LEGÍTIMA DEFESA
Sumário

I - Conforme resulta do artigo 32.º do Código Penal, para que se configure uma situação de legítima defesa atendível e excludente da ilicitude, exige-se, por um lado, uma agressão actual ou iminente a interesses pessoais ou patrimoniais do defendente ou de terceiro e, por outro, que a actuação do visado da agressão tenha como fim afastá-la e se circunscreva aos meios necessários para o efeito.
II - A actuação do agente não se encontra legitimada pela ordenamento jurídico se, nas circunstâncias, se impuser um comportamento diverso, como recorrer à força pública, nem quando os meios empregues para afastar a agressão se apresentam como desproporcionais e excessivos.
III - Também não haverá legítima defesa quando o que se pretende é ripostar e agredir nos mesmos moldes em que se é ou se foi agredido

Texto Integral

Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Por sentença de 25 de Novembro de 2024 foram os arguidos AA e BB condenados nas seguintes penas:
- O arguido AA na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de €7,00, pela prática de um crime de ofensa à integridade previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal,
- O arguido BB na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €7,00, pela prática de um crime de ofensa à integridade física previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
2. Inconformado, veio o arguido AA interpor recurso pugnando pela sua absolvição. Apresentou as seguintes conclusões da motivação:
“(…)
4. Está provado no ponto 1 da matéria dada como provada que foi o arguido BB, após se travar de razões com AA, ambos distanciados um do outro, sendo o primeiro quem se dirigiu à mesa onde este estava sentado.
5. Provado está que o recorrido agarrou o recorrente pelo colarinho e na zona do pescoço e depois empurraram-se mutuamente.
6. Só assim é possível compreender que o recorrente AA de seguida tenha reagido com um soco, como forma de se libertar do arguido BB, fazendo-o desequilibrar e cair no solo, tendo este partido um pé.
Isto porque,
7. O recorrido BB uma vez no chão e no estado em que ficou, com um pé partido, era humanamente impossível de seguida colocar-se de pé e agarrar-se aos colarinhos e ao pescoço do recorrente AA, agredindo-o.
8. Esta só pode ser a dinâmica dos factos descritos na conclusão 6 e 7, aquela que faz sentido, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, em que partindo de factos conhecidos objetivados em meios de prova controláveis se alcançam essas conclusões e não a seguida pelo Tribunal "A QUO".
9. O recorrente AA agiu em legítima defesa.
10. Reza o art.21º, da nossa Lei Fundamental, na parte em que dispõe que "todos têm o direito (...) de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.".
11. O art.31.º, n.ºs 1 e 2.º, alínea a), do Código Penal, estabelece que "não é ilícito o facto praticado em legítima defesa".
12. A legítima defesa vem prevista no art.32.º do Código Penal, e consiste no "... facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.".
13. Para a doutrina hoje dominante, o fundamento desta causa de justificação é duplo: a defesa da ordem jurídica e a autoproteção dos bens jurídicos do agredido. Não basta afirmar-se, para fundamentar a legítima defesa, que o direito não deve nunca ceder perante o ilícito; a defesa necessária, de preservação do bem jurídico ilicitamente agredido é também um fundamento dessa defesa. Cf. Figueiredo Dias, in "Direito Penal - Parte Geral ", Tomo I, 2.- Edição, Coimbra Editora, pág. 405 e Paulo Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código Penal" 4.- edição, UCE, pág. 252.
14. E são requisitos da legítima defesa: a) existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do dependente ou de terceiro, que deve ser atual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido de o seu autor não ter o direito de o fazer; b) circunscrever-se a defesa ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão; c) e o "animus defendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente.
15. A legitima defesa exclui a ilicitude do ato praticado.
16. O facto praticado pelo Recorrente AA encontra-se justificado.
17. Posto isto, ainda analisando os factos provados, à luz do que se deixa salientado, sem dúvida que se apresentam comprovados todos os elementos objetivos e subjetivos integrantes de um crime de ofensa à integridade física - artigo 143º do Código Penal.
