ACIDENTE DE VIAÇÃO
ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
ESPÉCIE E MEDIDA DA PENA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
DANO MORTE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I - Os assistentes não têm legitimidade para recorrer, desacompanhados do Ministério Público, relativamente à espécie e à medida da pena aplicada ao arguido, salvo quando demonstrarem um concreto e próprio interesse em agir. Com efeito, no que diz respeito à escolha da pena, sua medida e aplicação de pena de substituição, não existe afetação de algum dos seus direitos subjetivos e/ou interesses, nem a inflição de uma desvantagem, não se podendo esquecer que, se a punição do arguido está dominada por um interesse público, não pode competir aos assistentes serem eles os intérpretes do interesse coletivo, designadamente se conflituar com a posição assumida no processo, a esse respeito, pelo Ministério Público.
II - Tendo a vítima do acidente de viação em causa 46 anos de idade, sendo uma cantora famosa, uma mulher viva, alegre, comunicativa, respeitada e amada por todos, prevendo-se ter pela frente uma carreira de sucesso no nosso país, e considerando a prática jurisprudencial mais recente a propósito do valor indemnizatório atribuído para ressarcimento do “dano morte”, é de fixar, para tal ressarcimento, uma indemnização de 100.000,00 euros.

Texto Integral



Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – RELATÓRIO

1.1. No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Criminal de Grândola, foi o arguido A submetido a julgamento sob acusação do Ministério Público da prática de factos suscetíveis de o constituir como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo de:
- 1 (um) crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 1 e n.º 2 e art.º 15.º, alínea a), ambos do Código Penal, ao qual são aplicáveis as penas acessórias previstas no art.º 69.º, n.º 1, a) do Código Penal, em concurso aparente com as contraordenações, previstas nos art.ºs 18.º, n.º 1, 24.º, n.º 1 e 27.º, n.º 2, a), § 1.º, todos do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto Lei n.º 114/94, de 03 de maio;
- 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, ao qual cabe, ainda, a pena acessória de proibição de conduzir, prevista e punida pelo art.º 69.º, n.º 1, a), in fine, do Código Penal.
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Pelos demandantes cíveis, M e J, foi deduzido pedido de indemnização civil contra o arguido e Caravela – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação dos mesmos no pagamento da quantia de € 150 000,00, a título de indemnização pelo dano morte da falecida C e por danos não patrimoniais sofridos por aqueles.
A demandada CARAVELA – Companhia de Seguros, SA contestou pedindo a improcedência do pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes e, consequentemente, ser integralmente absolvida dos pedidos.
Sem prescindir, num eventual cenário da sua condenação, formulou os seguintes pedidos:
a) reduzir substancialmente os montantes indemnizatórios peticionados, em consonância com as disposições legais aplicáveis, bem como com a consolidada prática jurisprudencial dos Tribunais Superiores, e considerando a concorrência de culpas alegada, com eventual exclusão da demandada;
b) reconhecer, desde logo, o seu direito de regresso sobre o arguido/ demandado, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c), do n.º 1, do art.º 27.º do Decreto - Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
O arguido contestou e apresentou rol de testemunhas.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença, datada de 10 de dezembro de 2024, por meio da qual foi decidido (transcrição):
“a) – Condeno o arguido A, como autor material de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 e n.º 2 e artigo 15.º, a), ambos do Código Penal, ao qual são aplicáveis as penas acessórias previstas no artigo 69.º, n.º 1, a) do Código Penal, em concurso aparente com as contraordenações, previstas no artigo 18.º, n.º 1, artigo 24.º, n.º 1 e artigo 27.º, n.º 2, a), § 1.º, todos do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de Maio, na pena de dois anos e dez meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de oito meses;
b) – Condeno o arguido A, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, ao qual cabe, ainda, a pena acessória de proibição de conduzir, prevista e punida pelo artigo 69.º, n.º 1, a), in fine, do Código Penal, na pena de oito meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de dez meses;
c) – Em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condeno o arguido A na pena única de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova;
d) – Em cúmulo jurídico das penas parcelares acessórias, condeno o arguido A na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de um ano;
Do pedido de indemnização civil:
e) - Julgo procedente a excepção de ilegitimidade passiva do demandado A e, em consequência, absolvo o mesmo do pedido deduzido;
f) – Custas pela demandante;
g) - Julgo procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes e em consequência condeno a demandada Caravela – Companhia de Seguros SA a pagar aos demandantes M e J, a quantia de 150.000,00€ (cento e cinquenta mil euros), sendo:
- € 100.000,00 (cem mil euros), a título de indemnização pelo Dano Morte de C;
- € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de indemnização pelos Danos Morais para os demandados decorrentes da morte da sua filha;
h) – Custas a cargo da demandante. “
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1.2. Inconformados com esta decisão, a assistente M dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação de Évora, extraindo da respetiva motivação as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
“a) Verifica-se, na sentença recorrida a propósito do facto 12 a 14, uma grave lacuna relativa à descrição da dinâmica do acidente, já que a Testemunha Tiago Canhoto Pinto, inquirido no dia 07/11/2024 entre as 14h23m e as 14h51m, afirmou, entre os minutos 02:15 a 04:10, que « o senhor vinha mais depressa do que eu, e quando chega perto da minha carrinha, o farol direito vinha na minha faixa de rodagem, eu desviei-me, o senhor passou… quando diz que se desviou, chegou a ocupar a berma da autoestrada?] não completamente, mas fiz um desvio… [passou a linha da….], sim, sim… [E fê-lo para no fundo porque se apercebeu que o senhor estava a ocupar a sua faixa…] sim, sim, [e depois o que é que se passou ?] depois o senhor seguiu a sua viagem, recordo-me de já depois lá ao fundo ele ir , ali um camião, e ele vinha com o mesmo tipo de condução, entretanto desviou-se, ultrapassou o camião, e o tempo de eu ultrapassar o camião, eu nunca mais vi o carro dele, e quando dei por mim já era só destroços na estrada e estava o senhor a sair da viatura … [nessa questão, quando diz que o senhor ia a ultrapassar o camião e vinha com o mesmo tipo de condução, o que é que quer dizer isso ?] Ou seja, o carro um pouco na faixa da direita, não ia totalmente na faixa da esquerda… [Mas estaria a ocupar ambas as faixas naquele momento?] Sim, pode dizer-se que sim.».
b) Ou seja, o sinistro não ocorreu APENAS porque o Arguido não foi capaz de exercer «os cuidados necessários na condução veículo de matrícula (…..) e foi embater com a parte da frente, do lado direito, deste veículo na parte de trás, do lado esquerdo», mas sim porque o arguido conduzia ocupando as duas faixas de rodagem em simultâneo e obrigando outros veículos a desviar-se dele para evitar acidentes – o arguido que afirmou, como adrede se verá, que se “sentia bem” apesar de ter bebido!
c) Tal resulta, também das declarações da Testemunha R, Militar da GNR, inquirido no dia 07/11/2024 entre as 11h30m e as 12h25m, que entre os minutos 07:10 a 09.15, referiu que «apurei também que não existindo marcas antes da produção do conflito, isto indicia que não há nenhuma manobra evasiva por parte dos condutores intervenientes» e depois, ao minuto 20:25 a 21:25 «Neste caso é uma colisão traseira excêntrica, vá, bate metade da frente de um lado na metade traseira do outro lado do veículo (…) ali o que dá a entender, se me permite, é o seguinte: o smart vem na via da direita, e o audi quando bate ele não estará… o que dá a entender é que ele vem a meio da faixa de rodagem, ou seja, vem a apanhar parcialmente a via da direita e parcialmente a via da esquerda».
d) Que – ainda a testemunha R - mais refere, com relevância, logo após, ao minuto 21:15 a 21:45, que o veículo smart vinha com as luzes de nevoeiro traseiras ligadas, pelo que vindo a luz de nevoeiro ligada as outras obrigatoriamente também o estavam.
e) Ora o que esta afirmação respalda, não é o afastamento de uma qualquer culpa do lesado por circular sem luzes – nem isso sequer se colocou – mas sim o facto de nem com as luzes de nevoeiro do smart ligadas o arguido o ter visto!
f) O que, tudo, respalda uma condução totalmente grosseira, para lá do meramente negligente, de alguém que circulava a ocupar as duas faixas a ziguezaguear e a obrigar os demais condutores a desviar-se para evitar acidentes, não foi capaz de ver, sequer, um carro à sua frente com as luzes ligadas!
g) Impõe-se, pois, por via dos depoimentos das testemunhas T, entre os minutos 02:15 a 04:10, e R, Militar da GNR, que entre os minutos 07:10 a 09.15, minutos 20:25 a 21:25 e minutos 21:15 a 21:45, que seja alterado o facto provado 12, para a seguinte redação: «12º. Imediatamente antes da produção do acidente, ambos os veículos circulavam na A2, ao Km 84,914, em Alcácer do Sal, no sentido de trânsito norte/sul, sendo que o veículo de matrícula (…..) circulava à frente com as luzes de nevoeiro ligadas, a ocupar a via de trânsito do lado direito, e o veículo de matrícula (…..) circulava ocupando as duas faixas de rodagem em simultâneo e obrigando outros veículos a desviar-se dele para evitar acidentes.».
h) Impõe-se, ainda, que seja aditado aos factos provados que o Arguido, com uma taxa de alcoolémia que era pelo menos quatro vezes superior ao legalmente permitido, conscientemente embriagado, propôs-se realizar uma viagem superior a 200 km.
i) Foi julgado provado que: «57.º O arguido demonstra um arrependimento sincero e genuíno pela morte de C.», o que ocorre, apenas e só, com base nas perceções do Tribunal e sem qualquer prova conclusiva, sendo tais conclusões desligadas da circunstância de «a defesa do arguido, (…) argumentar a existência de uma concorrência de culpas na produção do resultado morte», assim procurando desculpabilizar-se da perda de uma vida humana em consequência da alcoolémia de um condutor em excesso de velocidade, para o qual 400 metros não chegaram para ver um veículo com as luzes de nevoeiro acesas, numa reta em autoestrada, realidade que, aliás, tentou refutar, declarando que « as luzes do carro da vítima mal se viam, já que emitiam uma luminosidade bastante fraca.», sendo porém «o próprio arguido quem refere que acha que as luzes do automóvel não seriam bem visíveis, mas depois afirma que viu, as mesmas, as luzes a uma distância de 10 carros», tudo agravado porque «Por várias vezes, o arguido mencionou que C estava parada ou quase parada, aquando da colisão. Desde já, deve ser afirmado que esta não estava parada, pois as perícias realizadas concluíram que o seu veículo tinha uma velocidade de 59 km/H, logo encontrava-se em movimento.»: SIC, da própria sentença recorrida.
j) Este facto 57, deverá ser expurgado da matéria de facto provada, mas não só por das declarações prestadas pelo Arguido não resultar expresso qualquer tipo de arrependimento, não se confirmando sequer a tristeza ou alteração do seu comportamento; Antes pelo contrário!
k) O arguido, nas declarações que prestou em Audiência de Julgamento, ao minuto 13.00 a 15:20, refere que terá visto um jogo de futebol com amigos, terá bebido “um par de cervejas”, e depois, um “cocktail” que “era doce”, possivelmente “de licor beirão”, tendo o “topete”, o atrevimento e desfaçatez, de dizer que se “sentia perfeitamente normal” e que decidiu “ir por aí a baixo, fiz a ponte vasco da gama, perfeitamente normal” (15:00 a 15:33), o que reafirma ao minuto 51:15 a 52:30, a instâncias do mandatário dos assistentes, quando refere que almoçou em Via Longa, onde bebeu um copo de vinho da casa; E logo após, esclarece que bebeu “umas quantas” cervejas, antes do antes referido “par de cervejas”, e que se “Sentia-se bem, sentia-se em condições de conduzir”.
l) É impossível que o Arguido esteja arrependido quando afirma que se “sentia bem” com 2g de álcool no sangue, porque nesse estado de embriaguez profunda, há perda de equilíbrio, vertigens, estado de confusão, que obviamente o arguido não podia ter deixado de sentir quando já conduzia quase há 100km!

m) Pior: confessa o que nem da acusação constava: o R., com a taxa de alcoolémia que os autos respaldam, propôs-se a vir de Odivelas, em Lisboa, para Elvas! Mais de 200km, o que revela um profundo desprezo pelos outros utentes da via onde se propôs circular, aos ziguezagues, obrigando os demais condutores a desviarem-se dele quando ultrapassava – e ultrapassou centenas de carros! - com um grau de alcoolémia perto do coma alcoólico, durante 200 km. n) Refere, que pensou (minuto 29:00 a 29:30): “prontos, a minha vida acabou”, após ter perguntado a um dos tripulantes do INEM se a vítima tinha morrido, o que revela, não arrependimento, mas quanto muito, alguma noção das CONSEQUÊNCIAS da gravidade dos seus actos, que de resto, o Tribunal não teve a coragem de confirmar.
o) De facto, a sentença recorrida, faz uma operação de desculpabilização objectivamente inaceitável, que causa choque à família das vítimas, ao referir que «falece qualquer tipo de tese que possa ou queira ser sufragada, no sentido de que o arguido não chamou o INEM e/ou deixou não prestou auxílio à vítima C, já que isso é absolutamente falso, pois quando chega junto da vítima, esta já tinha falecido».
p) E o que falece, face à prova produzida, é a fundamentação transcrita, já que é o próprio Arguido quem assume que não pediu qualquer ajuda!! E nem está sequer provado que a vítima tenha sofrido morte imediata, ou não, nem foi, sobre isso, produzida qualquer prova!!
q) Deve, pois, face à informação que consta de fls. 501, ser dado como provado que «O ARGUIDO NÃO CHAMOU O INEM APÓS O ACIDENTE, ESTANDO EM CONDIÇÕES DE O FAZER, E NÃO PRESTANDO QUALQUER AUXÍLIO À CONDUTORA DO VEÍCULO SMART”.
r) Finalmente, não se percebe sequer a tentativa de descredibilizar a testemunha T, não só pela impossibilidade de descortinar, dada a incorreção de sintaxe, o que seja «ter afirmado e difundido uma realidade a outras testemunhas, nomeadamente à testemunha F, mas que tal não corresponde à verdade», como ainda porque consta da fundamentação que «ao ter afirmado que ouviu quatro gritos de dor e sofrimento, dando a entender que a vítima ainda estaria viva, quando T nem se aproximou do veículo de C e nem sabia como o corpo desta estava, ao contrário de P», ao passo que o que a testemunha T afirma, ao minuto 23:00 a 23.22 do seu depoimento, é que «O senhor diz que a primeira vez que sai do carro, ouviu uns gritos… Gritos de quem» Não sei dizer… Mas… eram gritos de dor, certamente… O nunca chegou ao pé do smart, pois não?
Não. Pois… E tem a certeza daquilo que está a dizer? Sim. Olhe… Não terá ouvido este senhor [o arguido] a gritar? Não sei… A pedir ajuda, ou… Não sei… Não sabe quem é que estava a gritar? Não sei.»; Ou seja, ao contrário do que consta da Sentença, esta testemunha NUNCA; JAMAIS E EM TEMPO ALGUM, afirmou que ouviu a vítima a gritar; O que afirmou foi que ouviu gritos, e não sabe de quem eram, designadamente, não sabe se eram do Arguido.
s) Foi também julgado provado que «22º. C, no momento da colisão, não fazia uso do cinto de segurança.», o que vem justificado na motivação da sentenla, da seguinte forma: «Por último, cabe referir que C, quando o acidente ocorre, não fazia uso do cinto de segurança, tal como é demonstrado pelo relatório do NICAV (fls. 828), assim como pelo relatório da empresa Solve (fls. 957). A testemunha R, que foi o responsável por realizar o relatório do NICAV, referiu que o cinto de segurança, do veículo da vítima, após a colisão estava na posição “normal”, ou seja, aquela que todos os condutores conhecem quando não está a ser utilizado. Mas, é com o relatório Solve e com os dois engenheiros que fizeram a perícia ao automóvel que surge uma informação essencial: o cinto de segurança do condutor, do veículo Smart, estava bloqueado (fls. 990). Tal como foi explicado pelos engenheiros, que ocuparam a qualidade de testemunhas, frisaram que o cinto de segurança do condutor tinha uma torção, o que impossibilitava a sua utilização, já que o cinto não conseguia “correr” normalmente, uma vez que a sua utilização era impossível. Logo, o cinto não poderia ser utilizado, nem na altura do embate nem no momento posterior ao seu bloqueio, porque é fisicamente impossível.».
t) Mal, entendem os recorrentes, porquanto desde logo, causa, no mínimo perplexidade, que a testemunha R, que foi o responsável por realizar o relatório do NICAV, tenha acentuado o facto de o cinto de segurança do veículo da vítima, após a colisão, estava na posição “normal”, a posição de quando não está a ser utilizado, o que poderá resultar nenhum relatório e nenhum depoimento afasta tal possibilidade – das operações de remoção do corpo da C.
u) Da mesma forma, os peritos que elaboraram o relatório Solve «frisaram que o cinto de segurança do condutor tinha uma torção, o que impossibilitava a sua utilização, já que o cinto não conseguia “correr” normalmente, uma vez que a sua utilização era impossível.», sem que se explique porque é que tal torção, depois de um acidente com a violência que os autos respaldam, não pode resultar, quer dos próprios movimentos bruscos a que o corpo da vítima foi sujeito, quer da necessidade de o retirar aquando da chegada do INEM, hipóteses que incompreensivelmente, o Tribunal a quo nem sequer ponderou, não obstante resultar das regras de experiência comum que a posição e danos verificados no cinto de segurança, pode ter ocorrido em consequência do acidente ou durante a retirada do corpo da vítima do veículo.
v) Num (art.º 57 dos factos provados) e noutro caso (art.º 22) entendem os Recorrentes ocorrer erro manifesto na apreciação da prova, ou seja, erro que vem evidenciado da simples leitura da sentença recorrida, por si ou conjugando-a com as regras de experiência comum.
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w) A pena aplicada ao crime de homicídio, foi de apenas 2 anos e 10 meses de prisão, ou seja, situada pouco acima da metade da moldura penal aplicável, que em caso de negligência grosseira, é de 5 anos (e não 3), sendo evidente que tal pena deverá estar situada já no “pleno” segundo terço da penalidade aplicável, só assim se mostrando adequada ao grau de culpa e ilicitude e às necessidades de prevenção que se verificam, tendo em consideração a gravidade dos factos quando objectivamente considerados – o arguido não viu a 400 metros um veículo em andamento à sua frente e “levou-o à frente” estando alcoolizado para além dos limites que se possam considerar toleráveis – e das consequências do crime em causa (a violentíssima morte da vítima), refletindo também o grau de culpa da conduta do arguido (intensíssimo, numa negligência grosseira a roçar o dolo eventual).
x) Quer a pena aplicada, quer a sua suspensão, é incompreensível, senão à luz de um critério de complacência perante um homicídio caracterizado pelo facto de o arguido, completamente embriagado, numa recta, numa autoestrada, com total visibilidade, ter “levado à frente” outro veículo, causando um acidente de cuja brutalidade as imagens dão boa nota, matando a sua ocupante.
y) As exigências de prevenção geral, são elevadíssimas, pois o caso dos homicídios estradais é precisamente uma das situações legais em que são mais elevadas as necessidades de prevenção geral atenta a elevada sinistralidade rodoviária nas nossas estradas e o crescente número de mortos em consequência de acidentes de viação, que coloca o nosso país nos primeiros lugares do podium europeu, quer de sinistralidade, quer de condução “sob efeito” (não só de alcool).
z) Importa com a pena também evitar a prática futura de uma condução perigosa e negligente não só pelos condutores em geral, mas especialmente por parte do arguido, face às estatísticas assustadoras e por todos conhecidas, relativas ao número elevadíssimo de acidentes ocorridos nas estradas portuguesas, e importa, não menos importante, reconfortar a família da vítima.
aa) Mais a mais, tratando-se de um caso de um acidente particularmente violento, inusitado mesmo, pelas circunstâncias em que ocorreu, do conhecimento público, amplamente divulgado na comunicação social, atenta a qualidade de figura pública da vítima mortal, o que levará a comunidade a pensar que matar alguém, alcoolizado, levando um carro e andamento à frente em plena autoestrada, é visto pelos nossos Tribunais como alvo de leve reprovação que não justifica reprovação veemente.
bb) É certo que as finalidades da punição são, como se diz no art.º 40.º, n.º 1 do CP, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e não finalidades de compensação de culpa que impõem a pena não privativa de liberdade; Porém, em termos objectivos, a conduta do arguido, face ao tipo, não podia ser mais ilícita, nem mais culposa, nem as consequências do ilícito podiam ter sido mais graves.
cc) A ausência de antecedentes criminais e o arrependimento posterior aos factos, no qual sinceramente não somos tão crédulos como foi o tribunal a quo, não devem ser atendidos – seja como for - de forma demasiado significativa, ou seja, como uma forte atenuação, pois não ter antecedentes criminais e não praticar crimes é apenas uma obrigação que recai sobre todos os membros da comunidade.
dd) E não só porque a conduta de que tratam os autos, a negligência grosseira na condução com quase 2 g/l de álcool no sangue, sem sequer ter atenção à estrada e sem sequer moderar a velocidade, evidencia desprezo relativamente à vida e integridade física alheias; Mas, também, porque a sua defesa assentou na desculpabilização e na imputação de responsabilidade à vítima pela sua própria morte, o que revela – a desculpabilização – a inexistência de arrependimento sério (uma é a antítese do outro).
ee) Quem se procura desculpabilizar de um homicídio com negligência grosseira ocorrido num acidente exclusivamente causado pela condução com quase 2 g/l de álcool no sangue, já no patamar da perda de equilíbrio, vertigens e descoordenação motora total, sem (poder ter) sequer ter atenção à estrada e sem sequer (obviamente sequer conseguir ter o discernimento de) moderar a velocidade, esgrimindo uma defesa assente em inverdades (as luzes de nevoeiro de um veículo não serem visíveis; não se sentir alcoolizado) e na responsabilização da vítima, releva desprezo relativamente à vida e integridade física alheias, desvalor, aliás, que jamais se “corrige” com uma pena suspensa, não detentiva.
ff) E o arrependimento do arguido, ainda que fosse sincero, não pode significar o passar de uma esponja sobre uma morte causada pelo consumo de álcool e condução numa autoestrada a alta velocidade, com uma taxa de álcool no sangue causadora de vertigens e desequilíbrio, ao ponto de desfazer outro carro que encontrou no seu caminho, depois de vários se terem dele desviado para evitar um acidente, ao ponto de a pena não ser expiada e ser substituída por um regime de prova vago e inútil para o efeito pretendido: fazer ver à comunidade a gravidade e potenciais consequências dos factos de que tratam os presentes autos.”
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1.3. Inconformado com o assim decidido, recorreu também a demandada cível CARAVELA – COMPANHIA de SEGUROS, SA para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada as CONCLUSÕES que seguidamente se transcrevem:
“a. Vem o presente Recurso interposto da Sentença proferida pelo Tribunal a quo, que decidiu condenar a Recorrente no pagamento aos Demandantes da quantia global de € 150.000, sendo € 100.000 indemnização de Dano Morte, e € 50.000 indemnização pelos danos morais dos Demandantes.
b. Através do presente Recurso, pretende-se a alteração da decisão da matéria de facto e da decisão da matéria de direito, com absolvição integral da Recorrente ou, subsidiariamente, redução substancial da sua condenação, considerando a concorrência de culpas (e atribuição de percentagem de responsabilidade não superior a 50%) e, ainda, com o reconhecimento do direito de regresso da Demandada/Recorrente sobre o Arguido.
c. O Tribunal a quo julgou incorrectamente vários pontos essenciais da matéria de facto em causa nos Autos, o que conduziu a uma inevitável errada aplicação da Lei e a uma incorrecta, e injusta, condenação da Recorrente.
d. Acresce omissão de pronúncia do Tribunal a quo quanto a questão que devia ter apreciado, o que conduz à nulidade da Sentença, conforme disposto no artigo 379.º/1/c) CPP, que se argui para os devidos efeitos legais.
Da Impugnação da Decisão da Matéria de Facto
e. Impõe-se alterar a redacção dos factos provados 28º. e 29º.; e aditar novos factos aos factos provados, que foram alegados na Contestação da Demandada, e que resultaram provados por via da prova documental e testemunhal produzida.
f. O Tribunal a quo, em suma, considerou integralmente provados os factos da Acusação do Ministério Público, e, relativamente, à Contestação ao Pedido Cível apresentada pela Recorrente, limitou-se a considerar provado o objecto social da Recorrente e a celebração de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel entre a Recorrente e o Arguido.
g. Nada mais relevou para o Tribunal a quo, concluindo que “Não resultaram como provados ou não provados quaisquer outros factos, com interesse para a discussão da causa, na medida em que o demais alegado nos articulados apresentados se trata ou de uma mera repetição ou negação de factos já apreciados ou de alegações conclusivas ou de direito”.
h. Não é assim. O Tribunal a quo ignorou factualidade deveras relevante para a boa decisão da causa, porque desvalorizou / ignorou prova documental e testemunhal relevante.
- alteração da redacção dos factos provados 28º. e 29º.:
i. O Tribunal a quo, aquando da decisão relativa a estes factos, desconsiderou a prova pericial: Relatório de Autópsia Médico-Legal, de 07.03.2023, Esclarecimentos escritos de 06.06.2023, 30.06.2023, e Esclarecimentos prestados em audiência de julgamento de 25.11.2024.
j. A Perita em Medicina Legal, no seu Relatório, a final, concluiu que “a morte de C foi devida às lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais descritas”. [realce nosso]
k. E, em Esclarecimentos escritos, de 06.06.2023 e 30.06.2023, clarificou que “1) As lesões descritas no hábito externo e interno, no tórax, abdómen e membros, isoladamente ou em conjunto não são passíveis de provocar a morte.” [realce nosso], e que “1) As lesões descritas no hábito externo e interno, no tórax, abdómen e membros, isoladamente ou em conjunto não são passíveis de provocar a morte. 2) Prejudicado. 3) Sim, foram causa de morte imediata. 4) Na observação do hábito interno e externo não foram detetados sinais de doença súbita o mal-estar que pudessem causar a morte.”. [realce nosso]
l. Em audiência de julgamento de 25.11.2024, a Perita em Medicina Legal reforçou que “A morte foi mesmo devido ao traumatismo crânio-encefálico e do pescoço.” e que sem tais lesões, “Sim, sim. Sem as outras, estaria viva.”, porquanto “Não. Não são suscetíveis de causar a morte, de maneira nenhuma.”
m. A perícia médico-legal confirmou que (i) as lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais sofridas foram causa de morte imediata; e que (ii) as lesões descritas no hábito externo e interno, no tórax, abdómen e membros, isoladamente ou em conjunto, não são passíveis de provocar a morte.
n. O que impõe alterar os factos provados 28º. e 29º., que devem passar a ter a seguinte redacção:
facto provado 28º.: “Destas lesões descritas, consequentes da colisão e capotamento do veículo de matrícula (…..), apenas as lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais sofridas foram causa directa, adequada e necessária da morte de C, no dia 19 de Dezembro de 2022, pelas 02:40, sendo que as lesões descritas no hábito externo e interno, no tórax, abdómen e membros, isoladamente ou em conjunto, não são passíveis de provocar a morte.”.
facto provado 29º.: “A morte de C foi devida às lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais, que lhe causaram morte imediata.”.
