CONTRATO-PROMESSA
COMPRA E VENDA
CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
SOCIEDADE COMERCIAL
CONSTITUIÇÃO DE PESSOA COLETIVA
PERSONALIDADE JURÍDICA
REGISTO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
PROMITENTE-VENDEDOR
PRESUNÇÃO JUDICIAL
FORMA ESCRITA
PROVA DOCUMENTAL
IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Sumário


I - Não vale como cessão da posição contratual as declarações dos promitentes vendedores insertas em contrato-promessa segundo as quais representavam uma sociedade a constituir por eles e que seria ela a dona e legitima proprietária das fracções prometidas vender.
II – Os promitentes vendedores só não responderiam pelo incumprimento da promessa de venda se a sociedade, após o registo definitivo do contrato, tivesse assumido os direitos e obrigações dos promitentes vendedores, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º do Código das Sociedades Comerciais ou nos termos do n.º 2 do mesmo preceito.

Texto Integral


Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça


AA, residente em ..., França, propôs a presente acção declarativa com processo comum contra BB, CC e DD, todos com domicílio escolhido na Rua ..., ..., em ... ..., actualmente Rua Professor ..., ..., em ... ..., pedindo:

1. Se declarasse a resolução, com todos os efeitos legais em 27 de Agosto de 2013, do contrato-promessa de 14 de Setembro de 1998, por incumprimento definitivo pelos promitentes vendedores, da venda em simultâneo dos apartamentos n.ºs 201 e 250 do empreendimento da Rua ..., n.º 2, 2-A e 2-B, na ...;

2. A condenação solidária dos réus a pagarem à autora a indemnização total de € 279.382,38.

Para o efeito alegou em síntese:

• Que em 14 de Setembro de 1998, os réus prometeram vender à autora e esta prometeu comprar-lhes, livres de quaisquer ónus, encargos e responsabilidades, designadamente hipotecárias, duas fracções autónomas a que correspondem os apartamentos n.ºs 101 e 150 da urbanização designada por C..... .. ........., sita na Rua ..., n.ºs 2, 2-A e 2-B, na ..., identificadas pelas letras “BL” e “DO”, respectivamente, e a que hoje correspondem os números 201 e 250, também respctivamente;

• Que a autora pagou o preço acordado;

• Que os réus não cumpriram a promessa.

No decurso das diligências para citação do réu BB apurou-se que o mesmo faleceu em ... de ... de 2013. Foi deduzido incidente de habilitação de herdeiros, findo o qual foi proferida decisão que julgou habilitado o Ministério Público como representante dos sucessores incertos de BB para com ele prosseguir os termos da acção.

O réu DD, citado editalmente, não deduziu oposição. O Ministério Público, citado, ao abrigo do n.º 1 do artigo 21.º do CPC, também não contestou.

O réu CC contestou. Na sua defesa alegou que os direitos da autora emergentes do contrato-promessa estavam prescritos; que a posição dos réus no contrato-promessa havia sido transmitida à sociedade B..., S.A., o que foi aceite pela autora, pelo que ele, réu, não tinha legitimidade substantiva para a acção. Ipignou ainda os factos alegados na acção.

A autora respondeu, pedindo se julgassem improcedentes as excepções invocadas.

No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de prescrição e decidido que o réu CC era parte legítima.

O processo prosseguiu e após a realização da audiência foi proferida sentença que decidiu julgar procedente a acção e, em consequência, condenar solidariamente os réus sucessores incertos de BB, CC e DD a pagarem à autora a quantia de 279.382,38€ (duzentos e setenta e nove mil trezentos e oitenta e dois euros e trinta e oito cêntimos).

Apelação:

O réu CC não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação, pedindo se revogasse e substituísse a sentença recorrida por acórdão absolutório.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 19 de Novembro de 2024, julgou procedente a apelação e, em consequência, revogou a sentença recorrida, absolvendo todos os réus do pedido.