18. Contudo também: a) houve, por parte do arguido BB e vítima, uma agressão atual, ou seja, um desenvolvimento, iminente, aos interesses pessoais (integridade física) do recorrente AA, e ilícita, por o seu autor não ter o direito de a fazer.
19. O Recorrido BB aproximou-se do segundo, do recorrente AA, com o propósito de o agredir, o que fez, sendo que houve por parte deste, com resulta da matéria de facto provada, uma agressão com um soco na cara do primeiro, tudo em defesa do bem referido na conclusão18, como meio necessário, na impossibilidade, manifesta, de recorrer a força publica, para repelir ou paralisar a atuação do agressor, atual e, ilícita, como acima ficou indicado.
20. Agiu o recorrente AA com o propósito de defesa, "animus deffendendi", sem uso excessivo do meio empregue (usou as mãos), o que é justificável e racional, para se defender.
21. Dai que haja de se considerar o aludido, como asténico e não censurável, por falta de culpa, com a consequente não punição do AA, uma vez que sem culpa não há punição criminal.
22. Na sequência, ocorrendo uma situação de legítima defesa, a procedência do pedido cível, com fundamento em alegada inexistência do facto ilícito criminoso com a consequente absolvição da parte criminal, mostra-se prejudicada porquanto não se verificam os pressupostos da responsabilidade extracontratual enunciados no art. 483.º do Código Civil.
23. Violadas encontram-se as disposições legais supra referidas.
(…).”
3. Responderam ao recurso o Ministério Público e BB ambos defendendo a improcedência do recurso e a manutenção da sentença recorrida.
O Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:
“(…)
1. AA não suscita qualquer reapreciação dos factos dados como provados pela sentença recorrida, defendendo que, com base nos ditos factos, o tribunal deveria tê-lo absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, e consequentemente absolvido da indemnização pela qual foi condenado.
2. Encontra-se consolidado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que o apuramento da intenção do agente, a fixação dos elementos subjetivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial e a aplicação do princípio in dubio pro reo constituem matérias de facto.
3. O Tribunal a quo expressou, de forma clarividente, o conjunto de razões pelas quais se convenceu de que AA agiu da forma descrita e com a intenção de molestar a integridade física de BB, explicitando o processo lógico-racional que levou a Meritíssima Juíza a concluir pela intenção de agredir por parte de AA e de BB e pela conduta dos mesmos com dolo direto.
4. AA não suscitou a reapreciação da decisão proferida sobre matéria de facto, quer em termos amplos, por erro de julgamento (erro na apreciação da prova), quer no quadro dos vícios do artigo 410.º do Código de Processo Penal (erro-vício).
5. Por conseguinte os factos inerentes aos elementos objetivos e subjetivos do crime de ofensa à integridade física previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, praticado por AA, não foram objeto de recurso por parte deste, a factualidade em questão encontra-se consolidada.
6. Ou seja, AA praticou a ação adequada a ofender o corpo de BB (elemento objetivo) e com dolo de dano ou de resultado, enquanto conhecimento e vontade de realização de determinado resultado (ofensa à integridade física de BB), em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal (elemento subjetivo), não resultando dos factos provados que AA tenha agido em legítima defesa, circunstância que alteraria a qualificação do facto, pois seria justificado e não punível criminalmente.
7. Como salientou o Juiz Conselheiro Maia Gonçalves, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/1997, processo nº 041695, “Tendo-se provado a intenção de ofender corporalmente, não se verifica legítima defesa por faltar o elemento fundamental que é o animus defendendi".
8. Por conseguinte, uma vez que AA não preconizou no recurso uma decisão distinta sobre a matéria de facto, aceitando, pelo contrário, a factualidade dada como provada, não existem elementos que suportem os requisitos legalmente previstos no artigo 32.º do Código Penal, devendo o recurso improceder.
9. Não obstante o predito, recorrendo à análise da decisão recorrida, constata-se que AA não agiu em legítima defesa.
10. Os ensinamentos jurisprudenciais e doutrinais anteriormente descritos ensinam- nos que a legítima defesa pressupõe a existência de uma agressão atual e ilícita a interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, e que a defesa deve ater-se exclusivamente aos meios necessários para fazer cessar a agressão.
