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CONTRATO PARA REGISTO E DEPÓSITO DE VALORES MOBILIÁRIOS
DELIBERAÇÃO DO BANCO DE PORTUGAL DE 3.8.2014
TRANSFERÊNCIA DE RESPONSABILIDADES DE ENTIDADE BANCÁRIA
PODERES DO BANCO DE PORTUGAL
Sumário
I- O “contrato para registo e depósito de valores mobiliários” é um negócio jurídico de intermediação financeira, com regime legal típico no Código de Valores Mobiliários (CVM), podendo definir-se como um contrato pelo qual o intermediário financeiro se obriga, a título principal, a registar ou a manter em depósito determinados valores mobiliários, obrigando-se também, em princípio, a título acessório, a prestar os serviços relativos aos direitos que são inerentes aos valores mobiliários registados ou depositados. II - Face às deliberações do Banco de Portugal produzidas no âmbito da resolução decidida no caso Banco 1..., qualquer responsabilidade suscetível de ser imputada a esta instituição de crédito que se tenha constituído a favor dos recorrentes, enquanto titulares de ações preferenciais através dela adquiridas, não foi transferida para o Banco 2.... III - O banco de Portugal dispõe, por força da lei, do poder de transferência parcial ou total de direitos e obrigações de uma instituição de crédito, que constituam activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão, produzindo a decisão de transferência efeitos, independentemente de qualquer disposição legal ou contratual em contrário IV- Atuando o Banco de Portugal no exercício dos poderes que lhe estão conferidos por lei enquanto entidade supervisora, que é autoridade pública de resolução, as suas decisões, salvo se afastadas por via de decisão judicial para a qual é competente o contencioso administrativo, são vinculativas para os seus destinatários.
Texto Integral
AA (falecido na pendência da ação), demandou nesta ação declarativa com processo comum o Réu Banco 2... SA (e outros), pedindo a sua condenação (solidária) a restituir-lhe o montante de capital depositado - € 343.100,00 -, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a citação até efetivo e integral pagamento, e ainda a quantia de € 25.000,00, a título de dano não patrimonial.
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Alegou para tanto, e em síntese – no que ao Réu Banco 2... diz respeito -, que é titular da conta á ordem nº ..., que abriu no Banco 1..., agência de ..., onde constituiu diversos depósitos a prazo, tendo entregue naquele banco, em 19/06/2013 e 10/02/2014, € 182,100,00 € 161.000,00, respetivamente, no total de € 343.100,00, ficando plenamente convencido de que havia celebrado com o Banco 1... um contrato de depósito a prazo.
Acontece que entretanto precisou daquele dinheiro, sendo então informado de que não o podia levantar, por não ser possível executar a venda dos produtos financeiros subscritos, ficando então a saber que não havia constituído um depósito a prazo, mas subscrito títulos – ações preferenciais do Banco 1... -, vendo-se assim impedido de obter a restituição das quantias depositadas. Posteriormente, veio ao conhecimento público a crise do Banco 1..., que culminou na divisão do património daquele com o Banco 2..., passando a agência de ... do Banco 1... a funcionar sob a denominação "Banco 2..., S.A.", por força da deliberação do Banco de Portugal de 3.8.2014, facto notório e de conhecimento público.
Da referida deliberação resultou a transmissão dos direitos e obrigações, até então na esfera do Banco 1..., para o Banco 2..., com exclusão apenas dos litígios que têm por objeto alguma das matérias expressamente excecionadas no próprio texto da deliberação.
Ora, não estando patente no presente processo qualquer das matérias objeto de exceção contidas na referida deliberação, a responsabilidade do Banco 1... transmitiu-se para o Banco 2..., do qual o A é agora cliente forçado.
Acontece que desde Agosto de 2014 o A deu por diversas vezes instruções ao Banco 2... para o resgate dos capitais depositados na mencionada conta, no valor de € 343.100,00, tendo então sido confrontado com a negação da sua pretensão, por alegada falta de liquidez dos alegados títulos subscritos.
Com a sua atuação, os RR. colocaram o A. num permanente estado de preocupação e ansiedade, com o temor de não reaver, ou de não saber quando irá reaver o seu dinheiro, o que tem provocado no A. ansiedade, tristeza e dificuldades financeiras para gerir a sua vida, pelo que, pretende ser indemnizado dos danos não patrimoniais sofridos, num mínimo de € 25.000,00.