Revista:

A autora não se conformou com o acórdão e interpôs recurso de revista, pedindo se revogasse e substituísse o acórdão recorrido por decisão que, reconhecendo os fundamentos invocados por ela, julgasse a acção totalmente procedente e condenasse os réus solidariamente no pagamento, à autora, do dobro do sinal prestado.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. O douto acórdão recorrido viola lei substantiva por erro de determinação da norma aplicável (alínea a) do n.º 1 do artigo 674.º do Código de Processo Civil), padecendo ainda de erro na apreciação da prova, radicado na ofensa de disposição expressa da lei – o n.º 1 do artigo 364.º do Código Civil – o qual exige certa espécie de prova para a existência do facto (n.º 3 do artigo 674.º do Código Civil).

2. O Tribunal a quo não atendeu à previsão do artigo 425.º do Código Civil, a respeito da cessão da posição contratual, segundo o qual “a forma da transmissão, a capacidade de dispor e de receber, a falta e vícios da vontade e as relações entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão”, previsão que expressamente estabelece para o contrato-instrumento (a cessão) os mesmos requisitos formais do contrato-promessa que lhe serve de base.

3. A existência de uma cessão da posição contratual a respeito do contrato-promessa dos autos apenas poderia ser demonstrada por documento escrito, o qual não consta dos autos.

4. O Tribunal a quo fez assentar, pois, a decisão recorrida numa presunção judicial de existência de cessão de posição contratual que o n.º 1 do artigo 364.º do Código Civil expressamente afasta no caso da prova da existência de um contrato de cessão de posição contratual de bem imóvel.

O recorrido respondeu, sustentando a manutenção do acórdão recorrido.


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O ora relator entendeu que o artigo 19.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, sobre assunção pela sociedade de negócios anteriores ao registo, era susceptível de ser aplicável à resolução do litígio.

As partes foram notificadas, em cumprimento do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, para se pronunciarem sobre a aplicação do mencionado preceito ao litígio. Apenas se pronunciou CC. Alegou, em síntese:

a. Os direitos e obrigações emergentes do contrato-promessa foram assumidos pela B..., S.A. nos termos do n.º 1 e com os efeitos do n.º 3 do artigo 19.º do CSC;

b. Sem prescindir, os direitos e obrigações emergentes do contrato promessa foram assumidos mediante decisão da administração da B..., S.A., comunicada à A. antes de decorridos os 90 dias do registo, mediante a assunção do negócio pela sociedade nos termos do n.º 2 do artigo 19.º do CSC, retroagindo os seus efeitos à data da celebração e liberando os RR. nos termos do n.º 3;

c. Sem prescindir, não se encontrando preenchida nenhuma das situações previstas nas alíneas do n.º 1 ou no n.º 2 do artigo 19.º do CSC dispostas para o regime da assunção, tal não afasta nem impede a transmissão da posição contratual mediante o regime da cessão da posição contratual, na dependência de existir o necessário acordo da contraparte para a predita cessão;

d. Não se podendo, a esse respeito, olvidar que A. e RR. firmaram e exararam precisamente tal acordo de cessão da posição contratual no «próprio contrato promessa, embora a sua eficácia tenha ficado dependente da constituição da sociedade e subsequente comunicação desse facto à A., tal como veio a ocorrer (cf. factos provados 6. e 9.). Considera-se, pois, aceite e ratificada pela A. tal cessão da posição contratual.» (cfr. Acórdão recorrido).

e. Seja por via do instituto da assunção (artigo 19.º do CSC) seja por via do instituto da cessão da posição contratual (artigos 424.º e segs do CC), a posição jurídica primitivamente investida pelos RR. migrou para a sociedade B..., S.A., a qual passou então a assumir todo o complexo obrigacional emergente do contrato promessa.