11. Das declarações de AA em audiência de julgamento, bem como da factualidade dada como provada, conclui-se que a conduta de AA, nas circunstâncias em que foi concretizada, e contrariamente ao alegado no recurso:
a. não constituiu uma resposta a qualquer agressão atual de BB, uma vez que resulta dos factos provados (aceites pelo recorrente) que, quando AA desferiu o soco a BB, este não estava a responder ao ter sido agarrado pelo colarinho por BB, mas sim no âmbito de empurrões mútuos, porquanto (i) BB se dirigiu à mesa onde AA se encontrava sentado; (ii) nessa altura iniciaram uma discussão; (iii) após AA e BB iniciaram uma luta corpo a corpo; (iv) BB agarrou AA pelo colarinho, na zona do pescoço, e empurraram-se mutuamente; (v) no decurso da luta corpo a corpo de ambos, AA desferiu um soco com força que atingiu BB na face, do lado direito, enquanto lhe dizia: - "á devias ter apanhado há mais tempo, levaste agora!" (vi) devido à violência do aludido soco, BB perdeu o equilíbrio, tropeçou na base de um guarda-sol que se encontrava no local e caiu no chão.
b. não era necessária para fazer cessar o agarrar do seu colarinho, na zona do pescoço por BB, pois bastava que AA sacudisse os braços deste e se afastasse.
c. que foi perpetuada por AA, não com "animus defendendi", mas sim com vontade livremente determinada, com intenção de ofender a integridade física de BB, evidenciada também pela expressão que AA, nessa altura, dirigiu a BB: "já devias ter apanhado há mais tempo, levaste agora!".
12. Pelo exposto, não se pode excluir a ilicitude da conduta de AA. Aliás, tal conclusão encontra-se expressamente consagrada na decisão recorrida, onde se pode ler que: Não se apuraram quaisquer circunstâncias que excluam a ilicitude das condutas dos arguidos ou a sua culpa."
13. Conclui-se, pois, da matéria provada e da respetiva fundamentação aceites por AA, que não existem elementos que suportem os requisitos legalmente previstos no artigo 32.º do Código Penal para a aplicação do instituto da legítima defesa, mostrando-se inequivocamente provados todos os elementos constitutivos, objetivos e subjetivos, do crime de ofensa à integridade física simples, de que o recorrente foi declarado autor material.
14. Aliás, tal conclusão resulta da fundamentação da decisão recorrida, que indica os elementos tidos em consideração e que, objetivamente ponderados e valorados à luz da experiência comum, evidenciando que a mesma se respaldou no bom senso, expurgada de qualquer arbítrio do julgador, e munida de exemplar subsunção jurídica dos factos provados.
15. Pelo que a douta sentença deverá ser mantida na íntegra.
(…).”
II. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas, nas quais, de forma sintética e por referência à motivação do recorrente, são expostas as razões da discordância face à decisão recorrida (artigos 402.º, 403.º e 412.º, n.º 1 do CPP). Ao Tribunal de recurso cabe ainda apreciar de eventuais questões de conhecimento oficioso designadamente, se existentes, da verificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
No caso, importa apreciar da existência dos requisitos da legítima defesa, previstos no artigo 32.º do Código Penal.
III. Fundamentação
Vejamos os seguintes segmentos da sentença recorrida relativos à matéria de facto provada e respectivo enquadramento jurídico.