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O Banco 2..., em sede de contestação,veio excecionar a sua ilegitimidade passiva substantiva para a ação, alegando que por força da deliberação do Banco de Portugal de 3 de agosto de 2014 (clarificada pela deliberação de 11 de agosto do mesmo ano, e pela deliberação de 29 de Dezembro de 2015), foram transferidos do Banco 1... para o Banco 2... determinados ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob a gestão daquele, tendo sido excluídos dessa transferência "Quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições regulatórias, penais ou contra-ordenacionais".
Assim, na relação material controvertida apresentada pelo A, é imputado ao Banco 1... um conjunto de factos que, se provados, constituiriam uma violação por parte daquele banco de disposições regulatórias, a título de dolo eventual ou negligência grosseira, estando tais situações claramente abrangidas nos "passivos excluídos" pelas aludidas deliberações.
Acresce que, em particular, na deliberação de 29 de dezembro de 2015, o Banco de Portugal decidiu clarificar não terem sido transferidos do Banco 1... para o Banco 2... “Todos os créditos relativos a ações preferenciais emitidas por sociedades veículo estabelecidas pelo Banco 1... e vendidas pelo Banco 1...”, pelo que também por esta via se conclui que não houve transferência para o Banco 2... das eventuais responsabilidades do Banco 1... assumidas na comercialização de ações preferenciais.
Ou seja, em termos processuais, a legitimidade passiva substantiva nos presentes autos pertence exclusivamente ao Banco 1..., sendo oBanco 2... parte ilegítima. Defende-se ainda por impugnação, dizendo que a subscrição de ações preferenciais pelo A foi de sua livre vontade e responsabilidade, como o vem fazendo desde 2008, tendo os montantes referidos sido entregues ao Banco 1... para subscrição de produtos financeiros, concretamente ações preferenciais, produto que o Autor conhecia há vários anos, pois pelo menos desde Julho de 2008 que vinha a investir milhares de euros nessa ações.
Devidamente esclarecido, o Autor optou sucessiva e reiteradamente pela subscrição de produtos com risco de capital, mas com índices de rentabilidade consideravelmente mais elevados, de que são exemplo ações preferenciais.
Acresce que o Autor recebeu regularmente no seu domicílio extratos integrados, nos quais é evidente a autonomização entre depósitos (à ordem e poupança) e, entre outros instrumentos financeiros, valores mobiliários, como é o caso das ações preferenciais.
Ademais, em 10/07/2008, antes de ter dado a ordem de compra das primeiras ações preferenciais, o A assinou, conjuntamente com o seu cônjuge, o contrato de registo e depósito de instrumentos financeiros, e de receção, transmissão e execução de ordens, sendo que esse contrato de intermediação financeira contém as cláusulas contratuais gerais aplicáveis ao referido contrato, do qual o Autor e o seu cônjuge tomaram conhecimento.
Em suma, o Autor bem sabia o tipo de produto financeiro que estava a subscrever, não só porque lhe foi devidamente explicado pelo colaborador do Banco 1... que não estava garantido nem o capital nem os juros; que a responsabilidade pelos pagamentos era do emitente das ações preferenciais; qual o juro e respetiva data de pagamento, etc. Aliás, o A mostrava-se assessorado pelo seu procurador e filho, BB, pessoa que tinha conhecimentos mais do que suficientes sobre a aplicação financeira em questão.
Conclui assim que o Autor é o único responsável pela escolha de investimento que fez, não sendo o Réu Banco 2... responsável por eventuais danos, pois estes a existirem não resultam de qualquer conduta sua, mas antes dos riscos inerentes ao tipo de instrumentos financeiros que o Autor subscreveu.
Impugna ainda o valor dos danos não patrimoniais reclamados (por falta de concretização), e quanto aos danos patrimoniais, diz que na situação real atual o Autor é titular das ações preferenciais que subscreveu, e que têm um valor de mercado, que sempre teria de ser subtraído a qualquer pretensão indemnizatória.
