actos alegadamente ilícitos foram praticados na mesma área que a do domicílio dos Réus, Porto.

Esta incompetência do tribunal em razão do território foi conhecida oficiosamente, tendo o Juízo Central Cível do Porto aludido à questão fazendo salientar que “a incompetência do Tribunal em razão do território, por preterição da regra prevista no artigo 80.º do CPC não é de conhecimento oficioso.”

Não podemos deixar de concordar.

Na verdade, sob a epigrafe “Conhecimento oficioso da incompetência relativa”, dispõe o 104.º, do CPC, designadamente no seu n.º 1, alínea a):

- “A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes:

(…) Nas causas a que se referem o artigo 70.º, a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 71.º, os artigos78.º, 83.º, e 84.º, o n.º 1 do artigo 85.º e a primeira parte do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 89.º.”

Daqui resulta, por argumento a contrario, que a presente arguição de incompetência em razão do território não pode ser conhecida ex officio, já que a incompetência territorial é do conhecimento oficioso só nos casos em que a lei o prevê (artigo 578.º, do CPC), e apenas quando os autos forneçam para o efeito todos os elementos necessários.

Assim, uma vez que o tribunal, no caso, Juízo Local Cível de Oeiras (Juiz 3) do Tribunal Judicial de Lisboa Oeste conheceu oficiosamente da excepção dilatória da incompetência territorial excedendo os seus poderes, a decisão é nula.

Consequentemente, a competência territorial deve manter-se no Juízo Central Cível de Cascais - Juiz 4.

3. Face ao exposto, decide-se competente para a tramitação da presente acção ao juízo Central Cível de Cascais (Juiz 4) do Tribunal Judicial de Lisboa Oeste.

Sem custas.

Notifique.

Lisboa, 30-06-2025

Graça Amaral