I. Por poder suscitar dúvidas formais sobre a existência de “decisão condenatória”, assume gravidade e relevância bastante para ser tratado como nulidade, a ausência de condenação expressa em sanções acessórias na parte do dispositivo da sentença, apesar de prévia e devidamente fundamentada (art. 379º nº 1 al. a), por referência ao art. 374º nº 3 al. b), ambos do Código de Processo Penal).
II. Essa nulidade é de conhecimento oficioso e pode ser suprida pelo tribunal de recurso.
III. Na determinação da pena única por crimes sexuais, ressaltando, entre outros, abusos sexuais à mesma menor com dois anos e depois com seis anos de idade, filmados pelo arguido enquanto perpetrava os crimes e conservados no seu telemóvel, aproveitando uma relação de familiaridade e confiança, deve ser valorada de forma vincadamente negativa a tendência criminosa que radica na personalidade, bem como uma imagem global dos factos, de intensa gravidade e ilicitude.
Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido AA, solteiro, desempregado, filho de BB e de CC, nascido a ........1983, natural de ..., com residência habitual em ..., França, titular do CC n.º ......28, atualmente preso no Estabelecimento Prisional de ..., foi julgado e a final condenado pela prática, em autoria material e em concurso real, de:
a) Três crimes de abuso sexual de crianças agravados, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177º n.º 1 al. b) do Código Penal, na pessoa da vítima DD, nas penas de:
• 2 anos e 4 meses de prisão (ponto 6 dos factos provados);
• 3 anos de prisão (duas situações aludidas no ponto 20 dos factos provados);
b) Quatro crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, previsto e punido pelos artigos 165º n.º 1 e 2 e 177º n.º 1 al. b) e 8, ambos do Código Penal, na pessoa da vítima DD, nas penas de:
• 6 anos de prisão (ponto 14 b));
• 7 anos de prisão (ponto 15);
• 6 anos e 3 meses de prisão (pontos 17 e 19); a cada um dos dois crimes;
c) Um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelo artigo 171º, n.º 3, al. a) e 177º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, na pessoa da vítima DD, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
d) Doze crimes de pornografia de menores agravados, previsto e punido pelos artigos 176º, n.º 1, al. b) e 177º, n.º 1, al. b) e n.º 8, ambos do Código Penal, na pessoa da vítima DD, nas penas de:
• 3 anos de prisão (pontos 5, 6, 7, 13a), 13b), 14 a) e 16);
• 3 anos e 6 meses de prisão (pontos 14 b), 15, 17, 18 e 19);
e) Dois crimes de pornografia de menores agravados, previsto e punido pelo artigo 176º n.º 1 al. b) e 177º n.º 8, ambos do Código Penal, na pessoa de EE e FF, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, cada um deles (pontos 21 e 22);
f) Um crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelo artigo 176º, n.º 1, al. c) e 177º, n.º 8, ambos do Código Penal, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão (ponto 23 B ii));
g) Quatro crimes de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176º, n.º 5, do Código Penal por referência ao n.º 1 al. b) do mesmo artigo, na pena de 6 meses de prisão, cada um deles (ficheiros de pornografia encontrados no telemóvel – pontos 23 A e B i)).
II) Em cúmulo jurídico, na pena única de 12 (doze) anos de prisão.
(…)
*
Inconformado, recorreu o Ministério Público para o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso limitado à matéria penal, pugnando pela alteração da pena única para 17/18 anos de prisão, apresentando a seguinte síntese conclusiva:
1. O presente recurso vem interposto somente na parte atinente à medida da pena única de prisão aplicada ao arguido.
2. O Tribunal Colectivo, condenou o arguido na pena única de 12 anos de prisão, pena essa que peca pela sua excessiva brandura e que não permite, do nosso ponto de vista, ter por respeitados os critérios de determinação da medida da pena aplicada.
3. O acórdão recorrido optou pela aplicação de tal pena concreta, numa moldura penal abstracta situada entre os 7 anos de prisão e os 25 anos de prisão – máximo legal, posto que a soma das penas concretas aplicadas ao arguido é de 89 anos e 10 meses;
4. Ponderando o “número e o tipo de crimes praticados, a diversidade, a relação entre os comportamentos, e a dispersão temporal da atividade (o arguido praticou atos sexuais sobre a ofendida DD em 2019, quando esta tinha 2 anos de idade, e em 2022, quando esta tinha 6 anos de idade, atos que fotografou e/ou filmou, tendo gravado as fotografias e os filmes nos seus telemóveis, que até organizou em ficheiros GIF; mais de um ano depois, em 2023, o arguido ainda tinha todos esses ficheiros, para além de outros de natureza idêntica, o que se reconduz a uma deliberada fixação das imagens e dos atos, mesmo com o risco de comprovação da atividade do arguido), em conjugação com o aproveitamento de uma relação de confiança”;
5. E “A circunstância de o conjunto dos factos, em conjugação com as apuradas condições pessoais e de vida do arguido, se reconduzir a uma tendência criminosa – o (arguido) mostra-se “mentalmente acomodado, pouco sensível e acomodado”, apresentando fatores de vulnerabilidade (internos, externos, estruturais e circunstanciais) que denunciam a “ausência de ressonância afetiva nas relações” e que provocam a “tolerância” e “legitimação” relativamente a comportamentos sexuais sobre crianças; além disso, constituem-se fatores de risco a sintomatologia depressiva, a propensão para a “introversão” e o “isolamento”, o histórico de instabilidade profissional e a quebra da relação com a família”
6. Elementos e factos que merecem a nossa concordância, mas não já quanto à conclusão alcançada e ao peso que se deu a cada um destes
7. Na determinação da pena do concurso de crimes ponderam-se, e além dos critérios gerais do artigo 71º, nº 1 e 2 do Código Penal, mas, igualmente, o critério previsto no artigo 72º, nº 1 do Código Penal, ou seja, o Tribunal deve considerar, nessa operação, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, determinando a pena concreta na moldura penal abstracta definida pelo artgo 77º, nº 2 do Código Penal
8. A personalidade do arguido evidenciada nos factos dados como provados denotar uma personalidade que, no seu conjunto, impunha a aplicação de uma pena única concreta superior à alcançada pelo Tribunal recorrido, como se alcança das partes que nos permitimos sublinhar na factualidade dada como provada e que aqui se dá por reproduzida.
9. A pena única fixada de 12 anos de prisão não reflecte, de forma correcta, o conjunto dos factos, a sua gravidade, consequências, cadência/repetição, número de vitimas (3 identificadas e outra não identificada), modo concreto de actuação (aproveitamento de relações de confiança/proximidade/familiares para “aceder” às menores), filmagem e colheita de fotos, criação de ficheiros gif com as imagens colhidas…;
10. Não sendo ajustada à personalidade do agente evidenciada nestes factos e ao resultado da perícia sobre a personalidade, cujas conclusões foram levadas aos factos provados;
11. Encontrando-se desajustada quer aos critérios gerais determinantes da medida da pena, quer aos atinentes à punição do concurso de crimes.
12. Pois que não se considerou a gravidade da ilicitude global, os pontos de contacto entre as várias actuações e o tipo de ligações, a continuidade da actuação (no ano de 2019 e em 2022 e 2023), olvidando-se que a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção à unidade relacional de ilícito e de culpa
13. Não podendo a pena única estar dissociada da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos
14. Impondo uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.
15. Apurando se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa
16. No caso concreto, concluindo o Tribunal que existe tal tendência e reconhecendo a gravidade dos factos, não se compreende que tenha fixado a pena única concreta apenas 5 anos acima do limite mínimo da moldura penal abstracta do concurso.
17. Impondo-se que se fixasse uma pena situada nos 17/18 anos de prisão por só assim ser passível de reflectir o todo único da actuação do arguido e avaliar a ilicitude e culpa global destes factos.
18. A pena fixada não permite considerar de forma adequada a personalidade do arguido evidenciada nestes factos, não sendo ajustada àquela globalidade de factos e à sua imagem global, nem proporcional à ilicitude global dos factos ou à culpa do arguido manifestada neste “pedaço de vida” avaliado pelo Tribunal.
19. Os elementos indicados na motivação (que se dão por reproduzidos) e decorrentes dos factos dados como provados quanto à actuação do arguido impunham que o Tribunal tivesse decidido de outra forma, tanto mais considerando a idade das vitimas, em particular a DD, a miríade de actuações que a visaram (desde toques, desnudamentos, introdução do pénis na boca, vagina e no ânus, introdução dos dedos no ânus da mesma, lambendo a sua vagina, fazendo a vitima tocar-lhe no pénis, masturbando-se à sua frente, e tudo filmando (em vídeos com vários minutos) e fotografando…),
20. A que acresce o facto da maioria de tais actos terem ocorrido com a menor adormecida e incapaz de opor qualquer resistência e de os actos praticados nas pessoas das menores EE/FF terem ocorrido sem que estas se apercebessem;
21. Mantendo o arguido na sua posse anos, meses e várias semanas e dias os vídeos e fotos que corporizava
22. Tudo a apontar para uma imagem de intensa gravidade e ilicitude e ainda da personalidade do arguido vincada por uma tendência criminosa acentuada, grave e preocupante
23. O arguido confessa o que não pode negar e que resultava à saciedade da prova pré constituída, da extensa prova documental, pericial e ainda das declarações para memória futura da menor DD.
24. E adopta uma postura de vitimização e desculpabilização preocupantes, só (lentamente) vindo a assumir os factos depois de confrontado com a prova em audiência…
25. A confissão, beneficiando o arguido desde logo por assim se ter evitado que os pais das vítimas fossem ouvidos sobre os factos que as vitimaram (mormente os da DD), não tem elevado valor probatório, nem contribui de forma relevante para a descoberta da verdade.