Conclui assim que os danos alegados pelo Autor, patrimoniais e não patrimoniais não foram devidamente demonstrados e, em qualquer caso, são infundados, pelo que devem os pedidos formulados ser julgados totalmente improcedentes.
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Falecido entretanto o A, foram habilitados os seus sucessores – CC, BB, DD, AA, e EE –, os quais vieram responder à contestação do Réu, reiterando todos os factos que o A havia aduzido na petição inicial.
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Por requerimento de 27.6.2018, vieram também os AA/Habilitados reduzir o pedido para € 292.710,60, o que foi admitido, por despacho de 6.9.2018.
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Na Audiência Prévia realizada, considerou o tribunal, além do mais, que se encontrava em condições de conhecer de imediato das exceções adjetivas e substantivas invocadas nos articulados, pelo que proferiu de imediato decisão sobre o pedido formulado pelos Habilitados contra o Banco 2..., nos seguintes termos: “…Pelo exposto, julga-se a presente ação improcedente e, por via disso, absolve-se do pedido o Réu Banco 2... SA. Mais se condenam os AA Habilitados nas custas processuais que sejam devidas pela presente ação, por nela terem decaído e considerando-se esse decaimento nos restantes 50% de toda a ação (face à peticionada condenação solidária com demais RR) (art.º 527.º do CPC)”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela vieram os Habilitados interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões: “1 – Os apelantes demandaram o Banco 1... e, solidariamente o Banco 2..., alegando, em suma, que o seu falecido pai subscreveu, no Banco 1..., ações preferenciais, pensando que estava a subscrever um produto semelhante a um depósito a prazo, tendo, igualmente, invocado a nulidade do contrato de intermediação financeira, alegando danos patrimoniais e não patrimoniais, referindo que o Banco 2... será responsável pela transferência de responsabilidades que o Banco de Portugal realizou. 2 – A Mma. Juiz “a quo” julgou improcedente a ação em relação aos apelados Banco 2..., por entender que “No caso concreto, da deliberação emitida pelo Banco de Portugal em 03.08.2014, que aplicou ao Banco 1... a medida de resolução descrita nos autos, criando um veículo de transição consubstanciado no 2º R. (Banco 2...), resulta que se transferiram parte, e não a totalidade, dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco 1... (o que se monstra fundamentada e assente em razões de interesse público, não se incluindo o alegado crédito dos AA reclamado nesta ação).” 3 – Salvo o devido respeito, não podem os apelantes concordar com tal entendimento. 4 - Neste sentido, o que se impõe apreciar é se os créditos discutidos nos autos se transmitiram para o Banco 2... através da resolução do Banco de Portugal. 5 – Configura um contrato de depósito bancário, a situação em que o falecido pai dos apelantes abriu, na agência ao balcão uma conta, e procedeu à entrega de diversas quantias, para provisionamento da mesma, aplicando essas quantias ao longo dos anos em novos depósitos, com diferentes prazos e taxas, à medida em que os anteriores se foram vencendo. 6 - Ao confiar ao depositário a guarda do dinheiro, o depositante aceita transferir para a esfera de domínio daquele o risco sobre a gestão da quantia que lhe transferiu, alheando-se, a partir de então, do seu uso e fruição, mas também da responsabilidade pelo risco do seu extravio, que passa a recair sobre o depositário até ao momento em que a restituição é exigível, e daí que, nesse interregno, a movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário, não é oponível ao depositante, que a ela foi alheio, independentemente de culpa do depositário nessa movimentação (art.º 796.º do CC). 7 - O Banco de Portugal, através da medida de resolução de 03-08-2014, transferiu a totalidade da atividade prosseguida pelo Banco 1..., e um conjunto dos seus ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão deste, para um banco de transição – O Banco 2...; 8 – Pelo que, no caso presente, o passivo transferido para o banco de transição – Banco 2... -, em consequência da resolução referida, corresponde ao valor do saldo da conta bancária onde o falecido pai dos apelantes efetuou vários depósitos em dinheiro, com a sequente condenação do Banco 2... ao pagamento de tal quantia. 9 – Donde resulta, em suma, que a relação entre os apelantes e o Banco 1... é a contratual e não a extracontratual. 10 – Assim, perante a factualidade descrita, e analisando a deliberação inicial do Banco de Portugal de 3/8/2014 (que conformou a medida de resolução que incidiu sobre aquela instituição de crédito) e suas sucessivas clarificações e rectificações, operadas pelas deliberações de 11/8/2014 e 29/12/2015, dúvidas não restam de que a obrigação aqui accionada (depósito a prazo) não foi considerada passivo excluído ou não transferido para a instituição de transição que, nessa medida, deve ser tida por responsável pelas quantias depositadas na conta titulada pelos apelantes na instituição de crédito originária, como sucessora nos direitos e obrigações desta. 11- Pelo que, ao decidir como decidiu, fez a Mmo Juiz “a quo” errada interpretação e aplicação, entre outros, da deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 03.08.2014 e do disposto nos arts. 145.º-D, n.º 1, al. c) do RGICSF e bem assim o art. 486.º, n.º 2, al. a) e 501.º, ambos do CSC. Termos em que deve a sentença em crise ser revogada e ordenada a sua substituição por outra que determine a procedência da ação relativamente ao apelado Banco 2...…”.