“(…)
1.1. - Factos provados:
1.1.1 Da acusação
Mostram-se provados com relevo os seguintes factos,
1. No dia ... de ... de 2021, pelas 18h20min, na ..., sita na ..., na ... no ..., mais concretamente na zona da esplanada, AA e BB travaram-se de razões, e iniciaram uma discussão a qual se iniciou quando o arguido BB que se dirigiu à mesa onde estava sentado o arguido AA;
2. Nessa sequência, de discussão, os arguidos AA e BB iniciaram uma luta corpo a corpo;
3. Designadamente, o arguido AA desferiu, com força, um soco que atingiu o arguido BB, na face, do lado direito, enquanto lhe disse; “já devias ter apanhado há mais tempo, levaste agora!”,
4. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido BB agarrou AA pelo colarinho, na zona do pescoço, aí o agarrando, e empurraram-se mutuamente;
5. Ao ser atingido pelo soco desferido pelo arguido AA, e devido à violência do mesmo, BB desequilibrou-se, tropeçou na base de um guarda-sol que se encontrava no local, e caiu ao chão;
6. AA e BB foram separados por populares que se encontravam no local;
7. Em consequência da conduta do arguido AA, BB sofreu dores nas regiões atingidas, assim como “ferida incisa infracentimérica na região parietal esquerda, superficial, pouco sangrante”, “escoriação na pálpebra superior direita” e “factura-luxação bimaleolar à direita”, tendo recebido assistência hospitalar, tendo tais lesões determinado, como consequência directa e necessária, 194 (cento e noventa e quatro) dias de doença, todos estes com afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
8. Em consequência da conduta do arguido BB, AA sofreu dores na região atingida, assim como sofreu arranhões e hematomas no pescoço, não tendo recebido qualquer assistência médica;
9. O arguido AA sabia que as suas condutas eram aptas a molestar a integridade física de BB e, não obstante, quis agir da forma por que o fez, com o propósito de alcançar tal resultado, o que conseguiu.
10. O arguido BB sabia que as suas condutas eram aptas a molestar a integridade física de AA e, não obstante, quis agir da forma por que o fez, com o propósito de alcançar tal resultado, o que conseguiu.
11. Os arguidos, actuaram sempre livre, deliberada e conscientemente;
12. Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas, e, ainda assim, não se coibiram de as adoptar.
Mais se provou que
13. Nenhum dos arguidos apresenta antecedentes criminais,
14. O arguido AA, encontra-se reformado,
15. Exercia a profissão de...
16. Vive com a esposa, que se encontra reformada por invalidez,
17. Aufere de pensão de reforma, a quantia de cerca de 1200.00 euros/mensais;
18. Em despesa de crédito à habitação, despende 600,00 euros/mensais;
19. Em consumíveis, nomeadamente, despesas em água, luz, gaz, internet e televisão por cabo, alimentação despende cerca de 400,00 euros mensais,
20. Tem ainda outras despesas, em medicação tanto sua, como da sua esposa;
21. O arguido BB exerce a atividade profissional de ..., na ...
22. Aufere, actualmente, a quantia de 960,00 euros mensais,
23. Vive sozinho.
24. Paga de renda de casa, a quantia de 100,00 euros/ mensais
25. Em consumíveis, nomeadamente, despesas de água, luz, gaz, internet e televisão por cabo, despende cerca de 300,00 euros mensais,
26. Em medicação, gasta também, actualmente valores não concretamente apurados
27. O arguido BB é pessoa bem considerada no meio económico/social em que se insere, sendo visto e considerado como pessoa pacífica,
1.1.2. - Do pedido cível deduzido pelo demandante cível AA
Além dos factos que constam dos pontos 1, 2, 4, 6, 8 e 10 provados da acusação mais se provou que:
1. Em face da conduta do arguido BB, este sofreu dores, ficando afetado emocionalmente
2. Devido à conduta do demandado BB este demandante sofreu consequências a nível de equilíbrio emocional, recolhendo-se em casa, tal o nervosismo, que de si se apoderou;
3. Tal estado ainda se mantém no presente, tendo deixado de frequentar o espaço onde os factos ocorreram, e onde convivia com os amigos.