26. Pelo que não se lhe poderia dar o peso que se lhe deu no acórdão recorrido, já que a confissão do crime não assume particular relevância para medida da pena nos casos em que não contribui de forma relevante para a descoberta da verdade, face à restante prova produzida contra o agente
27. A pena única aplicada está desajustada e é demasiado branda para um quadro global de factos desta gravidade, com este número de vítimas e com uma actuação como a do arguido descrita nos factos provados.
28. Tanto mais face às conclusões da perícia sobre a personalidade, que dão conta de que o arguido se revela acomodado, pouco sensível e desorganizado, fatores encontrados no seu discurso pouco elaborado e inconsistente.
29. E que, estão presentes alguns indicadores de vulnerabilidade em termos de comportamento sexual, nomeadamente fatores externos (procura de estimulação sexual através de conteúdos pornográficos, incluindo crianças) e fatores internos (ausência de implicação/ressonância afetiva nas relações), bem como fatores circunstanciais (solidão, isolamento e falta de emprego) e estruturais (traços de personalidade, fraca autoestima e distorções cognitivas)
30. Contribuindo para um grau de tolerância/legitimação relativamente a eventuais condutas disfuncionais, sobretudo de natureza sexual (pontos 60 e ss da factualidade dada como provada)
31. Só uma pena situada nos 17/18 anos de prisão permitiria salvaguardar os pontos acima mencionados, assim se fazendo J U S T I Ç A.
Contudo, Vossas Excelências, como sempre e na aplicação da boa e sã justiça, melhor decidirão!”
Respondeu o arguido, concluindo pela improcedência do recurso:
1-O Recurso interposto pelo Ministério Público/recorrente apenas visa uma reapreciação de direito, nomeadamente no que diz respeito à quantificação da pena aplicada ao arguido/recorrido.
2- Contudo, ao mesmo não subsiste qualquer razão, encontrando-se o douto acórdão proferido pela primeira instância perfeitamente balizado em termos de proporcionalidade e equidade.
3-Ao contrário do que reclama o Ministério Público/recorrente, o douto acórdão elenca de uma forma exaustiva e fundamentada os factos dados como provados e os dados como não provados.
4-E assim, atendendo à correta autonomização e consequente punição dos factos dados como provados, a pena aplicada em cúmulo jurídico, mostra-se equitativa e proporcional à gravidade dos factos praticados pelo arguido/recorrido.
5- O arguido/recorrido interiorizou conveniente e adequadamente o desvalor do respectivo comportamento, manifestou-se arrependido e procurou, não se calando e confessando, não só contribuir para a descoberta da verdade material, como evitou sujeitar algumas testemunhas (inclusive pais e irmã da vitima) a reviver em audiência de Julgamento os factos que constavam da douta acusação pública.
6- O douto acórdão em recurso e quanto ao arguido/recorrido refere:-“Mais se provou (das condições de vida e personalidade do arguido).
..Após a separação dos progenitores, ocorrida quando o arguido contava cerca de 7 anos de idade, cada um deles acabaria por assumir um projeto de vida alternativo, que em ambos os casos passou por projetos de emigração para ..., tendo o progenitor sido o primeiro a radicar-se na região de ..., enquanto que a mãe se fixou, alguns anos mais tarde, na zona de ....
…”Nesta medida, e com alguma naturalidade, depois de decidir interromper o seu percurso escolar, após ter concluído o 9 º ano de escolaridade, em ..., onde até então ficara entregue à guarda dos avós paternos, o arguido acabaria por se juntar, com cerca de 16 anos, ao pai e à nova companheira deste, num processo de adaptação fortemente marcado, pelo confronto com toda uma nova realidade social, cultural e linguística e por um enquadramento familiar, onde o próprio destaca o fraco envolvimento afetivo do progenitor, fruto dos muitos anos de separação que haviam antecedido esta reaproximação”.
…”Ainda que tenha conseguido, no decorrer desta fase, garantir através do progenitor e da empresa onde o mesmo exercia também funções, na área do ..., uma ocupação regular que lhe permitiu uma estruturação adequada do seu quotidiano e lhe foi permitindo atenuar alguma da pressão que começou a acumular, fora desses períodos, foi-se gradualmente isolando, tanto, no plano social, como familiar, refugiando-se nos jogos on-line, aos quais dedicava muitas horas do seu tempo livre”.
“Em consequência disso acabaria por desenvolver um quadro de sintomatologia depressiva, que, desvalorizado no plano familiar e sem qualquer tipo de intervenção especializada, se foi agravando, comprometendo o seu desempenho e assiduidade laboral, e reforçando, por sua vez, os desencontros com o progenitor”.
… “Depois de o progenitor, devido a problemas de saúde, ter regressado definitivamente a Portugal, em 2021, o arguido permaneceu em ...; contudo, face a um novo agravamento da doença, procurou de novo apoio junto da progenitora, tendo, ocasião, sido encaminhado para o Pole Psychiatre ..., onde entre janeiro e setembro de 2022 esteve em acompanhamento.”
…”De acordo com o relatório social, “Apesar de reconhecer algumas melhorias no decorrer desta fase, considera que a intervenção dos profissionais acabaria por ficar muito aquém daquilo que teria sido possível, em virtude de nunca ter tido coragem de expor aquele que considera ser o episódio traumático vivido na sua infância onde considera poderem estar ancorados todos os seus traumas e crises depressivas, e que está relacionado com o facto de ter sido abusado sexualmente, quando tinha cerca de 6/7 anos de idade”, “Afirma nunca ter conseguido, até ao presente, partilhar tal acontecimento traumático do seu passado, que a partir dos seus 12/13 anos o passou a assolar e que pode ter condicionado de forma marcada a forma como foi estabelecendo as suas relações pessoais. Nessa medida e apesar nunca ter assumido qualquer relação afetiva mais duradoura, sempre se considerou uma pessoa com uma vivência sexual «normal», alegando sempre ter manifestado interesse por relações com elementos femininos, dentro da sua faixa etária, pese embora sempre se terem resumido a simples «namoros de verão».
…” A aplicação da medida de coação de prisão preventiva teve um profundo impacto na vida do arguido, uma vez que implicou o abandono do projeto de regressar a ..., país por onde o mesmo continua a fazer passar o seu projeto de vida futuro, bem como implicou cissões na relação entre diversos elementos desta família, os quais depois da divulgação dos factos que constam da acusação, deixaram de contactar entre si, quebrando a relação de grande proximidade que existia antes e que os levava a visitarem-se e a partilharem vivências.”
…” O conhecimento dos factos imputados ao arguido e a aplicação da medida de coação de prisão preventiva foram vistos com grande surpresa por parte da comunidade da pequena localidade de ..., onde o arguido cresceu e onde, ao longo de todos estes anos, foi construindo uma imagem bastante positiva, sendo tido localmente como uma pessoa educada e respeitadora, a quem não eram atribuídos, nem conhecidos, quaisquer comportamentos desadequados no quadro das suas relações sociais. “
…”Ora, pese embora o arguido nunca ter esboçado qualquer intenção de, em termos de projeto de vida, regressar um dia de forma definitiva a ..., esta localidade sempre fora até então o espaço de reencontros com todas as suas referências de infância e adolescência, à qual regressava periódica e regularmente num processo investido de grande interesse e vontade da sua parte, e que as consequências do presente processo irão no futuro impossibilitar, pela censura social a que inevitavelmente estará exposto e à qual considera que, indiretamente, acabou por expor todos os demais elementos do seu núcleo familiar. “
…” - De acordo como o relatório social, o arguido “não sendo capaz de antecipar toda a dimensão do impacto que os factos possam um dia ter na perspetiva da vítima, reconhece todo o sofrimento causado aos pais, aceitando como legitima a cessação da relação de amizade que existia entre ambos. Atribui, em abstrato, a devida censurabilidade aos comportamentos de que surge acusado, sendo capaz de identificar os valores jurídicos que pôs em causa. Manifesta, em termos pessoais, estar a vivenciar com sofrimento a sua atual condição, não só por todas as restrições e impedimentos a que está sujeito, mas sobretudo por razões de segurança terem vindo impor a construção de uma narrativa demarcada da acusação, o que acaba por inevitavelmente o isolar de novo no grupo e comprometer a autenticidade das relações que em contexto prisional acaba por estabelecer”.
…” No plano institucional, ao longo do período de prisão preventiva, o arguido tem mantido um comportamento e uma postura adequados, conformes às normas e regras do Estabelecimento Prisional, não sendo de referir qualquer tipo de incidente na sua relação, quer com os outros reclusos, quer com os demais funcionários da instituição, pelo que, até ao momento, não foi alvo de qualquer procedimento disciplinar. “
…”- O arguido não tem antecedentes criminais.
“O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento em conjugação com os documentos juntos aos autos, de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência comum, como determina o artigo 127º, do Código de Processo Penal. Valorou, desde logo, as declarações prestadas pelo arguido AA em audiência de discussão e julgamento, onde confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe vêm imputados. Para além de se afigurar sincera, a confissão mostra-se corroborada pela demais prova produzida.”
..”Ao longo das suas declarações o arguido, por um lado, vitimizou-se (“tinha acabado de sair de uma depressão”, estava sem medicação, o pai faleceu em ... de 2023, vive em “sofrimento desde pequeno”, nunca conseguiu ser feliz, “foi abusado quando era pequeno mas não disse nada a ninguém”, foi “obrigado a fazer coisas com animais”, “perdeu a dignidade..por outro lado, penitenciou-se (“considero-me um monstro pelo que fiz”, referindo que tem noção da gravidade do que fez, especialmente porque foi vítima de comportamento idêntico, pelo que “sabe o que ela vai sofrer”), referindo que se libertou quando entregou o telefone, e que se sente livre estando preso – tudo o que é consonante com a autoria de factos hediondos, como aqueles que aqui se discutem. “
“Já em sede de primeiro interrogatório judicial realizado em ........2023, o arguido prestou declarações (cfr. fls. 168 a 175) – que foram reproduzidas em audiência de discussão e julgamento nos termos do artigo 357º, n.º1, al.b), do Código de Processo Penal -, admitindo, no essencial, os comportamentos então imputados (sendo de notar que aí não foi confrontado com os episódios ocorridos em ...), e assumindo a mesma postura de vitimização e penitência.”