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O Réu Banco 2... veio apresentar Resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), a questão a decidir no presente recurso de Apelação é apenas a de saber se os créditos discutidos nos presentes autos se transmitiram para o recorrido Banco 2....
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Foram dados como provados na primeira instância os seguintes factos (que não mereceram impugnação): “- O falecido Autor foi titular, entre junho de 2013 e fev 2014, no Banco 1..., de acções preferenciais ao portador no valor global de € 343.100,00. - As assinaturas do falecido Autor e mulher constam de contrato de registo e depósito de instrumentos financeiros, e de recepção, transmissão e execução de ordens, datado de 2008, e que se encontram no ficheiro de cliente e relacionado com a conta de DO nº ... de que foram titulares. - As ações supra referidas foram subscritas aos Balcões do Banco 1... em .... - O Banco de Portugal proferiu Deliberações em 03/08/2014 e seus Anexos, de 11/08/2014 (e seus Anexos) e em 29/12/2015, cujo conteúdo se dá por reproduzido. - A presente acção foi proposta a 22/07/2016. - Os A Habilitados fazem assentar a legitimidade substantiva do Banco 2..., S.A., da sua constituição enquanto “sucessor” do 1º Réu”.
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Como se elencou acima, a questão a apreciar na presente Apelação consiste apenas em saber se os créditos do A (representado na ação pelos Habilitados), consistentes na subscrição de ações preferenciais ao portador, com a intermediação financeira do Banco 1..., foi transferida para o Banco 2.... Considerou-se na sentença recorrida que não ocorreu essa transmissão, e por isso, julgou-se a ação improcedente, com a absolvição do Réu Banco 2... do pedido. E com razão, adiantamos já.
O tribunal da primeira instância justificou a sua decisão com base nas deliberações do Banco de Portugal, de 3.8.2014, de 11.8.2014, e de 29.12.2015 - que se lhe seguiram, e que vieram clarificar aquela -, que as partes não põem em causa, mas que achamos útil reproduzir, nas partes que consideramos relevantes: “Como é do conhecimento geral, no dia 3 de Agosto de 2014 o Banco de Portugal deliberou o seguinte: (…) São transferidos para o Banco 2..., SA, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 145º - H do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, conjugado com o artigo 17º - A da Lei Orgânica do Banco de Portugal, os ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco 1..., SA, que constam dos Anexos 2 e 2A à presente deliberação. (…) Também é do conhecimento público que, por deliberação do Banco de Portugal de 11 de Agosto de 2014, foi retificado o anexo 2 à deliberação de 3 de Agosto. (…) Por fim é igualmente público, que no dia 29 de dezembro de 2015 (…) foi adotada a seguinte deliberação (deliberação contingências) relativa ao ponto da agenda “Clarificação e retransmissão de responsabilidades e contingências definidas como passivos excluídos (…): O Conselho de Administração do Banco de Portugal, ao abrigo da competência conferida pelo RGICSF para selecionar os ativos e passivos a transferir para o banco de transição, delibera o seguinte: (…) B) Em particular, desde já se clarifica não terem sido transferidos do Banco 1... para o Banco 2... os seguintes passivos do Banco 1...: (i) Todos os créditos relativos a ações preferenciais emitidas por sociedades-veículo estabelecidas pelo Banco 1... e vendidas pelo Banco 1...…”.