- aditamento de novos factos aos factos provados:
o. A prova produzida – documental e testemunhal – impõe que se aditem os seguintes factos novos aos factos provados da Contestação da Recorrente Caravela:
49º.-A: O veículo Smart Fortwo – modelo do veículo com a matrícula (…..) – dispõe de uma estrutura reforçada – célula de segurança Tridion –, feita de aço de alta resistência e projectada para absorver e distribuir a força de uma colisão, ajudando a proteger os ocupantes do carro do impacto, que inclui zonas de deformação, protegendo contra capotamento; recursos de segurança que ajudam a tornar os carros Smart alguns dos veículos mais seguros nas estradas.
49º.-B: O veículo Smart com a matrícula (…..), apesar de apresentar danos consideráveis ao nível posterior esquerda e mecânica posterior esquerda, mantinha o “cockpit” onde estão instalados os passageiros intacto, com os bancos e o tablier na sua posição original e sem qualquer dano / ou torção.
49º.-C: O cinto de segurança do condutor do veículo Smart com a matrícula (…..) não se encontrava em boas condições de funcionamento, não sendo possível funcionar em condições normais.
49º.-D: Considerando que a estrutura principal do veículo Smart com a matrícula (…..) estava intacta após o acidente, a utilização do cinto de segurança pela condutora poderia ter evitado o movimento e, consequentemente, a projecção da condutora do posto de condução.
49º.-E: Caso C fizesse uso do cinto de segurança no momento do acidente, tal uso teria, com elevado grau de probabilidade, permitido poupar a sua vida.
p. Estes factos resultam provados por via da prova documental e testemunhal, e são deveras relevantes para a boa decisão da causa.
q. Releva o Relatório Final do NICAV, 05.01.2024: “Da análise aos danos sofridos pelo veículo (…..), em consequência da produção do acidente e pela análise do relatório de autópsia realizado, fica a questão se o resultado da produção do acidente, caso a condutora do veículo, senhora C fizesse uso obrigatório do cinto de segurança, teria sido a sua morte”.
r. E os esclarecimentos prestados pelo Investigador em audiência de julgamento: “Não existe deformação no habitáculo que leva a crer que fosse afetar a condutora se porventura não tem sido projetada do lugar, do lugar do condutor. Ou seja, se porventura trouxesse o cinto, iria... acabava por ficar presa, e aquilo que me deu a entender foi que não tinha, portanto, não existia deformação que a fosse... que a fosse afetar.”.
s. Confirmou o Investigador, em audiência de julgamento, que não havia deformação no habitáculo do Smart que pudesse afectar C se levasse o cinto de segurança.
t. Releva o Relatório Técnico Pericial, 30.09.2024, do qual resulta que (i) o veículo Smart tem uma estrutura de segurança que o torna um dos veículos mais seguros na estrada; (ii) o cinto de segurança é o único equipamento, que em caso de acidente, permite reter os ocupantes dum veículo nos seus lugares permitindo evitar ou reduzir a gravidade de traumatismos, prevenir a ejecção; (iii) a consequência mais imediata e grave da não utilização do cinto de segurança é o aumento expressivo do risco de lesões severas ou até morte em caso de acidente; (iv) em caso de colisão, quando o cinto não é utilizado, o ocupante pode ser violentamente arremessado para frente, para fora do veículo, podendo sofrer fracturas, traumatismos crânio-encefálicos e lesões internas fatais.
u. Relevam também os Esclarecimentos do Perito-Reconstrutor, L, prestados em audiência de julgamento: (i) o habitáculo do Smart ficou intocado, sem danos de relevo; (ii) o cinto de segurança não estava a ser usado; (iii) atendendo ao estado em que se encontrava o habitáculo (intacto, com pouca ou nenhuma deformação), se C utilizasse o cinto de segurança, poderia ter sofrido lesões não muito significativas (assaduras, ao nível do pé, da zona pélvica, e zona do cinto), mas, certamente, com muita certeza, não seria projectada no interior da viatura para o exterior da viatura, iria ficar no seu banco.
v. E ainda os Esclarecimentos do Perito-Reconstrutor, J, prestados em audiência de julgamento: a célula de segurança do Smart é praticamente indeformável.
w. Acervo probatório que impõe a ampliação da matéria de facto provada nos termos aqui requeridos, com aditamento dos factos provados 49º.-A a 49º.-E, com a redacção acima indicada.
Impugnação da Decisão da Matéria de Direito
x. Relativamente ao pedido de indemnização civil, o Tribunal a quo condenou integralmente a Recorrente:
€ 150.000,00, sendo € 100.000,00 indemnização pelo dano morte de C; e € 50.000,00, indemnização pelos danos morais para os Demandantes decorrentes da morte da sua filha.
y. O Tribunal a quo errou, decidindo em sentido contrário à prova produzida nos Autos.
z. Não poderia o Tribunal a quo concluir que “A demandante teria que fazer prova, o que não aconteceu que nas circunstâncias concretas do acidente, se a vítima tivesse usado o cinto de segurança, muito provavelmente não teria sofrido alguma ou algumas das lesões corporais que sofreu, por outras palavras, que o uso daquele cinto, nas concretas circunstâncias do sinistro, teria funcionado como causa adequada à não ocorrência da morte.”.
aa. Porque a Demandada fez tal prova, resultando claríssimo que:
i. Decorrente da colisão e durante o consequente capotamento, C foi projectada no interior do veículo que conduzia, tendo o corpo desta ficado imobilizado no interior do veículo e a cabeça desta encontrava-se parcialmente fora do veículo, junto ao pilar “A” do lado direito do veículo que conduzia; [facto provado 16º.]
ii. C, no momento da colisão, não fazia uso do cinto de segurança; [facto provado 22º.]
iii. Das lesões descritas, consequentes da colisão e capotamento do veículo de matrícula (…..), apenas as lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais sofridas foram causa directa, adequada e necessária da morte de C, no dia 19 de Dezembro de 2022, pelas 02:40;
iv. As lesões descritas no hábito externo e interno, no tórax, abdómen e membros, isoladamente ou em conjunto, não são passíveis de provocar a morte;
v. A morte de C foi devida às lesões traumáticas crânio-meníngeo- encefálicas e cervicais, que lhe causaram morte imediata;
vi. O veículo Smart Fortwo – modelo do veículo com a matrícula (…..) – dispõe de uma estrutura reforçada – célula de segurança Tridion –, feita de aço de alta resistência e projectada para absorver e distribuir a força de uma colisão, ajudando a proteger os ocupantes do carro do impacto, que inclui zonas de deformação, protegendo contra capotamento; recursos de segurança que ajudam a tornar os carros Smart alguns dos veículos mais seguros nas estradas.
vii. O veículo Smart com a matrícula (…..), apesar de apresentar danos consideráveis ao nível posterior esquerda e mecânica posterior esquerda, mantinha o “cockpit” onde estão instalados os passageiros intacto, com os bancos e o tablier na sua posição original e sem qualquer dano / ou torção. O cinto de segurança do condutor do veículo Smart com a matrícula (…..) não se encontrava em boas condições de funcionamento, não sendo possível funcionar em condições normais.
viii. Considerando que a estrutura principal do veículo Smart com a matrícula (…..) estava intacta após o acidente, a utilização do cinto de segurança pela condutora poderia ter evitado o movimento e, consequentemente, a projecção da condutora do posto de condução.
ix. Caso C fizesse uso do cinto de segurança no momento do acidente, tal uso teria, com elevado grau de probabilidade, permitido poupar a sua vida.
bb. Nesta sede, damos por integralmente reproduzidas todas as transcrições constantes das alegações que antecedem.
cc. A prova foi feita, e o Tribunal a quo deveria ter concluído que (i) a lesada, C, com a sua conduta, contribuiu decisivamente para o agravamento das lesões decorrentes do acidente, ou seja e em concreto, contribuiu para que do acidente viesse a resultar a sua morte; (ii) caso fizesse uso do cinto de segurança (como a tal legalmente estava obrigada), do acidente não viria a resultar a sua morte.
dd. Tendo presente que o habitáculo do seu veículo ficou intacto após o acidente, se a condutora não tivesse sido projectada (como não seria se estivesse a usar o cinto de segurança), era altamente provável que sofresse apenas lesões menores, e nunca fatais.
ee. E, assim, impõe-se reconhecer que estamos perante uma situação de concorrência de culpas, considerando que foi a conduta (omissiva e em violação da lei) da lesada C a causa directa do agravamento das lesões decorrentes do acidente, em concreto, foi o facto de a lesada conduzir sem fazer uso do cinto de segurança que causou a sua morte, e não “apenas” lesões de menor gravidade, como as que viria a sofrer se, com cinto, se tivesse mantido sentada no seu lugar de condutora e sem projecção no interior do veículo e consequente decapitação.
ff. O que, inevitavelmente, teria de conduzir à absolvição do pedido indemnizatório formulado, pelo que aqui expressamente se requer a revogação da Sentença proferida pelo Tribunal a quo, que deverá ser substituída por uma outra que absolva integralmente a Recorrente / Demandada dos pedidos indemnizatórios contra si deduzidos.
gg. Relembramos a relevância do Relatório do NICAV e esclarecimentos prestados pelo Investigador R.
hh. Mesmo tendo presente que o Arguido conduzia sob o efeito do álcool, com uma TAS de 1,95 g/l, resulta inequivocamente da prova dos Autos que o facto de C não fazer uso do cinto de segurança no momento do acidente é causa directa – ou, no mínimo, altamente provável – da sua morte, que não teria ocorrido se ela fizesse uso do cinto, pelo que estamos perante uma situação de concorrência de culpas, prevista no artigo 570.º do Código Civil.
ii. Relembrar também a relevância do Relatório Técnico-Pericial, que analisou em detalhe (a) o funcionamento dos componentes de segurança activa e passiva da viatura Smart (matrícula ………, conduzida por C); e (b) a evitabilidade dos danos sofridos por parte da condutora da viatura Smart.
jj. É, pois, claríssimo que, em consequência da falta de utilização do cinto de segurança, a condutora do veículo (…..), sofreu as lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais descritas nos Autos, que se revelaram fatais. Apesar da estrutura tridion do Smart – um dos veículos mais seguros na estrada –, projectada para proporcionar uma protecção reforçada, a ausência do uso do cinto de segurança comprometeu, de forma decisiva e fatal, a eficácia dessa protecção.
kk. Foi, pois, a inércia da condutora do veículo (…..) – ao ter optado por circular na estrada sem fazer uso do cinto de segurança – que conduziu à sua projecção dentro do habitáculo e consequente decapitação; ou seja, foi absolutamente determinante para a gravidade e irreversibilidade das lesões sofridas.
ll. O que impõe que se conclua que (i) o facto de a condutora do veículo (…..9 não fazer uso do cinto de segurança no momento do acidente contribuiu, de forma crítica e decisiva, para as lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais que vieram a originar a sua morte imediata, e que foram a única causa da sua morte, não tendo sofrido quaisquer outras lesões que pudessem, isoladamente ou em conjunto, determinar a sua morte; e (ii) caso a condutora do veículo (…..) fizesse uso do cinto de segurança no momento do acidente, certamente ou, no mínimo, muito provavelmente, não teria sido parcialmente projectada para fora do veículo, tendo antes ficado segura no seu banco e habitáculo, protegida pelo cinto e pelo airbag, eventualmente sofrendo lesões, mas das quais não resultaria a sua morte.
mm. Assim, em respeito ao preceituado no artigo 570.º do Código Civil, não deverá recair sobre a Recorrente a responsabilidade dos danos resultantes da morte da condutora, devendo, ao invés, ser absolvida de todos os pedidos.
nn. Ou, caso assim não se entenda, no que não se concede, sempre se imporá considerar que a condutora do veículo (…..) contribuiu de forma decisiva, para as consequências do acidente, do qual veio a resultar a sua morte, como resulta inequivocamente provado nos Autos. E, consequentemente, considerando a concorrência de culpas, fixar quantum indemnizatório proporcional à percentagem de responsabilidade no acidente e nos danos do mesmo decorrentes, que nunca se deverá repartir em percentagem superior a 50% para a Recorrente.
oo. Sem prejuízo, e sem conceder, quanto ao quantum indemnizatório, salvaguardando a possibilidade de este Tribunal Superior entender que assiste aos Demandantes o direito ao ressarcimento peticionado, no que não se concede, sempre se imporá uma redução substancial do montante indemnizatório em que a Recorrente foi condenada, seja em consequência da concorrência de culpas demonstrada nos Autos, seja por se considerar que os valores peticionados pelos Demandantes – e objecto de condenação – são excessivos, por desproporcionados.
pp. C sofreu morte imediata, em resultado das lesões traumáticas crânio-meníngeo- encefálicas e cervicais descritas no Relatório de Autópsia, sendo que à data do acidente tinha 46 anos de idade.
Quanto ao dano morte,
qq. Na fixação de qualquer quantia indemnizatória a título de direito à vida ou dano morte, deverão ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, cumprindo o n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil.
rr. Devendo proceder-se à comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto, importa sublinhar alguma Jurisprudência relevante: Ac. TRP, 3.2.2010, Processo n.º 562/08.4GBMTS.P1; Ac. STJ, 17.12.2009, Processo n.º 77/06.5TBAND.C1.S1; Ac. TRP, 16.12.2009, Processo n.º 2102/06.0TBAMT.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt;
ss. da qual resulta manifesto que a condenação da Recorrente no pagamento de € 100.000,00 referente ao direito à vida, ou dano morte, é desproporcional e desajustado, devendo ser substancialmente reduzido para quantia a fixar por este Tribunal Superior, nunca superior a 50% (cinquenta por cento) do valor peticionado montante este que, no entender da Recorrente, se adequa à situação jurídica controvertida nos presentes Autos, bem como estará em consonância com as decisões proferidas pelos Tribunais superiores acima referidas, e que depois sempre deverá ser imputado à Demandada apenas na proporção que, por força do disposto no artigo 570.º do Código Civil, o Tribunal venha a considerar ser de lhe imputar (nunca superior a 50%), se não considerar a exclusão total de responsabilidade.
tt. Facto é que o Tribunal a quo não efectuou qualquer análise comparativa de Jurisprudência existente relativa a situações análogas, e tão pouco fundamentou a sua decisão com referência a circunstâncias do caso concreto, ancorando-se, tão só e apenas, em considerações de carácter abstracto sobre a importância e valor do direito à vida, decidindo, assim, em violação do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 496.º, e no n.º 3 do artigo 8.º, todos do Código Civil, impondo-se, assim, a revogação da Sentença recorrida, nos termos acima expostos e alegados, e como a final se peticiona.
Quanto aos danos não patrimoniais dos Demandantes,
uu. Releva, também nesta sede, o que acima se alegou a respeito da forma de fixação de qualquer quantia indemnizatória, designadamente, disposições legais e jurisprudência já citadas, e que aqui se deve considerar reproduzido.
vv. A respeito da fixação de quantia indemnizatória a título de danos não patrimoniais, importa ter presente o disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 496.º do Código Civil, sendo que, em relação aos danos não patrimoniais, o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com a equidade, a qual funciona como único recurso, não devendo descurar as circunstâncias que a lei manda considerar; sempre devendo o Tribunal observar o disposto no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil.
ww. De novo, devendo proceder-se à comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto, importa sublinhar Jurisprudência relevante: Ac. STJ, 4.12.2004, Processo n.º 03B4439,
xx. sendo manifesto que a decisão condenatória a título de danos não patrimoniais é desproporcionada e desajustada à prática jurisprudencial, devendo, por via do presente recurso e por este Tribunal Superior, ser substancialmente reduzida, respeitando os padrões jurisprudenciais vindos de citar, que colocam a indemnização num montante substancialmente inferior aos montantes aqui peticionados, e que depois sempre deverá ser imputado à Recorrente / Demandada apenas na proporção que, por força do disposto no artigo 570.º do Código Civil, o Tribunal venha a considerar ser de lhe imputar (nunca superior a 50%), se não considerar a exclusão total de responsabilidade.
yy. Também quanto a estes danos, verificamos que o Tribunal a quo não efectuou qualquer análise comparativa de Jurisprudência existente relativa a situações análogas, limitando-se a dar por reproduzidos os factos alegados pelo Demandantes e fixando um valor sem qualquer critério de sustentação, remetendo, de forma abstracta, para a equidade; ou seja, violando o disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 496.º, e no n.º 3 do artigo 8.º, todos do Código Civil; impondo-se, assim, a revogação da Sentença recorrida, nos termos acima expostos e alegados, e como a final se peticiona.
zz. Em suma, quanto aos montantes indemnizatórios em que foi condenada, considera a Recorrente que este Tribunal Superior, respeitando as disposições legais supra citadas, bem como aquela que tem sido a consolidada prática jurisprudencial dos Tribunais Superiores, deverá revogar a Sentença recorrida, substituindo-a por outra que absolva a Recorrente dos pedidos indemnizatórios ou, subsidiariamente (no que não se concede) fixe montantes indemnizatórios substancialmente inferiores aos peticionados, e nunca imputando à Recorrente uma percentagem de responsabilidade superior a 50%, considerando a concorrência de culpas pelo acidente, bem como tendo presente o contributo da condutora do veículo (…..) para que do mesmo tenha resultado a sua morte.
Da Nulidade da Sentença por omissão de pronúncia (artigo 379.º/1/c) CPP)
aaa. Na sua Contestação, a Recorrente peticionou que: “Sem prescindir, num eventual cenário de condenação da Demandada, sempre deverá este Tribunal, […] reconhecer, desde logo, o direito de regresso da Demandada sobre o Arguido / Demandado, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.”.
bbb. Ora, o Tribunal a quo julgou “procedente a excepção de ilegitimidade passiva do demandado A e, em consequência absolvo o mesmo do pedido”, mas não se pronunciou relativamente ao direito de regresso da Recorrente sobre o Arguido, e respectivo reconhecimento, como peticionado pela Recorrente na sua Contestação.
II. Tratando-se de questão de que o Tribunal a quo deveria ter conhecido, tal omissão de pronúncia constitui causa de nulidade da Sentença, que aqui expressamente se argui e invoca, devendo tal nulidade ser suprida, reconhecendo-se expressamente à Recorrente o direito de regresso sobre o Arguido relativamente às quantias em que vier a ser definitivamente condenada no âmbito dos presentes Autos, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do Dec.- Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, em virtude deste conduzir com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente admissível.”
*
1.4. Notificados da interposição do recurso da demandada Caravela, os demandantes cíveis M e J responderam e interpuseram recurso subordinado concluindo pela seguinte forma (transcrição):
“a) O recurso interposto pela Seguradora CARAVELA, relativamente ao pedido cível, e fundado exclusivamente numa imputação de culpa a condutora falecida, por não fazer uso do cinto de segurança, e cremos que a partida, por razoes “de Direito”, sempre estaria vaticinado ao fracasso, ao fazer referencia a valores indemnizatórios para a perda da vida humana plasmados em jurisprudência com 20 anos, e constituindo um total atentado a justiça ao defender a exclusão da indemnização ou a sua redução a 50%, quando a jurisprudência defende que tal redução, a existir – e muita defende nem existir – não vai alem dos 20%.
Em suma: a defesa do indefensável,
Deduzindo pretensão que, tratando-se de uma Seguradora, não pode ignorar não ter qualquer fundamento – em linha com a interposição do recurso peticionando efeito suspensivo, sem sequer requerer prestação de caução…
b) Mas o certo e que ao preparar as contra-alegações a tal recurso, os Demandantes constataram o inimaginável: o relatório em que se fundou o Tribunal para dar como provado que a C conduzia sem fazer uso do cinto de segurança, e um atropelo a verdade que faz soar os alarmes a qualquer pessoa com apego a justiça!
c) Tal facto, «22º. C, no momento da colisão, não fazia uso do cinto de segurança.», foi dado como provado, cf. resulta da Sentença, «Por ultimo, cabe referir que C, quando o acidente ocorre, não fazia uso do cinto de segurança, tal como demonstrado pelo relatório do NICAV (fls. 828), assim como pelo relatório da empresa Solve (fls. 957). // A testemunha R, que foi o responsável por realizar o relatório do NICAV,referiuqueocintodesegurança,doveıculodavıtima,aposacolisao estava na posição “normal”, ou seja, aquela que todos os condutores conhecem quando não esta a ser utilizado. // Mas, e com o relatório Solve e com os dois engenheiros que jazeram a perícia ao automóvel que surge uma informação essencial: o cinto de segurança do condutor, do veículo Smart, estava bloqueado (fls. 990). Tal como foi explicado pelos engenheiros, que ocuparam a qualidade de testemunhas, frisaram que o cinto de segurança do condutor tinha uma torção, o que impossibilitava a sua utilização, já que o cinto não conseguia “correr” normalmente, uma vez que a sua utilização era impossível. Logo, o cinto não poderia ser utilizado, nem na altura do embate nem no momento posterior ao seu bloqueio, porque e fisicamente impossível.».
d) Da pagina 120, do relatório SOLVE (fls. 957), resulta a laia de conclusões, que «A analise das fotografias 91 a 93 revela a condição em que o cinto de segurança foi encontrado, evidenciando que, mesmo que a condutora tivesse a intenção de utiliza-lo, ele estava em tal estado que tornava impossível o seu uso efetivo.», naquilo que constitui um “lapso” simplesmente impossível de explicar.
e) Porem, na foto nº 53, de fls. 45 do relatório da SOLVE, não é visível o que os peritos referem, ou seja: não e visível qualquer torção no cinto de segurança do condutor.
f) E como “pela boca morre o peixe” na p. 106, refere-se que «Da observação cuidada ao cinto de segurança direito pudemos observar / contatar que o mesmo não se encontrava em boas condições de funcionamento.», sendo o “lado direito”, o lado do ocupante, e não o do condutor!
g) Acresce que, a foto 87, pagina 108, e uma foto do lado do condutor, onde não e visível qualquer torção no cinto de segurança, mas depois, na foto 88, pagina 108, verifica-se existir uma torção no cinto de segurança, que só pode ser o cinto do ocupante, uma vez que na foto anterior não e visível tal torção.
h) Mais estranho ainda, e que, nesta foto 88, e notório que o cinto esta “preso” por parafuso situado no limite do pilar, numa zona onde o mesmo e reto; o mesmo pilar apresenta uma curvatura no lado oposto.
i) Porem, na foto 90, pagina 109, essa torção e muito maior e ao contrario do que ocorre na foto 88, p. 108, o cinto de segurança esta completamente “enrolado” no seu suporte.
j) E, aqui, e notório que o cinto de segurança em causa e o cinto do ocupante (tal como na foto 89, pagina 108, o parafuso do cinto de segurança esta juntoaolimitedopilardoveıculo,zonarecta,opostaacurvaturaqueindica a parte da frente; E, logo, só pode tratar-se de uma foto do banco do ocupante.
k) Ou seja: o relatório, analisa o cinto de segurança do ocupante (e no veículo não seguia nenhum ocupante…), para vir concluir que existia uma torção no cinto do condutor, o que ate se daria de barato por lapso, não fosse o “erro” ser depois reiterado pelas declarações dos peitos “testemunhas”!
l) Vale por dizer que a afirmação do Tribunal a quo segundo a qual «o cinto de segurança do condutor tinha uma torção, o que impossibilitava a sua utilização, já que o cinto não conseguia “correr” normalmente, uma vez que a sua utilização era impossível», e fundada, quer no relatório SOLVE, do qual resulta que ao contrario do aí referido, o cinto com torção era o do ocupante e não o do condutor, quer das declarações das “testemunhas” L e M, baseadas nesse relatório, olvidando que ao contrario do aí referido, o cinto com torção era o do ocupante e não o do condutor.
m) O depoimento prestado pelos “peritos-testemunhas” L e M, conduziu o Tribunal a quo ao erro, na parte em que declararam «que o cinto de segurança do condutor tinha uma torção, o que impossibilitava a sua utilização, já que o cinto não conseguia “correr” normalmente, uma vez que a sua utilização era impossível.», pois que, na realidade, o cinto que apresenta torção (existisse ou não torção a data do acidente) não era “do condutor”, mas sim, o do ocupante, o que destrói a força probatória dessas erradas declarações prestadas na qualidade de “testemunhas”.
n) De alias, de resto, o “mistério” (a apurar em processo autónomo…) nem e perceber como podem os senhores peritos “testemunhas” que elaboraram um relatório a pedido/instruções da Seguradora Demandada, terem-se (dois! Ambos!) equivocado ao declarar que a analise desta questão, “trocando” o cinto de segurança do condutor com o do ocupante… Mas sim perceber porque e que os senhores peritos esta a “investigar” o cinto de segurança do ocupante, quando não existia nenhum ocupante na viatura para alem da sua condutora!
o) A força probatória das respostas dos peritos, quer em primeira perícia, quer em segunda perícia (a segunda perícia não invalida a primeira), é fixada livremente pelo Tribunal e deve ser apreciada em conjunto com as demais provas segundo a livre convicção do julgador, a luz do disposto nos artigos 389.º do Código Civil e 489.º do Código de Processo Civil.
p) E ainda que se entendesse que o juízo técnico e científico inerente a prova pericial se presume subtraído a livre apreciação do julgador, e consequentemente, sempre o julgador estaria amarrado ao juízo pericial, não pode ser olvidado que « dele [pode] divergir [embora] devendo fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação, pois embora o relatório pericial esteja fundamentado em conhecimentos especiais que o juiz não possui, e este que tem o ónus de decidir sobre a realidade dos factos a que deve aplicar o direito, sendo a força probatória das respostas dos peritos e fixada livremente pelo tribunal – art.º 389º do Código Civil.»
q) No caso concreto, a prova supra elencada, impõe (não permite apenas; impõe) diferente conclusão daquela que foi retirada, tendo como premissa tal prova, pelo Tribunal a quo, sendo insustentável a manutenção como provado de que «22º. Cláudia Madeira, no momento da colisão, não fazia uso do cinto de segurança.».
r) E impõe, precisamente, porque tudo o que vem acima exposto, impondo a conclusão de que o cinto que apresenta torção (existisse ou não torção no momento do acidente – já que nem isso e claro quando a perícia e efetuada sobre um veículo em deposito do qual foi retirada uma vítima mortal; e porque, face em fotografia anterior a manipulação do cinto pelos peritos, inexiste qualquer torção que impedisse o cinto de ser usado) não era “do condutor”, mas sim, o do ocupante, o que destrói totalmente a força probatória do relatório SOLVE e das declarações prestadas na qualidade de “testemunhas” pelos peritos que o elaboraram, que induzindo o Tribunal em erro, pela qualidade a que se arrogaram, foram fundamento inerente ao resultado probatório do facto 22, tal como decorre da fundamentação, em que se lê que foi o« relatório Solve e com os dois engenheiros que fizeram a perícia ao automóvel que surge uma informação essencial: o cinto de segurança do condutor, do veículo Smart, estava bloqueado (fls. 990).».
s) Acessoriamente, sempre se diga que a não cativação do pré-tensor do cinto de segurança, e irrelevante para o caso, já que na pagina 108 do relatório SOLVE, e referido que: «Em uma colisão traseira, o pré-tensor do cinto de segurança pode não ser ativado na maioria dos casos, porque ele e projetado principalmente para atuar em colisões frontais ou laterais, onde a desaceleração brusca ocorre.»; sendo essa, precisamente, a situação dos autos.
t) O que também explica o facto de os airbags não serem acionados, e não sendo dada qualquer explicação para o efeito, nem sendo feita qualquer associação que permita concluir que apesar de ao airbags não serem acionados, o pretensor do cinto o seria, e isto, apensar de na pagina 46, do Relatório SOLVE, ser referido que «O pré-tensor do cinto de segurança com a referencia "33028136" para o Smart e pirotécnico. Os pré-tensores pirotécnicos (…) são ativados por um gerador de gás que e controlado pela unidade do airbag, ajudando a reduzir o movimento do ocupante e, assim, diminuindo o risco de lesões durante uma colisão.
u) Do que se conclui (1+1=2) que, se o airbag não é ativado, o pré-tensor também não – o que foi habilmente omitido no relatório.
v) Já da informação prestada pelo INEM, a fls. 45 do acervo documental junto pela GNR em 10/01/2024 -ref.ª CITIUS 7728131 – consta: «Morto dentro da viatura capotada, a mesma tendo sofrido decapitação, impossibilitando a identificação» o que significa que não ocorreu “ejeção” do corpo no acidente, algo incompatível com a tese da falta de uso do cinto de segurança.
w) Alem do que, da ultima pagina deste acervo documental junto pela GNR em 10/01/2024 -ref.ª CITIUS 7728131 – consta que foi junto aos autos «ultima ficha de inspeção periódica obrigatória realizada pelo veículo de matrícula (…..), o qual, não consta dos autos, porem, em suporte eletrónico, a ficha de inspeção periódica obrigatória, que, porem, os ora Recorrentes lograram, agora, localizar (Doc. 1), demonstra que na verdade, o veículo SMART tinha acabado de ser inspecionado, sem que esteja assinalado qualquer defeito no cinto de segurança, maxime, a torção a que o relatório “SOLVE” se reporta.
x) Deste acervo documental junto em 10/01/2024, ref.ª CITIUS 7728131, pela GNR faz parte integrante o «Auto de Conhecimento e comparência no local»., em que e referido: «A vítima mortal (…) encontrava-se em posição de decúbito-dorsal num maca que se encontrava no interior da ambulância dos B.M. de Alcácer do Sal, não sendo esta a sua posição final».
y) Ou seja: a testemunha R, que foi o responsável por realizar o relatório do NICAV, não visualizou o corpo da falecida C na posição em que se encontrava pós-acidente, mas tao só a visualizou já no interior da ambulância.
z) Tudo, impõe que seja totalmente desconsiderado – nos presentes autos; porque o que tudo isto indicia, justifica escrutínio sério… - o relatório SOLVE, bem como o depoimento dos peritos que o elaboraram, inquiridos na qualidade de “testemunhas”, julgando-se não provado que «22º. C, no momento da colisão, não fazia uso do cinto de segurança.».”