Refere ainda do douto Acórdão em recurso …”Afiguram-se muito elevadas as exigências de prevenção geral, considerando o sentimento de repulsa que comportamentos como o ora em apreço causa na sociedade, atenta a sua natureza e especialmente tendo em conta a idade das vítimas, objeto de especial proteção por estar em desenvolvimento a sua personalidade. Trata-se, efetivamente, de comportamentos que chocam e repugnam o cidadão comum, sendo de realçar o impacto que tiveram na comunidade local, um meio pequeno, onde o arguido cresceu, sem que deixasse antever este percurso, que surpreendeu a comunidade. As exigências de prevenção especial são também ponderosas considerando, desde logo, a personalidade evidenciada pelos múltiplos factos praticados, e a sua natureza, a maior parte deles num contexto familiar e de coabitação que deveria ser contra motivador. “
7- Conforme resulta do douto acórdão “Em favor do arguido milita, para além da ausência de antecedentes criminais, a confissão integral e sem reservas, reconhecendo-se a dificuldade de assumir factos desta natureza, pela repugnância que naturalmente causam.”
8-Tais declarações/confissão, foram importantes e relevantes para que a materialidade fáctica que foi dada como assente, como foi, resultando ainda do texto do acórdão recorrido a forma e a postura de assunção de culpa do arguido.
9- Pois, e salvo o devido respeito pelas alegações do Ministério Público/recorrente, não foi só a sujeição doa arguido a prisão preventiva que o levou a tal confissão integral sem reservas, pois que o mesmo, e antes de tal medida ter sido decretada, colaborou com a justiça, com a entrega do telemóvel, e aquando do seu primeiro interrogatório judicial, com a valoração penal que o mesmo tem, confessou os factos até então em causa.
10- O arguido/recorrente, procurou não justificar os actos que praticou, mas demonstrar a sua situação pessoal, no âmbito de depressões, com internamento Hospitalar- Saúde Mental- área Psiquiátrica, que correram quando e encontrava em ..., conforme documentos comprovativos juntos auso autos, alegando ainda situações de abuso sexual do próprio quando criança.
11- Circunstâncias que na opinião do arguido/recorrido o poderiam ter influenciado o comportamento que teve, e do qual se encontrava arrependido.
12-Face a todo o circunstancialismo dado como provado, atento que o arguido/recorrido era primário, gozava de bom comportamento e era estimado e considerado no meio social e familiar onde estava inserido – relatórios juntos aos autos -, e não tinha antecedentes criminais, fez confissão dos factos dados como provados, manifestou-se arrependido, realizou um pedido de desculpas verbal aos pais da vitima que se encontram presentes aquando da audiência de julgamento, não se impunha nem impõe pena mais gravosa do que aquela que foi aplicada pelo douto acórdão em recurso.
13-Como dispõe o art.127º do C.P.P., a prova é apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
14-Significa este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
15-Tal exame reconduz-se, ao examinar as provas produzidas, de forma global e, num segundo momento, a uma tomada de consciência sobre o seu valor, equacionando-o com o thema decidendum, finalizando com a emissão de um juízo de valor, conducente à opção, ante o acervo probatório que se apresenta, por certas provas em detrimento de outras.
16-No caso dos autos, o arguido prestou declarações quanto aos factos, tendo confessado de forma integral e sem reservas, mostrando arrependimento, e contribuindo de uma forma directa para a prova dos factos.
17-O Tribunal valorou adequadamente as circunstâncias atinentes às suas condições pessoais, mormente a confissão dos factos, o arrependimento e a ausência de antecedentes criminais.
18- É sabido que, de acordo com o estipulado no artigo 71º do Código Penal, a medida concreta da pena a aplicar deve ser fixada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, bem como todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime, deponham a favor ou contra si.
19-Na definição do conteúdo de cada um destes três parâmetros legais – culpa do agente, exigências de prevenção e ponderação das circunstâncias gerias atenuantes ou agravantes - é curial ter em atenção, que, no tocante à culpa é imperioso observar o disposto no artigo 40º nº2 do Código Penal, que impõe ser necessário que a sua medida não exceda a da pena -Veja-se o Acórdão de 16.06.2016 (31) “ A pena única visa corresponder ao sancionamento de um determinado trecho de vida do arguido condenado por pluralidade de infrações. Há que valorar o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade dos ora recorrentes, em todas as suas facetas. Ponderando o modo de execução, a intensidade do dolo, directo, as necessidades de prevenção geral e especial, estando em causa crimes de roubo 30 “As Consequências Jurídicas do Crime”2005 – Coimbra Editora pag.291. 31 Proc. nº2137/15.2T8EVR.S1 - Rel. Cons. R.Borges 56 Supremo Tribunal de Justiça 3.ª Secção Criminal e de falsificação de documentos, o passado criminal doa arguido, bem co o tempo decorrido desde o último facto ocorrido (…).”
20-Como atrás verificado, o Acórdão recorrido procede, a uma apreciação e valoração conjunta dos factos e do que deles resulta.
21-No douto Acórdão em recurso a apreciação global da conduta do arguido/recorrido foi feita com observância do princípio da dupla valoração, o qual, “impede que se considerem novamente como factores agravantes ou atenuantes, as circunstâncias que anteriormente alcançaram o mesmo desiderato na fixação das penas parcelares”, mas tendo em consideração tudo o que deles ressalta sobre a personalidade do Arguido/recorrido, a sua individualidade, modo de vida e inserção social e familiar, a sua postura em relação aos factos, trazendo uma visão conjunta e atual destas circunstâncias.
22- Ao fixar a concreta medida da pena aplicada ao arguido/recorrido, o douto acórdão em recurso procedeu de forma ponderada, tendo em atenção os limites mínimos e máximos da moldura penal aplicável convocou os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso para determinar aquela pena.
23-Deste modo, considera-se como correta, justa e adequada a pena fixada pelo douto Acórdão recorrido e, consequentemente, deve ser negado provimento ao Recurso e confirmada o douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo.
Termos em que, mantendo a decisão proferida pelo Tribunal a quo, farão Vossas Excelências a inteira Justiça a que nos vão acostumando.
*
Por despacho de 14.5.2025 do Tribunal da Relação de Coimbra, precedido de parecer do Ministério Público nesse Tribunal nesse sentido, foi determinada a remessa dos autos a este Supremo Tribunal, por ser o competente para os termos do recurso.
Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que conclui:
(…)
5 – Suscita-se a questão prévia da nulidade da decisão recorrida em razão da omissão, no dispositivo, da condenação do arguido nas já referidas sanções acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, qualquer delas pelo período de 15 (quinze) anos, atentas as disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), e 379.º n.º 1, alínea a), do C.P.P., o que, nos termos do disposto no n.º 2 deste último preceito, deverá ser conhecida e eventualmente suprida pelo tribunal de recurso1.
Sem embargo,
6 – Considerado o objecto do recurso, interposto pelo Ministério Público, apenas está em causa a medida da pena única aplicada ao arguido AA, que o recorrente entende, e em síntese, (…) que peca pela sua excessiva brandura e que não permite (…) ter por respeitados os critérios de determinação da medida da pena aplicada.
Acompanhando a posição do recorrente, por se concordar com a argumentação aduzida na motivação do recurso, condensada nas conclusões acima transcritas, cuja linearidade, clareza e acerto suscitam completa adesão, e não sendo demais destacar o que ali se considera no sentido de a pena única aplicada, de 12 anos de prisão, não reflectir, de forma correcta, o conjunto dos factos, a sua gravidade, consequências, cadência/repetição, número de vítimas, modo concreto de actuação (aproveitamento de relações de confiança/proximidade/familiares para “aceder” às menores), filmagem e colheita de fotos, criação de ficheiros gif com as imagens colhidas, não sendo ajustada à personalidade do agente evidenciada nestes factos e ao resultado da perícia sobre a personalidade, com tradução na matéria de facto provada, antes se recortando demasiado branda para um quadro global de factos desta gravidade, com este número de vítimas e com uma actuação como a do arguido, emite-se parecer no sentido de dever ser julgado procedente o recurso interposto pelo Ministério Público.
Não foi apresentada resposta ao parecer.
*
Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal).
II – FUNDAMENTAÇÃO
Recorre-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos dos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal (art. 432º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal).
É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
*
O Recorrente não argui expressamente a existência de nulidades ou vícios. Porém, é de conhecimento oficioso a nulidade a que se refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, sendo certo que, analisado o acórdão recorrido, não se encontram outras nulidades ou vícios de conhecimento oficioso (art.s 379º e 410º do Código de Processo Penal).
As questões a decidir são:
1. Nulidade do acórdão; e,
2. Medida da pena única.
***
Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada:
2.1. Matéria de Facto Provada:
Discutida a causa, o Tribunal julga provados os seguintes factos:
1 – A vítima DD é filha de HH e de II e nasceu a ........2016, em ....
2 – A vítima juntamente com os progenitores residiu em ..., França, desde a sua nascença até ... de 2021, data em que veio residir para o concelho de ....
3 – Desde data não concretamente apurada, mas que se situa no ... de 2017, o arguido AA (primo do progenitor de DD) residiu com a vítima e seus progenitores em ..., França, até meados do ano de 2020.
4 – O arguido aproveitou a livre disponibilidade de contactos que possuía com a vítima, sem supervisão de terceiros, mercê da coabitação e relação familiar existente, para, no aludido período temporal, praticar atos sexuais sobre a vítima DD, na residência descrita em 2 e fotografar os mesmos, através do seu telemóvel de marca Samsung. Assim:
5 - No dia ........2019, entre as 03h31 e 04h06, em ..., o arguido afastou, com os dedos, as cuecas da vítima, então com 2 anos de idade e expôs os órgãos genitais (vagina) e as nádegas da mesma e ato contínuo, tirou seis fotografias aos mesmos.