Resulta assim claro das deliberações tomadas pelo Banco de Portugal (especialmente a de 29 de dezembro de 2015, mas com efeitos a 3 de agosto de 2014), que não foram transferidos do Banco 1... para o Banco 2... os créditos (dos clientes do Banco 1...) relativos a ações preferenciais emitidas por sociedades-veículo estabelecidas pelo Banco 1... e vendidas pelo Banco 1..., os quais permaneceram naquele banco, em liquidação.
Alegam os recorrentes, nas suas conclusões de recurso, que o A, seu falecido marido e pai, apenas celebrou com o Banco 1... um contrato de depósito bancário, através do qual abriu uma conta, e procedeu à entrega de diversas quantias, para provisionamento da mesma, aplicando essas quantias ao longo dos anos em novos depósitos, com diferentes prazos e taxas, à medida em que os anteriores se foram vencendo.
E que, ao confiar ao depositário a guarda do dinheiro, transfere para a esfera de domínio daquele o risco sobre a gestão da quantia que lhe transferiu, alheando-se, a partir de então, do seu uso e fruição, mas também da responsabilidade pelo risco do seu extravio, que passa a recair sobre o depositário até ao momento em que a restituição é exigível.
Mas como é evidente, e resulta da matéria de facto provada, o falecido A não celebrou com o Banco 1... apenas um contrato de depósito bancário, através do qual abriu uma conta naquele banco, e procedeu à entrega de diversas quantias, para provisionamento da mesmaconta, tendo celebrado também com o banco, um “contrato de registo e depósito de instrumentos financeiros, e de receção, transmissão e execução de ordens”, datado de 2008, no âmbito do qual adquiriu, entre junho de 2013 e fevereiro de 2014, ações preferenciais ao portador, no valor global de € 343.100,00, subscritas pelo A e esposa, aos Balcões do Banco 1... em ....
Aliás, tratando-se de um negócio de natureza formal, as assinaturas do falecido Autor e mulher constam daquele contrato, as quais se encontram no ficheiro de cliente, relacionado com a conta de DO nº ..., de que foram titulares.
Estamos perante um contrato - de “registo e depósito de valores mobiliários” -, que se inscreve no âmbito da atividade de intermediação financeira, regulada nos arts. 289º e ss. do Código de Valores Mobiliários (CVM), assumindo-se o banco (Banco 1...) como intermediário financeiro, e o falecido A e esposa, como clientes.
Nas palavras de Engrácia Antunes (“Os Contratos de Intermediação Financeira”, no BFDUC, vol. LXXXV, pp. 308 e ss.), estamos perante um “contrato celebrado entre um intermediário financeiro e o titular de determinados instrumentos financeiros, pelo qual aquele se obriga perante este a registar e/ou a manter em depósito tais instrumentos, bem assim como a prestar determinados serviços relativos aos direitos a eles inerentes.”
Este contrato está sujeito à forma escrita, caso o titular dos valores mobiliários seja um investidor não qualificado, à luz do art.º 30º do CVM, sendo que a falta deste elemento comina o negócio com a nulidade, embora a mesma apenas possa ser invocada pelo investidor (art.º 321º, nº 1, do CVM).
Segundo Maria Rebelo Pereira (“Contratos de registo e depósito de valores mobiliários. Conceito e regime”, Cadernos de Valores Mobiliários, nº 15, pp. 322 e 323), “O contrato para registo e depósito de valores mobiliários é um negócio jurídico de intermediação financeira, com regime legal típico no CVM, e integra, entre outros, os elementos típicos do contrato de mandato comercial (nºs 2 e 4 do art.º 343º e 68º, ambos do CVM, conjugados com o art.º 1157º do CC) e do contrato de depósito (arts. 1185º e ss. CC), podendo definir-se como um contrato pelo qual o intermediário financeiro se obriga, a título principal, a registar ou a manter em depósito determinados valores mobiliários, obrigando-se também, em princípio, a título acessório, a prestar os serviços relativos aos direitos que são inerentes aos valores mobiliários registados ou depositados. No âmbito de um contrato para registo e depósito, um intermediário financeiro obriga-se, assim, a praticar atos jurídicos principais e acessórios por conta de outrem; e a guardar uma determinada coisa móvel ou manter o registo de direitos, restituindo-a, ou transferindo-os, com os seus frutos, quando a coisa ou o direito forem exigidos pelo titular. Da qualificação do contrato para registo e depósito de valores mobiliários, como um contrato comercial, resulta que a recondução do contrato para registo e depósito às categorias gerais do mandato e do depósito, previstos no CC, apenas será relevante em caso de lacuna do regime previsto no CVM e respetivos regulamentos…”.