1.1.3. - Do pedido cível deduzido pelo demandante cível BB
Além dos factos que constam dos pontos 1, 2, 3, 5, 7 e 9 provados da acusação mais se provou que,
1. Na sequência da conduta do arguido AA, e logo após a queda este sentiu muitas e intensas dores no membro inferior direito, ficando prostrado no chão;
2. Foi assistido no local pelos Bombeiros Voluntários do ..., que após lhe terem prestados os primeiros socorros, e estabilizado, transportaram-no de ambulância para o ...;
3. Deu entrada no serviço de urgência, apresentando ferida na região parietal esquerda, escoriação na pálpebra superior direita e queixas dolorosas no membro inferior direito;
4. Tendo em consideração as queixas apresentadas no membro inferior direito, foi solicitada a realização de exames complementares de diagnóstico, nomeadamente RX, no sentido de determinar a existência de lesões;
5. Realizados os exames estes revelaram fratura-luxação bimaleolar à direita;
6. Face à lesão diagnosticada, foi informado que teria de ficar internando e ser submetido a uma intervenção cirúrgica;
7. Ficou internado em ortopedia, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica à fratura bimaleolar, com colocação de material de osteossíntese, 6 dias após o internamento;
8. Foi-lhe ainda colocada uma bota gessada no membro inferior direito;
9. No dia ... de ... de 2021, foi-lhe dada alta hospitalar, com indicação de recolher ao domicílio, permanecer em repouso absoluto, e ser seguido em ambulatório na especialidade de ortopedia;
10. Bem como lhe foi prescrita medicação AINs, e a toma de injecção diária durante 30 dias;
11. O demandante recolheu ao seu domícilio onde permaneceu em repouso absoluto durante 15 dias, apenas se levantando para tratar da sua higiene pessoal e realização das necessidades fisiológicas;
12. Decorridos 15 dias, começou a ter alguma mobilidade, levantando-se e deambulando na sua habitação, sempre com o auxílio de canadianas,
13. O demandante, decorridos cerca de 15 dias após a realização da intervenção cirúrgica, começou a ser seguido em ambulatório, no ...;
14. Em ... de 2021, na consulta de Ortopedia do ..., foi prescrita ao demandante a realização de fisioterapia;
15. Em ... de 2021, o demandante iniciou tratamentos de medicina física e reabilitação na ..., tendo realizado cerca de 51 sessões de fisioterapia, - conforme documento que se dá por integralmente reproduzido - doc. n.º 2;
16. Somente decorridos 4 meses após a intervenção cirúrgica, o demandante deixou de andar de canadianas, ou seja, no mês de ... de 2021;
17. O demandante esteve em situação de incapacidade total absoluta para o trabalho, até ao dia ... de ... de 2021, tendo-lhe sido dada alta médica nessa data;
18. Em consequência do evento e por causa deste apresenta nomeadamente as seguintes sequelas; - mobilidade do tornozelo dolorosas acompanhadas de défices das amplitudes articulares;
19. as sequelas que ficou portador, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, implicam esforços acrescidos;
20. Necessitou da ajuda de uma terceira pessoa durante 4 (quatro) meses, após a alta hospitalar, para a realização dos atos básicos da sua vida diária, tais como tratar da higiene diária, alimentação e confeção de alimentos, tratamento de roupa, deslocações
21. Tendo em conta as lesões sofridas, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efetuados, as circunstâncias do evento, o quantum doloris foi fixado no grau 4,- numa escala valorativa de 7 graus;
22. Tendo em conta a impossibilidade em realizar atividades de correr, jogar futebol, fazer caminhadas, entre outros lúdicos, e próprios da idade, a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer, foi fixado no grau 3, numa escala valorativa de 7 graus;
23. O demandante exerce a atividade profissional de assistente operacional/fiel de armazém, na ....
24. No exercício da sua atividade profissional, à data do evento, auferia o salário médio mensal de € 900,00 (novecentos euros), tal como decorre dos recibos de vencimento que se dão por reproduzidos - doc. n.º 3;
25. Em consequência da conduta do arguido/ demandado AA esteve numa situação de incapacidade total absoluta para o trabalho, no período compreendido entre o dia ... de ... de 2021, e o dia ... de ... de 2021;
26. Durante o período que esteve impedido de exercer a sua atividade profissional referida em 26) o demandante recebeu subsídio de doença da Segurança Social.