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Questões suscitadas pelo recurso:

• Saber se o acórdão recorrido, ao afirmar que a posição dos réus, promitentes vendedores, havia sido cedida à sociedade B..., S.A. ofendeu disposição expressa lei que exigia prova documental para prova de tal cessão da posição contratual;

• Saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao decidir que a posição contratual, no contrato-promessa, dos promitentes vendedores havia sido cedida à sociedade B..., S.A. e que era esta quem respondia pelo incumprimento do contrato-promessa.


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Factos considerados provados pelo acórdão recorrido:

1. Em 23-11-1994 foi descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., o prédio nº ..32, da freguesia da ....

2. Em 14-09-1998, por escrito que denominaram contrato-promessa de compra e venda, a autora como segunda outorgante, e os réus, como primeiros outorgantes,

3. referindo que “representam pessoalmente até à constituição da sociedade que estes integrarão” prometeram vender, livres de quaisquer ónus ou encargos e responsabilidades, designadamente hipotecárias, em simultâneo as frações a que corresponderão os apartamentos nºs 101 e 150 da Urbanização designada por C..... .. ........., na ..., concelho de ..., de que será dona e legítima proprietária sociedade a constituir pelos mesmos, pelo preço de global de 28.000.000 ESC., correspondentes a 139.691,19€ (cento e trinta a nove mil, seiscentos e noventa e um euros).

4. No mesmo escrito, acordaram igualmente:

a. Com o presente contrato-promessa, o segundo outorgante pagou a quantia de Es. 7 000 000$00 (sete milhões de escudos), de que é dada quitação;

b. A quantia de Esc. 2 000 000$00 (dois milhões de escudos), como reforço de sinal, será paga pelo segundo outorgante até 31 de Agosto de 1999;

c. A quantia de Esc. 2 000 000$00 (dois milhões de escudos), como reforço de sinal, será paga pelo segundo outorgante até 31 de Dezembro de 1999;

d. A quantia de Esc. 3 000 000$00 (três milhões de escudos), como reforço de sinal, será paga pelo segundo outorgante até 30 de Abril de 2020;

e. O restante, ou sejam, 14 000 000$00 (catorze milhões de escudos) será pago pelo segundo outorgante no acto da escritura de compra e venda.

5. E também que:

• A escritura de compra e venda da fracção atrás referida será realizada (salvo caso de força maior) até ao 4.º trimestre de 2000;

• O segundo outorgante irá contrair um empréstimo bancário para pagamento de parte do preço acordado, obrigando-se a primeira outorgante a prestar toda a colaboração necessária para o efeito, designadamente a facultar a documentação respeitante às fracções autónomas a que se refere o presente contrato, e bem assim requerer registos provisórios de transmissão da propriedade das mesmas fracções a favor do segundo outorgante, logo que este o solicite;

• Os primeiros outorgantes, verificado o condicionalismo do número anterior, convocarão o segundo outorgante para a realização da escritura com antecedência não inferior a quinze dias, por carta ou postal registado com aviso de recepção, indicando o local, hora e data para a respectiva outorga.

• No prazo de cinco dias a contar da recepção da comunicação referida, o segundo outorgante entregará no domicílio dos primeiros outorgantes, o conhecimento da sisa (ou documento comprovativo da respectiva isenção), fotocópia do bilhete de identidade e do seu cartão de contribuinte, e qualquer outro documento eventualmente necessário para a escritura e cuja obtenção compita ao segundo outorgante.

6. A autora pagou, em cumprimento do acordado, a quantia total de 139.691,19€ (cento e trinta a nove mil, seiscentos e noventa e um euros) entre 14-09-1998 e 20- 05-1999.

7. Em 12-07-1999, foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial de ... – 1ª Seção, a constituição da sociedade B..., S.A.., com o capital social de 52.500,00€, dividido por 5250 ações ordinárias no valor nominal de 10,00€.

8. O réu DD é presidente do conselho de administração da B..., S.A., desde a data da sua constituição até ao presente.

9. Os outros dois membros do conselho de administração são terceiros.

10. Em 20-05-1999, os réus comunicaram à autora, por carta que esta recebeu: Vimos informar V. Exa que já foi efectuada a escritura da Sociedade B..., S.A., que vai ser a promotora do Empreendimento sito na ....