*
1.5. Igualmente respondeu o arguido A, notificado que foi da interposição de recurso por parte da assistente, sintetizando nas seguintes conclusões a motivação das suas contra – alegações (transcrição):
“1. O presente Recurso tem por objeto responder ao Recurso interposto pelos Assistente e Ofendido, o qual se mostra tecnicamente impercetível pois não reúne os pontos concretos da sentença que considera incorretamente provados nem o que pretendem impugnar, não obedecendo aos requisitos mínimos exigíveis, tendo sido ignoradas as regras processuais para a impugnação da matéria de facto, exigíveis pelos nº.s 2, 3 e 4, do art. 412º. do CPP.
2. Na verdade, os Recorrentes apresentam o presente recurso ao arrepio das mais elementares e básicas regras do Código de Processo Penal, motivo pelo qual, o Recorrido vê-se impedido de responder com o rigor exigido.
3. Desde logo, o Recorrido não consegue perceber se o presente recurso tem por fundamento a matéria de Direito, a matéria de Facto ou ambas.
4. O recurso está, ao que tudo indica, centrado na visão dos Recorrentes de que a pena aplicada ao Arguido não poderá ser suspensa na sua execução, motivando tal ideologia num ataque à Julgadora, acrescentando aquilo que nunca provaram na altura própria.
5. Também vêm inventar que não se provou ter a vítima morte imediata, o que é contrariado pelo Relatório da Autópsia e pelas perícias constantes dos autos, que afirmam que a vítima ficou decapitada.
6. Provou-se ainda nos autos, pelos no processo, que a vítima não fazia uso do cinto de segurança, o que os Recorrentes desmentem, mas, sem qualquer prova.
7. Dúvidas não restam de que os Recorrentes querem denegrir o arrependimento sincero do Arguido, pelo facto deste ter referido no contexto em que fez as suas declarações do acidente, que se sentia “normal” quando foi conduzir.
8. Todo o corpo do recurso é marcado por trocadilhos que os Recorrentes fazem como por exemplo, com as bebidas, para descredibilizar o Arguido e alegar que ele não dizia a verdade sobre o que bebeu como se estivesse a dizer que bebeu pouco perante a taxa de álcool que tinha. Mas, repare-se que tudo isto é referido sem qualquer alusão ou transcrição da prova que pretendem ver analisada.
9. No nº.3 das Alegações- pág. 6, 1º parágrafo, diz-se que a pena do Arguido se mostra desajustada, não se explicando a razão para tal, mas pedindo que aquela seja fixada em 24 meses de prisão a expiar, sem ser suspensa, o que consideramos, completamente infundamentado.
10. Percorrendo as alegações dos Recorrentes vêem-se referências à sentença, sem indicarem o parágrafo e a folha da mesma, como é o caso do artigo 5º. das alegações, consubstanciando uma clara violação do artigo 412º. do CPP.
11. Ainda no ponto 7º. das alegações dos Recorrentes, estes mencionam que o Arguido não manifestou arrependimento nas suas declarações nem confirmou a tristeza referida pelas testemunhas que arrolou. No entanto, não indicam que testemunhas, nem transcrevem o que disseram aquelas, com isso violando a sua obrigação de cumprimento do artigo 412º. do CPP, o que deverá ser passível das legais consequências, nomeadamente a rejeição do recurso nessa parte.
12. o Arguido teve uma posição muito sincera durante toda as audiências, confessando e esclarecendo o tribunal dos factos, e mostrando o seu desconforto, tristeza e arrependimento sincero, o que com recurso aos critérios do PRINCIPIO DA IMEDIAÇÃO E DA LIVRE APREIAÇÃO DA PROVA (art. 127º., do CPP), a Senhora Dra Juiz avaliou e aplicou a lei de forma isenta, imparcial pois, contrariamente ao que os Recorrentes pretendem fazer acreditar, não tem que ser diferente pela vítima ser a Cantora C.
O sentimento do Arguido é que está condenado a perpetuamente viver sem nunca esquecer o desfecho do processo, sendo esta a sua pena maior.
E como bem se referiu na douta sentença, “..a aplicação de uma pena e a medida dessa pena, assim como a opção por penas substitutivas, em caso algum se reconduz a critérios moralistas mas tão só se encontra tabelada e vinculada pelos critérios legais definidos no Código Penal.
O exercício da Justiça, em nome e representação do Povo, levada a cabo por seres humanos que desempenham as funções de titulares de órgãos de soberania, como o são os Tribunais, obedece ao estrito cumprimento e dever de observância da lei”.
13. Ainda sobre os Recorrentes fazerem trocadilhos com as bebidas ingeridas pela Arguido, para o descredibilizar, é de referir a simplicidade com que este descreve o que tomou, e como se sentia:
Declarações de A:
Diligência _258-22.4GTSTB_2024-11-07_09-52-13 (7)
de 00:52:08 minutos até 00:52:25
Advogado: “ O senhor sentia-se bem.. sentia-se em condições de conduzir, é isso?
Arguido: “ sim eu pensava que sim”
00:51:40 até 00:52:12
Arguido: “quando almocei o peixe-espada preto eu bebi vinho branco, quase não comi posteriormente ao almoço começou o jogo, a final, eu bebi umas quantas cervejas…”.
14. Constata-se que por todas as alegações dos Recorrentes, não é habitual fazerem as transcrições das frases que mencionam o Arguido ter referido, em clara violação pelas regras processuais (art. 412º. do CPP), tornando assim infundado o que alegam.
15. É notório que as alegações dos Recorrentes, no nº.11 tentam incutir a confusão sobre as bebidas que o Arguido disse ter bebido, visando claramente lançar a confusão e abalar, de forma falseada, a credibilidade do Recorrido.
16. No artigo 14º. do articulado das alegações dos Recorrentes pode ler-se que o Arguido não se mostrou arrependido pois, dissera “Prontos a minha vida acabou”. Sendo esta uma frase sentida de quem estava a sofrer um pesadelo, contrariamente ao que os Recorrentes apelidam de não ter arrependimento.
17. Contrariamente ao alegado no nº.17 das Alegações dos Recorrentes, resulta bem claro que o tribunal estava atento pois, contrariamente ao que aqueles querem fazer crer, a Testemunha T tentou passar uma versão de que havia gritos de dor, dando a sensação de ser da falecida, o que bem sabem os Recorrentes não ser verdade pois a vítima ficou decapitada e estava morta quando o carro parou. Então como gritava???
18. Como também o Relatório da Autópsia e consequentes esclarecimentos, determinou que a vítima teve morte imediata, logo não gritava.
19. Os Recorrentes também aludem a omissão de auxílio, crime de que o Arguido nem foi acusado, nem os Recorrentes o conseguiram pronunciar, sendo importante que se refiram as declarações do Arguido/Recorrido, sobre essa matéria:
Declarações de A:
Diligência _258-22.4GTSTB_2024-11-07_09-52-13 (7)
de 00:23:45 a 00:24:57
Arguido: “ Dirigi-me a zona onde estava fumo que era onde estava a outra viatura , no meio do mato, eu atravessei uma valeira e comecei a gritar se estava alguém ..está aí alguém está aí alguém agarrei o telemóvel ao acender a lanterna do telemóvel verifiquei uns cabelos castanhos longos castanhos, assim numa posição.., olhei lá para dentro e vi uns cabelos longos e um braço, um braço estava assim e eu mais ou menos apercebi-me que aquele ser , pronto, aquela pessoa já não devia ter vida porque não tinha reação nenhuma, não estava a agoniar não estava a gemer e eu comecei a gritar para ver se havia mais alguém .”
de 00:25:11 a 00:26:13
Arguido: “eu estava em choque veio um senhor e perguntou-me, então o que é que aconteceu?, eu olhei para ele e disse-lhe eu vinha aqui na boa a conduzir e deparei-me com esta viatura aqui quase parada , não sei ou quase parada , e ele disse-me vai lá pôr o triângulo que eu vou chamar o 112, o senhor afastou-se um bocado de mime apesar de afastado eu ouvia o que ele dizia . Eu fiquei encostado a partir daí, fiquei encostado à minha viatura a tremer, tentar assimilar o que estava ali a acontecer, que aquilo não podia estar a acontecer pois momentos antes eu era a pessoa mais feliz do mundo”.
Ou seja,
20. É falso o que os Recorrentes afirmam acerca do Arguido só se aperceber da morte quando a Bombeira o diz (tudo isto sem que se transcreva a prova gravada).
21. O nº. 18º.das alegações dos Recorrentes, comprovam uma vez mais, estes não efetuarem as transcrições, misturando-se o que se quer dizer com trechos supostamente do diálogo do Arguido, sem quaisquer indicações de onde se extraíram, e esta é uma constante das alegações dos Recorrentes, em completa violação do art. 412º. do CPP, devendo considerar-se inadmissível a sua aceitação.
22. Entende o Recorrido que bem esteve a SRA. DRA. JUIZ quando concluiu na sentença que:
«FALECE QUALQUER TIPO DE TESE QUE POSSA OU QUERIA SER SUFRAGADA, NO SENTIDO DE QUE O ARGUIDO NÃO CHAMOU O INEM /E OU DEIXOU, NÃO PRESTOU AUXÍLIO À VÍTIMA C, JÁ QUE ISSO É ABSOLUTAMENTE FALSO, POIS QUANDO CHEGA JUNTO DA VÍTIMA, ESTA JÁ TINHA FALECIDO.»
Sentença pág.26, 3º. parágrafo.
23. E, de facto, falece a tese de que houve uma DESCULPABILIZAÇÃO OBJETIVAMENTE INACEITÁVEL, conforme referido pelos Recorrentes no artigo 19º. das alegações dos mesmos.
Assistiu-se sim à Justiça a ser feita dentro do local próprio, o Tribunal.
24. O falecimento da fundamentação, mencionado no artigo 20º. das alegações (não se sabendo concretamente qual), é algo que não se pode senão impugnar na medida em que, uma vez mais, não se descortina qual é a fundamentação com que não concordam os Recorrentes. Toda?, Metade?
Qual ou quais as páginas?? É inaceitável e não deverá ser considerado tal artigo, uma vez mais, por incumprimento da indicação da prova devida, o que obsta a uma concreta defesa por parte do Recorrido.
25. Não se pode aceitar a caricata alusão a que só falta uma nota de pesar ao arguido (art. 21 das alegações), o que não apresenta qualquer rigor jurídico, mas sim desfaçatez inaceitável. A verdade é que não houve qualquer desculpabilização, conforme os Recorrentes querem fazer crer.
26. Também não se entende o que pretendem os Recorrentes com o descrito sobre a testemunha T, dos artigos 27º. ao 37º.
Para além do que, no respeitante às transcrições da prova gravada, uma vez mais transparece a falta de rigor, pois, além do incumprimento exigível pelo art. 412º., do CPP, a indicação dos minutos que se relatam da transcrição da gravação da testemunha T, estão incorretamente indicados, o que sempre se mostra prejudicial à defesa do Arguido não podendo ser considerada.
27. Considera assim o Arguido um argumento surreal os Recorrentes dizerem no artigo 39º. das alegações apresentadas que:
“Não está provado que a vítima tenha sofrido morte imediata; nem foi sobre tal factualidade, produzida qualquer prova”.
Quando estes bem sabem que aquela infelizmente, ficou decapitada e nesse estado, nunca estaria viva.
28. Ainda sobre a alusão dos Recorrentes em como o Arguido tentou imputar à C a culpa da sua própria morte (art.43 das alegações) porque ALEGADAMENTE não fazia uso do cinto de segurança, diga-se que Não é Alegadamente, mas sim é PROVADO, C não fazia uso do cinto de segurança, o que ficou provado nos Relatórios periciais constantes dos autos, e suscitou ao Recorrido a existência da comparticipação da lesada no resultado morte,
29. Ainda sobre a mencionada existência de erro na apreciação da prova que considerou o não uso do cinto de segurança pela vítima, considere-se que tal como a testemunha R, do NICAV, afirmou, o cinto de segurança não foi usado. Logo, contrariamente ao invocado pelos Recorrentes, não há erro na apreciação da prova.
OS TRÊS PERITOS DEIXARAM PROVADO QUE O CINTO NÃO FOI USADO PELA CONDUTORA NO MOMENTO DO ACIDENTE.
Declarações de R do NICAV:
Diligência _258-22.4GTSTB_2024-11-07_11-32-11de 00:13:58 a 00:14:32
PERITO DO NICAV R - “..cinto estava esticado na posição de não utilização e tentar puxar ele não sai daquela posição ….ele fica trancado naquela posição , aliás existe a projeção da condutora no seu interior também evidencia que não fazia uso do cinto de segurança”.
30. Mais se diga que os Recorrentes não fizeram prova do contrário.
31. Ainda dos artigos 56º. a 67º., das Alegações dos Recorrentes, estes pretendem ver alterada a redação do facto provado nº. 12, da sentença, para o que fazem uma redação no artigo 66º. Mas, não se vê relevância em tal pretensão pois da douta sentença, resulta condenado o Arguido por negligência grosseira, nela se englobando que aquele circulava de forma desatenta e descuidada, não tendo exercido os cuidados necessários na condução do veículo (…..). Devendo assim improceder tal pretensão.
32. Não corresponde à verdade nem nunca foi mencionado nos autos ou alegado na sentença, que o Arguido não conseguia manter o equilíbrio, conforme os Recorrentes alegam?? Onde está isso mencionado?? Nada disto fora referido em audiência, pelo que, para além da falta de prova sobre o mencionado, jamais se deverá aditar aos factos provados o descrito no artigo 67 das alegações.
33. Quanto à Suspensão da Pena, é inaceitável o referido no artigo 68º. das alegações dos Recorrentes, considerando-se que à luz dos preceitos legais esta suspensão deverá manter-se atento o facto do arguido ser primário, estar bem inserido social e profissionalmente, ter mostrado arrependimento sincero, tudo em estrito cumprimento pelos limites dos artigos 50º e 70º, ambos do C. Penal.
34. A Sra. Dra Juiz a quo, quando ponderou todos os fatores, não foi alheia à dor dos Pais mas também não pôde ser alheia, às condições de um homem que nunca conduziu com álcool, não teve anteriormente, quaisquer acidentes, sendo primário, que explicou ao tribunal tudo o que se passou de forma sincera e emotiva, sempre tendo revelado um arrependimento sincero e sentido.
35. A pena não pode ultrapassar a medida da culpa- artigo 40º., nº. 2 do Código Penal e, a Pena suspensa na sua execução cumpre as regras dos artigos 50º. e 70º, ambos do Código Penal.
36. A suspensão da pena deverá ser mantida no caso concreto pois, sendo a prisão a ultima ratio da punição, apesar de limitada pela salvaguarda das referidas finalidades punitivas, obstando, assim, aos nefastos efeitos criminógenos que são comummente reconhecidos, cumpre o estatuído pelo art. 18.º, nº.2, da Constituição da República Portuguesa.
37. E o Tribunal bem fundamentou as razões que ponderadas, levaram a senhora Juiz a suspender a execução da pena- sentença, pág. 52 a 57.
38. Considera-se de elevado rigor a frase da Senhora Dra. Juiz mencionada na sentença:
«Pena alguma terá para a assistente e ofendido, pais da vítima, a virtualidade de desfazer o sucedido, porém, sujeitar o arguido a uma pena efetiva de prisão não se mostra necessário à satisfação das finalidades da punição.
Pelo que o Tribunal decide suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido por igual período de tempo» - Pág. 57 da Sentença Recorrida.
39. De facto, os critérios de aplicação da suspensão da pena não são morais mas sim, legais.
40. Também se diga que, quando os Recorrentes mencionam ser o acidente de “conhecimento público, amplamente divulgado na comunicação social”, conforme referem no nº 104 das suas alegações, tal se tem devido a tudo o que se leva para a comunicação social, como aqueles bem sabem, o que não abona à Justiça que se faz nos Tribunais e não em canais televisivos.
41. A colaboração com a justiça, enquanto comportamento pós-facto (positivo) do agente do crime, assume enorme relevo jurídico, quer se manifeste sob a forma de confissão, quer se manifeste sob a forma de arrependimento e, raras são as sentenças e os acórdãos que não fazem uma ponderação da sentença, constituindo uma atenuante valiosa, como recorda Reinhart Maurach- Tratado de Derecho Penal, 1962, p. 550 — “a confissão espontânea e o honrado esforço dirigido à reparação da lesão podem constituir indícios favoráveis”-
42. Salienta-se de modo particularmente elucidativo no Ac. STJ de 09.07.1986- Proc. 038510 [a confissão dos factos, acompanhada de contrição, é uma atenuante valiosa]. Também, Ac. STJ de 12.03.1999 (proc. 98P1057): [A confissão dos factos, relevante para a descoberta da verdade e acompanhada de arrependimento, tem importante efeito atenuativo- O artigo 70º. do C.P. estatui que o tribunal deve dar prevalência pela pena não privativa da liberdade e o artigo 71º. do C.P., estabelece critérios a atender na determinação da medida da pena, o que foi efetuado pelo tribunala quo, e foi igualmente, justificado quando aplicou os critérios de suspensão da pena, determinados pelo estatuído no artigo 50º. do C.P.
43. Consideramos que o Recurso apresentado pelos Recorrentes, deverá ser rejeitado pois, devido à sua falta de rigor processual sobre a matéria de facto, impossibilitam o Recorrido de responder com rigor e exatidão e identificar concretamente as transcrições com base nas quais os Recorrentes pretendem identificar a matéria de facto, simplesmente porque os Recorrentes parecem desconhecer o artigo 412º., nº,3 e 4, do CPP, não concretizando quais são as provas concretas que contrariam a matéria que alegam, limitando-se a retirar pedaços das frases, dando-lhes uma interpretação própria.
44. Mais se refira que não é apontado pelos Recorrentes, quais as normas que consideraram violadas nem aquelas que os Recorrentes entendem deverem aplicar-se, para justificar o pretendido, o que deverá levar ao decesso do Recurso apresentado pelos Recorrentes, nos termos do artigo 412º, nº.2, 3,4, do CPP., por violação dos requisitos que lhe eram devidos observar.
45. Deverá assim considerar-se que a sentença está fundamentada e não padece de quaisquer erros ou falta de fundamentação, não devendo ser alterada pois tal violaria os artigos 40º, 50º, 70º e 71º., todos do C.P.
Assim, considerando-se não cumprirem as alegações os requisitos mencionados no artigo 412º. do CPP, tornando-se inatingível a prova da matéria de facto que se coloca em questão, bem como, a não indicação das normas que os Recorrentes consideram ter sido violadas e as que se deveriam aplicar, na visão dos Recorrentes, leva a que o Recurso deva ser liminarmente rejeitado, nos termos do art.420º.do CPP;
A assim não se entender, deverá ser considerada a inexistência de fundamentos para alterar a medida da pena fixada ao Arguido, a qual está em estrito cumprimento dos artigos 50º e 70º, ambos do C. Penal. Pelo que, mantendo-se a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, farão V. Exas. A Costumada JUSTIÇA!”
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1.6. Notificado da interposição do recurso da assistente, o Ministério Público apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento aos recursos e mantida a sentença recorrida.
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1.7. Nesta Relação, a Exa. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da manutenção da decisão recorrida.
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1.8. Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
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1.9. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
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Questão prévia – da legitimidade da assistente M para recorrer da pena aplicada ao arguido
A questão de saber se o assistente pode recorrer [no exercício de uma faculdade que a lei diretamente lhe confere (art.º 69.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal], autonomamente (e exclusivamente), quanto à espécie e medida da pena aplicada, suscita, há muito, dúvidas entre os nossos Tribunais Superiores, mas cuja solução se vai pacificando, segundo cremos, e é a nossa posição no sentido daquela inamissibilidade.
As disposições legais são os art.ºs 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código de Processo Penal, onde se dispõe que “têm legitimidade para recorrer (…) o arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas”, e que “não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”, e 69.º, n.º 1 e 2, al. c), do mesmo código, onde por seu lado se dispõe que “os assistentes têm a posição de colaboradores do MP, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei”, e que lhe compete em especial “interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o MP o não tenha feito (…)”. Cremos resultar daqui que a legitimidade processual da assistente não lhe permite exigir em recurso, autonomamente, pena de natureza diferente ou mais gravosa, nem diferente modo de execução da mesma para o arguido se, como é o caso, nisso estiver desacompanhado da entidade com a legitimidade processual para representar o interesse comunitário na realização da justiça, que é o Ministério Público (que o não fez). Só assim não seria se tal pretensão assentasse no pressuposto de um reflexo sério que essa alteração pudesse ter para a vida e interesses próprios da assistente.
Esse é de resto, o sentido do Assento do STJ n.º 8/99, de 30.10.97, publicado no DR I-A a 10.08.99), em que se uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”.
O que significa que a assistente não fica impedida de recorrer autonomamente da (decisão) medida concreta da pena imposta ao arguido, no entanto, para o fazer, impende sobre as mesma um específico ónus de demonstração de um particular interesse em agir no que a tal matéria respeita, isto é, a assistents pode impugnar os segmentos decisórios em causa, desde que mostre/demonstre que da concreta escolha da medida da pena aplicada lhe decorre específica e concreta lesão de interesses pessoais relevantes.
O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2011, de 09.02.2011, proferido no processo n.° 148/07, tratando de questão diversa, não infirma a jurisprudência fixada naquele acórdão, continuando a entender-se que o interesse em agir do assistente depende da invocação pelo mesmo de um interesse concreto e próprio.
Essa jurisprudência foi reafirmada pelo mesmo STJ, no acórdão de 24.10.2002 (proferido no processo n.º 02P3183 – relator Carmona da Mota), de cujo sumário consta o seguinte: “num processo em que o arguido foi condenado, na primeira instância, pela autoria de um crime de homicídio voluntário, na pena de catorze anos de prisão, a redução dessa pena pela Relação, sem oposição do MP, para doze anos de prisão, não é uma decisão que afecte o assistente; logo, este – que, no processo, tem a posição de colaborador daquele (o MP) – só pode recorrer isoladamente se alegar e demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”, e em conclusão se decidindo ali que “o recurso é de rejeitar, na medida em que o assistente/recorrente não dispõe de [concreta] legitimidade para recorrer (pois que a decisão recorrida não a ‘afeta’ nem foi ‘contra ela proferida’ – art. 69.º, 2.º, al. c), e 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP) nem alegou – e, menos ainda, ‘demonstrou’ – “um concreto e próprio interesse em agir".
Por seu turno, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 205/2001, de 09.05.2001, julgou conformes à Constituição da República Portuguesa, designadamente ao princípio do Estado de Direito e ao direito de intervenção do ofendido no processo penal, as normas constantes dos art.ºs 69.º, n.ºs 1 e 2, al. c), e 401.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação fixada pelo já referido Assento n.º 8/99, que restringe a legitimidade do assistente para impugnar a decisão condenatória no que concerne à escolha e medida concreta da pena imposta ao arguido, condicionando-a à prova de específico interesse em agir.
No caso dos autos, a decisão recorrida condenou o arguido, para além do mais, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução.
É precisamente contra essa opção que a recorrente aqui se insurge, só que não propriamente para contribuir para a realização/melhoria do Direito, mas antes porque – como se retira da leitura das suas alegações – pretende a agravação da pena imposta e a sua execução efetiva, mas sem alegar factos concretos e próprios de um interesse pessoal relevante. Limita-se a invocar fatores determinativos da pena, tais como fatores de prevenção geral e especial e modo de execução dos factos.
Ora, a matéria da espécie e medida da pena aplicada – como, no fundo, decidiu o assento n.º 8/99 (e que os “assentos” posteriores não colocaram em questão) – é essencialmente guiada por razões de interesse público, visando a realização dos fins assinalados à punição criminal (aos fins das penas), pois que só assim se pode entender que, quanto a ela, o assistente só possa recorrer se, como aí se decidiu, “demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”.