Acrescenta depois a mesma autora, que “O intermediário financeiro só poderá “dispor” dos valores mobiliários do cliente se para tal for autorizado mediante uma ordem deste, que dá origem à situação jurídica de formação complexa – contrato de receção e execução de ordens” (p. 329), e que “A ordem para alienação ou aquisição de valores mobiliários caracteriza-se como um negócio jurídico unilateral, e para a ordem ser vinculativa para o intermediário financeiro, terá de existir uma prévia relação de clientela, sem a qual este poderá legitimamente recusá-la (nº 3 do art. 326º do CVM). Existe essa relação de clientela sempre que o intermediário tenha a seu cargo o registo ou o depósito de valores mobiliários pertencentes ao investidor. A relação de clientela assume assim, uma função integradora das ordens emitidas, pelo que pode ser considerada como um contrato quadro, sendo a sua junção com o negócio unilateral, que é a ordem que vincula o intermediário financeiro a efetuar a subscrição ou a transação de valores mobiliários, desde que preenchidos os requisitos legais a que a ordem deve obedecer (art. 326º do CVM). A relação de clientela pode ser instituída em momento determinado por um contrato específico e, nomeadamente, com a celebração de um contrato para registo e depósito de valores mobiliários. Em qualquer dos casos, o negócio de cobertura assim formado institui uma obrigação de o intermediário financeiro praticar atos jurídicos por conta de outrem. Considerando a ligação estabelecida pela lei entre o contrato para registo e depósito e a transmissão e receção de ordens, e o facto do registo das cláusulas ter como principal fundamento o princípio de defesa do investidor, entendemos que a CMVM procede ao registo do contrato, entendido como um corpo de normas, sem estabelecer qualquer distinção entre o serviço auxiliar de investimento e o serviço de investimento da receção e transmissão de ordens” (p. 330).
No que respeita às ordens dadas ao abrigo dos contratos de intermediação financeira, refere ainda José Queirós Almeida (“Contratos de intermediação financeira enquanto categoria jurídica”, em Cadernos de Valores Mobiliários, nº 24, p. 300): “Em nossa opinião, as ordens, apesar da sua nomenclatura, mais não são do que declarações negociais tendentes à celebração de um contrato, mais precisamente de um mandato pelo qual o intermediário se obriga a comprar ou vender valores mobiliários. Mesmo quando seja possível afirmar o enquadramento das “ordens” em contratos-quadro, pensamos que tal não desvirtua a qualificação aqui defendida, uma vez que o contrato-quadro é precisamente caracterizado por gerar a obrigação contratual de celebração de futuros contratos.”
E acrescenta o mesmo Autor a pp. 300 e 301: “… as ordens são declarações negociais tendentes à celebração de mandatos para a compra ou venda de valores mobiliários. Daí, a especificidade de tratamento das ordens no capítulo dos contratos de intermediação. O legislador, tendo em conta as especificidades deste tipo de atividade de intermediação financeira, decidiu dar um tratamento autónomo às ordens enquanto declarações negociais do cliente”.
Ora, parece-nos evidente, face ao que ficou a constar da matéria de facto provada – não impugnada pelos recorrentes -, que o falecido Autor (e a esposa) celebrou com o Banco 1..., na qualidade de intermediário financeiro, um contrato (complexo) de “registo e depósito de instrumentos financeiros, e de receção, transmissão e execução de ordens”, em 2008, no âmbito do qual adquiriu, nos balcões daquela instituição financeira, em ..., entre junho de 2013 e fevereiro de 2014, ações preferenciais ao portador, no valor global de € 343.100,00.