11. Em 16-01-2001, o prédio referido no ponto 1. foi adquirido por compra por B..., S.A.

12. Em 22-07-2004, foi constituída a propriedade horizontal do prédio referido em 1) e descritas, designadamente, as frações autónomas identificadas pelas letras “DO”, correspondente ao apartamento turístico designado por “250”, e BL, correspondente ao apartamento turístico designado por “201”.

13. Os apartamentos nºs 101 e 150 referidos no contrato-promessa correspondem, respetivamente, às frações autónomas identificadas pelas letras “DO”, correspondente ao apartamento turístico designado por “250”, e BL, correspondente ao apartamento turístico designado por “201”

14. Em 29-11-2023, a fração autónoma “DO” do prédio referido em 1) foi adquirida por Banco Santander Totta, SA, por adjudicação em processo de execução fiscal em que foi executada a sociedade B..., S.A..

15. Em 04-12-2020, a fração autónoma “BL” do prédio referido em 1) foi adquirida por EE, por adjudicação em processo de execução em que foi executada a sociedade B..., S.A.

16. , prestou quitação das quantias pagas pela autora e descritas em 6) dos factos provados, nas datas de 01.06.2001, 17.09.2001, 09.10.2001, 05.02.2004 e de 23.03.2004, conforme recibos que constituem os documentos 3, 5, 7, 8 e 10 juntos com a petição inicial.


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Descritos os factos, passemos à resolução das questões supra enunciadas.

Antes de respondermos à primeira questão acima enunciada, importa dizer o seguinte sobre litígio e sobre as questões que ele suscitava.

Na origem do conflito que opõe a autora, ora recorrente, aos réus, recorridos, está o incumprimento do contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 14 de Setembro de 1998, no qual BB (já falecido), CC e DD prometeram vender à autora duas fracções autónomas correspondentes aos apartamentos n.ºs 101 e 150 da urbanização designada por C..... .. ........., na ..., concelho de ....

Na presente revista, não se discute a questão do incumprimento da promessa de venda das fracções. A sentença proferida em 1.ª instância concluiu no sentido do incumprimento. Chegou a esta conclusão com base na impossibilidade de cumprimento da promessa de venda, visto que as fracções prometidas vender foram adquiridas por terceiros em consequência de vendas em processos de execução (pontos números 14 e 15 dos factos provados). O acórdão da Relação também laborou no pressuposto do incumprimento da promessa de venda das fracções, afirmando que os réus não o contestaram.

Em substância, o que se discute na revista é a questão de saber quem é que responde pelo incumprimento, ou seja, quem é que está constituído na obrigação de pagar à autora, ora recorrente (promitente compradora), o dobro do que ela prestou, como determina o n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, no caso de o não cumprimento do contrato-promessa ser devido ao promitente que recebeu o sinal.

A sentença proferida em 1.ª instância entendeu que eram os sucessores de BB (falecido em ... de ... de 2013) e os réus CC e DD que estavam obrigados a responder pelo incumprimento pois os promitentes vendedores haviam sido estes últimos e BB.

A Relação decidiu que a responsabilidade pelo incumprimento cabia à sociedade B..., S.A. E cabia a esta sociedade porque, segundo o acórdão recorrido, BB, CC e DD haviam sido cedido a sua posição contratual de promitentes vendedores à mencionada sociedade. O acórdão recorrido viu a prova da cessão da posição contratual nas seguintes declarações, constantes do preâmbulo do contrato-promessa e da cláusula 2.ª: “Os réus representam pessoalmente até à constituição da sociedade que estes integrarão”; “Os primeiros outorgantes comporão uma sociedade que é dona e legítima proprietária das fracções autónomas a que correspondem os apartamentos 101 e 150 da urbanização designada por C..... .. ......... na ..., concelho de ...”.