Como se lê no acórdão deste TRE, de 09.04.2025, em que é relator Artur Vargues:
“Ora, ao contrário do que se verifica quanto às questões da impugnação da matéria de facto/erro de julgamento e enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos, em que se considerou terem os assistentes legitimidade e interesse em agir para recorrer do decidido na 1ª instância, no que diz respeito à escolha da pena, sua medida e pena de substituição, não se vislumbra afectação de algum dos seus direitos subjectivos e/ou interesses, nem a inflição de uma desvantagem, não se podendo olvidar que “se a punição do arguido está dominada por um interesse público, não pode competir ao assistente ser ele o intérprete do interesse colectivo, designadamente se conflituar com a posição assumida a esse respeito pelo Ministério Público. No que contende com o cerne do jus puniendi do Estado, o assistente não pode deixar de estar subordinado ao MP”, conforme se pode ler no citado Ac. do STJ de 07/05/2009 – vd. também Ac. do STJ de 31/01/2024, Proc. nº 809/22.4PHAMD809/22.4PHAMD.L1.S1, .L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.disponível em www.dgsi.pt.”
Em suma, como se enunciou supra, as razões de discordância da assistente não aportam aos autos a demonstração dessa específica e concreta lesão de interesses pessoais e relevantes (nem se afigura que os contornos do recurso interposto se subsumam ao entendimento vertido, designadamente, no acórdão deste TRE, de 28.03.2023, em que foi Relatora a Exma. Sra. Juíza Desembargadora Laura Goulart Maurício, processo n.º 425/19.8GESLV.E2, disponível em www.dgsi.pt).
Na fixação da pena de prisão e no modo da sua execução, o Tribunal a quo, ponderando os critérios legalmente previstos, concluiu que a pena que fixou era suficiente para alcançar as finalidades da punição; o Ministério Público, a quem cabe representar a comunidade, conformou-se com tal decisão (ao ponto de a defender perante este Tribunal).
Assim, a posição da assistente nesta matéria conflitua com a posição a este respeito assumida pelo Ministério Público.
In casu, como se viu, a assistente não demonstra ter qualquer interesse concreto e próprio atendível que permita dizer que a decisão recorrida foi proferida contra si (e, portanto, que em relação a ela tem necessidade de – leia-se, interesse em – recorrer); tal significa, assim, que falta à assistente nos autos, interesse em agir. Tal deveria ter implicado a rejeição do presente recurso, por falta dos necessários pressupostos.
Por maioria de razão, também não tem tal interesse o ofendido J, que nem sequer se constituiu assistente e, portanto, logo com este fundamento deveria ter sido determinada a sua falta de interesse em interpor recurso.
Não vinculando, porém, o despacho de admissão do recurso proferido pela 1.ª instância, este Tribunal (art.º 414.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), nada obsta a que proceda esta Relação à rejeição do recurso principal interposto pela assistente e pelo ofendido, no que à pena respeita, e também o recurso subordinado quanto a este último interveniente processual, o que, consequentemente, se decidirá (artigos 400.º, n.º 2, a contrario, 414.º, n.º 2, 417.º, n.º 6, alínea b), 420.º, alínea b), todos do Código de Processo Penal), ficando, assim, prejudicado o conhecimento da pretensão por eles aqui formulada.
Notifique.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior [acórdão do STJ, de 15.04.2010, disponível em www.dgsi.pt “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o art.º 410.º, do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no acórdão n.º 7/95, do STJ, DR, I, Série A, de 28.12.95).
Na verdade e apesar de o recorrente delimitar, com as conclusões que extrai das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal superior, este, contudo, como se afirma no citado acórdão de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no n.º 2, do art.º 410.º, do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1, do art.º 379.º, do mesmo diploma legal, mesmo que o recurso se cinja a questões de direito.
Por outro lado, importa não esquecer que se o recorrente não retoma nas conclusões da respetiva motivação as questões que desenvolveu no corpo da motivação, porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso, o Tribunal ad quem só conhecerá das questões que constam das conclusões.
2.2.1. Recurso (principal e subordinado) da assistente M
A única questão a decidir no presente recurso é se (im)procede a impugnação restrita da matéria de facto (por erro notório na apreciação da prova) e/ou a impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento por parte do tribunal de primeira instância) – art.ºs 410.º, n.º 2, alíneas a) e c), e 412.º, ambos do Código do Processo Penal.

2.2.2. Recurso da demandante Caravela – Companhia de Seguros, SA
1.ª Determinar se a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia (art.º 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal), ao não reconhecer, desde logo, o direito de regresso da demandada seguradora sobre o arguido, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c), do n.º 1, do art.º 27.º do Decreto - Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
2.ª Determinar se se verifica um erro de julgamento por parte do tribunal de primeira instância relativamente aos factos dados como provados sob os pontos 28. e 29. e se devem ser aditados aos factos provados, sob os pontos 49º-A a 49º-D, os factos elencados pela recorrente;
3.ª Determinar se existe concorrência de culpas do arguido e da vítima para a produção do acidente e/ou para o agravamento dos danos e, caso assim não se entenda, reduzir substancialmente os montantes indemnizatórios em que foi condenada, por se mostrarem desproporcionais e desajustados ao caso concreto.
Conheceremos os fundamentos dos recursos pela sua ordem lógica e preclusiva.
*
2.2. A sentença recorrida
2.2.1. O tribunal de primeira instância deu como provados os seguintes factos:
1º. No dia 19 de dezembro de 2022, pela 01:50, o arguido, A, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula (…..), marca Audi, modelo A4, na Autoestrada n.º 2 (doravante A2), ao Km 84,914, em Alcácer do Sal.
2º. No mesmo dia e hora indicado no artigo anterior, C…. (doravante C), conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matricula (…..), marca Smart, modelo MC01, na Autoestrada n.º 2 (doravante A2).
3º. Ambos os condutores circulavam na via com as luzes dos veículos ligadas, sendo que o veículo de matrícula (…..), aquando da colisão, circulava com a luz de nevoeiro traseira lado esquerdo ligada.
4º. A velocidade máxima permitida no local dos factos é de 120 Km/h e mínima é de 50 Km/h.
5º. A via de trânsito A2, no local do acidente de viação e atento o sentido norte/sul, é composta por duas vias de trânsito afetas ao mesmo sentido, separadas por uma linha longitudinal descontinua, marca M2, sendo que a faixa de rodagem é delimitada por linhas guias, marca M19, encontrando-se as mesmas bem visíveis, sendo a largura da faixa de rodagem de 7,56 metros.
6º. As bermas, em ambos os lados, eram compostas por pavimento em regular estado de conservação, com a largura de 3,78 metros lado direito e 0,85 metros de largura do lado esquerdo.
7º. Em ambos os lados da via estavam colocados, após as bermas, dispositivos retrorrefletores complementares (delineadores) e após a berma do lado esquerdo, encontram-se colocados, em toda a sua extensão, dispositivos metálicos de retenção lateral.
8º. O local onde ocorreu o acidente de viação é caraterizado por uma curva ligeira para a direita, atento o sentido norte/sul, antecedida de uma reta com cerca de 2500 metros de extensão, com inclinação ascendente de 0,2º e inclinação lateral descendente de 1,5º, medida do centro da via para o lado direito.
9º. Esta via, aquando da produção do acidente, tinha pavimento betuminoso, encontrava-se em regular estado de conservação, estava limpa e seca.
10º. No momento do acidente existia boa visibilidade (nunca inferior a quatrocentos metros), não existia iluminação artificial, sem obstruções visuais e estava bom tempo.
11º. Na data dos factos o trânsito no local era muito reduzido, atento o sentido norte/sul de ambos os condutores.
12º. Imediatamente antes da produção do acidente, ambos os veículos circulavam na A2, ao Km 84,914, em Alcácer do Sal, no sentido de trânsito norte/sul, a ocupar a via de trânsito do lado direito, sendo que o veículo de matrícula (…..) circulava à frente do veículo de matrícula (…..).
13º. Nas circunstâncias acima descritas, porque circulava de forma desatenta e descuidada, o arguido não exerceu os cuidados necessários na condução veículo de matrícula (…..) e foi embater com a parte da frente, do lado direito, deste veículo na parte de trás, do lado esquerdo, do veículo de matricula (…..).
14º. A colisão entre o veículo de matrícula (…..) e o veículo de matricula (…..) ocorreu na via de trânsito do lado direito, face ao sentido norte/sul.
15º. Após a colisão indicada no artigo anterior, C perdeu o controlo do veículo de matrícula (…..), entrando em derrape seguido de capotamento em direção aos terrenos baldios existentes do lado direito da via aludida até à imobilização do veículo nestes terrenos.
16º. Decorrente da colisão e durante o consequente capotamento, C foi projetada no interior do veículo que conduzia, tem o corpo desta ficado imobilizado no interior do veículo e a cabeça desta encontrava-se parcialmente fora do veículo, junto ao pilar “A” do lado direto do veículo que conduzia.
17º. Não foi realizada nenhuma manobra evasiva pelos condutores intervenientes na colisão, não existe no local marcas de travagem ou de derrapagem anteriores ao local de embate.
18º. Decorrente da colisão acima aludida, o veículo de matrícula (…..) ficou imobilizado a pelo menos de 64,36 metros do ponto de conflito até à posição final.
19º. Decorrente da colisão acima aludida, o veículo de matrícula (…..) ficou imobilizado a pelo menos de 57,65 metros do ponto de conflito até à posição final.
20º. Após o local de embate, o veículo de matricula (…..) produziu marcas de derrape numa distância de 64,36 metros até à sua imobilização.
21º. Após o local de embate, o veículo de matricula (…..) produziu marcas de derrape e após impressões moldados dos pneumáticos na terra numa distância total global de 38,83 metros, tendo, de seguida, entrado em capotamento durante 18,82 metros até à sua imobilização.
22º. C, no momento da colisão, não fazia uso do cinto de segurança.
23º. No momento da colisão o veículo de matrícula (…..) circulava a uma velocidade estimada de 124 km/h.
24º. No momento da colisão o veículo de matricula (…..) circulava a uma velocidade estimada de 59 km/h.
25º. Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas acima, o arguido, após ter ingerido bebidas e alcoólicas em quantidades não apuradas, conduziu o veículo supra aludido com um teor de álcool no sangue correspondente à TAS de 1,95g/l.
26º. O arguido ao conduzir o veículo com a taxa de álcool no sangue apresentada, ao não manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes, ao não regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e ao circular acima da velocidade máxima permitida no local, determinou, deste modo, que ocorresse o embate entre os veículos acima aludidos.
27º. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, C sofreu, entre outras, as seguintes lesões:
- Na cabeça: decapitação, alteração da forma e configuração da cabeça, com fraturas cominutivas da calote craniana e ossos da face, laceração e perda de massa encefálica;
- No pescoço: destruição, secção e esfacelo dos órgãos do pescoço ao nível de C5 e com restante coluna cervical fixa aos tecidos moles da face posterior do escalpe com retração dos tecidos sobre o dorso;
- No tórax: nas paredes - sufusões hemorrágicas dispersas no terço superior, face anterior;
- No membro superior esquerdo: equimose interessando todo o dorso da mão e punho, equimose na face externa e anterior do terço médio do punho;
- No membro inferior direito: equimose no terço médio, face anterior da coxa, escoriação na face externa do joelho e várias equimoses no terço médio, face anterior e posterior da perna;
- No membro inferior esquerdo: duas escoriações na face anterior do joelho, equimoses no terço inferior, na face interna e anterior da perna.
28. As lesões descritas em 27. foram consequência da colisão e capotamento do veículo de matricula (…..), no dia 19 de dezembro de 2022, pelas 02:40.
29. As lesões traumáticas crânio- meníngeo-encefálicas e cervicais foram causa direta, adequada e necessária da morte de C.
30º. Ao agir da forma acima descrita, o arguido conhecia o seu estado, sabendo que estava influenciado pelo consumo de álcool no sangue e bem sabia que o mesmo não lhe permitia efetuar uma condução cuidada e prudente e lhe diminuía a capacidade de atenção, reação de destreza, mas, ainda assim, quis conduzir o referido veiculo, o que efetivamente fez.
31º. Previamente à conduta descrita, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas, as quais foram causa necessária da taxa de álcool no sangue de que era possuidor, sabendo que a sua ingestão era suscetível de o colocar no estado em que foi encontrado e que as mesmas lhe reduziam as elementares faculdades físicas e psicológicas ao ato da condução, no que respeita à coordenação motora, não se abstendo de conduzir na via pública após a sua ingestão.
32º. Mais conhecia o arguido as características do veículo que conduzia e os riscos inerentes ao modo de condução que se descreveu, nomeadamente de que com a sua conduta violadora da condução prudente e das mais elementares regras rodoviárias colocava em perigo a vida, a integridade física e bens patrimoniais de elevado valor dos demais utentes da via, como efetivamente colocou, concretamente a morte de C, em cujo veículo tripulado veio a embater, do que resultaram consequências já indicadas, consequente da conduta do arguido.
33º. O arguido sabia que devia manter entre o seu veículo e o que o precedia a distância suficiente para evitar acidentes.
34º. Mais sabia o arguido que devia regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, bem como estava ciente que devia respeitar os limites máximos de velocidade estabelecidos na via em apreço, contudo, assim não procedeu quando circulava na via a uma velocidade estimada de 124 km/h.
35º. Assim, violou o arguido os mais elementares deveres de cuidado na condução e as regras prudenciais a que estava obrigado, que conhecia e que podia ter observado.
36º. O arguido podia e devia ter previsto que, ao conduzir daquela forma desatenta, descuidada e incauta, poderia ocorrer colisões com outros veículos que ali circulassem na A2, provocando acidentes de viação de que resultassem a morte e ferimentos aos respetivos condutores e, eventuais, passageiros, conforme veio a suceder, podia e devia, ainda, ter adotado outro comportamento, que evitasse a colisão descrita e consequente o falecimento de C, e dando assim causa àquelas lesões, que foram causa adequada da morte desta.
37º. O arguido sabe que a condução de veículos motorizados, na via pública, é uma atividade perigosa, representou e previu, exigindo-se-lhe um comportamento diferente que também poderia ter previsto e, seguramente, evitado, como possível que a sua conduta poderia dar origem a acidentes e, por via disso, causar lesões e até a morte a outros utentes da via, embora atuando confiante que tal resultado não ocorreria.
38º. O arguido, conhecendo as características do veículo e da via pública por onde circulava, sabia que, antes de iniciar a condução do veículo automóvel, havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe determinariam um teor de álcool no sangue igual ou superior a 1,20g/l não se abstendo, ainda assim, de conduzir tal veículo, o que representou e concretizou.
39º. Ao atuar como se descreveu, agiu o arguido sempre livre, voluntária, e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo a liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação.
Do pedido de indemnização civil deduzido:
40.º A morte de C provocou um grande abalo e um imensurável desgosto aos pais.
41.º C era filha única, tendo uma fortíssima ligação afetiva à mãe, que era o seu principal apoio, assim como tinha também uma relação muito próxima com o pai.
42.º C era uma cantora famosa, tinha 46 anos, era uma mulher viva, alegre, comunicativa, respeitada e amada por todos, a mãe da C era muito próxima da filha, ficou completamente afetada psicologicamente, perdeu a razão de viver, criando um isolamento familiar grande e uma patologia depressiva. Sofre de frequentes ataques de pânico, consequência de um estado de ansiedade permanente em que vive após a morte da sua filha e da forma como tudo sucedeu.
43.º C vinha ao telemóvel com a sua mãe quando o embate se produziu.
44.º O pai da falecida, também sofre imenso com a perda da filha, não consegue mais ter alegria de viver, sentindo-se amargurado na sua existência.
45.º A pouca idade da falecida e ainda o facto de ter uma carreira de grande sucesso no nosso país, ainda agrava mais o sofrimento destes pais, que viram destruídos os sonhos da sua filha e os seus em conjunto com ela.
46.º Os pais mantinham um contacto diário e permanente com a filha, por quem tinha um especial afeto, mãe e filha eram consideradas por todos como quase irmãs, uma vez que andavam sempre juntas e eram o apoio uma da outra.
47.º Ficaram os pais profundamente abalados com a morte da filha, ainda jovem, que lhe causou um grande desgosto e abalo psicológico.
Da contestação da Caravela – Companhia de Seguros:
48.º A Caravela – Companhia de Seguros é uma sociedade comercial que tem por objeto social o exercício de atividade de seguro e resseguro do ramo “não vida”, com a amplitude consentida pela lei, conforme certidão permanente com o código de acesso 0578-2145-3479.
49.º No exercício da sua atividade comercial, Caravela – Companhia de Seguros celebrou um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que teve por objeto o veículo automóvel marca Audi, modelo A4 2.5 TDI EXCLUSIVE, com a matrícula (…..), relativamente ao qual foi emitida a Apólice n.º (…..).
49. – A O veículo Smart Fortwo – modelo do veículo com a matrícula (…..) – dispõe de uma estrutura reforçada – célula de segurança Tridion –, feita de aço de alta resistência e projectada para absorver e distribuir a força de uma colisão, ajudando a proteger os ocupantes do carro do impacto, que inclui zonas de deformação, protegendo contra capotamento; recursos de segurança que ajudam a tornar os carros Smart alguns dos veículos mais seguros nas estradas.
49. – B O veículo Smart com a matrícula (…..), apesar de apresentar danos consideráveis ao nível posterior esquerda e mecânica posterior esquerda, mantinha o “cockpit” onde estão instalados os passageiros intacto, com os bancos e o tablier na sua posição original e sem qualquer dano / ou torção.
49. – C O cinto de segurança do condutor do veículo Smart com a matrícula (…..) não se encontrava em boas condições de funcionamento, não sendo possível funcionar em condições normais.
Da contestação do arguido:
50.º O arguido sempre foi um condutor cauteloso, sem quaisquer anotações de infrações, nunca foi interveniente em acidentes de viação, e também não tem qualquer cadastro de crimes por conduzir com álcool.
51.º Que a decapitação sofrida pela condutora C se poderá ter devido a não circular com o cinto de segurança, tendo o corpo tomado trajetórias no capotamento que, se poderiam não ter produzido, com o uso do cinto.
Mais se provou:
52.º O arguido é guarda prisional, e exerce a sua profissão no Estabelecimento Prisional de (…..).
53.º Vive com a mulher em casa de familiares.
54,º Depois de pagar todas as suas despesas, fica com um rendimento de € 600,00 mensais.
55. Não tem filhos.
56.º Estudou até ao 11.º ano.
57.º O arguido demonstra um arrependimento sincero e genuíno pela morte de C.
58.º O arguido não tem antecedentes criminais nem lhe são conhecidos quaisquer outros processos pendentes contra si em Tribunal.
59.º Do relatório de avaliação psicológica efectuado ao arguido consta que o mesmo:
“Apresenta uma grande labilidade emocional, falta de motivação, baixa autoestima, uma certa astenia, isolamento, acompanhados de pensamentos negativos e uma certa ideação suicida ("tento ser uma boa pessoa, um bom profissional, um bom filho. Como é que me foi acontecer isto? Se calhar não vale apena viver, mas depois como é que a minha mãe vai ficar?"). No entanto, pensamentos parecem desvanecer quando toma consciência do sofrimento que poderia infligir à esposa, à mãe e àqueles que ama.”
60.º Resulta do relatório social elaborado pela DGRSP ao arguido:
“A exerce atividade laboral como guarda prisional no Estabelecimento Prisional de (….) há cerca de 3 anos, tendo estado anteriormente colocado no E. P. de (…..).
De acordo com o seu superior hierárquico, o arguido é um excelente profissional, respeitador e cumpridor das regras, mantendo bom relacionamento com os colegas de trabalho e chefias.
O arguido desde os seus 5 anos que integra o agregado familiar dos primos, mantendo um estilo de vida normativo, encontrando-se bem integrado em termos sociofamiliares e laborais, conforme fontes comunitárias por nós contactadas. Em deslocação ao meio, nos contactos aleatórios que estabelecemos, foi possível percecionar que o arguido é uma pessoa querida pela comunidade local.
O arguido tem uma depressão, desencadeada na sequência dos factos que originaram o presente processo. Encontra-se em acompanhamento em consulta de psicologia, em Portugal, desde julho de 2024. Anteriormente referiu que era acompanhado em consulta de psicologia em Espanha. Encontra-se a efetuar medicação psicofarmacológica, passada por médico de clinica geral. Segundo informação transmitida pela psicóloga que acompanha o arguido, o arguido tem sentimentos de culpabilidade e vergonha pelo sucedido, não conseguindo ultrapassar a situação, encontrando-se em isolamento social. Apresenta também ideação suicida, tendo sido aconselhado a iniciar terapêutica medicamentosa, que iniciou recentemente.
A manifestou muita preocupação com a existência deste processo judicial, que surge isolado no seu percurso de vida e lhe tem trazido bastantes constrangimentos psicológicos, com repercussões na sua vida pessoal e familiar.”

2.2.2. O tribunal de primeira instância deu como não provados os seguintes factos:
Da contestação:
A) - O arguido tenha efetuado uma manobra de desvio e/ou evasiva para o ultrapassar o veículo (…..) e evitar a colisão.
Do Pedido de Indemnização Civil:
B) - À data do acidente, a responsabilidade relativa aos danos causados pelo veículo (…..), estava transferida para a Caravela – Companhia de Seguros, S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice (…..).

2.2.3. A motivação da decisão recorrida foi a seguinte:
De acordo com o preceituado no artigo 124°, n.º 1 do Código de Processo Penal, "constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis".
Neste artigo, onde se define qual o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da responsabilidade civil conexa.
À parte os casos de prova vinculada, o artigo 127º do Código de Processo Penal confere ao julgador poderes de livre apreciação da prova, o que quer dizer que esta é avaliada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção de quem decide.
É o chamado princípio da livre apreciação da prova, o qual tem duas vertentes.
Na sua vertente negativa significa que, na apreciação (valoração, graduação) da prova, a entidade decisória não deve obediência a quaisquer cânones legalmente preestabelecidos. Tem o poder-dever de alcançar a prova dos factos e de valorá-la livremente, não existindo qualquer pré-fixada tabela hierárquica elaborada pelo legislador.
Do lado positivo, significa que os factos são dados como provados, ou não, de acordo com a íntima convicção que a entidade decisória gerar em face do material probatório validamente constante do processo, quer da defesa, quer da iniciativa do próprio” (Acórdão da Relação de Coimbra de 9 de Fevereiro de 2000, Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, Tomo I, pág. 51).
Segundo os ensinamentos do Prof. Germano Marques da Silva “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão" (Direito Processual Penal, vol. 11, pág. 111).
Perante estes ensinamentos, está pois, o tribunal autorizado a valorar factos, que com a segurança necessária à verdade prática-jurídica, sirvam de suporte à decisão.
Nos termos do prescrito no artigo 374°, n.º 2 do Código de Processo Penal, o Tribunal deve na sentença indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
Conforme refere Marques da Silva o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão, regras da experiência.
Reportando-nos ao caso em apreço, para a decisão quanto à matéria de facto acima descrita e assente, o tribunal fundou a sua convicção na análise e valoração crítica da prova produzida em audiência e da prova documental junta aos autos, nomeadamente:
Os factos dados como provados resultam da valoração conjunta dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento com os seguintes elementos periciais e documentais:
- Relatório da Perícia de elaborado LPC, de fls. 194 a fls. 196;
- Relatório de Autópsia de Médico-Legal de C elaborado pelo Gabinete Médico-Legal e Forense de Santiago do Cacém, de fls. 234 a fls. 236, a fls. 261, a fls. 323 e fls. 340;
- Relatório INMLCF – Delegação do Sul, Serviço de química e Toxicologia Forenses, a fls. 597 e fls. 623. SICO, a fls. 35;
- Documento CODU, a fls. 81;
- Auto de conhecimento e comparência no local, a fls. 382 e fls. 383; Auto de avaliação de danos aos veículos, de fls. 384 a fls. 389;
- Auto de apreensão, a fls. 392, a fls. 455;
- Auto de notícia, de fls. 399 a fls. 400;
- Documento CODU, a fls. 401;
- Participação de acidente n.º 908/2022, de fls. 403 a fls. 409;
- Folha de suporte, a fls. 438;
- Relatório ocorrência, de fls. 462 a fls. 466;
- Croquis, a fls. 499;
- Auto de inspeção judiciária, de fls. 510 a fls. 513;
- Relatório fotográfico, de fls. 518 a 584;
- Aditamento à Participação de acidente n.º 908/2022, a fls. 596;
- Relatório Técnico de Inspeção Judiciária, de fls. 611 a fls.
- Relatório técnico de acidente de viação n.º 1202023T0017, de fls. 756 a 788;
- Croquis dinâmico, a fls. 790;
- Relatório de registo e precisão de medição, de fls. 791 e fls. 797;
- Relatório final, de fls. 819 a fls. 839;
- Mensagens, fls. 913 a 916.
- Relatório Técnico Pericial, fls. 935 a 995.
- Informação Médica, fls. 1018.
- Relatório Social, fls. 1019.
- Relatório de Avaliação Psicológica, fls. 1031.
- Contrato de Seguro (Requerimento 08-10-2024, referência Citius n.º 8304551).
Da Acusação Pública
Os factos 1 a 39 constam da acusação pública, dando-se esta integralmente por provada, com base na prova pericial e documental, junta aos autos, assim como das declarações do arguido e dos testemunhos ouvidos nas duas sessões de audiência e discussão de julgamento.
Antes de mais, importa referir que estamos perante uma morte em consequência de acidente de viação, motivo pelo qual a sua compreensão tem que ser vista de uma forma dinâmica. Por conseguinte, a análise, o exame e a valoração da prova serão realizados, de modo a acompanhar a dinâmica da colisão, estando divididos do seguinte modo: o tempo, o lugar e a hora em que o acidente ocorreu (factos 1, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11); as causas do embate (factos 4, 12, 13, 14, 15, 17, 22, 24, 25, 26, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39); o modo como se produziu ( factos 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 30); e, o resultado da colisão (factos 16, 27, 28, 29).
Começando pelo tempo, o lugar e a hora em que o acidente ocorreu (factos 1, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11).
Os factos em questão são corroborados com recurso às declarações do arguido, assim como pelos depoimentos de T e P, em audiência de julgamento, que pese embora não terem presenciado o ocorrido, chegaram ao local, em que o mesmo se produziu, poucos minutos depois.
No mesmo sentido, a prova documental confirma os depoimentos ouvidos, nomeadamente, o auto de notícia (fls. 8 e 400), a participação do acidente (fls. 12), o auto de conhecimento e comparência no local (fls. 382), o auto de visionamento Brisa (fls. 447), o auto de inquirição da testemunha T (fls. 488), o croqui de viação (fls. 499), o auto de inspeção judiciária ao local (fls. 510), o relatório fotográfico (fls. 518), o auto de inquirição da testemunha P (fls. 590), o relatório técnico de acidente de viação ( fls. 757) e o relatório final da GNR sobre o acidente (fls. 819).