6 – No dia ........2019, entre as 22h04 e 22h29, em ..., o arguido colocou a mão da vítima no seu pénis ereto, agarrando-o, quando esta se encontrava no interior do berço e ato contínuo tirou três fotografias de tal ato.
7 – No dia ........2019, pelas 23h06, em ..., o arguido tirou uma fotografia às nádegas da vítima, que se encontrava despida.
8 – No período das férias de Verão, a vítima DD frequentou regularmente, a residência de CC, sua familiar, (irmã de JJ, avó paterna de DD), sita na ....
9 – Em tal período, era habitual o arguido pernoitar na residência, acima descrita, de sua progenitora, CC, o que sucedeu, no ano de 2023.
10 – A vítima pernoitou, na residência descrita em 8, onde se encontrava igualmente o arguido, nos períodos compreendidos entre 12 a 13, 18 a 20 e 26 a 27 de ... de 2023.
11 – Nesses períodos a vítima, com 6 anos de idade, dormiu com o arguido desnudo, na cama deste.
12 – O arguido aproveitou a livre disponibilidade de contactos que possuía com a vítima DD, sem supervisão de terceiros, mercê da relação familiar existente e nos períodos temporais descritos em 10, após despir a vítima e a si próprio, praticou atos sexuais sobre a mesma, na residência descrita em 8 e procedeu à filmagem de tais atos, através do seu telemóvel de marca Samsung A52s. com IMEIs .............92 / .............92 e de marca Samsung Galaxy M12 com os IMEIs .............68 / .............66.
Assim, na aludida residência:
13 - No dia ........2023, na parte da manhã e da tarde, o arguido procedeu à filmagem das zonas íntimas da vítima DD, num total de 11 vídeos, através do seu telemóvel de marca Samsung A52s 5G, nomeadamente:
a) - 7 vídeos, no período entre as 11h12 – 11h58 da vitima enquanto se encontrava deitada sobre uma cama, fazendo uso de um telemóvel, com a inscrição REDMI, incidindo na zona genital (vaginal) da mesma, encontrando-se vestida com um par de cuecas, calções de ganga e t-shirt.
b) - 4 vídeos, entre as 19h23 – 19h46 da vítima enquanto se encontrava sentada sobre uma cama, fazendo uso de um telemóvel, incidindo sobre as suas nádegas, encontrando-se vestida com uns calções de tecido cor-de-rosa e uma t-shirt branca.
14 - No dia ........2023, o arguido procedeu à filmagem de um total de 6 vídeos através do seu telemóvel de marca Samsung A52s 5G, nomeadamente:
a) - 1 vídeo, pelas 00h38, da zona genital (vaginal) da vítima que se encontrava, apenas de cuecas, na cama, fazendo uso de um telemóvel.
b) - no período entre 01h41 e as 03h49, do aludido dia, e enquanto a vítima se encontrava a dormir, o arguido introduziu parcialmente o seu pénis ereto na vagina da mesma, afastando lateralmente, para o efeito, as cuecas que a vitima vestia, procedendo em simultâneo à filmagem de tais atos (5 vídeos e dos quais realizou um ficheiro de vídeo GIF).
15 – Na noite do dia ........2023, no período temporal entre as 22h38 e as 05h30, respetivamente, enquanto a vítima se encontrava a dormir, deitada na cama, vestida apenas com uma t-shirt, o arguido apalpou a vagina e as nádegas da mesma bem como introduziu o seu pénis ereto no ânus, vagina e na boca da vítima bem como lambeu a sua vagina, tendo procedido à filmagem de tais atos com o seu telemóvel Samsung A52s 5G (34 ficheiros multimédia com uma duração total de 34 minutos e 12 segundos e dos quais realizou um ficheiro de vídeo GIF).
16 – No dia ........2023, pelas 03h55, com o telemóvel Samsung Galaxy M12, o arguido, procedeu à filmagem da região genital (vagina e ânus) da vítima, que se encontrava despida, deitada na cama e com as pernas fletidas, sendo visível o pénis e testículos do arguido.
17 – No dia ........2023, no período entre as 02h10 e 04h02, encontrando-se a vítima deitada na cama, a dormir, o arguido apalpou as nádegas da mesma e introduziu o seu pénis ereto bem como os dedos no ânus da vítima, tendo procedido à filmagem de tais atos com o seu telemóvel Samsung A52s 5G (3 ficheiros multimédia com uma duração total de 8 minutos e 31 segundos).
18 - No dia ........2023, no período entre as 18h33 e as 18h38, enquanto a vítima se encontrava deitada na cama, apenas de cuecas, a utilizar um telemóvel, o arguido masturbou-se junto da mesma, procedendo à filmagem de tais atos bem como da zona genital (vaginal) da vitima, com recurso ao seu telemóvel Samsung A52s 5G (6 ficheiros multimédia com uma duração total de 2 minutos e 47 segundos).
19 – No dia ........2023, no período compreendido entre as 01h53 e 03h56, enquanto a vítima se encontrava a dormir, deitada na cama, despida, o arguido apalpou a sua vagina e introduziu o dedo no ânus da mesma bem como introduziu parcialmente o seu pénis ereto no ânus da vítima tendo procedido à filmagem de tais atos e dos órgãos genitais (vagina e ânus) da vítima, com o seu telemóvel Samsung A52s 5G (7 ficheiros multimédia com uma duração total de 7 minutos e 13 segundos).
20 – Em datas não concretamente apuradas, mas, por duas vezes, em datas distintas, nos períodos descritos em 10 e na residência de CC, sita em ..., quando a vítima DD se encontrava a brincar com um telemóvel, o arguido apalpou a vagina e as nádegas desta, por dentro das cuecas que a mesma trazia vestida.
21 – No dia ........2022, pelas 20h29, no café ..., ..., o arguido efetuou duas filmagens da vitima EE, nascida a ........2015, então com 6 anos de idade, com o seu telemóvel Samsung A52s quando esta se encontrava sentada na cadeira da esplanada, vestida com uns calções curtos e t-shirt, focando a zona genital (vaginal) da mesma, onde são visíveis as suas cuecas, sem o seu conhecimento.
22 - No dia ........2022 no período compreendido entre 12h17 e as 13h20, na residência de KK sita na Rua do ..., o arguido com o auxílio do seu telemóvel de marca Samsung A52s efetuou seis filmagens de FF, nascida a ........2012, então com 10 anos de idade, vestida com uns calções curtos e top e do irmão LL, nascido a ........2017, netos daquele, que se encontravam sentados no sofá da cozinha, focando a zona genital (vaginal) da vítima FF, sem o seu conhecimento.
23 - No dia ........2023, na residência sita na Rua de ..., ..., o arguido tinha na sua posse o telemóvel de marca Samsung A52s 5G, a si pertencente e por si utilizado, que continha:
A
- três ficheiros de vídeo de cariz sexual com menores, que foram por si visualizados, nomeadamente:
- um ficheiro denominado “(daddypedo) 10yo daughter ANAL after workout creampie SEXY MOANING (kids got talent)” onde se visualiza um individuo adulto, do sexo masculino, em prática de sexo anal com uma criança de sexo feminino, com idade inferior a 14 anos;
- um ficheiro denominado “(Pthc) (Incest) A Family Affair Pt 1 Mom, Son, Dad, Daughter Share More Mom And Kids – Family Sex Incest Pedo(1)_xvid” onde se visualiza um individuo adulto, do sexo feminino, interagindo com duas crianças, do sexo masculino e feminino, ambas com idade inferior a 14 anos, com exposição e manipulação das zonas intimas das mesmas;
- um ficheiro denominado “kids teens women – porno lolitas preteens real kiddy raygold hussyfans underage girls children pedofilia phtc ptsc xxx sexy” com filmagens onde se visualizam indivíduos adultos, do sexo masculino, e crianças com a idade inferior a 14 anos, do sexo masculino e feminino, em comportamentos e poses sexualizadas, exposição e manipulação dos órgãos genitais com e sem roupa e prática de actos sexuais (sexo oral, anal e cópula) bem como 31 ficheiros de vídeo e 42 ficheiros, com formato GIF, com partes de tais filmagens.
B –
i) cinco ficheiros de vídeo, criados em ........2023, referentes ao período temporal entre as 00h05 e 01h21, onde se visualiza a vagina de uma criança, de idade inferior a 14 anos, com e sem cuecas, remetidos ao arguido na sequência de conversação efetuada na rede social Instagram, em local não concretamente apurado, com o utilizador de perfil https://www.instagram.com/.../, de identidade não concretamente apurada, que o arguido visualizou.
ii) No âmbito da aludida conversação, através da rede social Instagram, o arguido remeteu a tal utilizador um ficheiro vídeo, cujo conteúdo conhecia e tinha já visualizado, com a duração de 9 segundos onde se visualiza uma criança, do sexo feminino, com idade inferior a 14 anos, a introduzir o dedo médio da mão direita, na respetiva vagina.
24 - A vítima DD tinha, à data dos factos acima referidos, respetivamente, 2 e 6 anos, idade que o arguido, mercê da relação familiar existente, bem conhecia.
25 - Ao praticar os factos acima descritos, o arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos sexuais lascivos e libidinosos, praticando os atos sexuais supra descritos na vítima DD e masturbando-se junto à mesma, o que visualizou, constrangendo-a e cuja idade conhecia, sem o seu consentimento e contra a sua vontade, bem sabendo que o fazia, aproveitando-se da pouca idade da menor fazendo-se ainda valer do ascendente decorrente da sua idade, bem como da ingenuidade, imaturidade e falta de experiência sexual da vitima.
26 – O arguido sabia que face à idade da vítima DD, a mesma não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão, não compreendendo totalmente o alcance e o significado dos atos sexuais e de natureza sexual que o arguido praticou consigo.