Segundo o acórdão, a cessão da posição contratual resultava, pois, do próprio contrato-promessa, embora a sua eficácia tenha ficado dependente da constituição da sociedade e comunicação à autora, o que veio a suceder. E, assim, uma vez que os promitentes vendedores cederam validamente a sua posição contratual, no contrato-promessa, à sociedade B..., S.A., entendeu que foi ela quem passou a estar vinculada ao cumprimento da promessa de venda e é a ela e não aos réus que cabe que responder pelo incumprimento de tal promessa.

A recorrente insurge-se contra a tese da cessão da posição contratual com a alegação de que o tribunal a quo a deu como demonstrada com base numa presunção, quando decorria do artigo 425.º do Código Civil que ela (cessão da posição contratual) apenas podia ser demonstrada por documento escrito e que esse documento escrito não existia. Acusou, em consequência, o acórdão de ter violado o n.º 1 do artigo 364.º do Código Civil.

Com isto, entramos na resolução da primeira questão, sendo de responder negativamente à mesma. Vejamos.

Em primeiro lugar, não é exacto que o acórdão sob recurso tenha recorrido a uma presunção judicial para afirmar a cessão da posição contratual dos réus à sociedade B..., S.A.. Decorre da noção de presunções constante do artigo 349.º do CC que a presunção judicial é uma ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto conhecido. Sucede que o acórdão sob recurso, para afirmar a cessão da posição contratual, moveu-se no domínio da interpretação das declarações de vontade acima transcritas, à luz do critério enunciado no n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, e da aplicação do direito a tais declarações. Não, foi, pois, com base num juízo presuntivo que o acórdão sob recurso afirmou a cessão da posição contratual.

Em segundo lugar, também não é exacto que o artigo 425.º do Código Civil exija documento escrito para prova da existência da cessão da posição contratual.

O artigo 425.º do CC dispõe sobre o regime da cessão da posição contratual, em matéria de forma, de capacidade de dispor, de falta e vícios de vontade e das relações entre as partes. Segundo o preceito todos estes aspectos definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão.

A remissão da forma da cessão da posição contratual para a forma do tipo de negócio que serve de base tem a sua razão de ser no seguinte. Como explicam autores como Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, página 403) e Mário Júlio de Almeida Costa (Direito das Obrigações, 11.ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, página 835), a cessão é um contrato de causa variável, podendo ter por base um contrato de compra e venda, uma doação, uma dação em pagamento. Socorrendo-nos das palavras deste último autor na obra acabada de citar, página 835, “... intervêm dois contratos distintos: o contrato inicial ou básico, celebrado originariamente entre o cedente e o cedido, de onde resulta o complexo de direitos e deveres que constitui o objecto da cessão; e o contrato através do qual se opera a cessão (negócio causal), que pode consistir numa venda, doação, dação em cumprimento...”.

Deste modo, a resposta à questão de saber se a lei exige documento escrito para prova da cessão da posição contratual é definida em função do negócio que serve de causa/fonte à cessão da posição contratual. Se a lei exigir documento para prova deste negócio, então é de afirmar que a lei exige documento para prova da cessão.

No caso, à luz do que foi decidido no acórdão recorrido, não se está em condições de indicar o regime da forma do negócio que serviu de base à cessão da posição contratual dos réus para a sociedade B..., S.A. pois nele não foi indicado o negócio que serviu de base à cessão.

Laborando-se, no entanto, no pressuposto em que labora a recorrente, ou seja, que o artigo 425.º do Código Civil exigia documento escrito, como forma da cessão da posição contratual, e que a essa exigência de forma se aplicava o n.º 1 do artigo 364.º do Código Civil, então o mais que se poderia questionar era a validade formal e não a prova da cessão.

Com efeito, em matéria de forma, especialmente em matéria de exigência legal de documento escrito, importa distinguir, em conformidade com os n.ºs 1 e 2 do artigo 364.º do Código Civil, entre o documento escrito que a lei exige como condição de validade da declaração negocial (n.º 1) e o exigido apenas para prova da declaração (n.º 2).