No que concerne às causas do embate (factos 4, 12, 13, 14, 15, 17, 22, 24, 25, 26, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, da acusação pública, e facto D) do Pedido de Indeminização Civil).
Em sede de produção de prova foram várias as causas discutidas para a ocorrência do acidente de viação.
Porém, a prova produzida não deixa margem para dúvidas que o evento ocorreu nos termos que vêm descritos na acusação.
O acidente ocorreu às 01:50h, do dia 19 de dezembro de 2022, sendo que às 03:30h, desse mesmo dia, quando já tinham passado, sensivelmente, 1 hora e 30 minutos, a TAS, do arguido, era de 1.96 g/L (fls. 572). E quando este se deslocou para o Hospital do Litoral Alentejano, sendo realizada uma segunda colheita, às 05:50h, a sua TAS era de 1.47 g/L, quando já tinham passado, quase, 4 horas do embate (fls. 17 e 596).
Questionado sobre esta diminuição/discrepância de álcool no sangue, o Hospital do Litoral Alentejano (fls. 623) esclareceu tal questão ao afirmar que, a partir do momento em que são ingeridas bebidas alcoólicas a fase de eliminação pelo organismo, denominada de pós-absorção, ocorre cerca de 60 minutos após a ingestão da bebida. É por força disto que, quando o embate se produz e é realizada a primeira colheita e posteriormente a segunda, o álcool já se encontrava a ser absorvido pelo organismo, motivo pelo qual existe esta diminuição de valores, uma vez que a curva de alcoolemia estava em fase decrescente.
A prova documental em causa tem que ser interligada com a prova testemunhal, nomeadamente, com as declarações do arguido. Este referiu que no dia 18 de dezembro de 2022, esteve o dia todo em Lisboa, estando praticamente em convívio e a beber com amigos, desde vinho, cervejas e um cocktail. O dia em questão coincidia com a final do Mundial de 2022 e, como estava com os seus amigos, num ambiente prazeroso e de diversão, tal circunstancialismo motivou a ingestão de bebidas alcoólicas. Referiu ainda que saiu de Lisboa às 00:00h, do dia 19 de dezembro de 2022, com o objetivo de se dirigir a Elvas, o local da sua residência.
Portanto, se interligamos os valores da TAS, com as afirmações do arguido e os esclarecimentos do Hospital do Litoral Alentejano, podemos concluir que no momento em que aquele sai de Lisboa, às 00:00h, se inicia a fase de pós-absorção, que conduz, após 60 minutos, que por seu turno dá lugar à linha decrescente da sua taxa de alcoolemia. Assim, no momento em que o embate se produz, podemos afirmar que, seguramente, o arguido apresentaria uma taxa de álcool a rondar os 1.98-1.99 g/L, se consideramos que a pós-absorção somente começa após 60 minutos e o primeiro teste de álcool foi realizado às 03:30h, quando já tinham passado 1 hora e 30 minutos do embate.
No auto de inquirição de T (fls. 488), tendo referido o mesmo em julgamento, mencionou que junto da área de serviço de Alcácer do Sal, o veículo Audi, quando circulava na faixa da direita, terá travado de forma repentina, dando a sensação que iria entrar no local em causa - sendo que tal não ocorreu – e por força deste comportamento, a testemunha teve de o ultrapassar. É referido, ainda, pela mesma testemunha, que notou como o automóvel do arguido mantinha uma condução irregular.
Logo, mesmo não tendo percecionado o acidente, o certo é que esta testemunha visualizou a condução que o arguido empregava momentos antes da produção do embate, sendo visível que não dispunha de condições para o fazer.
No mesmo sentido, é de senso comum, e todos os cidadãos o sabem, que a ingestão de bebidas alcoólicas diminui os reflexos, a capacidade de reação, assim como a perceção que tem de tudo aquilo que está ao redor do indivíduo. E, se a isto acrescentarmos que está a ser realizado o ato de conduzir, de noite, num local que, pese embora a boa visibilidade e condições que tem durante o dia, à noite é ermo, com nenhuma luz artificial e bastante escuro, os reflexos, assim como toda a perceção que se tem, diminuem escassamente, sendo estas as condições que a A2 apresentava na madrugada dos factos.
Como é explicado no relatório técnico do acidente de viação (fls. 787) e depois, pormenorizadas tais informações pela testemunha R, fls. 819, o veículo Audi circulava a uma velocidade de 124km/H, enquanto que o da vítima a 59 km/H. Se considerarmos que a distância entre os dois veículos eram 400 metros, não existindo carros entre eles, podemos concluir que, e tal como a testemunha explicou, o veículo Audi demorava 11 segundos para percorrer 400 metros, sendo que o Smart a 59 km/H demorava 24.42 segundos para percorrer 400 metros. Contudo, os veículos estavam em movimento, motivo pelo qual a diferença entre ambos era de 13 segundos, o que significa que o Audi para se aproximar do Smart demoraria 13 de segundos.
Ora, se a esta escassa diferença de segundos for acrescentada uma taxa de alcoolemia de 1.98-1.99 g/L, reportando-nos ao momento em que o embate se deu, então, com toda a segurança e certeza, podemos concluir que o arguido não tinha os reflexos nem as faculdades necessárias para conseguir impedir o acidente.
Ao acima exposto acresce o excesso de velocidade em que o arguido conduzia e bem assim o facto de só ter dormido 4 horas, na noite imediatamente anterior à produção do acidente.
Depois de várias perícias realizadas, chegou-se à conclusão que o veículo Audi conduzia a uma velocidade de 124 km/H e o veículo Smart de 59.8 km/H (fls. 787). Se considerarmos que a velocidade máxima permitida na autoestrada é de 120 km/H, então o arguido conduzia em excesso de velocidade.
Todavia, o que deve ficar frisado não é propriamente o excesso de velocidade, já que esse é notório e inegável. O que assume relevância são as capacidades/ reflexos que o arguido não dispunha para conduzir o veículo no momento em que o fazia. É certo que o excesso não é muito, sendo apenas de 4 km/H, mas caso o arguido fosse dentro da velocidade permitida, acreditamos que o resultado final, muito seguramente, seria o mesmo, considerando a TAS que tinha no momento do embate.
É de lógica comum que quanto maior a velocidade de um veículo mais dificilmente será o seu controlo, caso haja alguma adversidade ou obstáculo no momento da condução. Como todos os condutores o sabem, um automóvel que circule a uma velocidade média ou baixa, será muito mais facilmente estabilizado e imobilizado do que um veículo que circule a uma velocidade alta ou bastante alta, já que o ponto de estabilização do carro diminui à medida que a velocidade aumenta.
Se considerarmos que o condutor conduz com uma TAS de 1.98-1.99 g/L a uma velocidade de 124 km/H, todo o cenário se agrava ainda mais. Desde logo, porque o condutor não está no pleno uso das suas capacidades e reflexos para controlar o carro e depois, se considerarmos que um dos fatores do álcool é abrandar toda a perceção que o indivíduo tem do mundo exterior, então a velocidade a que o automóvel circula, desde a sua perceção, é menor do que aquela que realmente emprega no momento em que se está a movimentar.
Portanto, e pese embora o excesso de velocidade não ultrapassar em demasia o limite máximo permitido em autoestrada, o certo é que atendendo às condições físicas do arguido, no momento do embate, a velocidade a que o automóvel circulava é um fator altamente expressivo e que contribuiu, de forma significativa, para o desfecho final.
Relativamente ao número de horas de sono. Pese embora o arguido tentar descredibilizar as mesmas e referir que estas não tiveram influência para a sua condução, parece-nos que assim não o seja. O arguido mencionou que tinha dormido, na noite anterior, somente 4 horas, considerando que é guarda prisional e o seu organismo está habituado a dormir um número escasso de horas.
Nada invalida que já esteja habituado a dormir esse número de horas, também motivado pelos turnos que tem no seu local de trabalho. Todavia, não somos levados a crer que o escasso número de horas não tivesse influência para o embate, quando conduzia com aquela taxa de álcool no sangue, estava de noite, estava escuro e conduzia às 01:50h da madrugada. Se nos socorrermos, mais uma vez, das regras da experiência comum, além da falta de reflexos e capacidades, é também expectável que pudesse ficar com sonolência enquanto conduzia, depois do dia tão agitado e festivo que teve, até porque a sonolência é uma das consequências da ingestão de álcool.
Cabe fazer menção do porquê de o arguido ter seguido pela A2 e não pela A6, uma vez que o seu destino era Elvas. Daquelas que foram as suas declarações, que nos pareceram credíveis e sinceras, o facto de este se ter enganado na saída e em vez de apanhar a A2 e não a A6, deveu-se à circunstância de a placa com destino a Espanha, que indica a saída para Elvas estar muito antes da saída em causa. Como o arguido referiu, estava de noite e bastante escuro, não viu a placa e quando deu por si, já estava na A2 em direção ao Algarve, sentido norte/sul. Ao ver-se deparado com esta situação, recordou-se de uma situação semelhante que tinha vivido com um colega seu, em que o mesmo se enganou e seguiu na A2, com destino a Grândola, saindo nesta localidade, invertendo o sentido da marcha e voltando a entrar na A2, mas com direção sul/norte, sendo que voltaria a entrar e uns quilómetros mais à frente, teria a saída para Espanha e por sua vez, para a A6.
Por último, importa mencionar que o arguido sabia que ia a conduzir com excesso de álcool, tendo sido tal reconhecido por si, pois afirmou ter estado o dia todo de 18 de dezembro de 2022, praticamente a consumir bebidas alcoólicas, desde o almoço até às 00:00h, do dia 19 de dezembro. Mas, mesmo assim, e sabendo que não o deveria ter feito, agiu de forma livre e consciente, tendo decidido conduzir o veículo, bem sabendo que a sua conduta era punida criminalmente.
No decurso do julgamento foram apresentadas outas causas que pudessem ter concorrido para a produção do acidente mas que não lograram ser provadas.
Desde logo, a questão da visibilidade do veículo Smart e das luzes do mesmo.
Das perícias realizadas aos farolins do veículo Smart (fls. 194) foi possível concluir que, no momento da produção do embate os médios e as luzes de nevoeiro estavam ligados, não existindo qualquer acionamento da luz indicadora de travão. Isto porque, e tal como referido pelo arguido, enquanto conduzia na A2, até Grândola, foi apanhando alguns bancos de nevoeiro, não sendo recorrentes, mas existindo em certas e determinadas zonas. Logo, percebe-se o porquê de a vítima ir com as luzes de nevoeiro acionadas.
Referiu também o arguido que as luzes do carro da vítima mal se viam, já que emitiam uma luminosidade bastante fraca. Pese embora o embaciamento que o farolim pudesse ter, o certo é que as luzes do automóvel, as da retaguarda, poderiam ser avistadas por qualquer veículo, a pelo menos uma distância de 400 metros, já que a via permitia tal visibilidade e não existia outra iluminação que pudesse se confundir com as luzes do veículo. Aliás, é o próprio arguido quem refere que acha que as luzes do automóvel não seriam bem visíveis, mas depois afirma que viu, as mesmas, as luzes a uma distância de 10 carros. Ora, parece-nos um pouco contraditório tais afirmações, porque se as luzes não são visíveis, como pode o arguido afirmar que avistou o veículo a 400 metros e sendo de noite.
E no mesmo sentido, não importa esquecer que outra das consequências da ingestão de bebidas alcoólicas em excesso é a perda de visão, visão dupla ou embaciamento que o condutor possa ter. Assim, se o arguido ia a conduzir com uma TAS bastante elevada, é normal e compreensível que a sua visão não estivesse nas melhores condições, motivo pelo qual afirma que não conseguia ver (ou viu bastante mal) as luzes traseiras do veículo Smart.
Foi também alegada uma outra causa, directamente relacionada com a viatura circular a baixa velocidade ou estar praticamente imobilizada, como o arguido refere ter percepcionado – o facto de a vítima se encontrar a fazer uso do seu telemóvel aquando da ocorrência do embate.
No dia do embate, C fazia-se acompanhar de três telemóveis: dois telemóveis Xiaomi Redmi Note 9 Pro (fls. 42, 689, 691) e um telemóvel Huawei YAL-L21 (fls. 49 e 693).
O telemóvel Xiaomi Redmi Note Pro 9 MJ2003J6B2G, não tinha nenhum cartão Sim nem nenhum cartão Micro. Contudo, o aparelho apresentava uma fonte de alimentação às 01h:35min:35segundos, do dia 19 de dezembro de 2022 e passado alguns minutos foi pesquisada e feito o download da aplicação “moshow”, mais concretamente às 01h:37min:43segundos, do dia 19 de dezembro (fls. 689).
O telemóvel Xiaomi Redmi Note Pro 9 M2003J6B2G tinha dois cartões SIM e um cartão micro SD, sendo a última chamada atendida às 23h:39min:27segundos do dia 18 de dezembro de 2022 (fls. 693).
O telemóvel Huawei YAL-L21, tinha dois cartões SIM e nenhum cartão Micro SD, apresentando um evento de alimentação a 03 de agosto de 2020, às 08h:39min:31segundos, (fls. 314).
Na perícia realizada, aos três telemóveis, é referida uma afirmação simultânea, no que concerne à ligação de dispositivos Bluetooth, “dois equipamentos foram associados ao telefone, no entanto a ferramenta em uso por esta Guarda, não conseguem identificar se estavam em uso na altura do sinistro, embora pareça como emparelhado em ligação de dispositivo” (fls. 689, 691, 693).
Da perícia aos telemóveis constata-se que apenas um deles recebeu uma chamada, perto do dia dos factos, mais concretamente, no dia 18 de dezembro de 2022. Se isto for conjugado com as declarações da assistente, ao mencionar que falou com a filha mais de 45 minutos, então podemos considerar que a última chamada recebida tenha sido a da assistente e que se mantiveram em ligação, até à imobilização final do veículo de C.
Foi amplamente questionado se a vítima ia a mexer no telemóvel, nos minutos anteriores à colisão. A prova analisada e contrastada vai em sentido diverso, porque a última vez que C mexe no telemóvel é às 01h:37min:43segundos, do dia 19 de dezembro, ou seja, 13 minutos antes do embate.
Se a isto acrescentarmos o testemunho da sua mãe, que pareceu ser credível e sincero ao referir detalhadamente o percurso que a filha fez e ao ter falado com ela, podemos considerar que a chamada entre ambas foi bastante longa. Foi igualmente referido pela assistente que, pese embora ir em chamada com a mãe, a vítima tinha acionado o Kit mãos-livres do carro, pois era sempre assim que falava ao telemóvel cada vez que conduzia. E sendo igualmente mencionado que a assistente teve também essa perceção, por todo o barulho e contexto que rodeavam a chamada, sendo notório o eco provocado pela mesma.
Ora, se fizermos a conjugação da prova testemunhal com as perícias realizadas, podemos concluir que, no momento que o embate se produz, haviam dispositivos emparelhados com o telemóvel que muito provável e seguramente poderiam ser o Kit mãos-livres do carro. Até porque, e se voltarmos novamente àquilo que é extraído da prova, C mexe pela última vez no telemóvel 13 minutos antes de o embate ocorrer e a chamada com a sua mãe foi realizada em alta-voz.
Por último, surge a velocidade que a vítima empregava no momento do embate, de 59 km/H (fls. 787). Por várias vezes, o arguido mencionou que C estava parada ou quase parada, aquando da colisão. Desde já, deve ser afirmado que esta não estava parada, pois as perícias realizadas concluíram que o seu veículo tinha uma velocidade de 59 km/H, logo encontrava-se em movimento.
Questão diferente é o motivo pelo qual a vítima conduzia a esta velocidade. Das testemunhas que foram arroladas no Pedido de Indemnização Civil, foram várias as que referiram que C era bastante cuidadosa com a sua condução, em especial, na velocidade que empregava, sendo que uns anos antes tinha sofrido um acidente semelhante, onde tinha sido abalroada por outro veículo.
Neste sentido, as testemunhas foram questionadas se a prescrição médica constante das fls. 1018, onde foi receitado à vítima uma caixa de Mexazolam 1 mg, datada de 20 de setembro, uma vez que sofria de um distúrbio ansioso/estado de ansiedade, poderia estar relacionado com o acidente sofrido no passado ou se a vítima apresentava, no período em que o embate se deu, um estado depressivo, ansioso, de tristeza ou apatia.
A testemunha F disse que teve conhecimento do anterior acidente que C tinha sofrido e sabia que a mesma teria tido crises de ansiedade relacionadas com esse episódio, mas não consegue afirmar se a mesma fazia medicação.
No mesmo sentido, algumas testemunhas mencionaram o facto de C ser uma pessoa alegre, divertida, bem-disposta, energética e bastante cuidadosa com a sua alimentação. Ao serem questionados se existia algum sentimento de tristeza ou uma fase menos boa na vida da vítima, todos referiram que era normal, assim como acontece com todas as pessoas, existirem períodos bons e menos bons, mas que não era o que ocorria com C na altura do acidente. Aliás, a testemunha L mencionou que na altura dos factos, a vítima preparava-se para lançar duas músicas e entrar no mercado brasileiro, uma vez que a sua música tinha sido bem-recebida nesse país. No mesmo sentido, mencionou que já tinha vários concertos agendados para maio de 2023, sendo um feito notório, considerando que o interesse para contratar artistas como C seria apenas nos meses de junho, julho e agosto, que coincidem com a época dos festivais e das festas populares.
Foi ainda referido que no dia 18 de dezembro de 2022, C tinha estado num programa de televisão em que cantou apenas duas músicas, motivo pelo qual o desgaste que poderia ter não se pode equiparar àquele que resultaria de um concerto, com 1 hora e meia ou 2 horas de duração. L mencionou ainda que a vítima tinha dormido a noite de 17 de dezembro para 18 de dezembro, no local onde se iria realizar o programa de televisão, de modo a poder fazer a viagem de regresso para Loulé em segurança e descansada.
Portanto, da conjugação de toda a prova produzida, não nos foi possível concluir o motivo pelo qual C conduzia apenas à velocidade de 59 km/H, uma vez que todos os cenários que foram trazidos aos autos foram descartados por cada um dos depoimentos ouvidos.
Não obstante o certo é que, atenta a prova produzida não foi a conduta desenvolvida que deu causa ao acidente, nem que contribuiu para o mesmo. Não resulta provada, nem sequer indiciada, qualquer conduta desenvolvida pela vítima que tenha dado causa ao acidente ou que seja causa concorrente do mesmo.
Relativamente ao modo como o embate se produziu (factos 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 30).
Na defesa apresentada, assim como nas suas declarações em audiência de julgamento, o arguido afirmou que tinha iniciado uma manobra evasiva, de modo a evitar o embate.
A A2 é uma autoestrada, apresentando duas faixas de rodagem, independentemente do sentido da marcha, no sentido norte/sul e duas faixas no sentido sul/norte (fls. 758, 790). O local onde o embate se deu, ao km 84,914, sentido sul/norte, a via apresenta traço descontinuo, significando isto que é possível realizar ultrapassagens da faixa da direita para a esquerda (fls. 758), sendo a estrada descrita como uma reta, com uma ligeira curva à direita, tendo a berma do lado direito, da faixa de rodagem, 3.78 metros. Do lado esquerdo da via há um separador metálico que percorre 11,40 de comprimento, sendo que no lado direito não se encontra nada, apenas campo (fls. 769, 831).
Ao ser questionado qual a distância a que visualizou o veículo da vítima, o arguido afirmou que foi sensivelmente a 400 metros, não existindo nenhum automóvel entre os dois. No mesmo sentido, também não podemos esquecer que a diferença temporal entre ambos os automóveis eram 13 segundos.
A tese apresentada pelo arguido não colhe, desde logo, pelas afirmações proferidas no auto de inquirição de T (fls. 488), e confirmadas em julgamento, onde referiu que aquele empregava uma condução descuidada, pois era visível que não estava nas melhores condições para o fazer.
E depois, porque os resultados das perícias e dos relatórios realizados retiram credibilidade à teoria da manobra evasiva. Desde logo, cabe mencionar que das fotografias juntas aos autos (fls. 522 a 525) não há qualquer tipo de marca que fosse associada a uma travagem.
Ao ser questionada por esta matéria, a testemunha R referiu que quando ocorre uma travagem brusca, os pneus do automóvel têm tendência a provocar umas pequenas ondas no pavimento, mas tal não ocorreu no caso dos autos, uma vez que a linha de derrapagem dos veículos era contínua.
E no mesmo sentido, não existiu qualquer tipo de manobra evasiva realizada pelo arguido, de modo a evitar a colisão.
O primeiro elemento revelador são os danos provocados no veículo Audi. Tal como resulta das fotografias juntas aos autos (fls. 385, 386, 394) é notório que o automóvel apresenta a parte da frente toda danificada. Este dano frontal não se deve, nem ao facto de ter batido no separador central da autoestrada, uma vez que este não foi danificado (fls. 383 e 387), nem a possíveis danos ocasionados pela trajetória que o veículo seguiu, pois segue sempre em linha reta do lado direito da estrada, até ficar praticamente imobilizado.
Outro dado a ter em conta é a linha que ambos os veículos seguem, após o embate. Quando o Audi embate no Smart, não só este último é projetado para o lado direita da estrada, como também o primeiro. Se efetivamente tivesse ocorrido uma manobra evasiva, tal como refere o arguido, o seu veículo teria que apresentar uma trajetória distinta, em que pelo menos os seus pneus, momentos antes da colisão, teriam que estar direcionados para o lado esquerdo, sendo que tal não aconteceu (fls. 499), uma vez que não há vestígios no pavimento.
Aliás, não convém esquecer outro detalhe importante. Em termos de largura, o veículo Smart tem uma dimensão muito menor do que o veículo Audi, sendo praticamente a metade deste. Se o arguido tivesse tentado ultrapassar o veículo Smart, entendemos nós que o conseguiria fazer facilmente, considerando a largura e altura do seu carro, sendo visível a estrada e se a manobra poderia ser realizada em segurança.
Da junção de todos os elementos probatórios, podemos afirmar que o acidente dos autos ocorreu do seguinte modo: por força do álcool que tinha no seu organismo, o arguido não conseguia manter uma condução segura e estável. É neste sentido que, e por força do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, pese embora ter avistado o carro da vítima, não teve capacidade de reação e consequentemente, de afastar-se do mesmo, embatendo no Smart, com a parte frontal do Audi, sendo que à velocidade a que o Audi seguia foi à velocidade que embateu no carro de C. Tal pancada fez com que o veículo Smart fosse projetado e posteriormente, capotasse vários metros, para o lado direito da via, onde havia apenas campo, tendo ficado imobilizado uns metros mais à frente, enquanto que o do arguido seguiu pela berma direta, tendo ficado parado também uns metros mais à frente.
Assim, do exame da prova e apelando às regras da experiência comum, é muito pouco provável, senão mesmo impossível, que tivesse sido realizada qualquer tipo de manobra evasiva por parte do arguido, de modo a evitar o embate com a vítima.
Veja-se, porém, que tal não significa que a versão trazida pelo arguido seja uma construção fictícia, desenvolvida para mitigar a sua culpa.
Um acidente de viação é um acontecimento traumático, não só para os intervenientes mas até mesmo para quem apenas o presencia. As regras da experiência comum, traduzidas neste campo nos muitos depoimentos ouvidos por testemunhas presenciais destes factos, levam a concluir que o impacto do trauma gerado pela ocorrência do sinistro e mesmo a forma como cada pessoa percepciona os factos, determina muitas das vezes versões contraditórias. O mesmo vale para quem, como o arguido, em segundos é confrontado com o embate e o sofre. Não resulta provada a existência de qualquer manobra evasiva por parte do arguido, mas o mesmo, como afirma, convenceu-se que a teria realizado, o que não veio a ocorrer.
Por último, cabe analisar o resultado da colisão (factos 16, 27, 28, 29).
Dúvidas não há que o resultado do embate terminou no falecimento de C. Todavia, há certos elementos que importam ser analisados e esclarecidos.
Nas declarações prestadas pelo arguido, este refere que quando saiu do seu carro, foi verificar se havia alguém no veículo da vítima, tendo ligado a luz do telemóvel, uma vez que era de noite e estava bastante escuro. Quando apontou para dentro do veículo Smart, diz que se recorda de ver uma mulher em posição fetal, com um braço esticado e longos cabelos louros.
A testemunha P que se aproximou do veículo da vítima, depois de o acidente ocorrer, mencionou que o cenário que observou era bastante sensível e que ainda hoje lhe custava falar sobre o que tinha visto.
Ambas as declarações são completamente corroboradas pelas fls. 574 a 578 (estando estas lacradas, mas tendo sido consultadas pelo Tribunal para comprovar os depoimentos). As fotos em causa são de conteúdo sensível, mas demonstram e comprovam todo o cenário descrito pelo arguido, em especial, como o corpo da vítima se encontrava.
Tal como resulta do relatório do INEM, o corpo de C foi já encontrado sem vida, dentro do veículo, tendo sofrido decapitação (fls. 401). A autopsia realizada refere que na parte de hábito externo, as principais lesões foram na cabeça, com decapitação, e no pescoço, com a destruição dos órgãos do pescoço, tendo existido retração dos mesmos. No que respeita ao tórax, as paredes apresentavam sufusões hemorrágicas dispersas no terço superior, terminando a autopsia por concluir que a morte se deveu às lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais descritas, sendo o exame toxicológico realizado à vítima negativo (fls. 234 a 236).
Se considerarmos que após sofrer o embate, o veículo de C saiu projetado para o lado direito da via, tendo capotado, por várias vezes, e ficando imobilizado apenas uns metros mais à frente, sendo que durante todo este período o seu corpo foi expelido no interior do veículo, por várias vezes, terminando pela sua cabeça e pescoço serem cuspidos, pelo vidro principal, sendo o motivo pelo qual ocorre a decapitação, então podemos afirmar, com toda a certeza, que no momento em que o veículo Smart fica imobilizado, C já estava sem vida.
Portanto, quando o arguido sai do seu carro e se dirige ao veículo Smart e observa o corpo de C, percebeu, automaticamente, que esta estaria sem vida (fls. 574 a 578). Pese embora todo o cenário dantesco que percecionou, não pode ser esquecido que o arguido se dirigiu rapidamente ao automóvel da vítima, gritou à procura de mais pessoas que podiam estar no veículo daquela (que eventualmente pudessem ter sido fossem cuspidas do interior do carro) e ainda foi colocar o triângulo de emergência.
Logo, falece qualquer tipo de tese que possa ou queira ser sufragada, no sentido de que o arguido não chamou o INEM e/ou deixou não prestou auxílio à vítima C, já que isso é absolutamente falso, pois quando chega junto da vítima, esta já tinha falecido. É por força disto que se percebe o estado de choque e trauma em que o arguido ficou após o embate, porque naquele momento percebeu que uma pessoa tinha morrido por sua culpa.
Assim, também não colhem as afirmações que foram realizadas, principalmente pela testemunha T, ao querer relatar um cenário que em nada se compagina com a realidade.