27. Auferiu mensalmente da Segurança Social, a título de subsídio de doença o montante de € 733,50 (setecentos e trinta e três euros e cinquenta cêntimos), - documento n.º 4;
28. A Segurança Social, liquidou mensalmente o montante de €733,50, pelo que demandante teve uma perda patrimonial de €1002,00 (mil e dois euros), durante o período em que esteve de baixa;
29. Em despesas médicas e medicamentosas, o demandante despendeu o montante de €102,44 (cento e dois euros e quarenta e quatro cêntimos)
30. O demandante, à data dos factos, morava sozinho, sendo este quem realizava todas as lides domésticas, tais como cozinhar, limpeza da casa, e tratamento da roupa;
31. Em consequência da lesão sofrida, necessitou da ajuda de uma terceira pessoa.
32. Para o efeito recorreu à ajuda de uma empregada durante quatro meses, para cozinhar, tratar da roupa, limpar a casa, e ir as compras pagando mensalmente o valor de €200,00 (duzentos euros), pelo que despendeu durante o referido período o valor total de €800,00 (oitocentos euros);
33. O demandante desempenhava, à data dos factos, a atividade profissional de assistente operacional / fiel de armazém, - o que ainda faz- auferindo a retribuição média mensal de € 900,00 (novecentos euros);
34. Nasceu a ... de ... de 1964, tendo à data dos factos 56 anos de idade- documento que se dá por reproduzido n.º 6;
35. Passou a ter dificuldades em exercer a atividade profissional que anteriormente desempenhava;
36. As limitações e dificuldades que apresenta implicam uma limitação da produtividade, obrigando que tenha necessidade de efetuar pausas com regularidade, não conseguindo estar longos períodos de pé, e recusando alguns trabalhos quando os mesmos implicam ter de caminhar em terrenos irregulares e sinuosos, bem como efetuar alguns trabalhos e carga e descarga;
37. Era uma pessoa ativa, dinâmica, sem qualquer limitação física.
38. Em consequência da agressão sofrida e das sequelas que ficou portador, a sua vida alterou-se pessoal, desportiva, profissional e socialmente.
39. Anteriormente ao acidente, o demandante gostava de conviver;
40. Após, o demandante tornou-se muito introvertida, reservada;
41. Anteriormente gostava de sair, ir a discotecas, festas, concertos, com os seus amigos;
42. Actualmente, raramente sai com os amigos, pois não consegue estar muito tempo de pé, tendo necessidade de se sentar com frequência;
43. Quando permanece longos períodos de pé ou caminha por períodos mais longo, começa a claudicar.
44. Sente vergonha das cicatrizes que tem no membro inferior, bem como por claudicar.
45. O demandante gostava de fazer caminhadas, correr, jogar à bola;
46. Após a lesão sofrida, deixou de fazer essas atividades físicas, pois sente muitas e intensas dores no membro inferior direito, bem como, este fica inchado.
47. Apresenta limitações na sua vida pessoal, tem dificuldades em subir e descer escadas, tem dificuldades em caminhar em terrenos irregulares, em caminhar na praia;
48. Anteriormente, não tinha qualquer limitação ou dificuldade no desempenho da sua atividade profissional;
49. Atualmente, o demandante tem dificuldade em realizar a sua atividade profissional, tendo de fazer pausas com regularidade, pois não consegue permanecer longos períodos em pé;
50. A atividade profissional desempenhada consiste em efetuar cargas e descargas de material, não conseguindo, muitas vezes, realizar esses trabalhos.
51. O demandante tem de recorrer à ajuda dos colegas, para conseguir realizar as tarefas que lhe são atribuídas.
52. O facto de não conseguir realizar alguns trabalhos e ter de efetuar pausas, causa-lhe um sentimento de frustração e vergonha,
53. Quer logo após o evento, quer durante o período de recuperação, o demandante sentiu muitas e intensas dores;
54. Atualmente, continua a sentir muitas e intensas dores, que se exacerbam quando faz algum esforço acrescido, tendo necessidade de tomar medicação,
55. Foi submetido a uma intervenção cirúrgica que lhe criou muito medo, receio e ansiedade,
56. Esteve internando numa unidade hospitalar durante oito dias.
57. Foi sujeito a inúmeros exames de diagnóstico, ressonâncias, ecografias e RXs, com os consequentes prejuízos para a saúde que os mesmos causam.