Na 1.ª hipótese, a inobservância da forma legalmente prescrita não obsta à demonstração, por meio de prova diferente do documento escrito, da declaração negocial. O que sucederá, no caso de a declaração não observar a forma legalmente prescrita, é a sua nulidade, quando outra não for a sanção especialmente prevista na lei (artigo 220.º do Código Civil). Só na segunda hipótese é que a inexistência de documento obstará à prova da existência da declaração, salvo se o documento for substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que neste último caso, a confissão constasse de documento de igual ou superior valor probatório.

Deste modo, a decisão do acórdão recorrido de julgar demonstrada a cessão da posição contratual ofenderia o artigo 425.º do Código Civil se resultasse desta disposição que a cessão da posição contratual apenas podia ser provada por documento escrito, o que não sucede.

De resto, de acordo com a lógica argumentativa do acórdão, a cessão da posição contratual estava provada por documento escrito, pois resultava de declarações constantes do contrato-promessa e este foi reduzido a escrito.

Pelo exposto, ao afirmar que a posição contratual dos promitentes vendedores havia sido cedida à sociedade B..., S.A., o acórdão recorrido não ofendeu disposição expressa da lei que exigia documento escrito para prova da existência de tal cessão da posição contratual.

Questão diferente – e que é de considerar compreendida na alegação da recorrente - é a de saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao decidir que a posição contratual dos promitentes vendedores havia sido cedida à sociedade B..., S.A. e que era esta quem respondia pelo incumprimento do contrato-promessa. Com isto entramos na responda à segunda. Resposta que é afirmativa. Vejamos.

A noção de cessão da posição contratual consta do n.º 1 do artigo 424.º do Código Civil. Dela decorre que é uma figura privativa do contrato com prestações recíprocas e que consiste na transmissão, a um terceiro, da posição contratual de um dos contraentes, com o consentimento do outro.

Vê-se, assim, que é uma figura tripartida, no sentido de que tem a participação de 3 sujeitos: o contraente que transmite a sua posição no contrato (cedente); o terceiro que adquire a posição (cessionário) e a contraparte do cedente no contrato inicial. Como escrevia Rodrigues Bastos, em anotação ao artigo 425.º do Código Civil, “A cessão da posição contratual consta de três declarações: duas dos titulares da relação jurídica de base, e outra do terceiro que entra na posição de um daqueles” (Notas ao Código Civil, Volume II, Lisboa, 1988, página 214).

Assim sendo, a cessão da posição contratual dos promitentes vendedores à sociedade B..., S.A. exigia o concurso de declarações daqueles, desta e da autora, ora recorrente.

Sucede que as declarações de vontade onde o acórdão recorrido vê a transmissão à sociedade B..., S.A. da posição que os promitentes vendedores ocupavam no contrato-promessa pertencem apenas a estes. Foram eles que declararam que “representam pessoalmente até á constituição da sociedade que estes integrarão” e que “... comporão uma sociedade que é dona e legítima proprietária das fracções autónomas a que corresponde os apartamentos n.ºs 101 e 150 da urbanização designada por C..... .. ......... na ..., concelho de ...”.

E, assim, ainda que se visse em tais declarações a vontade de os promitentes vendedores cederem à sociedade B..., S.A. a posição contratual que ocupavam no contrato-promessa celebrado com a autora, elas seriam insuficientes para configurar a cessão da posição contratual. Faltava no contrato-promessa a declaração de aquisição da posição contratual dos promitentes vendedores, por parte da sociedade B..., S.A.. A explicação desta falta é simples: a sociedade B..., S.A. ainda não existia, aquando da celebração do contrato-promessa. Com efeito, segundo o artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais, as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem (sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras, que não tem relevância para o caso) e o contrato de constituição da sociedade só foi registado em 12-07-1999, isto é, cerca de 10 meses após a celebração do contrato-promessa. Logo, como é bom de ver, na altura da celebração do contrato-promessa de compra e venda não era juridicamente possível à sociedade emitir declarações de vontade, como não era juridicamente possível adquirir a posição contratual dos promitentes vendedores no contrato-promessa.