27 - Bem sabia o arguido que as suas condutas eram de molde a prejudicar, como prejudicaram, o normal desenvolvimento da liberdade e da autodeterminação sexual da vítima DD bem como a sua sã personalidade.
28 – O arguido sabia que a vítima DD, por se encontrar a dormir, não possuía qualquer consciência dos atos sexuais em si praticados, nessas alturas e, por tal, não era capaz de se defender e de se opor ou resistir de forma eficaz aos mesmos, condição e incapacidade de que o arguido tinha consciência e de que se aproveitou para praticar os factos supra descritos e satisfazer os seus instintos libidinosos, o que quis e conseguiu.
29 – Ao proceder às filmagens e fotografias acima descritas, referentes à vítima DD, que visualizou e guardou, o arguido agiu com o propósito concretizado de obter e visualizar, através de vídeos e fotografias, as zonas íntimas e de cariz sexual da vitima, sem o seu consentimento, e os atos sexuais praticados sobre a mesma bem como de deter tais ficheiros, devassando a intimidade sexual da vítima e dar assim satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, o que quis e conseguiu.
30 - O arguido aproveitou-se da relação familiar que possuía com a vitima DD e em ... o facto de com a mesma residir, para manipular sexualmente a mesma, e proceder às filmagens e fotografias, nos termos acima descritos, propósito que logrou, bem sabendo que lhe era exigido face a tal situação familiar, um comportamento mais conforme ao direito.
31 – Ao proceder às filmagens acima descritas, que visualizou e guardou, referentes às vítimas EE e FF, sem o seu conhecimento e consentimento, cujas idades, conhecia, bem sabendo que eram menores de 14 anos, o arguido agiu com o propósito concretizado de obter e visualizar, através de vídeo, as zonas íntimas e de cariz sexual das aludidas vitimas, bem como de deter tais ficheiros, devassando a intimidade sexual das vítimas e dar assim satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, ignorando e desprezando a liberdade e autodeterminação sexual das mesmas, o que quis e conseguiu.
32 - O arguido agiu com o propósito concretizado de deter os ficheiros de imagens e vídeos acima descritos, cujo conteúdo conhecia, onde figuravam crianças e jovens, do sexo feminino e masculino, menores de 14 anos de idade, exibindo o seu corpo nu e mantendo contactos de natureza sexual, nomeadamente, com indivíduos maiores de idade, e de assim satisfazer os seus instintos libidinosos, ignorando e desprezando a liberdade e autodeterminação sexual das crianças e jovens aí retratados, de identidade desconhecida, o que quis e conseguiu.
33 - O arguido tinha perfeito conhecimento de que as referidas imagens e vídeos de teor pornográfico com utilização de crianças e jovens de idade inferior a 14 anos de idade, envolvidos em actos de natureza explicitamente sexual e de cariz pornográfico, induzem a exploração efectiva dessas crianças/jovens, utilizadas para a realização das fotografias e vídeos em causa, não obstante, não se inibiu de os deter no aludido telemóvel, que se encontrava na sua posse e lhe pertencia, para visualizar e, desse modo, satisfazer a sua lascívia e libido, bem sabendo que lhe estava legalmente vedada a aquisição e detenção das mencionadas imagens e vídeos.
34 - Bem sabia o arguido que os menores protagonistas das imagens e vídeos acima especificados, que detinha, tinham idades inferiores a 14 anos, nos termos acima descritos.
35 – Ao remeter, nos termos acima descritos, ao utilizador do perfil da rede Instagram “...” um ficheiro vídeo onde se visualiza uma criança, do sexo feminino, com idade inferior a 14 anos, cuja idade conhecia, a introduzir o dedo médio da mão direita, na respetiva vagina, o que aquele visualizou, o arguido agiu com o propósito concretizado de divulgar e ceder a terceiros, o referido vídeo, cujo conteúdo conhecia, e de assim satisfazer os seus instintos libidinosos, ignorando e desprezando a liberdade e autodeterminação sexual da criança aí retratada, sabendo que estava a induzir a exploração da mesma, o que quis e conseguiu.
36 - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que as supra descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal e, não obstante, quis levá-las a cabo e alcançar os correspetivos resultados delituosos.
Ainda se provou (do pedido de indemnização cível)
37- Como consequência dos comportamentos do arguido, a ofendida DD sofreu trauma psicológico.
38- De uma criança meiga, dócil, bem-disposta tornou-se numa criança revoltada, por vezes agressiva, assustada, frágil.
39- Passou a ser reservada, demonstrando vergonha do seu corpo.
40- Afastou-se da figura masculina, incluindo do pai e do irmão, evitando contactos mais próximos.
41- Alterou o seu comportamento na escola, baixando o rendimento escolar.
42- Sente-se culpada, deprimida, com medo, apresentando défice de atenção e tendo dificuldades em dormir, chegando a acordar com pesadelos.
43- Queixa-se de dores de barriga e de cabeça.
44- Isolou-se mais e tornou-se mais desconfiada.
45- Recebeu e recebe apoio psicológico, que terá que manter ao longo do processo de crescimento, apresentando dificuldade em abordar os comportamentos de que foi vítima, sentindo-se envergonhada.
Mais se provou (das condições de vida e personalidade do arguido).
46- Após a separação dos progenitores, ocorrida quando o arguido contava cerca de 7 anos de idade, cada um deles acabaria por assumir um projeto de vida alternativo, que em ambos os casos passou por projetos de emigração para ..., tendo o progenitor sido o primeiro a radicar-se na região de ..., enquanto que a mãe se fixou, alguns anos mais tarde, na zona de ....
47- Nesta medida, e com alguma naturalidade, depois de decidir interromper o seu percurso escolar, após ter concluído o 9 º ano de escolaridade, em ..., onde até então ficara entregue à guarda dos avós paternos, o arguido acabaria por se juntar, com cerca de 16 anos, ao pai e à nova companheira deste, num processo de adaptação fortemente marcado pelo confronto com toda uma nova realidade social, cultural e linguística e por um enquadramento familiar, onde o próprio destaca o fraco envolvimento afetivo do progenitor, fruto dos muitos anos de separação que haviam antecedido esta reaproximação.
48- Ainda que tenha conseguido, no decorrer desta fase, garantir através do progenitor e da empresa onde o mesmo exercia também funções, na área do isolamento industrial, uma ocupação regular que lhe permitiu uma estruturação adequada do seu quotidiano e lhe foi permitindo atenuar alguma da pressão que começou a acumular, fora desses períodos, foi-se gradualmente isolando, tanto, no plano social, como familiar, refugiando-se nos jogos on-line, aos quais dedicava muitas horas do seu tempo livre. Em consequência disso acabaria por desenvolver um quadro de sintomatologia depressiva, que, desvalorizado no plano familiar e sem qualquer tipo de intervenção especializada, se foi agravando, comprometendo o seu desempenho e assiduidade laboral, e reforçando, por sua vez, os desencontros com o progenitor.
49- Numa tentativa de procurar um contexto de vida alternativo, ainda procurou apoio junto da progenitora e dos irmãos, em ..., onde terá estado em várias ocasiões, sendo que terá sido no decorrer de uma destas que coincidiu com uma visita do primo II, que este este último, sabendo dos problemas de saúde com os quais o arguido se estava a debater e numa tentativa de o ajudar, se disponibilizou para o acolher de novo em ..., onde, à data vivia com a companheira, HH e com a filha de ambos, DD, vítima no presente processo e onde ele já estivera alguns anos antes.
50- É assim, em consequência disso, que à data dos primeiros factos descritos, o arguido partilha o mesmo espaço residencial que a vítima e os pais desta, bem como as mais diversas rotinas associadas às suas vivências diárias, o que implicava naturalmente contactos regulares e frequentes com aquela, com quem o arguido estabeleceu uma relação de grande proximidade afetiva.
51- Pese embora o arguido ter chegado a trabalhar com o primo na empresa de jardinagem que este mantinha, a alegada persistência da doença depressiva e os reflexos da mesma na assiduidade laboral, acabariam por, também neste contexto, promover alguns desencontros, tendo o arguido acabado por regressar, cerca de um ano depois, para ....
52- Depois de o progenitor, devido a problemas de saúde, ter regressado definitivamente a Portugal, em 2021, o arguido permaneceu em ...; contudo, face a um novo agravamento da doença, procurou de novo apoio junto da progenitora, tendo, nessa ocasião, sido encaminhado para o Pole Psychiatre ..., onde entre janeiro e setembro de 2022 esteve em acompanhamento.
53- De acordo com o relatório social, “Apesar de reconhecer algumas melhorias no decorrer desta fase, considera que a intervenção dos profissionais acabaria por ficar muito aquém daquilo que teria sido possível, em virtude de nunca ter tido coragem de expor aquele que considera ser o episódio traumático vivido na sua infância onde considera poderem estar ancorados todos os seus traumas e crises depressivas, e que está relacionado com o facto de ter sido abusado sexualmente, quando tinha cerca de 6/7 anos de idade”, “Afirma nunca ter conseguido, até ao presente, partilhar tal acontecimento traumático do seu passado, que a partir dos seus 12/13 anos o passou a assolar e que pode ter condicionado de forma marcada a forma como foi estabelecendo as suas relações pessoais. Nessa medida e apesar nunca ter assumido qualquer relação afetiva mais duradoura, sempre se considerou uma pessoa com uma vivencia sexual «normal», alegando sempre ter manifestado interesse por relações com elementos femininos, dentro da sua faixa etária, pese embora sempre se terem resumido a simples «namoros de verão».
54- Durante todos estes anos que esteve emigrado em ..., o arguido foi-se deslocando regularmente a Portugal para passar os habituais períodos de férias, ocupando habitualmente, nessas ocasiões, a residência da progenitora em .... No ano de 2023, quando retomou contacto com a vítima, deslocou-se a ..., em maio, por ocasião da morte do progenitor, e depois em julho por ocasião da Festa de ..., tendo nessa ocasião permanecido por mais tempo em Portugal, já que o seu projeto em ..., se encontrava temporariamente suspenso.