58. durante o período de reabilitação realizou inúmeras sessões de fisioterapia o que exige sacrifício físico e psicológico, para além de tempo perdido desde logo nas deslocações.
59. Teve de se deslocar a inúmeras consultas médicas e a tratamentos médicos.
60. Durante 6(seis) meses, não conseguia dormir, pois não tinha posição na cama.
61. A única forma de conseguir dormir era sentado, pelo que durante seis meses dormiu sentado num sofá.
62. Não conseguia ter um sono contínuo, pois sonhava regularmente que estava a ser agredido, tendo pesadelos, acordando aos gritos e em pânico.
63. Em consequência do evento, necessitou de ajuda permanente de terceira pessoa, para a realização dos atos básicos da sua vida diária, durante quatro meses.
64. O demandante sentiu-se totalmente dependente e incapaz, necessitando sempre de ajuda de terceiros para poder sair de casa, e se deslocar.
65. Essa dependência causou-lhe grande irritabilidade, agressividade e nervosismo.
66. Do relatório de exame pericial actual consta que se cita:CLINICA FORENSE RELATÓRIO DA PERÍCIA DE AVALIAÇÃO DO DANO CORPORAL EM DIREITO CÍVEL PROCESSO nº ...relatório nº 2024/045155.R... Data do exame .../.../2024;
PREÂMBULO
(…)
Atualmente mantém a profissão e o posto de trabalho.
No dia .../.../2021, pelas 18:20 horas, sofreu agressão infligida por um conhecido, com murro na face, após o qual recuou, pisou um objeto, torcendo o tornozelo direito, e caiu.
Na sequência do evento, foi assistido no local pelos elementos dos Bombeiros do ..., que lhe prestaram os primeiros socorros e o transportaram para o Serviço de Urgência (SU) do ....
Nesse local foi observado e realizou exames radiográficos, que terão revelado fratura do tornozelo direito. Nega ferimentos cutâneos com necessidade de sutura. Ficou internado e veio a ser operado ao tornozelo direito em .../.../2021, com colocação de material de osteossíntese, que mantém. Teve alta hospitalar no dia .../.../2021, para o domicílio, deslocando-se com duas canadianas.
Refere ter permanecido em situação análoga ao repouso absoluto, por período não
especificado, necessitando de ajuda de terceira pessoa para a realização das atividades básicas de vida diária como a alimentação, higiene pessoal e vestuário.
Foi seguido na consulta externa de ortopedia do .... O gesso foi removido cerca de um mês depois.
No final de ... de 2021 deixou de utilizar canadiana como auxiliar de marcha.
Realizou tratamentos de fisioterapia numa clínica na ... até ... de 2021.
Paralelamente foi seguido na Médica de Família do Centro de Saúde do ..., tendo sido prescrita alguma medicação para a dor e emitidos certificados de incapacidade temporária para o trabalho, desde o acidente até .../.../2022.
(…)
B. EXAME OBJETIVO
1. Estado geral
O Examinando apresenta-se: consciente, orientado, colaborante, com bom estado geral, idade aparente de harmonia com a idade real O Examinando apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação
2. Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento O examinando apresenta as seguintes sequelas:
• Membro inferior direito: ausência de dismetria clínica do membro; hipotrofia de 0,5 cm na coxa e na perna comparativamente ao membro contralateral, medidas a 15 cm da interlinha articular do joelho; cicatriz cirúrgica hipocrómica longitudinal na região maleolar lateral, medindo 10 cm de comprimento; cicatriz cirúrgica hipocrómica longitudinal na região maleolar medial, medindo 5 cm de comprimento; ligeiro valgo aparente do tornozelo; perímetro bimaleolar simétrico; rigidez da dorsiflexão do tornozelo, limitada a 10° (faz 20° à esquerda), flexão plantar preservada; limitação nos últimos graus de inversão do pé, dolorosa no extremo do arco de cinésia.