Donde, perante a factualidade descrita, e as deliberações do Banco de Portugal, de 3/8/2014, de 11/8/2014, e de 29/12/2015 (que vieram clarificar a primeira), dúvidas não restam, de que a obrigação assumida pelo Banco 1... – de restituir ao A o valor das ações preferenciais quando tal restituição lhe fosse exigida por aquele -, foi considerada passivo excluído ou não transferido para o Banco 2..., a instituição de transição (cfr. neste mesmo sentido, entre outros, os Acs. do STJ, de 22-03-2018, de 11.11.2020, e de 23.03.2021; e da RL de 26.01.2017 e de 14.03.2017, todos disponíveis em www.dgsi.pt). E essa medida não é sequer questionável.
Como se sumariou no Ac. do STJ de 30.3.2017 (também disponível em www.dgsi.pt), “I - O banco de Portugal dispõe, por força da lei, do poder de transferência parcial ou total de direitos e obrigações de uma instituição de crédito, que constituam activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão, produzindo a decisão de transferência efeitos independentemente de qualquer disposição legal ou contratual em contrário (artigos 139º, 140º e 145º-O do regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei nº 298/92, de 31 de Dezembro). II - Atuando o Banco de Portugal no exercício dos poderes que lhe estão conferidos por lei enquanto entidade supervisora, que é autoridade pública de resolução, as suas decisões, salvo se afastadas por via de decisão judicial para a qual é competente o contencioso administrativo, são vinculativas para os seus destinatários…”.
Efetivamente, o Banco de Portugal, enquanto autoridade de supervisão, exerce atribuições e competências determinadas na Lei Orgânica e no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), sendo uma pessoa coletiva de direito público, titular de poder administrativo, que se revela, designadamente, nas competências regulamentares legalmente atribuídas, constituindo corolário daquele poder, a independência da Administração perante a Justiça, que se manifesta, desde logo, na incompetência dos tribunais Comuns para se pronunciarem sobre questões administrativas, e na consagração do foro Administrativo, que consiste na consagração legal da competência contenciosa para julgar os litígios administrativos nos Tribunais Administrativos.
Ora, ao Banco de Portugal foi atribuído o poder de proceder à seleção dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão a transferir para o banco de transição, tendo os mesmos sido objeto de uma avaliação, reportada ao momento da transferência, realizada por uma entidade independente, designada pelo Banco de Portugal, em prazo fixado por aquele, tendo a mesma avaliação, para efeitos do disposto no nº 3 do art.º 145º-B, incluído também uma estimativa do nível de recuperação dos créditos de cada classe de credores, de acordo com a ordem de prioridade estabelecida na lei, num cenário de liquidação da instituição de crédito originária, em momento imediatamente anterior ao da aplicação da medida de resolução.
Quanto às razões que presidiram à adoção das mencionadas deliberações pelo Banco de Portugal, fazemos nossas, com a devida vénia, as palavras do Ac. do STJ de 2.11.2017 (também disponível em www.dgsi.pt), que reproduzimos: “Dos preceitos acima referidos decorre expressamente que ao BdP, enquanto entidade de supervisão, incumbe expressamente a adopção das medidas necessárias à salvaguarda da instituição de crédito, dos depositantes e do sistema financeiro, aplicando as que forem consideradas adequadas e proporcionais, sendo-lhe dada ampla liberdade de decisão na escolha das medidas mais adequadas e eficazes. Tendo sido adoptada a medida de resolução com a simultânea criação de um banco de transição, tal envolve a faculdade de seleccionar os activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão a transferir para esta instituição, no momento da sua constituição, conforme o disposto no art. 145º-H, nº 1, do RGICSF, bem como a faculdade de posteriormente retransmitir estes activos e passivos para a instituição originária (nº 5). Tais poderes, cometidos à entidade de regulação e supervisão bancária, resultam também da Directiva da Resolução e Recuperação Bancária, transposta em parte pela Lei nº 23-A/15, de 26-3, em vigor desde 31-3-15. Nos termos desta Directiva, pode a entidade de resolução transferir a totalidade ou parte dos activos, direitos ou passivos para uma instituição de transição, tendo como princípios orientadores