55- Efetivamente, no período que antecedeu a sua última vinda para Portugal, o arguido encontrava-se de novo junto da progenitora em ..., uma vez que em função de não pretender já regressar a ..., havia-se despedido da empresa V........., onde nos últimos dois anos, trabalhara na área dos isolamentos industriais e onde auferia um salário a rondar os € 2.000,00.
56- A aplicação da medida de coação de prisão preventiva teve um profundo impacto na vida do arguido, uma vez que implicou o abandono do projeto de regressar a ..., país por onde o mesmo continua a fazer passar o seu projeto de vida futuro, bem como implicou cissões na relação entre diversos elementos desta família, os quais depois da divulgação dos factos que constam da acusação, deixaram de contactar entre si, quebrando a relação de grande proximidade que existia antes e que os levava a visitarem-se e a partilharem vivências.
57- O conhecimento dos factos imputados ao arguido e a aplicação da medida de coação de prisão preventiva foram vistos com grande surpresa por parte da comunidade da pequena localidade de ..., onde o arguido cresceu e onde, ao longo de todos estes anos, foi construindo uma imagem bastante positiva, sendo tido localmente como uma pessoa educada e respeitadora, a quem não eram atribuídos, nem conhecidos, quaisquer comportamentos desadequados no quadro das suas relações sociais. Ora, pese embora o arguido nunca ter esboçado qualquer intenção de, em termos de projeto de vida, regressar um dia de forma definitiva a ..., esta localidade sempre fora até então o espaço de reencontros com todas as suas referências de infância e adolescência, à qual regressava periódica e regularmente num processo investido de grande interesse e vontade da sua parte, e que as consequências do presente processo irão no futuro impossibilitar, pela censura social a que inevitavelmente estará exposto e à qual considera que, indiretamente, acabou por expor todos os demais elementos do seu núcleo familiar.
58- De acordo como o relatório social, o arguido “não sendo capaz de antecipar toda a dimensão do impacto que os factos possam um dia ter na perspetiva da vítima, reconhece todo o sofrimento causado aos pais, aceitando como legitima a cessação da relação de amizade que existia entre ambos. Atribui, em abstrato, a devida censurabilidade aos comportamentos de que surge acusado, sendo capaz de identificar os valores jurídicos que pôs em causa. Manifesta, em termos pessoais, estar a vivenciar com sofrimento a sua atual condição, não só por todas as restrições e impedimentos a que está sujeito, mas sobretudo por razões de segurança terem vindo impor a construção de uma narrativa demarcada da acusação, o que acaba por inevitavelmente o isolar de novo no grupo e comprometer a autenticidade das relações que em contexto prisional acaba por estabelecer”.
59- No plano institucional, ao longo do período de prisão preventiva, o arguido tem mantido um comportamento e uma postura adequados, conformes às normas e regras do Estabelecimento Prisional, não sendo de referir qualquer tipo de incidente na sua relação, quer com os outros reclusos, quer com os demais funcionários da instituição, pelo que, até ao momento, não foi alvo de qualquer procedimento disciplinar.
60- O arguido demonstra uma capacidade intelectual superior à média, o que é revelador de capacidades e recursos cognitivos que lhe permitem uma adequada perceção e compreensão da realidade.
61- Em termos de funcionamento da personalidade, revela ser um indivíduo introvertido, isolado, com dificuldades no estabelecimento de relações ou interações sociais e que contrasta com a facilidade com que inicia relacionamentos através das redes sociais.
62- Apesar de aparentar ser pessoa responsável, competente e respeitador da ordem e do dever, revela-se em termos de organização mental, acomodado, pouco sensível e desorganizado, fatores encontrados no seu discurso pouco elaborado e inconsistente.
63- Estão presentes alguns indicadores de vulnerabilidade em termos de comportamento sexual, nomeadamente fatores externos (procura de estimulação sexual através de conteúdos pornográficos, incluindo crianças) e fatores internos (ausência de implicação/ressonância afetiva nas relações), bem como fatores circunstanciais (solidão, isolamento e falta de emprego) e estruturais (traços de personalidade, fraca autoestima e distorções cognitivas), que contribuem para um grau de tolerância/legitimação relativamente a eventuais condutas disfuncionais, sobretudo de natureza sexual.
64- O arguido não tem antecedentes criminais.
2.2. Matéria de Facto Não Provada
Para além dos factos não referidos porque irrelevantes, conclusivos ou de direito, não ficaram por provar quaisquer factos com relevância para a boa decisão da causa.
Destacam-se da “Motivação da Decisão de Facto”, os seguintes excertos:
O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento em conjugação com os documentos juntos aos autos, de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência comum, como determina o artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Valorou, desde logo, as declarações prestadas pelo arguido AA em audiência de discussão e julgamento, onde confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe vêm imputados. Para além de se afigurar sincera, a confissão mostra-se corroborada pela demais prova produzida.
Explicando a sua proximidade relativamente à pessoa da ofendida (filha do primo que lhe deu casa em ..., onde residiu de 2017 a 2020 com esta família - pai, mãe e filha -, desenvolvendo uma relação próxima de confiança que justifica que a ofendida tenha ficado em sua casa em ..., quando veio de férias a Portugal), o arguido admitiu os comportamentos que lhe vêm imputados, assumindo a autoria das fotos e vídeos que se encontram juntos aos autos, referindo que nessas ocasiões a ofendida se encontrava a dormir, consigo, na mesma cama, depois de ter estado a jogar jogos no telemóvel, e revelando ter consciência de que assim perturbava o sono da menor. Explicou que filmava e guardava os vídeos para os voltar a ver.
Embora o arguido tenha inicialmente dito, de forma genérica, que “não praticou nenhum ato sobre a menina” (referindo-se a DD); contudo, confrontado com as situações descritas na acusação foi assumindo os comportamentos. Apesar de ter começado por afirmar não se recordar de ter apalpado a vagina e as nádegas da ofendida por dentro das cuecas, no período em que esta pernoitou em sua casa, em ... de 2023 (ponto 20 da acusação); contudo, quando confrontado com as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, confessou essa atuação, aceitando como verdadeiro o que foi dito por esta.
O arguido também admitiu os demais comportamentos, designadamente que descarregou e guardou os conteúdos pornográficos que foram encontrados nos seus equipamentos informáticos – referindo que “gostou de os ver”; que manteve conversa através do Instagram; que fotografou/filmou e guardou as fotografias/vídeos, não só da ofendida DD, mas também de EE, FF e LL.
Ao longo das suas declarações o arguido, por um lado, vitimizou-se (“tinha acabado de sair de uma depressão”, estava sem medicação, o pai faleceu em ... de 2023, vive em “sofrimento desde pequeno”, nunca conseguiu ser feliz, “foi abusado quando era pequeno mas não disse nada a ninguém”, foi “obrigado a fazer coisas com animais”, “perdeu a dignidade”, algo dentro de si impediu-o de evoluir nas relações sociais, afetivas, laborais) e, por outro lado, penitenciou-se (“considero-me um monstro pelo que fiz”, referindo que tem noção da gravidade do que fez, especialmente porque foi vítima de comportamento idêntico, pelo que “sabe o que ela vai sofrer”), referindo que se libertou quando entregou o telefone, e que se sente livre estando preso – tudo o que é consonante com a autoria de factos hediondos, como aqueles que aqui se discutem.
Já em sede de primeiro interrogatório judicial realizado em 07.09.2023, o arguido prestou declarações (cfr. fls. 168 a 175) – que foram reproduzidas em audiência de discussão e julgamento nos termos do artigo 357º, n.º1, al.b), do Código de Processo Penal -, admitindo, no essencial, os comportamentos então imputados (sendo de notar que aí não foi confrontado com os episódios ocorridos em ...), e assumindo a mesma postura de vitimização e penitência.
A demais prova produzida – declarativa, documental e pericial – converge no sentido da prática pelo arguido dos factos aqui em discussão, permitindo ainda apurar tudo o mais que se descreve na acusação, salientando-se que as circunstâncias apuradas em face dessa prova reconduzem-se a uma dinâmica vivencial frequentemente associada às situações de abuso sexual, concretamente, a ocorrência no contexto de uma relação familiar, de confiança, e de proximidade, em que a criança se apresenta desinibida, quer por se sentir segura, designadamente pelo apoio e carinho inerentes à familiaridade, sendo de destacar o desequilíbrio de poder entre a ofendida, enquanto criança, e o arguido, como adulto. Além disso, a situação propícia de a ofendida pernoitar no quarto do arguido e o controlo conseguido pela disponibilização do telemóvel, como privilégio e distração, constituem fatores facilitadores à adoção de condutas desta natureza.
(…)
Os factos relativos às condições pessoais e percurso de vida do arguido apuraram-se em face do teor do relatório social junto aos autos. Valorou-se, ainda, o relatório da perícia sobre a personalidade do arguido, datado de 09.01.2025, de onde se extraíram as conclusões retiradas da análise técnica efetuada.
Quanto à “escolha e determinação da medida concreta das penas”, incluindo a pena única, o acórdão recorrido ponderou:
O crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177º n.º 1 al. b) do Código Penal (agravado de 1/3 nos limites mínimo e máximo) é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses;
O crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, previsto e punido pelos artigos 165º n.º 1 e 2 e 177º n.º 1 al. b) e 8, ambos do Código Penal (agravado de metade nos limites mínimo e máximo), é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos;
O crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelo artigo 171º, n.º 3, al. a) e 177º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal (agravado de 1/3 nos limites mínimo e máximo) é punido com pena de prisão de 3 meses a 4 anos;
O crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelos artigos 176º, n.º 1, al. b) e 177º, n.º 1, al. b) e n.º 8, ambos do Código Penal (agravado de metade nos limites mínimo e máximo) é punido com pena de prisão de 2 anos a 7 anos e 6 meses;
O crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelo artigo 176º n.º 1 al. b) e 177º n.º 8, ambos do Código Penal (agravado de metade nos limites mínimo e máximo) é punido com pena de prisão de 2 anos a 7 anos e 6 meses;
O crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º, n.º 1, al. c) e 177º, n.º 7, ambos do Código Penal (agravado de metade nos limites mínimo e máximo) é punido com pena de prisão de 2 anos a 7 anos e 6 meses;
O crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176º, n.º 5, do Código Penal por referência ao n.º 1 al. b) do mesmo artigo é punido com pena de prisão até 2 anos.