A testemunha referiu que foi a primeira a chamar o INEM, quando tal é desmentindo pelas informações que foram fornecidas pelo CODU (fls. 501), uma vez que a primeira pessoa a chamar a emergência médica foi P, o motorista dos CTT, pese embora T ter sido a primeira testemunha a chegar ao local, quando nem o próprio arguido se recorda do mesmo; ao ter afirmado que ouviu quatro gritos de dor e sofrimento, dando a entender que a vítima ainda estaria viva, quando T nem se aproximou do veículo de C e nem sabia como o corpo desta estava, ao contrário de P; ao afirmar que o arguido não tinha chamado o INEM e que estava dentro do seu veículo, quando a testemunha chega ao local, dando a sensação que este não fez nada para salvar a vítima; mas, depois afirma que o triângulo de emergência já estava colocado, pelo arguido, não devendo ser esquecido que T foi a primeira testemunha a chegar ao local; ao ter afirmado e difundido uma realidade a outras testemunhas, nomeadamente à testemunha F, mas que tal não corresponde à verdade.
Por último, cabe referir que C, quando o acidente ocorre, não fazia uso do cinto de segurança, tal como é demonstrado pelo relatório do NICAV (fls. 828), assim como pelo relatório da empresa Solve (fls. 957).
A testemunha R, que foi o responsável por realizar o relatório do NICAV, referiu que o cinto de segurança, do veículo da vítima, após a colisão estava na posição “normal”, ou seja, aquela que todos os condutores conhecem quando não está a ser utilizado.
Mas, é com o relatório Solve e com os dois engenheiros que fizeram a perícia ao automóvel que surge uma informação essencial: o cinto de segurança do condutor, do veículo Smart, estava bloqueado (fls. 990). Tal como foi explicado pelos engenheiros, que ocuparam a qualidade de testemunhas, frisaram que o cinto de segurança do condutor tinha uma torção, o que impossibilitava a sua utilização, já que o cinto não conseguia “correr” normalmente, uma vez que a sua utilização era impossível. Logo, o cinto não poderia ser utilizado, nem na altura do embate nem no momento posterior ao seu bloqueio, porque é fisicamente impossível.
Os factos 52 a 60 reportam-se às condições socioeconómicas, familiares e profissionais do arguido bem como ao impacto que o sinistro teve na sua vida, as quais se baseiam não só nas suas declarações e na prova testemunhal por si apresentada, mas também encontram correspondência quer no relatório social elaborado, quer no relatório de avaliação psicológico junto aos autos.
No que concerne ao arrependimento do arguido, cumpre referir que o mesmo ficou patente ao longo das duas sessões de julgamento, quer pela postura cabisbaixa assumida pelo arguido, como pelo seu discurso emocionado e pesaroso.
Como consta do relatório social junto aos autos, o arguido foi criado pelos seus tios paternos, principalmente uma tia a quem chama de mãe. Cresceu em Vialonga, num bairro chamado de “problemático” porque associado a taxa de criminalidade elevada, designadamente ao tráfico de droga. Não obstante, o arguido sempre se afastou de quaisquer práticas criminosas, tendo pautado a sua vida por uma postura de acordo com o direito. Tanto assim é que vários amigos, que também cresceram no bairro, o descrevem como um exemplo a seguir, e que sempre os dissuadiu da prática de condutas ilícitas.
Ouvidos os depoimentos das testemunhas de defesa é perceptível que a ocorrência deste trágico acidente, deixou uma marca profunda no arguido e traçou uma linha entre a personalidade do arguido antes e depois.
As testemunhas descrevem o arguido antes do acidente como uma pessoa divertida, alegre, bem-disposta e depois do acidente como uma pessoa apática, completamente alheia da sociedade, isolada socialmente, em sofrimento e com um arrependimento visível. Verbalizando as ideações suicidas que vêm descritas no seu relatório de acompanhamento psicológico.
Não pode o Tribunal olvidar as consequências trágicas que resultaram do acidente provocado pelo arguido, que se traduziram na perda de uma vida humana, o bem jurídico mais elevado salvaguardado pelo nosso ordenamento jurídico. Mas de igual modo não pode o Tribunal alhear-se do arrependimento e sofrimento demonstrado pelo arguido, o qual foi patente no seu discurso e na sua postura.
O facto 58 foi retirado do Certificado do Registo Criminal do arguido e da pesquisa de processos pendentes.
Do Pedido de Indemnização Civil
No que concerne aos factos 40 a 47, estes resultam provados, com base nas declarações prestadas pela assistente, assim como pelos depoimentos das testemunhas AM, F, N e S.
Cabe frisar que todos os relatos foram bastante pormenorizados e detalhados, revelando o perfil de C, como era a sua carreira, as projeções que tinha para a mesma e a relação tão forte que tinha com os seus pais, em especial com a sua mãe.
Muito haveria certamente para dar como provado, com recurso a tais depoimentos, no que concerne às perspectivas de vida da vítima, quer pessoal, quer profissional, nos muitos anos que a esperança media de vida lhe conferia. Porém, uma vez que não foram alegados quaisquer outros factos para além daqueles que foram dados como provados, não pode o Tribunal considerar para além destes factos, tendo que se circunscrever aos mesmos.
Da Contestação da Caravela – Companhia de Seguros
No que aos factos 48 e 49 diz respeito, estes encontram-se corroborados com recurso ao contrato de seguro (requerimento 08-10-2024, referência Citius n.º 8304551), onde está demonstra a relação jurídica que existia entre o arguido e a companhia de seguros em causa.
Da Contestação do Arguido
Por último, relativamente ao facto 51.
Resulta da acusação pública, no facto 22, que C não fazia uso do cinto de segurança, sendo tal facto corroborado com recurso a diversos meios probatórios.
Foi por diversas vezes debatido e questionado se a vítima teria sobrevivido, caso fizesse uso do cinto de segurança.
Desde logo, surge o depoimento da médica forense, M, que foi a responsável por realizar a autopsia (fls. 234 a 236) e que depois de ter apresentado informações contraditórias nos autos, em audiência de julgamento, afirmou que as feridas provocadas no restante organismo de C, com exceção da cabeça e do pescoço, não seriam capazes de provocar a morte. Afirmou que a decapitação apenas ocorre, assim como o desgarrar do corpo, porque C terá batido em algum sítio do carro ou contra algum objeto exterior que lhe provocou a morte.
No depoimento desta testemunha também foi possível compreender e perceber que no caso de C não ocorreu o efeito chicote que costuma acontecer nos acidentes de viação, uma vez que a vítima não levava o cinto de segurança. O efeito chicote é o balanceamento do corpo, depois do impacto, em que primeiro é projetado para a frente e depois, para trás, e por força deste movimento tão brusco e repentino, o organismo não aguenta, motivo pelo qual surge um traumatismo craniano. No caso dos autos, não foi isto que aconteceu, uma vez que C ao não fazer uso do cinto de segurança, o seu corpo ficou completamente livre para se bater em todos os pontos do seu automóvel, enquanto este estava a capotar.
No mesmo sentido, surge o relatório elaborado pela empresa Solve (fls. 935 a 995). O documento em causa é bastante detalhado e pormenorizado, dando conta do estado em que ambos os automóveis se encontravam, após o embate, em especial o da vítima.
Se analisarmos as fotografias juntas aos autos (fls. 775 e 776), o veículo Smart conserva a sua estrutura, sendo que os maiores danos estão no vidro central, assim como na parte traseira. Mas, naquilo que concerne ao habitáculo do veículo, este encontrava-se, praticamente, intacto. Aliás, tanto assim é que a testemunha MR, um dos responsáveis por realizar o relatório ao automóvel, referiu que os bancos estão completamente intactos, sendo possível movimentar os mesmos, como se nada tivesse acontecido.
É com base nestes elementos que quer a defesa do arguido, quer a contestação apresentada pela demandante se baseiam para argumentar a existência de uma concorrência de culpas na produção do resultado morte a ser tida em consideração na determinação da medida da pena a aplicar e no quantum indemnizatório a fixar.
Desde logo cumpre referir que a conduta desenvolvida pela vítima não fazendo uso do cinto de segurança em nada contribui para a verificação do acidente de viação que, como resulta demonstrado à saciedade se deveu a culpa exclusiva do arguido.
Resta apreciar se a vítima contribuiu para o resultado morte pelo facto de não fazer uso do cinto de segurança.
A ausência de danos graves no habitáculo do veículo conduzido pela vítima e bem assim as lesões que a mesma apresentava, para além das lesões craneo-encefálicas, levam-nos a precipitadamente concluir que a vítima ao não fazer uso do cinto de segurança contribuiu para o resultado. O mesmo será dizer que o uso desse cinto de segurança seria apto a, no caso em apreço, evitar a produção do resultado morte.
Contudo a prova produzida aponta em sentido diverso. Desde logo as lesões verificadas na vítima resultam do quadro concreto em que os factos ocorreram, não sendo possível imaginar ou prever quais seriam as concretas lesões que teriam ocorrido caso a vítima fizesse uso do cinto de segurança, a fim de se concluir se as mesmas eram idóneas a provocar a morte. Por outro lado, analisando os testes efectuados no relatório de peritagem da empresa Solve, podemos constatar que, não obstante o uso do cinto de segurança e o facto de o habitáculo se encontra praticamente intacto, o corpo do condutor sofre igualmente forças pelo impacto em zonas vitais como o pescoço e tórax, entre outros. Tanto que o próprio relatório apenas conclui no sentido de “Pelo estudo apresentado anteriormente podemos verificar facilmente que caso os condutores utilizem o cinto de segurança, podem ser evitadas ate 80 % das mortes em acidentes com capotamento.
Neste caso, considerando que a estrutura principal do veículo está intacta, conclui-se que a utilização do cinto de segurança pelo condutor poderia ter evitado o movimento e, consequentemente, a projeção da condutora do posto de condução”.
E apenas conclui neste sentido porque não existem dados que lhe permita ir mais longe na sua conclusão para poder afirmar que a morte, naquelas concretas circunstâncias, teria sido evitada pelo uso do cinto de segurança.
Coisa diversa é o facto que o Tribunal deu como provado, e que se alinha quer com as declarações da perita médico legal, quer com as conclusões do mencionado relatório, de que o uso do cinto de segurança pela vítima teria evitado a sua projecção no veículo para fora do banco do condutor, a sua projecção para a lateral e para o exterior e assim evitando um agravamento dos danos com a decapitação.
Diga-se aliás que, da análise dos vários processos de homicídio negligente tramitados neste Tribunal, em quase todos eles, a vítima fazia uso do cinto de segurança e, não obstante, tal não foi suficiente para impedir a produção do resultado morte. Pelo que, ao contrário do defendido quer pela defesa, quer pela demandante, o uso de cinto de segurança, por si só e desacompanhado dos demais elementos factuais, não permite concluir que o resultado morte não se teria verificado.
Ora, dúvidas não restam que a vítima não fazia uso do cinto de segurança. Mas, como resulta das próprias declarações da perita médico-legal, e do relatório pericial elaborado pela empresa Solve são situações diferentes
É pela conjugação desta prova que nos é possível afirmar que caso C fizesse uso do cinto de segurança, muito provavelmente, não teria ocorrido decapitação, porém a prova produzida não permite afirmar com segurança que se a mesma fizesse uso do cinto dessegurança a morte não teria ocorrido.
Relativamente aos factos não provados.
Da Contestação do Arguido
No que concerne aos factos A) dá-se como não provado, por causa da matéria factual dada como provada, sendo remetida a sua fundamentação para os factos analisados supra.
Do Pedido de Indemnização Civil
O facto B) dá-se como não provado, considerando os factos a) e b), da matéria de facto provada, e as razões que foram expostas.
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2.3. Apreciação do recurso
Recurso da demandante Caravela – Companhia de Seguros, SA
1.ª Questão
Determinar se a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia (art.º 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, ao não reconhecer, desde logo, o direito de regresso da demandada seguradora sobre o arguido, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c), do n.º 1, do art.º 27.º do Decreto - Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto
Porque, como acima se disse, os fundamentos dos recursos são conhecidos por ordem lógica e preclusiva, iniciaremos a nossa análise pela questão da nulidade da sentença recorrida, arguida pela demandante cível, Caravela – Companhia de Seguros, SA, uma vez que a eventual procedência da mesma pode determinar a anulação do processado e a prolação de nova decisão pelo tribunal recorrido (se este tribunal superior não a puder suprir), ficando prejudicado o conhecimento, para já, das restantes questões elencadas.
Nas conclusões de recurso (alíneas aaa. e II, fls. 44 do requerimento de interposição de recurso), vem a recorrente demandada arguir a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, ao não reconhecer, desde logo, o seu direito de regresso sobre o arguido.
Alega a recorrente que na sua contestação peticionou o seguinte: “Sem prescindir, num eventual cenário de condenação da Demandada, sempre deverá este Tribunal, […] reconhecer, desde logo, o direito de regresso da Demandada sobre o Arguido/Demandado, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.”.
Mais alegou que o Tribunal a quo julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva do demandado A, absolvendo-o do pedido, mas não se pronunciou relativamente ao seu direito de regresso sobre o mesmo, e respetivo reconhecimento, como peticionado.
Conclui que tal omissão de pronúncia constitui causa de nulidade da sentença, devendo tal nulidade ser suprida, reconhecendo-se expressamente o seu direito de regresso sobre o arguido relativamente às quantias em que vier a ser definitivamente condenada no âmbito dos presentes autos, em virtude daquele conduzir com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente admissível.
Ao que cremos, sem razão.
É verdade que sob a epígrafe “II- Da salvaguarda do eventual direito de regresso da Demandada sobre o Arguido”, nos artigos 10.º a 17.º da sua contestação, a demandada refere que, caso este Tribunal (de 1.ª instância, leia-se) venha a considerar procedente o Pedido de Indemnização Civil, e caso a Demandada venha a ser condenada no pagamento aos Demandantes de qualquer quantia, sempre terá a Demandada direito a ser reembolsada pelo Arguido de todos os custos suportados, ou que venha a suportar, na sequência do acidente de viação em causa nos presentes Autos, nos termos acima alegados, nomeadamente, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
E no petitório, sob a alínea b), requer o reconhecimento do direito de regresso da Demandada sobre o Arguido/Demandado, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
Dispõe o art.º 379.º, do Código de Processo Penal, na parte em que agora releva:
“1 – É nula a sentença:
(…);
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
A omissão de pronúncia prende-se com o incumprimento do dever de resolver todas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, excetuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, verificando-se, pois, quando tenha ocorrido ausência de decisão.
Na situação em apreço o tribunal recorrido, de facto, não se pronunciou sobre a questão do direito de regresso que a recorrente eventualmente venha a ser titular. Mas também não tinha que o fazer, uma vez que este não é o processo, nem o momento processual adequado para o exercício, por parte da seguradora, do direito de regresso e daí o uso da expressão “eventualmente”.
Ao direito de regresso – conquanto a relação entre seguradora e lesante em acidente de viação não se reconduza a uma perfeita relação de solidariedade passiva – refere-se expressamente o legislador no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, para a hipótese de alcoolemia do condutor, na esteira do disposto na alínea c), do n.º 1, do art.º 27.º, do Decreto Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
Menezes Cordeiro entende que o direito de regresso pode ser encarado como uma sanção civil de natureza reparadora, que tem como escopo primordial tornar indemne um contratante ou lesado, caso este vise obter o reembolso total ou parcial de uma obrigação que satisfez ou como meio de defesa dos condevedores numa relação jurídica de co-solidariedade passiva [Direito das Obrigações, 1986, vol. II, p. 244-246].
Neste particular, a alínea c), do n.º 1, do art.º 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/8, prescreve que: “1 – Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
(…)
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos” – sublinhado nosso.
Ora, a lei é clara quando refere “satisfeita a indemnização”.
No caso em apreço, a seguradora recorrente não satisfez qualquer indemnização aos lesados, uma vez que não houve acordo extra judicial ou judicial quanto à indemnização a satisfazer aos mesmos, posto que estamos perante uma ação cível enxertada em processo penal. Ainda se discute tal indemnização. A própria recorrente pede a sua absolvição do pedido de indemnização civil contra si formulado pelos demandantes M e J.
É a partir do momento em que a seguradora paga a indemnização que passa a ser titular do direito de regresso.
Em abono deste entendimento, vejamos o que prescreve o art.º 498.º, do Código Civil, com especial destaque para o n.º 2:
“1 - O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.
2 - Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.” – sublinhado nosso.
É a partir do momento em que a seguradora paga a indemnização que se conta o prazo de prescrição de três anos relativamente ao exercício do seu direito de regresso contra o obrigado à indemnização.
Neste conspecto, improcede a arguida nulidade invocada pela recorrente demandada.
*
Recurso (principal e subordinado) da assistente M
A única questão a decidir no recurso principal e no recurso subordinado da assistente é a de saber se (im)procede a impugnação restrita da matéria de facto (por erro notório na apreciação da prova) e/ou a impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento por parte do tribunal de primeira instância) – art.ºs 410.º, n.º 2, alíneas a) e c), e 412.º, ambos do Código do Processo Penal.
Vejamos.
É pacífico o entendimento de que quanto à impugnação da matéria de facto pode o recorrente seguir um de dois caminhos: ou invoca os vícios de lógica da sentença, previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código do Processo Penal, devendo, neste caso, ater-se apenas ao texto da decisão e às incoerências que aí possam ser encontradas, ou apresenta uma impugnação alargada, que lhe permite analisar a prova produzida em julgamento, extrapolando o espaço limitado do texto da decisão recorrida.
Em qualquer das opções impõe-se ao recorrente o cumprimento de regras para que o recurso possa ser apreciado e tenha viabilidade de sucesso em termos formais.
No primeiro caso, que abarca, em abstrato, os invocados vícios, importa realçar que estão em causa defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão de resultar da própria leitura da decisão e que são detetáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente percetíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
No caso dos autos, refere a recorrente M [conclusão v)] que, ao dar como provados os factos constantes dos pontos 22. e 57., o tribunal de primeira instância incorreu em erro manifesto na apreciação da prova, ou seja, erro que vem evidenciado da simples leitura da sentença recorrida, por si ou conjugando-a com as regras de experiência comum.
É verdade que a recorrente não faz referência expressa a erro notório na apreciação da prova, mas alude à circunstância de o erro em causa estar evidenciado na simples leitura da sentença recorrida, por si só ou conjugando-a com as regras de experiência comum.
Por outro lado, as questões relativas aos vícios decisórios são questões de conhecimento oficioso por parte do tribunal de recurso, pelo que conheceremos dos vícios previstos no art.º 410.º, do Código do Processo Penal, entre eles o erro notório na apreciação da prova.
Como é sabido, os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no n.º 2, do art.º 410.º, do Código de Processo Penal, representam defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento, razão pela qual a lei exige que têm de dimanar da própria decisão recorrida por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo lícito, para este efeito, o recurso a elementos alheios à sentença, ainda que constem do respetivo processo.
O seu regime legal não inclui a reapreciação da prova – como sucede com a impugnação ampla da matéria de facto – limitando-se a atuação do tribunal de recurso à deteção do defeito que a sentença revela e, não podendo saná-lo, a determinar o reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento.
Reportando-nos a estes vícios e no ensinamento de Simas Santos e Leal-Henriques [Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, Editora Rei dos Livros, p. 69 e seguintes], a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher”. Melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
O erro notório na apreciação da prova consubstancia-se [Simas Santos e Leal-Henriques, ob. citada, p. 74] em “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
Erro notório é, pois, a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido).
Assim, não poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no artigo 127.º (…)”.
Sendo um vício que se relaciona com a apreciação da prova, tem de traduzir-se em vício de raciocínio inquestionável e percetível pelo comum dos observadores, designadamente quando o tribunal dá como provado algo que manifestamente está errado, porque baseado em juízo ilógico ou contraditório, resultando o vício do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
Não se confunde no entanto com a mera divergência de valoração feita pelo arguido ou por outro interveniente processual.
A insuficiência da matéria de facto reporta-se a lacunas no elenco factual vertido na decisão. Isto é, tal vício ocorre quando da leitura da decisão se evidencia a omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados – por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição – e não o foram, em prejuízo do dever de descoberta da verdade e boa decisão da causa que incumbe ao tribunal e decorre, entre outros, do estatuído no art.º 340.º, do Código de Processo Penal.
Salvo o devido respeito, a recorrente confunde claramente o vício que (neste caso) invoca, plasmado no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, com o erro de julgamento, previsto no art.º 412.º, do mesmo diploma legal.
Feita a leitura da sentença recorrida e apreciada, em particular, a fundamentação fáctica da mesma, não se vê que ocorram os referidos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou de erro notório na apreciação da prova, que se deixaram caracterizados e enquanto vícios que resultem do próprio texto da sentença, pelo que improcede a impugnação restrita da matéria de facto.
O que a recorrente verdadeiramente suscita é a existência de erro de julgamento e errada valoração da prova, designadamente pericial, documental e testemunhal [conclusões g), h), i), q) e s)].
De acordo com a regra geral contida no art.º 127.º, do Código de Processo Penal, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
Ou seja, na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.
De facto, tal tarefa “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.” [Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, 12.ª edição, p. 339]. Sendo “a liberdade de apreciação da prova (…), no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir chamada «verdade material»” [Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, p. 202] que tem de ser compatibilizado com as garantias de defesa com consagração constitucional –, impõe a lei (n.º 2, do art.º 374.º, do Código de Processo Penal) um especial dever de fundamentação, exigindo que o julgador desvende o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção, indicando os meios de prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância, não só para que a decisão se possa impor aos outros, mas também para permitir o controlo da sua correção pelas instâncias de recurso.
Dentro dos limites apontados, o juiz da 1.ª primeira instância goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade [acórdão do TRG, de 20.03.2006, in www.dgsi.pt].
É que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si.” [acórdão do TRC, de 03.10.2000, CJ, ano 2000, T. IV, p. 28]. Dito de outra forma: “o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas.” [acórdão do STJ, de 07.06.2006, consultável em www.dgsi.pt].
Em conclusão: os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância.
Deste pressuposto decorre, em primeiro lugar, que o recurso não pode ser perspetivado como um novo julgamento, como se o efetuado no tribunal de 1.ª instância não tivesse existido e, em segundo lugar, que compete exclusivamente ao recorrente fixar o seu objeto, através da indicação precisa do erro que entende ter sido cometido na decisão. Por isso, a impugnação ampla da matéria de facto, tal como a lei a configura – essencialmente, no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal – impõe ao recorrente a observância do ónus de uma tripla especificação, a saber: (i) a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art.º 430.º, n.º 1, do citado Código, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando estas tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na ata, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação. Por outro lado, estas especificações devem constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art.º 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). Em todo o caso deve sempre ter-se presente que a modificação da decisão de facto por via do recurso só pode ocorrer se e quando as provas especificadas impuserem decisão diversa da recorrida, não bastando para este efeito que apenas permitam decisão diversa.
Ora, compulsando o corpo da motivação e as conclusões formuladas pela recorrente M há que reconhecer que não deduziu impugnação ampla da matéria de facto, na medida em que não deu cumprimento mínimo ao ónus de especificação referido. Com efeito, a recorrente M, apesar de ter transcrito nas motivações de recurso os factos provados que constam da sentença (e bem assim os que pretendia aditar e a que adiante faremos referência), e que interessavam para a apreciação do presente recurso, não especificou as concretas provas que, em seu entender, impunham diversa decisão, e muito menos, indicou as concretas passagens da prova gravada em que fundava a impugnação.
Na verdade, a recorrente fundamenta a sua argumentação em torno da apreciação e valoração da prova que o tribunal recorrido fez constar da motivação de facto da sentença, contrapondo a sua própria convicção à convicção alcançada pelo julgador.
Assim, a impugnação deduzida pela recorrente prende-se apenas com uma diferente valoração da prova produzida que, em seu entender, não tem a credibilidade que lhe foi atribuída pela 1.ª instância.
O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre as consequências desse incumprimento.
Assim, decidiu, por exemplo, no acórdão n.º 259/02, publicado no DR, II Série, de 13.12.2002, que se o recorrente não acata com o ónus de motivação indicado, fica incumprida a sua obrigação, e é como se ela não existisse. Donde não se justificar nessa hipótese um qualquer convite à sua formulação, pois que redundaria na concessão de uma nova oportunidade de recurso [em linha com tal entendimento, a redação do atual art.º 417.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, em cujos termos, “O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.”].
Por outro lado, ponderou num outro acórdão, de 31.10.2003, publicado no DR, II Série, de 17.12.2003, a situação na qual o que se deparava era a simples menção na motivação dos aludidos ónus, mas o seu não transporte adequado para as conclusões (não concretização nos moldes exigíveis). Aqui já antes se imporia um prévio convite ao recorrente para acatamento adequado do ónus devido, sob pena, agora sim, de violação das garantias de defesa do processo criminal plasmadas no art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que mereceu consagração legal ao estatuir-se agora no dito art.º 417.º, n.º 3, que “Se a motivação de recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.”.
O que ressalta, no essencial, é que a recorrente se limita a divergir da credibilidade que o tribunal conferiu à prova produzida, pretendendo impor a sua própria apreciação dos factos – necessariamente interessada – àquela que foi a convicção isenta e imparcial do tribunal de 1.ª instância, formada segundo o enunciado princípio da livre apreciação das provas, princípio que, quer relativamente à prova testemunhal, quer quanto à prova documental, quer à prova por declarações dos arguidos, salvo havendo confissão, não sofre qualquer limitação. O Tribunal a quo atribuiu às declarações do arguido e ao depoimento das testemunhas credibilidade, coerência e veracidade, explicando criticamente a razão da sua convicção, socorrendo-se das regras da experiência comum e dos critérios de normalidade, assim como da prova documental e pericial produzida.
Improcede, portanto, e também, a questão da impugnação ampla da matéria de facto, fundamento do recurso principal e do recurso subordinado.
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Recurso da demandante Caravela – Companhia de Seguros, SA
2.ª Questão
Determinar se se verifica um erro de julgamento por parte do tribunal de primeira instância relativamente aos factos dados como provados sob os pontos 28. e 29. e se devem ser aditados aos factos provados, sob os pontos 49º-A a 49º-D, os factos elencados pela recorrente na alínea o) das conclusões de recurso
Entende a recorrente demandada que se impõe alterar a redação dos factos provados 28. e 29. e aditar novos factos à factualidade assente, que foram alegados na sua contestação e que resultaram provados por via da prova documental e testemunhal produzida.
Deduz, pois, impugnação ampla da matéria de facto, com fundamento em erro de julgamento.
O erro de julgamento, de acordo com o estatuído no art.º 412.º, n.º 3, do Código Processo Penal, ocorrerá quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado como não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido considerado provado ou parcialmente provado.
O erro de julgamento não pode ser confundido com a divergência entre a convicção pessoal da recorrente sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal formou, vigorando, neste âmbito, o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 127.º, do Código de Processo Penal, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Analisando a motivação de recurso e, bem assim, as conclusões dela extraídas, entendemos que a recorrente observou o ónus de especificação previsto no art.º 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do Código Processo Penal, pelo que, passamos a apreciar da impugnação ampla da matéria de facto, por erro de julgamento.