o interesse público e a estabilidade do sistema financeiro, ainda que dessa transferência parcial de activos, direitos e passivos possam resultar prejuízos para credores ou possa sair afectada a igualdade de tratamento dos credores dentro de uma mesma categoria (desde que tal seja justificado, tendo em conta os princípios orientadores da referida directiva, acima referidos entre outros). Com tais medidas pretendeu-se preservar a estabilidade financeira e a confiança no sistema financeiro, protecção dos depositantes e dos fundos públicos e o bom funcionamento do mercado interno dos serviços financeiros. A possibilidade de criação de um banco de transição já estava, aliás, prevista no Aviso do Banco de Portugal nº 13/12, de 8-10-12, nos termos do qual (n° 1 do art. 2°), se dispunha que “os bancos de transição são instituições de crédito com duração limitada, com a natureza jurídica de banco e a forma de sociedade anónima, que se regem pelos estatutos aprovados por deliberação do Banco de Portugal, pelas disposições legais e regulamentares que lhes são especialmente aplicáveis, pelas normas aplicáveis aos bancos e, subsidiariamente, pelo Código das Sociedades Comerciais, com as adaptações necessárias aos objectivos e natureza destas instituições.” Acrescenta o nº 3 que “os bancos de transição são criados para receberem e administrarem a totalidade ou parte dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão de uma instituição originária, desenvolvendo todas ou parte das actividades dessa instituição com vista à prossecução das finalidades enunciadas no art. 145º-A do RGICSF.” Ou seja, de acordo com este quadro legal (e comunitário), a entidade de supervisão, o BdP, pode adoptar medidas para salvaguarda da solidez financeira das instituições de crédito, dos interesses dos depositantes e da estabilidade do sistema financeiro, sendo que, de entre as várias medidas previstas, encontra-se a medida de resolução, estando ainda expressamente prevista a faculdade de serem seleccionados activos, direitos e passivos a serem transmitidos para um banco de transição, e a faculdade de retransmissão destes mesmos activos ou passivos, desde que tais decisões sejam norteadas pela tutela do interesse público, do sistema financeiro e dos depositantes (…). Não deve (ou não deveria) olvidar-se jamais que a intervenção radical que ocorreu (liquidação do CC) e a solução transitoriamente encontrada (criação do Banco DD) foi justificada pela verificação da deterioração grave da situação financeira e prudencial do EMP01..., S.A, revelando-se a sua incapacidade para prosseguir os seus fins, o que colocou em causa não só a própria instituição, como ainda a estabilidade do sistema financeiro nacional já por si depauperado pela crise que existia e por outros incidentes com outras instituições bancárias. Com tais medidas pretendeu-se assegurar a liquidação do que devesse ser liquidado, e potenciar que uma parte dos activos e passivos pudessem continuar a desempenhar a sua função de forma transitória, através do Banco DD, S.A., entidade financiada pelo Fundo de Resolução, com uma parcela do risco assumida também pelo Estado Português. Em teoria poderia ter sido encontrada uma solução que se mostrasse mais favorável aos AA. (e outros interessados em semelhantes condições), como ocorreria se acaso a opção se tivesse traduzido na nacionalização do CC. Todavia, se desse modo poderiam ser garantidos todos os créditos sobre essa entidade, tal seria feito em grande medida (veja-se o famigerado caso BPN) à custa do Orçamento Geral do Estado, já sobrecarregado por outras ocorrências anteriores, o que foi recusado pelas entidades decisoras (BCE, BdP, Governo Português)”
Em conclusão, mostrando-se inquestionáveis as deliberações do Banco de Portugal acima referidas, que decidiram pela exclusão do alegado crédito dos AA/habilitados do âmbito de transferência dos ativos para o Banco 2..., nenhuma censura nos merece a decisão da primeira instância, que confirmamos. Improcede, assim, a Apelação dos recorrentes.
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DECISÃO:
Julga-se improcedente a Apelação, e Confirma-se a sentença recorrida.
Custas (da Apelação) pelos recorrentes (art.º 527º nº 1 e 2 do CPC).
Notifique e D.N
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Guimarães, 5.6.2025
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Anizabel Sousa Pereira
2ª Adjunta: Fernanda Proença