Quando - como nos presentes autos -, se verifica a acumulação ou concurso de infrações, ou seja, uma pluralidade de infrações cometidas pelo mesmo agente antes de qualquer delas ter sido objeto de uma sentença transitada em julgado, o referido agente deve ser condenado numa só pena – artigo 77º, do Código Penal.
O procedimento a observar será o prescrito no nº 2 do aludido preceito legal, a saber:
- Em primeiro lugar, o Tribunal determina a pena que concretamente caberia a cada um dos crimes em concurso, como se de crimes singulares se tratasse, seguindo para o efeito o procedimento normal de determinação da medida da pena.
- Em segundo lugar, o Tribunal construirá a moldura penal do concurso, dependendo esta operação, desde logo, da espécie ou espécies de penas parcelares que tenham sido concretamente determinadas. Estabelece aquele normativo que se somam as penas parcelares, assim se obtendo o limite superior da moldura abstrata aplicável. O limite mínimo corresponde à mais elevada das penas parcelares;
-Em terceiro lugar, estabelecida a moldura penal do concurso, importa proceder à determinação da medida da pena única do concurso, considerando em conjunto os factos e a personalidade do arguido.
Importa, pois, no seguimento do supra exposto, proceder à determinação das penas parcelares respeitantes a cada um dos crimes em concurso.
Nos termos do disposto no artigo 70º, n.º1 do Código Penal, “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; sendo que “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” (n.º2, do mesmo artigo).
Dispondo o artigo 40º, n.º2 do Código Penal que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” tal significa que a pena deve ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta. A culpa não constitui, assim, apenas pressuposto e fundamento da pena (não há pena sem culpa), mas também o seu limite máximo (a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa).
Se a medida da culpa é o limite máximo da medida da pena, o limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, que têm em vista a proteção de bens jurídicos (a pena deve permitir a estabilização contrafática das expectativas da comunidade na norma jurídica violada, como instrumento de tutela de bens jurídicos).
Naquele intervalo, a medida exata da pena é a que resulta das regras de prevenção especial positiva – é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade causando-lhe só o mal necessário (neste sentido, Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, Parte Geral”, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 227).
Vejamos, então, a situação em análise.
Afiguram-se muito elevadas as exigências de prevenção geral, considerando o sentimento de repulsa que comportamentos como o ora em apreço causa na sociedade, atenta a sua natureza e especialmente tendo em conta a idade das vítimas, objeto de especial proteção por estar em desenvolvimento a sua personalidade. Trata-se, efetivamente, de comportamentos que chocam e repugnam o cidadão comum, sendo de realçar o impacto que tiveram na comunidade local, um meio pequeno, onde o arguido cresceu, sem que deixasse antever este percurso, que surpreendeu a comunidade.
As exigências de prevenção especial são também ponderosas considerando, desde logo, a personalidade evidenciada pelos múltiplos factos praticados, e a sua natureza, a maior parte deles num contexto familiar e de coabitação que deveria ser contra motivador. Além disso, o arguido – que apresenta uma capacidade intelectual superior à média, no que concerne à perceção e compreensão da realidade -, mostra-se “mentalmente acomodado, pouco sensível e acomodado”, apresentando fatores de vulnerabilidade em termos de comportamento sexual (internos, externos, estruturais e circunstanciais) que denunciam a “ausência de ressonância afetiva nas relações” e que provocam a “tolerância” e “legitimação” relativamente a comportamentos como aqueles que aqui se discutem. Assim, apesar de o arguido não ter antecedentes criminais e ter confessado integralmente e sem reservas os factos, não é possível afirmar a existência de ressonância crítica sobre o seu comportamento, nem depositar confiança no seu comportamento futuro – aliás, se até ao espoletar deste processo o arguido contou sempre com retaguarda familiar, a partir de então quebrou-se a relação com a família, o que passa a constituir também fator de risco (a acrescer à instabilidade profissional e à sintomatologia depressiva), especialmente relevante sendo o arguido propenso à “introversão” e ao “isolamento”.
A culpa é, no que concerne aos factos de que é vítima DD, elevada, considerando o contexto em que são praticados: esta ofendida é filha do casal, familiar do arguido, que acolheu o arguido em sua casa, para nela viver, que lhe deu apoio quando precisava; casal que confiava no arguido, deixando por isso a menor na sua companhia, incluindo a pernoitar. Além disso, o arguido aproveitou a própria confiança que a menor depositava em si, mercê do relacionamento desde que tinha meses de idade. Relativamente aos demais factos, reputamos a culpa de média.
No plano da ilicitude, pondera-se:
- a concreta idade da(s) vítimas;
- a tipologia e intensidade dos atos praticados, e as zonas do corpo envolvidas, conjugados com as idades (2, 6 e 10 anos), tendo-se em conta que a vítima DD, com 6 anos de idade, já dá conta do que lhe acontece;
- as consequências verificadas na pessoa da vítima DD; bem como a ausência de danos nas demais ofendidas.
O arguido agiu com dolo direto, forma mais intensa de dolo.
Em favor do arguido milita, para além da ausência de antecedentes criminais, a confissão integral e sem reservas, reconhecendo-se a dificuldade de assumir factos desta natureza, pela repugnância que naturalmente causam.
Tudo ponderado, fazendo apelo a critérios de justiça e proporcionalidade, tendo em consideração a moldura penal abstrata do crime em causa, fixa-se:
- Relativamente aos três crimes de abuso sexual de crianças agravados, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177º n.º 1 al. b) do Código Penal, na pessoa da vítima DD:
- ponto 6 dos factos provados, 2 anos e 4 meses de prisão;
- ponto 20 dos factos provados, 3 anos de prisão a cada um dos dois crimes;
- Relativamente aos quatro crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, previsto e punido pelos artigos 165º n.º 1 e 2 e 177º n.º 1 al. b) e 8, ambos do Código Penal, na pessoa da vítima DD:
- pontos 14 b, 6 anos de prisão;
- ponto 15, 7 anos de prisão;
- pontos 17 e 19, 6 anos e 3 meses de prisão, a cada um dos dois crimes;
- Relativamente ao crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelo artigo 171º, n.º 3, al. a) e 177º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, na pessoa da vítima DD, a pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
- Relativamente aos crimes de pornografia de menores agravados, previsto e punido pelos artigos 176º, n.º 1, al. b) e 177º, n.º 1, al. b) e n.º 8, ambos do Código Penal, na pessoa da vítima DD:
- pontos 5, 6, 7, 13a), 13b), 14 a) e 16, 3 anos de prisão, a cada um dos sete crimes;
- pontos 14 b), 15, 17, 18 e 19, 3 anos e 6 meses de prisão, a cada um dos 5 crimes;
- Relativamente aos crimes de pornografia de menores agravados, previsto e punido pelo artigo 176º n.º 1 al. b) e 177º n.º 8, ambos do Código Penal, na pessoa de EE e FF:
- pontos 21 e 22, a pena de 2 anos e 8 meses de prisão a cada um dos dois crimes;
- Relativamente crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelo artigo 176º, n.º 1, al. c) e 177º, n.º 8, ambos do Código Penal, a pena de 3 anos e 3 meses de prisão (ponto 23 B ii));
- Relativamente aos crimes de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176º, n.º 5, do Código Penal por referência ao n.º 1 al. b) do mesmo artigo, a pena de 6 meses de prisão a cada um dos quatro crimes (ficheiros de pornografia encontrados no telemóvel – pontos 23 A e B i)).
Isto posto, importa agora proceder à determinação da moldura do concurso, nos termos do disposto no artigo 77°, n.º 2, do C.P. Assim:
- O limite máximo é fixado em 25 anos de prisão – máximo legal, posto que a soma das penas concretas é superior (89 anos e 10 meses);
- O limite mínimo é fixado em 7 anos.
Finalmente, cabe fixar a pena única do concurso, nos termos do disposto no artigo 77°, nº 1, in fine, do Código Penal.
Nesta operação, tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.
Para a avaliação da personalidade do agente relevará a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível ou não a uma tendência criminosa.
Ora, considerando tudo o que supra se expendeu em sede de determinação da medida da pena - especialmente tomando como base:
- O número e o tipo de crimes praticados, a diversidade, a relação entre os comportamentos, e a dispersão temporal da atividade (o arguido praticou atos sexuais sobre a ofendida DD em 2019, quando esta tinha 2 anos de idade, e em 2022, quando esta tinha 6 anos de idade, atos que fotografou e/ou filmou, tendo gravado as fotografias e os filmes nos seus telemóveis, que até organizou em ficheiros GIF; mais de um ano depois, em 2023, o arguido ainda tinha todos esses ficheiros, para além de outros de natureza idêntica, o que se reconduz a uma deliberada fixação das imagens e dos atos, mesmo com o risco de comprovação da atividade do arguido), em conjugação com o aproveitamento de uma relação de confiança;
- A circunstância de o conjunto dos factos, em conjugação com as apuradas condições pessoais e de vida do arguido, se reconduzir a uma tendência criminosa – o mostra-se “mentalmente acomodado, pouco sensível e acomodado”, apresentando fatores de vulnerabilidade (internos, externos, estruturais e circunstanciais) que denunciam a “ausência de ressonância afetiva nas relações” e que provocam a “tolerância” e “legitimação” relativamente a comportamentos sexuais sobre crianças; além disso, constituem-se fatores de risco a sintomatologia depressiva, a propensão para a “introversão” e o “isolamento”, o histórico de instabilidade profissional e a quebra da relação com a família,
fixa-se a pena única de 12 (doze) anos de prisão.