Diz a recorrente que o Tribunal a quo, aquando da decisão relativa aos factos provados em 28. e 29. desconsiderou a prova pericial: o Relatório de Autópsia Médico-Legal, de 07.03.2023, os esclarecimentos escritos de 06.06.2023, 30.06.2023, e os esclarecimentos oralmente prestados em audiência de julgamento de 25.11.2024, na medida em que a Perita em Medicina Legal, no seu Relatório, a final, concluiu que “a morte de C foi devida às lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais descritas”. E, em esclarecimentos escritos, de 06.06.2023 e 30.06.2023, clarificou que “1) As lesões descritas no hábito externo e interno, no tórax, abdómen e membros, isoladamente ou em conjunto não são passíveis de provocar a morte.”, e que “1) As lesões descritas no hábito externo e interno, no tórax, abdómen e membros, isoladamente ou em conjunto não são passíveis de provocar a morte. 2) Prejudicado. 3) Sim, foram causa de morte imediata. 4) Na observação do hábito interno e externo não foram detetados sinais de doença súbita o mal-estar que pudessem causar a morte.”. E em audiência de julgamento de 25.11.2024, a Perita em Medicina Legal reforçou que “A morte foi mesmo devido ao traumatismo crânio-encefálico e do pescoço.” e que sem tais lesões, as restantes não são suscetíveis de causar a morte.
Aduz, por fim, que a perícia médico-legal confirmou que (i) as lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais sofridas foram causa de morte imediata; e que (ii) as lesões descritas no hábito externo e interno, no tórax, abdómen e membros, isoladamente ou em conjunto, não são passíveis de provocar a morte.
Tais factos, impugnados, têm a seguinte redação:
28. Estas lesões descritas, consequentes da colisão e capotamento do veículo de matricula (….), foram causa direta, adequada e necessária da morte de C, no dia 19 de dezembro de 2022, pelas 02:40;
29. A morte de C foi devida às lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais.
Para se perceber a que lesões se refere o ponto 28. dos factos provados, transcrevemos o facto vertido no ponto 27.:
Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, C sofreu, entre outras, as seguintes lesões:
- Na cabeça: decapitação, alteração da forma e configuração da cabeça, com fraturas cominutivas da calote craniana e ossos da face, laceração e perda de massa encefálica;
- No pescoço: destruição, secção e esfacelo dos órgãos do pescoço ao nível de C5 e com restante coluna cervical fixa aos tecidos moles da face posterior do escalpe com retração dos tecidos sobre o dorso;
- No tórax: nas paredes - sufusões hemorrágicas dispersas no terço superior, face anterior;
- No membro superior esquerdo: equimose interessando todo o dorso da mão e punho, equimose na face externa e anterior do terço médio do punho;
- No membro inferior direito: equimose no terço médio, face anterior da coxa, escoriação na face externa do joelho e várias equimoses no terço médio, face anterior e posterior da perna;
- No membro inferior esquerdo: duas escoriações na face anterior do joelho, equimoses no terço inferior, na face interna e anterior da perna.
Analisados o relatório de autópsia Médico-Legal, de 07.03.2023, os esclarecimentos escritos de 06.06.2023 e de 30.06.2023, constantes dos autos, e auditados os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento de 25.11.2024, pela senhora Perita, não restam dúvidas que tais meios de prova impõem decisão diversa relativamente ao ponto 28.
Na verdade, foram apenas e tão só as lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas e cervicais sofridas pela vítima C que foram causa direta e necessária do seu decesso, pelo que se impõe alterar os pontos 28. e 29. da matéria de facto provada, que ficarão com a seguinte redação:
28. As lesões descritas em 27. foram consequência da colisão e capotamento do veículo de matricula (….), no dia 19 de dezembro de 2022, pelas 02:40.
29. As lesões traumáticas crânio- meníngeo-encefálicas e cervicais foram causa direta, adequada e necessária da morte de C.
Pretende, ainda, a recorrente que sejam aditados à materialidade provada os seguintes factos, sob os pontos 49.-A, 49.-B, 49.-C, 49.-D e 49.-E, respetivamente:
- O veículo Smart Fortwo – modelo do veículo com a matrícula (…..) – dispõe de uma estrutura reforçada – célula de segurança Tridion –, feita de aço de alta resistência e projectada para absorver e distribuir a força de uma colisão, ajudando a proteger os ocupantes do carro do impacto, que inclui zonas de deformação, protegendo contra capotamento; recursos de segurança que ajudam a tornar os carros Smart alguns dos veículos mais seguros nas estradas.
- O veículo Smart com a matrícula (…..), apesar de apresentar danos consideráveis ao nível posterior esquerda e mecânica posterior esquerda, mantinha o “cockpit” onde estão instalados os passageiros intacto, com os bancos e o tablier na sua posição original e sem qualquer dano / ou torção.
- O cinto de segurança do condutor do veículo Smart com a matrícula (…..) não se encontrava em boas condições de funcionamento, não sendo possível funcionar em condições normais.
- Considerando que a estrutura principal do veículo Smart com a matrícula (…..) estava intacta após o acidente, a utilização do cinto de segurança pela condutora poderia ter evitado o movimento e, consequentemente, a projecção da condutora do posto de condução.
- Caso C fizesse uso do cinto de segurança no momento do acidente, tal uso teria, com elevado grau de probabilidade, permitido poupar a sua vida.
As provas que a recorrente invoca e que no seu entender impõe o aditamento de tais factos são o relatório final do NICAV (Núcleo de Investigação Criminal aos Acidentes de Viação), de 05.01.2024, o relatório pericial datado de 30.09.2024, da SOLVE – Peritagens e Averiguações, assim como o depoimento das testemunhas L e J, subscritores do aludido relatório.
A prova documental invocada não foi impugnada por nenhum dos sujeitos processuais, em especial a assistente.
Por outro lado, só há lugar à apreciação dos factos (e neste caso, dos que se pretendem aditar) na medida em que correspondam a factos com interesse para a decisão do recurso.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual, com a realização de atos inúteis.
Primeiramente diremos que a asserção que a recorrente pretende fazer verter nos factos provados – “Considerando que a estrutura principal do veículo Smart com a matrícula (…..) estava intacta após o acidente, a utilização do cinto de segurança pela condutora poderia ter evitado o movimento e, consequentemente, a projecção da condutora do posto de condução” – , é manifestamente conclusiva.
Depois, a asserção “Caso C fizesse uso do cinto de segurança no momento do acidente, tal uso teria, com elevado grau de probabilidade, permitido poupar a sua vida” para além de se mostrar conclusiva, tem o mesmo alcance do facto provado na sentença recorrida sob o ponto 51. (a decapitação sofrida pela condutora C se poderá ter devido a não circular com o cinto de segurança, tendo o corpo tomado trajetórias no capotamento que, se poderiam não ter produzido, com o uso do cinto).
Assim, nesta parte, improcede a impugnação da matéria de facto, na modalidade de aditamento de factos, levada a efeito pela recorrente demandada.
A restante factualidade resulta evidenciada do relatório da empresa Solve, subscrito pelas testemunhas L e J e por elas confirmado e explicitado em sede de audiência de julgamento, e cuja transcrição consta da motivação de recurso da recorrente demandada.
Tais factos podem assumir importância na apreciação da questão da concorrência de culpas e eventual agravamento dos danos físicos sofridos pela vítima C, impondo-se o seu aditamento.
Neste conspecto, sob os pontos 49. – A, 49. – B e 49. – C, respetivamente, aditam-se os seguintes factos à materialidade assente na sentença recorrida:
49. – A O veículo Smart Fortwo – modelo do veículo com a matrícula (…..) – dispõe de uma estrutura reforçada – célula de segurança Tridion –, feita de aço de alta resistência e projectada para absorver e distribuir a força de uma colisão, ajudando a proteger os ocupantes do carro do impacto, que inclui zonas de deformação, protegendo contra capotamento; recursos de segurança que ajudam a tornar os carros Smart alguns dos veículos mais seguros nas estradas.
49. – B O veículo Smart com a matrícula (…..), apesar de apresentar danos consideráveis ao nível posterior esquerda e mecânica posterior esquerda, mantinha o “cockpit” onde estão instalados os passageiros intacto, com os bancos e o tablier na sua posição original e sem qualquer dano / ou torção.
49. – C O cinto de segurança do condutor do veículo Smart com a matrícula (…..) não se encontrava em boas condições de funcionamento, não sendo possível funcionar em condições normais.
Procede, nesta medida, parcialmente, a impugnação da matéria de facto realizada pela demandada recorrente CARAVELA – Companhia de Seguros, SA.
*
3.ª Questão
Determinar se existe concorrência de culpas do arguido e da vítima para a produção do acidente e/ou para o agravamento dos danos e, caso assim se entenda ou não, reduzir os montantes indemnizatórios em que foi condenada a demandada cível, por se mostrarem desproporcionais e desajustados ao caso concreto
De acordo com o art.º 71.º, do Código de Processo Penal “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo (…)”, pelo que em conformidade com o princípio da adesão que ali se consagra, deve o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ser deduzido no processo crime em que se aprecia e julga a responsabilidade criminal emergente da infração cometida.
Dispõe o art.º 129.º, do Código Penal, “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil” – art.ºs 483.º e seguintes do Código Civil.
Estabelece precisamente o primeiro o princípio básico em matéria de responsabilidade civil, prescrevendo no seu n.º 1 que:
«Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação», inexistindo obrigação de indemnizar independentemente de culpa, salvo nos casos especificados na lei (art.ºs 483.º, n.º 2 e 499.º e ss. do Código Civil).
Por seu turno, os art.ºs 562.º e seguintes estabelecem o regime da obrigação de indemnizar, comum a toda a responsabilidade civil (contratual, extracontratual ou objetiva), esclarecendo o art.º 563.º que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Da conjugação dos normativos aplicáveis, resultam determinados pressupostos de cujo preenchimento depende a obrigação de indemnizar, designadamente, a verificação de um facto voluntário ilícito, imputável ao agente (culposo) e do qual resulte, objetivamente (nexo de causalidade), um dano.
Por facto voluntário entende-se toda a ação ou omissão dominada ou dominável pela vontade humana.
A ilicitude consiste na violação de um direito de outrem ou na violação da lei que protege interesses alheios.
O dano é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
O nexo causal entre o facto e o dano no caso da responsabilidade por facto ilícito existe sempre que a conduta se não possa considerar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por causa de circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas – trata-se da chamada formulação negativa da causalidade adequada e que se reputa preferível no domínio da responsabilidade por facto ilícito [Das Obrigações em Geral, A. Varela, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 1989, Vol. I, p. 862 e ss.].
O nexo de imputação subjetiva (culpa) exprime a ligação psicológica do agente com a produção do facto e traduz o grau de censurabilidade que a conduta merece.
Para que o facto ilícito gere responsabilidade, é necessário que o lesante tenha agido com culpa. Não basta reconhecer que ele procedeu objetivamente mal. É preciso que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou mera culpa.
Agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.
A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso e, salvo havendo presunção legal de culpa, incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão art.º 487.º, do Código Civil.
Tal obrigação só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão (art.º 563.º, do Código Civil), sendo os danos não patrimoniais indemnizáveis, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – art.º 496.º, n.º 1, do mesmo Código.
Como resulta da decisão recorrida o tribunal de 1.ª instância concluiu pela culpa efetiva e exclusiva do arguido na produção do acidente.
Nela se pode ler:
“(…)
Feitas estas considerações, retornemos aos autos.
Na situação dos mesmos, como é evidente, está em causa a contribuição do facto culposo da vítima, não para a produção do acidente, que foi causado exclusivamente pelo arguido, mas para a agravação das lesões na sua pessoa resultantes desse sinistro, importando, pois, saber, se a circunstância da falta de colocação do cinto de segurança por parte dele, contribuiu, e em que medida, para esse agravamento.
Não basta para se concluir pela culpa do lesado para o agravamento dos danos que este tenha praticado um facto ilícito e culposo como o é o de voluntariamente não se fazer uso de cinto de segurança durante a circulação do veiculo que conduz.
Já se viu que, o que é afinal essencial à chamada culpa do lesado, não é tanto a censurabilidade do acto em termos de culpa - pois, como se referiu, há até quem entenda que “facto culposo” equivale a facto meramente decorrente da conduta do lesado - mas o da sua necessária causalidade para (a produção) ou para o agravamento dos danos.
Ora, a afirmação da causalidade é questão que, por excelência, só se resolve em função de um processo causal e este tem de decorrer necessariamente de factos.
Ora, se a afirmação da causalidade é questão que só se resolve em função de um processo causal e este há-de decorrer de factos e de presunções de facto entre eles – a menos que haja a referida presunção legal, e não existe na matéria em que nos encontramos - cabia à demandante, que invocou a culpa da vítima, fazer a prova desse processo causal, isto é, que foi porque, nas concretas circunstâncias em que o acidente se deu, circulava sem cinto de segurança que a morte da vítima ocorreu, como agravação das lesões que para ela sempre decorreriam do acidente.
Tal não se veio a provar, não tendo a demandante conseguido fazer prova de a morte não teria ocorrido caso a vítima fizesse uso do cinto de segurança, nas concretas circunstâncias em que o acidente ocorreu.
A demandante teria que fazer prova, o que não aconteceu que nas circunstâncias concretas do acidente, se a vítima tivesse usado o cinto de segurança, muito provavelmente não teria sofrido alguma ou algumas das lesões corporais que sofreu, por outras palavras, que o uso daquele cinto, nas concretas circunstâncias do sinistro, teria funcionado como causa adequada à não ocorrência da morte.”
Na ótica da recorrente demandada impõe-se reconhecer que estamos, antes, perante uma situação de concorrência de culpas, considerando que a conduta (omissiva e em violação da lei) da lesada C foi, também, causa direta do agravamento das lesões decorrentes do acidente; em concreto, foi o facto de a lesada conduzir sem fazer uso do cinto de segurança que causou a sua morte, e não apenas lesões de menor gravidade, como as que viria a sofrer se, com cinto, se tivesse mantido sentada no seu lugar de condutora e sem projeção no interior do veículo e consequente decapitação, o que teria de conduzir à sua absolvição do pedido indemnizatório formulado.
Mais alega que tendo o arguido conduzido sob o efeito do álcool, com uma TAS de 1,95 g/l, resulta inequivocamente da prova que o facto de C não fazer uso do cinto de segurança no momento do acidente é causa direta – ou, no mínimo, altamente provável – da sua morte, que não teria ocorrido se ela fizesse uso do cinto.
Da sentença recorrida resultam provados os seguintes factos com relevância para a questão em causa:
– Nas circunstâncias acima descritas, porque circulava de forma desatenta e descuidada, o arguido não exerceu os cuidados necessários na condução veículo de matrícula (…..) e foi embater com a parte da frente, do lado direito, deste veículo na parte de trás, do lado esquerdo, do veículo de matricula (…..).
– A colisão entre o veículo de matrícula (…..) e o veículo de matricula (…..) ocorreu na via de trânsito do lado direito, face ao sentido norte/sul.
– Após a colisão indicada no artigo anterior, C perdeu o controlo do veículo de matrícula (…..), entrando em derrape seguido de capotamento em direção aos terrenos baldios existentes do lado direito da via aludida até à imobilização do veículo nestes terrenos.
– Decorrente da colisão e durante o consequente capotamento, C foi projetada no interior do veículo que conduzia, tendo o corpo desta ficado imobilizado no interior do veículo e a cabeça desta encontrava-se parcialmente fora do veículo, junto ao pilar “A” do lado direito do veículo que conduzia.
– Não foi realizada nenhuma manobra evasiva pelos condutores intervenientes na colisão, não existe no local marcas de travagem ou de derrapagem anteriores ao local de embate.
– Decorrente da colisão acima aludida, o veículo de matrícula (…..) ficou imobilizado a pelo menos de 64,36 metros do ponto de conflito até à posição final.
– Decorrente da colisão acima aludida, o veículo de matrícula (…..) ficou imobilizado a pelo menos de 57,65 metros do ponto de conflito até à posição final.
– Após o local de embate, o veículo de matricula (…..) produziu marcas de derrape numa distância de 64,36 metros até à sua imobilização.
– Após o local de embate, o veículo de matricula (…..) produziu marcas de derrape e após impressões moldados dos pneumáticos na terra numa distância total global de 38,83 metros, tendo, de seguida, entrado em capotamento durante 18,82 metros até à sua imobilização.
– C, no momento da colisão, não fazia uso do cinto de segurança.
– No momento da colisão o veículo de matrícula (…..) circulava a uma velocidade estimada de 124 km/h.
– No momento da colisão o veículo de matricula (…..) circulava a uma velocidade estimada de 59 km/h.
– Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas acima, o arguido, após ter ingerido bebidas e alcoólicas em quantidades não apuradas, conduziu o veículo supra aludido com um teor de álcool no sangue correspondente à TAS de 1,95g/l.
– O arguido ao conduzir o veículo com a taxa de álcool no sangue apresentada, ao não manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes, ao não regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e ao circular acima da velocidade máxima permitida no local, determinou, deste modo, que ocorresse o embate entre os veículos acima aludidos.
– Ao agir da forma acima descrita, o arguido conhecia o seu estado, sabendo que estava influenciado pelo consumo de álcool no sangue e bem sabia que o mesmo não lhe permitia efetuar uma condução cuidada e prudente e lhe diminuía a capacidade de atenção, reação de destreza, mas, ainda assim, quis conduzir o referido veiculo, o que efetivamente fez.
– Previamente à conduta descrita, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas, as quais foram causa necessária da taxa de álcool no sangue de que era possuidor, sabendo que a sua ingestão era suscetível de o colocar no estado em que foi encontrado e que as mesmas lhe reduziam as elementares faculdades físicas e psicológicas ao ato da condução, no que respeita à coordenação motora, não se abstendo de conduzir na via pública após a sua ingestão.
– Mais conhecia o arguido as características do veículo que conduzia e os riscos inerentes ao modo de condução que se descreveu, nomeadamente de que com a sua conduta violadora da condução prudente e das mais elementares regras rodoviárias colocava em perigo a vida, a integridade física e bens patrimoniais de elevado valor dos demais utentes da via, como efetivamente colocou, concretamente a morte de C, em cujo veículo tripulado veio a embater, do que resultaram consequências já indicadas, consequente da conduta do arguido.
– O arguido sabia que devia manter entre o seu veículo e o que o precedia a distância suficiente para evitar acidentes.
– Mais sabia o arguido que devia regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, bem como estava ciente que devia respeitar os limites máximos de velocidade estabelecidos na via em apreço, contudo, assim não procedeu quando circulava na via a uma velocidade estimada de 124 km/h.
– O arguido podia e devia ter previsto que, ao conduzir daquela forma desatenta, descuidada e incauta, poderia ocorrer colisões com outros veículos que ali circulassem na A2, provocando acidentes de viação de que resultassem a morte e ferimentos aos respetivos condutores e, eventuais, passageiros, conforme veio a suceder, podia e devia, ainda, ter adotado outro comportamento, que evitasse a colisão descrita e consequente o falecimento de C, e dando assim causa àquelas lesões, que foram causa adequada da morte desta.
– O arguido sabe que a condução de veículos motorizados, na via pública, é uma atividade perigosa, representou e previu, exigindo-se-lhe um comportamento diferente que também poderia ter previsto e, seguramente, evitado, como possível que a sua conduta poderia dar origem a acidentes e, por via disso, causar lesões e até a morte a outros utentes da via, embora atuando confiante que tal resultado não ocorreria.
– O arguido, conhecendo as características do veículo e da via pública por onde circulava, sabia que, antes de iniciar a condução do veículo automóvel, havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe determinariam um teor de álcool no sangue igual ou superior a 1,20g/l não se abstendo, ainda assim, de conduzir tal veículo, o que representou e concretizou.
– Ao atuar como se descreveu, agiu o arguido sempre livre, voluntária, e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo a liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação.
– O veículo Smart Fortwo – modelo do veículo com a matrícula (…..) – dispõe de uma estrutura reforçada – célula de segurança Tridion –, feita de aço de alta resistência e projetada para absorver e distribuir a força de uma colisão, ajudando a proteger os ocupantes do carro do impacto, que inclui zonas de deformação, protegendo contra capotamento; recursos de segurança que ajudam a tornar os carros Smart alguns dos veículos mais seguros nas estradas.
– O veículo Smart com a matrícula (…..), apesar de apresentar danos consideráveis ao nível posterior esquerda e mecânica posterior esquerda, mantinha o “cockpit” onde estão instalados os passageiros intacto, com os bancos e o tablier na sua posição original e sem qualquer dano/ou torção.
– O cinto de segurança do condutor do veículo Smart com a matrícula (…..) não se encontrava em boas condições de funcionamento, não sendo possível funcionar em condições normais.
– A decapitação sofrida pela condutora C poder-se-ia ter devido a não circular com o cinto de segurança, tendo o corpo tomado trajetórias no capotamento que, se poderiam não ter produzido, com o uso do cinto.
Em face do elenco dos factos provados, resulta que nas circunstâncias de tempo, lugar e modo descritas supra, o arguido, exercia a condução do veículo automóvel segurado pela demandada Caravela, sendo certo que se encontrava sob o efeito do álcool, em excesso de velocidade e de forma desatenta e descuidada, o arguido não exerceu os cuidados necessários na condução veículo de matrícula (…..) e foi embater com a parte da frente, do lado direito, deste veículo na parte de trás, do lado esquerdo, do veículo de matrícula (…..), cuja condutora perdeu dele o controlo, entrando em derrape seguido de capotamento em direção aos terrenos baldios existentes do lado direito da via.
A conduta do arguido foi, pois, voluntária e ilícita. De igual modo, foi culposa, devendo-se o acidente a um comportamento imprudente e temerário da sua parte.
Verificada a inobservância das leis e regulamentos estradais por banda do arguido, comprovada resultou em sede penal a sua conduta negligente.
Considerando que o prejuízo se deveu a um evento causado pelo condutor do veículo segurado pela demandada (o arguido), constituiu-se na esfera jurídica desta última a obrigação de indemnizar as lesadas pelos danos sofridos.
O nó górdio situa-se ao nível da repartição da responsabilidade do arguido e da vítima, na medida em que se discute se o facto de a vítima mortal não trazer cinto de segurança no momento em que se deu o acidente contribuiu, de alguma forma, para o agravamento dos danos.
No caso dos autos, já se viu que a exclusiva responsabilidade pela produção do acidente foi atribuída ao condutor do veículo segurado pela recorrente, pelo que não se trata aqui de discutir se um facto culposo da vítima C concorreu para a produção dos danos, cumprindo apenas decidir se um facto culposo daquela contribuiu para o agravamento dos danos.
Entende a recorrente demandada que a vítima contribuiu para o agravamento dos danos que sofreu porquanto não levava colocado o cinto de segurança o que eventualmente poderia ter evitado a sua morte, pelo que, por força do disposto no art.º 570.º, n.º 1, do Código Civil, o montante da indemnização civil a fixar em favor dos demandantes deve ser reduzido em percentagem nunca inferior a 50%.
Ora, de acordo com o art.º 570.º, n.º 1, do Código Civil, “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”
Como é entendimento dominante da nossa jurisprudência, na aplicação do disposto no art.º 570.º, do Código Civil, a questão de saber se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída exige não só determinar se a conduta do lesado foi subjetivamente censurável em termos de culpa mas, ainda, se essa atuação culposa foi uma das causas do dano ou do seu agravamento.
Ponderando a gravidade das culpas, regista-se que estão apenas em causa os danos causados pelo sinistro em termos de nexo de causalidade, ou seja, os resultantes do facto e por ele causados (art.ºs 483.º, 563.º e 798.º, do Código Civil). Quanto à ocorrência do sinistro, ninguém discute ser ele imputável apenas ao arguido, condutor do veículo de matrícula 34-72-SG, a título de culpa na forma negligente, conforme supra se escreveu.
Vejamos a conduta da infeliz vítima.
O uso de cinto de segurança é potencialmente redutor da gravidade das lesões sofridas em acidente de viação, razão pela qual se mostra obrigatório o seu uso, seja no condutor, seja nos passageiros do banco da frente e no banco de trás – art.º 82.º, n.º 1, do Código Estrada.
O que provocou o sinistro e a sua gravidade foi indubitavelmente a condução imprudente do arguido (sob influência de álcool e em excesso de velocidade), não se podendo afirmar que a ausência do cinto tenha sido causa adequada do acidente e do dano.
Mas, a circunstância da vítima não trazer o cinto de segurança ou qualquer outro dispositivo de segurança colocado, contribuiu para o agravamento dos danos causados pelo acidente. Veja-se que se deu como provado que o veículo Smart Fortwo conduzido pela vítima dispõe de uma estrutura reforçada – célula de segurança Tridion –, feita de aço de alta resistência e projetada para absorver e distribuir a força de uma colisão, ajudando a proteger os ocupantes do carro do impacto, que inclui zonas de deformação, protegendo contra capotamento; recursos de segurança que ajudam a tornar os carros Smart alguns dos veículos mais seguros nas estradas; que o veículo Smart, apesar de apresentar danos consideráveis ao nível posterior esquerda e mecânica posterior esquerda, mantinha o “cockpit” onde estão instalados os passageiros intacto, com os bancos e o tablier na sua posição original e sem qualquer dano/torção; que o cinto de segurança do condutor do veículo Smart não se encontrava em boas condições de funcionamento, não sendo possível funcionar em condições normais e, ainda que, que a decapitação sofrida pela condutora C se poderia ter devido a não circular com o cinto de segurança, tendo o corpo tomado trajetórias no capotamento que, se poderiam não ter produzido, com o uso do cinto.
É indiscutível e do conhecimento geral que fazer-se transportar num veículo sem cinto de segurança é perigoso.
Contrariamente ao entendimento do tribunal de 1.ª instância, é este o comportamento censurável que pode ser atribuído à vítima, já que não respeitou o disposto no art.º 82.º, n.º 1, do Código da Estrada que, na seção das “regras especiais de segurança”, prescreve que os passageiros estão obrigados ao uso de cinto de segurança.
A jurisprudência tem produzido jurisprudência sobre o conceito de facto culposo do lesado, nomeadamente em situações de condutor ou passageiro sem cinto de segurança, relevando-se, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos do STJ (sumários disponíveis em www.stj.pt):
- De 03.03.2009, na Revista n.º 9/09 - 6.ª Secção:
“III- É matéria de facto, que o STJ tem de acatar, por estar subtraída ao seu controle (arts. 722.º e 729.º do CPC), o nexo causal - naturalístico - estabelecido pelas instâncias entre a ausência do cinto de segurança e o agravamento das lesões sofridas pelo autor.
IV- É matéria de direito - e incluída, por isso, na competência do tribunal de revista - o segundo momento da causalidade, referente ao nexo de adequação, de harmonia com o qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais ou extraordinárias.
V- No caso dos autos o nexo de adequação está presente uma vez que, em geral e abstracto, a ausência de cinto de segurança é um facto omissivo apto a causar agravamento das lesões em caso de acidente de viação.”
- De 17.06.2010, na Revista n.º 1433/04.9TBFAR.E1.S1 - 2.ª Secção:
“IV- A formulação legal do art. 570.º do CC afasta os actos do lesado que, embora constituindo concausa do dano, não merecem um juízo de reprovação ou censura.