(…)
CONCLUSÕES;
• A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em .../.../2022. - Período de Défice Funcional Temporário Total fixável em 8 dias, aos quais deverão ser acrescentados 8 dias para eventual remoção futura do material de osteossíntese. - Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável em 302 dias, aos quais deverão ser acrescentados 22 dias para eventual remoção futura do material de osteossíntese,
• Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável em 310 dias, aos quais deverão ser acrescentados 30 dias para eventual remoção futura do material de osteossíntese,
• Quantum Doloris fixável no grau 4/7.
• Défice Funcional Permanente da integridade Físico-Psíquica fixável em 3 pontos - As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares;
• Dano Estético Permanente fixável no grau 1/7
• Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7;
(…).”
II. 1.1.5. - Pedido cível deduzido pelo demandante cível ...
Além dos factos provados nos pontos 1) a 7) da acusação, resultaram ainda provados os seguintes factos;
O ... é um hospital público que no âmbito do serviço ... presta serviços de assistência hospitalar à população;
Em face dos factos que constam dos pontos 1, 2, 3, 5 e em consequência da conduta do arguido/ demandado AA, BB foi assistido aos serviços de urgência deste demandante, por forma a receber tratamento médico, tendo o CC, nessa sequência, prestado serviços da sua especialidade, na quantia total de 3674, 83 euros.
(…).”
Apreciando.
Como resulta da motivação do recurso interposto e respectivas conclusões, a pretensão absolutória do recorrente assenta apenas na alegação de que face à factualidade provada - e não impugnada -, agiu em legítima defesa, pretendendo que, desse modo, se considere excluída a ilicitude da sua conduta.
Dispõe o artigo 32.º do Código Penal que “Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.”
Assim, para que se configure uma situação de legítima defesa atendível e excludente da ilicitude, exige-se, por um lado, uma agressão actual ou iminente a interesses pessoais ou patrimoniais do defendente ou de terceiro e, por outro, que a actuação do visado por essa agressão tenha como fim afastá-la e se circunscreva aos meios necessários para o efeito.
A actuação do agente não se encontra legitimada pela ordenamento jurídico se, nas circunstâncias, se impuser um comportamento diverso, como recorrer à força pública, nem quando os meios empregues para afastar a agressão se apresentam como desproporcionais e excessivos1. Também não haverá legítima defesa quando o que se pretende é ripostar e agredir nos mesmos moldes em que se é ou se foi agredido.
No caso, e face à factualidade provada, temos que após discussão, ambos os arguidos “iniciaram uma luta corpo a corpo” agredindo-se mutuamente nos moldes descritos supra.
Ao contrário do alegado, nem sequer resulta assente que tenha sido BB a iniciar o confronto físico e muito menos que o ora arguido tenha actuado movido por um qualquer intuito defensivo. Conforme consta da matéria de facto provada, actuaram ambos de forma voluntária e consciente com o propósito se se molestarem fisicamente, não se vislumbrando como, nas circunstâncias, o soco desferido pelo ora recorrente possa ser enquadrado como uma actuação defensiva.
De resto, e como referido na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público, a intenção do agente e a fixação dos elementos subjectivos do dolo, constitui matéria de facto que não foi posta em causa pelo recorrente.
Assim, nenhuma censura merece a sentença recorrida quanto à subsunção jurídica da conduta de ambos os arguidos e no que ora releva, do recorrente, como um crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
No que respeita à condenação cível, a pretensão do recorrente assentava na alegada “inexistência do facto ilícito criminoso” por via da exclusão da ilicitude da sua conduta.
Improcedendo a pretensão do arguido quanto à absolvição da prática do crime pelo qual foi condenado, é também de improceder o recurso quanto à sua condenação no ressarcimento danos daquele decorrentes.

III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s.
Notifique.
(Acórdão elaborado pela relatora e revisto pelos signatários - artigo 94º, n.º 2 do Código de Processo Penal).

Lisboa, 18 de Junho de 2025.
Rosa Vasconcelos
Alfredo Costa
João Bártolo

1. Verificando-se neste caso, uma actuação com excesso de legítima defesa (artigo 33.º do Código Penal).