***
1. Nulidade do acórdão
Pese embora da parte decisória do acórdão recorrido não conste qualquer referência a condenação em penas acessórias, o acórdão recorrido fundamentou e fixou as penas acessórias, nos seguintes termos:
Das penas acessórias previstas nos artigos 69º-B, n.º2 e 69º-C, n.º2, do Código Penal
Estabelece o artigo 69.º-B, n.º2, do Código Penal, sob a epígrafe “Proibição do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual”, “Pode ser condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre 5 e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A e 176.º-C, quando a vítima seja menor”.
Por sua vez, prevê o artigo 69.º-C, n.º2, do Código Penal, sob a epígrafe “Proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais”, “Pode ser condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre 5 e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A e 176.º-C, quando a vítima seja menor”.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 15/2024, de 29 de janeiro, consagrou-se a expressão “Pode ser condenado”, ao invés da expressão “É condenado”, que constava da anterior redação.
Impõe-se, pois, a análise casuística quanto à necessidade destas penas acessórias para a salvaguarda das necessidades de prevenção.
Ora, as elevadas exigências de prevenção geral (impacto comunitário dos comportamentos em discussão) e as ponderosas exigências de prevenção especial (juízo de prognose favorável à prática pelo arguido de factos de idêntica natureza) levam-nos a concluir pela necessidade de aplicação das aludidas penas acessórias, como garantia da estabilização contrafática das expectativas comunitárias na norma jurídica violada e da ressocialização do arguido; em suma, como garantia de defesa da ordem jurídica, que não pode deixar de contemplar a proteção das vítimas.
Tendo em conta os fatores considerados para determinação da medida concreta da pena principal - em particular o grau de lesão do bem jurídico, o número e dispersão de ilícitos de natureza sexual que o arguido consumou, com dolo direto, e o circunstancialismo dos mesmos, com desconsideração das relações familiares e de coabitação - entende-se ser de fixar:
- a pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69º-B, n.º2, do Código Penal, por um período de 15 (quinze) anos;
- a pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69º-C, n.º2, do Código Penal, por um período de 15 (quinze anos).
Como se alcança desta parte do acórdão, o tribunal recorrido apreciou a questão da aplicação de sanções acessórias ao arguido e conclui “ser de fixar” sanções acessórias de (i) proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de (ii) proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, qualquer delas pelo período de quinze anos.
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto considera que está em causa uma nulidade, atentas as disposições conjugadas dos art.s 374º nº 3 al. b) e 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal o que, nos termos do disposto no n.º 2 deste último preceito, deverá ser conhecida e eventualmente suprida pelo tribunal de recurso.
Trata-se de uma omissão de colocação na parte do dispositivo da fixação da medida das penas, que antes havia sido devidamente fundamentado na discussão jurídica sobre as penas acessórias a aplicar e a fixar.
Trata-se de um lapso manifesto que convoca a possibilidade de resolução da omissão através do mecanismo de correcção da sentença previsto no art. 380º do Código de Processo Penal. Porém, o desrespeito da exigência decorrente do art. 374º nº 3 al. b) do Código de Processo Penal é cominado com nulidade (art. 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal) e, ponderada a situação, a ausência de condenação expressa nas sanções acessórias na parte do dispositivo da sentença pode suscitar dúvidas formais sobre a existência de “decisão condenatória” naquelas sanções acessórias. Consequentemente, a omissão assume gravidade e relevância bastante para ser tratado como uma nulidade.
Tal nulidade é de conhecimento oficioso e pode ser suprida por este Tribunal2, embora no caso em apreço o mecanismo correctivo em tudo se assemelhe ao que decorre da correcção da sentença.
Assim, sanando a nulidade, aditar-se-à à condenação constante do dispositivo do acórdão um ponto IIA (entre o ponto II e o ponto III) com o seguinte teor:
IIA condenar o arguido:
- na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69º-B, n.º2, do Código Penal, por um período de 15 (quinze) anos; e,
- na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69º-C, n.º2, do Código Penal, por um período de 15 (quinze anos).
2. Medida da pena única
O Recorrente não questiona as penas parcelares, limitando-se a pugnar pela aplicação de pena única superior, entre os 17 e 18 anos de prisão, com os fundamentos constantes das conclusões apresentadas. O arguido, em resposta sustenta a manutenção da pena única fixada.
Sustenta o Recorrente que a pena única peca pela sua excessiva brandura e que não permite, do nosso ponto de vista, ter por respeitados os critérios de determinação da medida da pena aplicada, atendendo à personalidade do arguido evidenciada nos factos dados como provados no seu conjunto, à gravidade, consequências, cadência/repetição, número de vitimas (3 identificadas e outra não identificada), modo concreto de actuação (aproveitamento de relações de confiança/proximidade/familiares para “aceder” às menores), filmagem e colheita de fotos, criação de ficheiros gif com as imagens colhidas. Desvaloriza a confissão e considera que não se considerou a gravidade da ilicitude global, os pontos de contacto entre as várias actuações e o tipo de ligações, a continuidade da actuação (no ano de 2019 e em 2022 e 2023), olvidando-se que a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção à unidade relacional de ilícito e de culpa e ponderando que o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa acentuada e para uma imagem de intensa gravidade e ilicitude
O arguido na resposta sustenta que a determinação da medida da pena única convocou os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.
Os critérios para a fixação da pena única devem reflectir uma ponderação das “características da personalidade do agente, em termos de revelar ou não tendência para a prática de crimes ou de determinado tipo de crime, devendo a pena única reflectir essa diferença em termos substanciais”, sendo essencial considerar o tipo de criminalidade em causa e efectuar uma “conveniente avaliação da totalidade dos factos como unidade de sentido, enquanto reportada a um determinado contexto social, familiar e económico e a uma determinada personalidade”.
“Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização.»
Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita” 3.
Na determinação da moldura do concurso, nos termos do disposto no artigo 77° nº 2 do Código Penal, constata-se que embora o limite máximo seja fixado em 25 anos de prisão – máximo legal definido pelos art.s 41º e 77º nº 2 do Código Penal – posto que a soma aritmética das penas concretas é mais de três vezes superior (89 anos e 10 meses), enquanto o limite mínimo é fixado em 7 anos de prisão, “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes” (art. 77º nº 2 do Código Penal).
Assim, a pena única fixada no acórdão encontra-se próximo do 1/4 da moldura da pena única, tomando por referência o limite máximo legal mas cerca de 1/16 da soma aritmética de todas as penas parcelares. A extrema compressão da pena única não tem justificação, devendo ser valorada de uma forma vincadamente negativa a tendência criminosa que radica na personalidade, por força da muito significativa dispersão temporal dos factos, a sua diversidade e a sua perpetuação através de imagens conservadas e partilhadas (num caso comprovado) e com aproveitamento de uma relação de familiaridade e confiança (no caso da vítima DD). O arguido revelou falta de empatia com a vítima DD, conforme resulta dos factos provados (designadamente 58, 62 e 63) sem consideração pela evidente dimensão traumática que a concretização de um crime sexual comporta para a vítima4.
Por outro lado, pese embora a confissão seja difícil, pela natural repugnância que causam factos desta natureza – como reconhece o acórdão recorrido – também não pode deixar de se contextualizar e, na decorrência, desvalorizar o valor dessa confissão, na medida em que não contribuiu de forma relevante para a descoberta da verdade, face à restante prova produzida.
Pelo exposto, sopesando devidamente a imagem global dos factos, de intensa gravidade e ilicitude e ainda da personalidade do arguido vincada por uma tendência criminosa radicada na personalidade e atendendo à jurisprudência deste Tribunal para casos semelhantes5, considera-se proporcional, adequada e, essencialmente necessária, uma pena única de 15 anos de prisão.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em:
1. Sanar a nulidade referida e, em consequência, aditar à condenação constante do dispositivo do acórdão um ponto IIA (entre o ponto II e o ponto III) com o seguinte teor:
IIA - condenar o arguido:
- na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, prevista no artigo 69º-B, n.º2, do Código Penal, por um período de 15 (quinze) anos; e,
- na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, prevista no artigo 69º-C, n.º2, do Código Penal, por um período de 15 (quinze anos).
2. Conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em fixar em 15 anos de prisão a pena aplicada ao arguido AA, mantendo na íntegra a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 25-06-2025
Jorge Raposo (relator)
António Augusto Manso
Maria Margarida Almeida
________
1. Cfr., neste sentido, Código de Processo Penal Comentado, 3ª Ed. Revista, Almedina, Conselheiro Oliveira Mendes, pág. 1158, e acórdão de 04.11.2015 do Supremo Tribunal de Justiça (processo n.º 8/13.6MACSC.L1, 3ª Secção), in https://www.dgsi.pt/jstj.
2. Cfr. acórdão indicado na nota anterior.
3. Conselheiro António Artur Rodrigues da Costa em “O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, texto disponível in http://www.stj.pt/ficheiros/estudos /rodrigues_costa_cumulo_juridico. pdf, pg. 12.
4. Acórdão de 31.5.2023 do Supremo Tribunal de Justiça, no proc. 736/21.2PBSTR.E1.S1
5. Acórdãos de 31.5.2023 do Supremo Tribunal de Justiça, no proc. 736/21.2PBSTR.E1.S1; de 28.11.2024, no proc. 2974/23.4JAPRT.P1.S1; de 4.6.2024, no proc. 121/21.6JDLSB.S1; de 29.6.2023, no proc. 1735/16.1T9STB-A.S1; de 11.5.2023, no proc. 334/21.0GBCTX.L1.S1; de 7.11.2018, no proc. 161/15.4T9RMZ.E1.S1; de 4.6.2024, no proc. 263/22.0PQLSB.L1.S1