V- Daí que a redução ou exclusão da indemnização apenas ocorra quando o prejudicado não adopte a conduta exigível com que poderia ter evitado a produção do dano ou agravamento dos seus efeitos.
VI- Tal concausalidade determina-se pelo método da causalidade adequada, referido no art. 563.º do CC: ou seja, o agente só responderá pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta a produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária.
VII- Em geral e abstracto, a ausência de um cinto de segurança é um facto omissivo apto a causar um agravamento das lesões em caso de acidente de viação, para além de constituir uma infracção estradal (art. 81.º, n.º 1, do CEst), o que faz impender sobre o prevaricador a presunção de culpa na produção dos danos dela decorrentes.”.
- De 21.02.2013, na Revista n.º 2044/06.0TJVNF.P1.S1 - 7.ª Secção (também disponível em www.dgsi.pt):
«III- O tribunal deve conhecer da culpa do lesado, “ainda que não seja alegada” (art. 572.º do CC).
IV- No sentido do art. 563.º do CC, a falta de colocação do cinto de segurança não é causa adequada dos danos sofridos pelo passageiro de um veículo automóvel que foi embatido por outro; não se pode falar, assim, de uma situação de concorrência de causas do dano.
V- Mas essa falta pode ter contribuído para o agravamento do dano causado pelo acidente e, por essa via, conduzir à redução da indemnização devida, porque se trata de uma omissão de cuidado claramente culposa, ostensivamente reveladora da inobservância do cuidado e diligência exigíveis a uma pessoa medianamente diligente e cuidadosa, colocada na situação da lesado. É do conhecimento geral que é perigoso fazer-se transportar num veículo automóvel sem ter o cinto de segurança colocado.”
Por outro lado, quanto à gravidade das culpas do arguido e da vítima, consideramos que a atuação daquele é muitíssimo mais grave, na medida em que conduzia a uma velocidade superior ao limite máximo permitido e sob o efeito do álcool, com uma taxa de 1,95g/l. , incorrendo em duas contraordenações estradais (graves) p. e p. pelos art.ºs 18.º, 24.º e 27.º, do Código da Estrada, e num crime de condução de veículo em estado de embriagues.
Consultada a jurisprudência do STJ nos últimos anos, é possível verificar que existe alguma disparidade a este propósito, obtendo-se um valor médio de redução do montante indemnizatório na ordem dos 18%, conforme sumários que se transcrevem, acessíveis em www.stj.pt:
- Acórdão do STJ, de 03.03.2009, na Revista n.º 9/09 - 6.ª Secção:
“(…) VI- O art. 570.º, n.º 1, manda atender exclusivamente à gravidade das culpas de ambas as partes e às consequências delas resultantes, não permitindo o julgamento segundo a equidade (art. 4.º do CC).
VII- Na avaliação global das condutas de lesante e lesado para que a lei aponta no art. 570.º, n.º 1, deve ser tida em conta a contribuição causal do facto culposo do lesado, não para a produção do acidente (que ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na ré), mas somente para o aprofundamento das lesões (por não levar o cinto de segurança colocado).
VIII- Provando-se que as lesões sofridas pelo autor se agravaram por viajar deitado no banco de trás, que se encontrava rebatido, a dormitar e sem o cinto de segurança posto, ignorando-se, todavia, o peso relativo de cada um destes factores em tal agravamento e, bem assim, a medida, o grau deste, a indemnização a fixar deverá ser reduzida em 15%, por aplicação do disposto no art. 570.º, n.º 1, do CC.”
- Acórdão do STJ, de 17.06.2010, na Revista n.º 1433/04.9TBFAR.E1.S1 - 2.ª Secção:
“VIII- Demonstrando os factos apurados que o autor seguia gratuitamente, sem o cinto de segurança colocado, no banco da frente de um veículo ligeiro de mercadorias e que este se despistou a pelo menos 150 km/hora, capotando várias vezes, tendo o autor sido “cuspido” pela janela fora, projectando-o para o asfalto, e na falta de mais factos que permitam verificar a ocorrência de qualquer circunstância extraordinária que só por si excluísse a participação da omissão do uso do cinto de segurança no agravamento dos danos sofridos, deve concluir-se que é ajustada a percentagem de 20% da culpa do autor para a ocorrência daqueles.
- Acórdão do STJ, de 19.04.2016, na Revista n.º 212/10.9 TCGMR.G1.S1 - 1.ª Secção:
“II- Resultando da decisão sobre a matéria de facto que a lesada não teria sido projectada do habitáculo do veículo onde era transportada, se estivesse presa pelo cinto de segurança ao banco onde seguia sentada, é de concluir apenas que cometeu um facto ilícito consubstanciado na omissão/falta de uso do cinto, sem que se possa ter por adquirido que agiu com culpa, apuramento que, afinal, se evidenciou irrelevante, por ter a seguradora ficado constituída no dever de indemnizar, com base na responsabilidade objectiva.
III- Não obstante, a apontada conduta ilícita tem de se considerar como comparticipativa de um agravamento das lesões sofridas, sendo criterioso e ponderado atribuir, em estimativa, uma percentagem de 15%, conforme decidiu o acórdão recorrido.”
- Acórdão do STJ, de 14.12.2016, na Revista n.º 12381/11.6TBBCL.G1.S1 - 2.ª Secção:
“IV-Tendo, porém, ficado demonstrado que a vítima, no momento do despiste ocorrido em virtude de objecto existente na faixa de rodagem, não usava cinto de segurança – circunstância que, configurando a violação da norma estradal do art. 82.º, n.º 1, do CEst, concorreu para o agravamento do resultado (art. 570.º, n.º 1, do CC) – é adequado fixar a sua contribuição para o acidente em 25%.”
- Acórdão do STJ, de 03.07.2018, na Revista n.º 36/12.9T2STC.E1.S1 - 6.ª Secção:
“IV- Atendendo à culpa do autor, por não usar o cinto de segurança, agravando os danos sofridos em 15%, o valor a arbitrar a título de indemnização pelo dano biológico deve ser fixado em € 34 000 (e não em € 20 000, como entendeu a 1.ª instância, nem em € 25 000, como decidiu a Relação).”
Tudo ponderado, atendendo à culpa da vítima (resultante do não uso de cinto de segurança) e à elevadíssima culpa do arguido considera-se equitativo atribuir àquela 10% da culpa no agravamento dos danos que para ela resultaram do sinistro, procedendo parcialmente, nesta parte, o recurso interposto.
*
Sobre os parâmetros da indemnização colocada em causa pela recorrente demandante, Caravela – Companhia de Seguros, SA, cabe aferir o dimensionamento dos danos provados.
Discorda a recorrente das quantias indemnizatórias fixadas a título de danos morais a favor dos demandantes e do dano morte, na medida em que se revelam excessivas e desproporcionais.
O tribunal de 1.ª instância justificou assim a fixação do montante indemnizatório:
“Dano Morte:
Como acima se referiu nos termos do artigo 496º, n.º 3, do Código Civil, há lugar à indemnização por dano morte.
(…)
Importa, pois, fixar o quantum indemnizatório a atribuir como forma de compensar a demandante, havendo, para tanto, que atentar no critério do art. 496º, n.º 3, 1ª parte, de acordo com o qual o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º – grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
É uma tarefa impossível esta de atribuir valor à vida humana e, sendo certo que os tribunais não se devem pautar por critérios miserabilistas, não o é menos que não podem seguir critérios de puro mercantilismo por forma a que se transforme uma tragédia num rendoso negócio.
O direito à vida é na nossa civilização e na nossa sociedade o mais elevado dos direitos de personalidade.
(…)
A vida é, com efeito, o bem mais valioso e não é mensurável da mesma forma que outros bens, nomeadamente de conteúdo material.
Tal bem tem o mesmo valor para todos, independentemente da idade ou de outras considerações de ordem pessoal, social, económica, religiosa ou filosófica.
Esse valor não varia em função da expectativa de vida de cada um. A vida que é suprimida, mesmo que possa não valer o mesmo para todas as pessoas, não pode deixar de ser valorada da mesma forma independentemente das ditas considerações, sob pena de ser depreciado o seu valor, enquanto direito absoluto e de se atentar contra a dignidade humana.
Deste modo é de reputar equitativa a fixação da compensação da perda do direito à vida pela vítima em € 100.000,00 (cem mil euros).
Danos morais sofridos pelos demandantes, pela morte da sua filha, revelam os pertinentes os seguintes factos provados:
- A morte de C provocou um grande abalo e um imensurável desgosto aos pais.
- C era filha única, tendo uma fortíssima ligação afetiva à mãe, que era o seu principal apoio, assim como tinha também uma relação muito próxima com o pai.
- C era uma cantora famosa, tinha 46 anos, era uma mulher viva, alegre, comunicativa, respeitada e amada por todos, a mãe da C era muito próxima da filha, ficou completamente afetada psicologicamente, perdeu a razão de viver, criando um isolamento familiar grande e uma patologia depressiva. Sofre de frequentes ataques de pânico, consequência de um estado de ansiedade permanente em que vive após a morte da sua filha e da forma como tudo sucedeu.
- C vinha ao telemóvel com a sua mãe quando o embate se produziu.
- O pai da falecida, também sofre imenso com a perda da filha, não consegue mais ter alegria de viver, sentindo-se amargurado na sua existência.
- A pouca idade da falecida e ainda o facto de ter uma carreira de grande sucesso no nosso país, ainda agrava mais o sofrimento destes pais, que viram destruídos os sonhos da sua filha e os seus em conjunto com ela.
- Os pais mantinham um contacto diário e permanente com a filha, por quem tinha um especial afeto, mãe e filha eram consideradas por todos como quase irmãs, uma vez que andavam sempre juntas e eram o apoio uma da outra.
- Ficaram os pais profundamente abalados com a morte da filha, ainda jovem, que lhe causou um grande desgosto e abalo psicológico.
Atento o sofrimento espelhado em tais factos, bem como os critérios de fixação da indemnização, rodeados por um juízo de equidade, têm-se por justo fixar a indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).”
Vejamos.
No que toca à indemnização de danos não patrimoniais, dispõe o art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, pelo que são irrelevantes, designadamente, os pequenos incómodos ou contrariedades, assim como os sofrimentos ou desgostos que resultam de uma sensibilidade anómala.
Importa também ter presente que a quantia devida por estes danos não tem por fim “a reconstrução da situação anterior ao acidente, mas principalmente compensar o autor, na medida do possível das dores e incómodos que suportou e se mantém como resultado da situação para que o acidente o arrastou, e deve a mesma ser calculada pondo em confronto a situação patrimonial do lesado (real) e a que teria se não tivessem existido danos” [acórdãos do STJ, de 26.01.94 in CJSTJ, Tomo I, p. 65 e de 16.12.93, in CJSTJ, Tomo III, p.181], jurisprudência esta que se mantém atual conforme as inúmeras decisões que se podem consultar a propósito no caderno de “jurisprudência temática” disponível no site do STJ.
Deve, ainda, considerar-se que a mais recente jurisprudência do nosso STJ vem reconhecendo que se torna necessário elevar o nível dos montantes deste tipo de danos, perante o condicionalismo económico do momento, e o maior valor que hoje se atribui à vida, integridade física e dignidade humanas.
Por outro lado, o montante da indemnização a atribuir é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º, do Código Civil, sendo certo que este dispositivo estabelece uma limitação da indemnização no caso de mera culpa ou negligência referindo que a indemnização poderá ser fixada em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.
Dispõe o art.º 566.º, do Código Civil, que a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Como ensinava o Prof. Vaz Serra: “O dano é todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não. Também há danos quando se diminui o património (dano patrimonial) como quando se afecta o corpo, a saúde, a vida, a honra, o bem-estar, o crédito, etc. (...) (dano não patrimonial).” [Obrigação de Indemnização in, BMJ, n.º 84, p. 8 e 9).
Importa aferir a indemnização do dano-vida e dos danos decorrentes do sofrimento e desgostos padecidos pelos familiares.
Quanto à reparação do dano pela perda do direito à vida, de C, cumpre primeiramente referir que o art.º 496.º, n.º 2, confere um direito próprio aos ascendentes, não existindo cônjuge ou filhos, uma vez que contém em si uma lógica distinta dos institutos sucessórios.
Ainda sobre o direito à vida ninguém duvidará que o se mesmo assume como o bem jurídico supremo e dos mais tutelados, por isso, como dano, de per si, é indemnizável.
O valor a atribuir tem de ser representativo (e não compensatório para a vítima) da qualidade de vida que se perdeu e dos critérios que a valorizavam. Tal valor indemnizatório do dano vida, embora não vise uma reconstituição integral nos termos do art.º 562.º, do Código Civil, sendo dano não patrimonial, antes deve traduzir e representar a expressão da vida cessada e essa projeção deve refletir a imagem do campo de afetividades e a sua dimensão social à data do decesso e pelo tempo expectável. Com efeito, a vivência humana nos mais diversos aspetos, sendo imaterial, por natureza tem sempre um valor muito elevado, na sua dignidade, no exercício da liberdade, nas realizações em prol dos outros, na qualidade de vida (o que se expressa bem no dimensionamento dos danos morais decorrente de incapacidades sofridas), por isso, a imagem da perda da vida, expressa no contínuo do tempo expectável, projeta tendencialmente valores extraordinários, face aos critérios comuns de reparação de danos morais. Esta indemnização não pode assumir valores menores.
Na valorização do dano pela perda do direito à vida existe quem se norteie por padrões rígidos, abstratos, a exemplo do que outrora se fixou como limite mínimo desse valor, como não podendo ser inferior ao custo de um automóvel médio no nosso mercado [acórdão do STJ, CJ, 1992, Tomo IV, p. 29]; e ainda no âmbito dos critérios abstratos na fixação do valor mínimo do dano morte para vítimas que não tenham fatores valorizadores, deve sublinhar-se que o montante a atribuir não respeitará ao valor tipológico, pré-estabelecido para a vida biológica, mas antes à concreta projeção pessoal e social que o indivíduo vivia no seu presente, assim como as vivências que tinha por realizar até ao termo da esperança de vida (na dimensão do dano importa a vida da vítima à data da morte, mas também no seu tempo vindouro, ainda que seja reduzido, no caso de vítimas com doenças graves), incluindo o grau satisfatório das relações que tinha com amigos e familiares. E é todo este capital nas dimensões de realização pessoal, profissional e social que se perde com o decesso, realidades ônticas que não podem ser desvalorizadas.
Assim, na aferição do dano pela perda do direito à vida, o caminho a prosseguir deve obediência a um juízo de equidade que concretize e dimensione a vida concretamente em discussão, o que implica uma operação mensurável que necessariamente incidirá na esperança de vida da vítima, no caso por um período de 35,2 anos tendo em conta a idade daquela em 46 anos e a esperança de vida das mulheres em 2022 fixada nos 81,2 anos [www.pordata.pt], diretamente associada à qualidade de vida da sinistrada, aferida em conjunto com a projeção funcional da vítima na sociedade e família [conforme síntese jurisprudencial elaborada pelo Juiz Desembargador Joaquim Sousa Dinis, onde se destacam os critérios das funções: normal; excecional e específica da vítima no meio social, in Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJ STJ, 1997, Tomo II, p. 13].
Na ótica desses critérios, segundo cremos, criar-se-ão os padrões de fixação do valor de indemnização pela perda da vida. Como se antevê, essa aferição será ponderada caso a caso, pois todas as vidas são diversas nas suas dimensões, complexidades íntimas e sociais, basta ver o homem que tem uma prodigiosa e fecunda vida intelectual, com uma expansiva vivência social, com afetividades equilibradas e compensadas, com ampla e profusa cumplicidade em círculos académicos e culturais, que inclusive dele dependem; e no outro extremo observemos o homem, relativamente indigente, com dimensão intelectual e social muito reduzida, e por-desventura com uma grave incapacidade física, e/ou mental.
Estas vidas, sem embargo de serem absolutamente iguais em dignidade, revelam amplitudes significativas na sua intensidade, que não podem ser normativamente ignoradas, até porque a perda de uma pessoa especialmente afetuosa, e com especiais méritos e contributos na vida em sociedade, provoca um dano muito superior, a uma outra onde a vítima é um idoso, com deficiências, ou com escassa esperança de vida por doença, devendo essa diferença ser computada na gravidade do ilícito, quanto mais não seja para desempenhar a função de punição a que alude Antunes Varela quando escreve: “(...) a lei tem sempre um pressuposto ético na base da imposição da obrigação de indemnizar - que é o da sanção da conduta culposa do agente.” [Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 123, p. 280].
Ao invés desta perspetiva, como se viu, existe uma outra, onde o valor da vida para a vítima enquanto ser, e como prejuízo, é igual para todos os homens, defendendo-se que a indemnização deve ser a mesma para todos, por se basear no valor da dignidade da pessoa humana.
Porém, nesta conceção, lavra-se no erro de basear o cálculo da perda da vida apenas no critério da dignidade da pessoa humana, que, por ser de aferição abstrata, é por isso, insuscetível de ser mensurável.
Também devem ser considerados na medida do valor a atribuir, os critérios enunciados nos art.ºs 496.º, n.º 3 e 494.º, do Código Civil, onde interessará salientar a culpa do lesante, a situação económica do lesado e a condição económica em que ficaram os demandantes cíveis. Neste sentido Antunes Varela refere que “A compensação pecuniária prevista na lei visa cobrir um dano, que é a perda da vida, causada pela lesão, embora na determinação do seu montante, o julgador não possa, como resulta do disposto no nº3 do artigo 496.º, e no artigo 494.º do Cód. Civil, abstrair do grau de culpa do agente, do reflexo económico-social que o facto tem na vida dos familiares do lesado (...)” [ob. cit. p. 279].
Um olhar sobre a mais recente jurisprudência leva-nos a concluir que se tem avançado no sentido de uma crescente valorização do direito à vida.
A título de exemplo, ao nível do nosso mais alto tribunal:
- Acórdão do STJ, de 15.09.2022, processo n.º 2374/20.8T8PNF.P1.S1, confirmou-se o valor indemnizatório de € 85 000,00 numa situação em que a vítima tinha 33 anos, era casado e pai de dois filhos menores;
- Acórdão do STJ, de 13.05.2021, proferido no processo n.º 10157/16.3T8LRS.L1.S1 – vítima com 45 anos de idade e um bom relacionamento com o seu único filho, o STJ manteve os € 80 000,00 atribuídos pela Relação;
- Acórdão do STJ, de 22.02.2018, prolatado no processo n.º 33/12.4GTSTB.E1.S1, julgou-se adequada uma indemnização pelo dano morte no valor de € 125 000,00 numa situação em que a vítima tinha 25 anos de idade, era solteiro e saudável, com formação académica superior, sendo piloto da Força Aérea, com a patente de alferes, e com profundas aspirações de progressão na carreira;
- Acórdão do STJ, de 10.05.2012 (processo n.º 451/06.7GTBRG.G1.S2), – manteve-se os € 75 000,00 para a vítima que tinha 41 anos de idade, havia constituído família, tendo projetos em comum com a sua família e com uma repartição de culpas entre 60% para o arguido e 40% para a vítima;
- Acórdão do STJ, de 12.09.2013 (processo n.º 1/12.6TBTMR.C1.S1) – vítima com 19 anos de idade, estudante universitário, jovem, saudável e alegre, o STJ ficou a indemnização em € 70 000,00;
- Acórdão do STJ, de 19.02.2014 (processo n.º 1229/10.9TAPDL.L1.S1) – atribuiu-se € 100 000,00 numa situação de uma vítima de 49 anos, um profissional de nível superior e de reconhecido mérito como também um pai e um marido extremoso, gozando de excelente saúde;
- Acórdão do STJ, de 11.02.2015 (processo n.º 6301/13.0TBMTS.S1) – estava em causa um jovem adulto de 31 anos, tendo-se a indemnização cifrado em € 70 000,00;
- Acórdão do STJ, de 30.04.2015 (processo n.º 1380/13.3T2AVR.C1.S1) – sendo a vítima um jovem de 19 anos de idade, o STJ manteve os € 80 000,00 fixados pela Relação;
- Acórdão do STJ, de 18.06.2015 (processo n.º 2567/09.9TBABF.E1.S1) – vítima com 20 anos, solteiro, vivia com os pais e uma irmã, tinha começado a trabalhar recentemente como motorista, se encontrava numa fase pujante da vida e que foi embatido na sua faixa de rodagem por um veículo que se pôs de imediato em fuga, é adequado o montante indemnizatório de € 80 000, pela perda do direito à vida, tal como fixado pela Relação.
Face aos anos decorridos relativamente aos doutos arestos, é de ponderar a necessidade da sua atualização.
Ao nível dos Tribunais da Relação, o TRE, em acórdão de 27.06.2024, no processo n.º 394/22.7T8PTG.E1, fixou em € 100 000,00 o valor da indemnização pela perda do direito à vida, num caso em que a vítima tinha 33 anos, vivia em união de facto com a autora e um filho de três meses de idade, era trabalhador, alegre e dedicado à sua família e exercia a profissão de operador de máquinas pesadas; o TRG, em acórdão proferido em 30.09.2021, no processo n.º 5872/19.2T8BRG.G1, fixou a indemnização pelo dano morte em € 80 000,00, numa situação em que a vítima tinha 10 anos de idade; o TRL, em acórdão de 30.06.2020, no processo n.º 65/17.6TALQ.L1.S1, fixou uma indemnização de € 150 000,00 numa situação em que vítima mortal tinha 33 anos, era saudável, e constituía uma família feliz juntamente com a mulher e os filhos do casal.
Num recente acórdão deste TRE, de 11.02.2025, proferido no processo n.º 96/19.1GTEVR.E1, foi fixada a indemnização pelo dano morte de duas vítimas jovens, de 19 e 23 anos de idade, em € 100 000,00 para cada uma, sendo, todas elas, pessoas saudáveis e com largos anos de expectativa de vida, e considerando a prática jurisprudencial mais recente a propósito do valor indemnizatório atribuído para ressarcimento do “dano morte”.
No caso concreto provou-se que a vítima C era uma cantora famosa, tinha 46 anos, era uma mulher viva, alegre, comunicativa, respeitada e amada por todos, prevendo-se ter pela frente uma carreira de sucesso no nosso país.
Pelo exposto, considerando a sua esperança de vida ainda por um período expectável de 35,2 anos de vida, e os restantes factos que se apuraram, bem como a jurisprudência acima citada, entendemos que o montante de € 100 000,00 fixada pelo tribunal de 1.ª instância é justa e equilibrada. Pelo que a demandada e recorrente será responsabilizada pelo montante de € 90 000,00, correspondente à medida da culpa do arguido, que é de 90%.
Quanto à indemnização a atribuir aos pais da vítima, o tribunal recorrido considerou equilibrado atribuir o valor de € 50 000,00 aos mesmos.
Também aqui nos situamos no âmbito da equidade, como critério decisório.
Resultou provado que a morte de C provocou um grande abalo e um imensurável desgosto aos pais; era filha única, tendo uma fortíssima ligação afetiva à mãe, que era o seu principal apoio, assim como tinha também uma relação muito próxima com o pai; era uma cantora famosa, tinha 46 anos, era uma mulher viva, alegre, comunicativa, respeitada e amada por todos, a mãe da C era muito próxima da filha, ficou completamente afetada psicologicamente, perdeu a razão de viver, criando um isolamento familiar grande e uma patologia depressiva. Sofre de frequentes ataques de pânico, consequência de um estado de ansiedade permanente em que vive após a morte da sua filha e da forma como tudo sucedeu.
Mais se provou que o pai da falecida, também sofre imenso com a perda da filha, não consegue mais ter alegria de viver, sentindo-se amargurado na sua existência; a pouca idade da falecida e ainda o facto de ter uma carreira de grande sucesso no nosso país, ainda agrava mais o sofrimento destes pais, que viram destruídos os sonhos da sua filha e os seus em conjunto com ela; os pais mantinham um contacto diário e permanente com a filha, por quem tinha um especial afeto, mãe e filha eram consideradas por todos como quase irmãs, uma vez que andavam sempre juntas e eram o apoio uma da outra, ficando profundamente abalados com a morte da filha, ainda jovem, que lhe causou um grande desgosto e abalo psicológico.
Olhando o que a jurisprudência tem decidido em casos semelhantes:
- No acórdão do STJ, de 23.02.2016, no processo n.º 74/12.1SRLSB.L1.S1, o STJ atribuiu o montante de € 24 000,00, a título de indemnização por danos morais a cada um dos pais.
- No acórdão do TRP, de 14.03.2016 , no processo n.º 424/13.3T2AVR.P1, atribuiu-se aos pais pela morte do filho com 25 anos de idade, pessoa saudável, jovem alegre, jovial, dinâmico e trabalhador, responsável e com imensos projetos para o seu futuro o montante indemnizatório de € 60 000,00 pelos danos morais por eles sofridos em consequência dessa perda.
Por fim, no acórdão deste TRE, de 18.11.2019, proferido no processo n.º 216/13.0GTSTB.E1, foram fixadas indemnizações por danos não patrimoniais dos progenitores de vítima mortal, no montante de € 30 000,00 para cada um deles.
Tudo visto, e no entendimento de que nestes recursos, em que está apenas em causa reconstruir a substância do casuístico juízo de equidade que esteve na base da fixação do valor indemnizatório arbitrado, em articulação com especificidade irrepetível do caso concreto, o que importa essencialmente verificar, é se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência atualista, vêm sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis.
No caso, temos de concluir que a indemnização arbitrada segue essas orientações, pelo que se mantém o decidido em primeira instância, com a redução de 10%, acima aludida, procedendo, parcialmente, o recurso interposto pela demandante Caravela – Companhia de Seguros, SA.
**
III – DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª Subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em:
3.1. Rejeitar o recurso principal interposto pela assistente, M, relativamente à questão da pena aplicada ao arguido;
3.2. No mais, negar provimento aos recursos principal e subordinado interpostos pela assistente, M;
3.3. Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela demandada CARAVELA – COMPANHIA de SEGUROS, SA e, e, em consequência:
3.3.1. Alterar a matéria de facto provada nos termos supra expostos;
3.3.2. Fixar em 10% a responsabilidade da vítima C no agravamento dos danos que para ela resultaram do sinistro;
3.3.3. - Reduzir para € 90 000,00 (noventa mil euros) o valor a pagar aos demandantes civis, pais da vítima a título de indemnização devida pelo dano morte/perda de vida;
3.3.4. Reduzir para € 45 000,00 (quarenta e cinco mil euros) o valor da indemnização devida aos demandantes cíveis, M e J a título de danos não patrimoniais.
A estes valores acrescem juros, à taxa legal, a partir da data desta decisão até integral e efetivo pagamento.
3.4. Em tudo o mais confirmar a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pela assistente (art.º 515.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal), relativamente aos recursos, principal e subordinado, por si interpostos.
Notifique.

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Évora, 25 de junho de 2025
(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos seus signatários – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal)

Maria José Cortes
Filipa Costa Lourenço
Renato Barroso