Assim, pese embora o respeito que nos merece o acórdão recorrido, não tem apoio na matéria de facto a decisão de qualificar as declarações acima transcritas como uma cessão da posição contratual dos promitentes vendedores à sociedade B..., S.A..

Ao emitirem as declarações acima transcritas, o que BB, CC e DD quiseram dizer foi o seguinte: prometiam vender à autora duas fracções autónomas, mas faziam-no em nome de uma sociedade que ainda não estava constituída, mas que iria ser constituída por eles e que, depois da constituição da sociedade, ela assumiria a posição deles, promitentes vendedores.

Esta declaração é compreensível se tivermos em conta que, na altura da celebração do contrato-promessa (14 de Setembro de 1998), as fracções ainda não existiam (tratou-se, pois, da promessa de venda de coisa futura) e que seria a sociedade a constituir por eles, promitentes vendedores, a proprietária de tais fracções.

O que os promitentes vendedores declararam, no contrato-promessa sobre a constituição da sociedade e sobre a propriedade das fracções concretizou-se. Com efeito, está provado:

• Que, em 20 de Maio de 1999, os réus comunicaram à autora que efectuaram a escritura de constituição da sociedade B..., S.A., que iria ser a promotora do Empreendimento sito na ...;

• Que em 12-07-1999, foi inscrita na Conservatória do Registo Comercial de ... – 1ª Seção, a constituição da sociedade B..., S.A. com o capital social de 52.500,00€, dividido por 5250 ações ordinárias no valor nominal de 10,00€. E que, em 16-01-2011;

• Que as fracções foram inscritas em nome da sociedade.

Do que não há prova, contrariamente ao que alega o recorrido, é que a sociedade B..., S.A. tenha assumido a posição dos promitentes vendedores. Vejamos.

A assunção pela sociedade de negócios anteriores ao registo definitivo do contrato (ou seja, anteriores à aquisição pela sociedade de personalidade jurídica) está sujeita ao regime do artigo 19.º do Código das Sociedades Comerciais

Este regime prevê casos em que a sociedade assume de pleno direito, isto é, por força da lei, negócios anteriores ao registo (casos das alíneas a) a d) do n.º 1) e casos em que a sociedade assume negócios anteriores ao registo mediante decisão da administração, comunicada à contraparte no prazo de 90 dias (casos do n.º 2).

A assunção pela sociedade dos negócios indicados nos n.ºs 1 e 2 retrotrai os seus efeitos à data da respectiva celebração e libera as pessoas indicadas no artigo 40.º da responsabilidade aí prevista, a não ser que por lei estas continuem responsáveis (n.º 3 do artigo 19.º).

As alíneas a), b) e d) do n.º 1 do artigo 19.º têm em vista direitos e obrigações emergentes de negócios jurídicos ou situações sem relação com o caso dos autos. Daí que a assunção pela sociedade dos direitos e obrigações dos promitentes vendedores apenas poderia ser feita ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º ou ao abrigo do n.º 2.

Sucede que os réus, ora recorridos, não estão em condições de beneficiar da aplicação de nenhum destes preceitos.

Nos termos da alínea c), a sociedade assume de pleno direito, com o registo definitivo do contrato, os direitos e obrigações emergentes de negócios jurídicos concluídos antes do acto de constituição, que neste sejam especificados e expressamente ratificados.

Destes termos decorre que são duas as condições que eles colocam para que a sociedade assuma de pleno direito os direitos e obrigações nele previstos:

• Que os negócios jurídicos de onde procedem os direitos e as obrigações tenham sido celebrados antes do acto de constituição da sociedade;

• Que tais negócios tenham sido especificados e expressamente ratificados no acto de constituição.

Se se pode afirmar, com base nos pontos números 2 e 10 da matéria de facto, a verificação da primeira condição, já o mesmo não se pode dizer quanto à segunda. Com efeito, não há prova – nem sequer alegação - de que, no acto de constituição da sociedade B..., S.A., foi especificada e expressamente ratificada a celebração do contrato-promessa de compra e venda em questão nos presentes autos.

Em consequência, é de excluir a aplicação ao caso da alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º do CSC.

Os promitentes vendedores também não estão em condições de se prevalecer do n.º 2 do artigo 19.º. Nos termos deste preceito, “Os direitos e obrigações decorrentes de outros negócios jurídicos realizados em nome da sociedade, antes de registado o contrato, podem ser por ela assumidos mediante decisão da administração, que deve ser comunicada à contraparte nos 90 dia posteriores ao registo”.

Este preceito prevê a assunção pela sociedade de negócios anteriores ao registo do contrato já não de pleno direito, como sucede nas hipóteses do n.º 1, mas por decisão da administração. Aqui, a assunção não se dá por efeito da lei; tem a sua fonte numa manifestação de vonatde da administração.

No caso, não há prova – nem sequer alegação - de que a administração da sociedade B..., S.A. tenha decidido assumir o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre autora e os réus.

Esta conclusão não é infirmada pelo facto de, em 20-05-1999, os promitentes vendedores terem comunicado à autora que já havia sido efectuada a escritura de constituição da Sociedade B..., S.A., nem pelo facto de alguns dos pagamentos relativos ao contrato terem sido efectuados à mencionada sociedade e de ter sido ela quem deu quitação à autora, ora recorrente, de tais pagamentos. O primeiro consiste numa mera informação sobre a constituição da sociedade, sendo que a autoria dela é dos promitentes vendedores e não do conselho de administração da sociedade. Por sua vez, a quitação é uma declaração de ciência que certifica pagamentos, ao passo que a decisão da administração prevista no n.º 2 do artigo 19.º é uma declaração negocial de assunção de direitos e obrigações decorrentes de um negócio jurídico. Acresce contra a relevância das declarações de quitação que elas foram emitidas nas datas de 01.06.2001, 17.09.2001, 09.10.2001, 05.02.2004 e de 23.03.2004 (ponto n.º 16 dos facros provados), ou seja, muito tempo depois de terem passado 90 dias sobre o registo da sociedade (12-07-1999), quando a assunção de direitos e obrigações ao abrigo do n.º 2 do artigo 19.º do CSC depende de uma decisão da administração no prazo de 90 dias posteriores ao registo.

Deste modo, apesar de os promitentes vendedores terem declarado, aquando da celebração do contrato-promessa, que representavam uma sociedade a constituir, o contrato-promessa não produziu efeitos na esfera jurídica da sociedade B..., S.A., após o registo definitivo do contrato de sociedade. Os efeitos produziram-se e mantiveram-se na esfera dos promitentes vendedores.

É, pois, de afirmar que quem responde pelo incumprimento da promessa de venda são os promitentes vendedores. Visto, no entanto, que um deles faleceu (BB) a responsabilidade recairá sobre os seus sucessores. Em consequência é de repristinar a sentença proferida na 1.ª instância, ou seja, a condenação solidária dos réus no pagamento do montante de 279 382,38€ (duzentos e setenta e nove mil trezentos e oitenta e dois euros e trinta e oito cêntimos).


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Decisão:

Concede-se a revista e, em consequência:

1. Revoga-se o acórdão recorrido;

2. Repristina-se a sentença proferida em 1.ª instância, condenando-se os réus a pagar solidariamente à autora a quantia de 279.382,38€ (duzentos e setenta e nove mil trezentos e oitenta e dois euros e trinta e oito cêntimos).


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrido ter ficado vencido, condena-se o mesmo nas custas do recurso.

Lisboa, 17 de Junho de 2025

Relator: Emídio Santos

1.ª Adjunta: Maria da Graça Trigo

2.ª Adjunta: Isabel Salgado