I. Não estando, em concreto, previsto no pacto de preenchimento nem existindo quaisquer circunstâncias que o exijam, pode o portador da livrança em branco proceder ao preenchimento da livrança e exigir o pagamento aos avalistas sem necessidade da sua interpelação prévia.
II. Não estando, em concreto, prevista no pacto de preenchimento a data do vencimento da livrança em branco e tendo, pelo contrário, os avalistas conferido ao portador da livrança ampla liberdade para o preenchimento desta, não tem, em princípio, aquela data de corresponder à data do incumprimento ou da resolução do contrato que deu origem à relação subjacente.
Recorrentes: AA e BB
Recorrido: Banco BIC Português, S.A.
1. Por apenso à execução que lhes é movida por Banco BIC Português, S.A., vieram os executados AA e BB, deduzir incidente de oposição à execução, mediante embargos.
2. O Tribunal de 1.ª instância decidiu julgar os embargos improcedentes.
3. Desta decisão foi interposto recurso pelos embargantes / executados, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido Acórdão em que se decidiu negar provimento ao recurso e confirmar a decisão proferida.
4. Ainda inconformados, vêm agora os embargantes / executados interpor “recurso de revista excecional” invocando os “artigos 627.º e 672.º, n.º 2, alínea c), do CPC”.
Concluem as suas alegações nos seguintes moldes:
“I. O presente recurso tem como objecto a matéria de Direito da decisão proferida nos presentes autos que considerou não se verificarem as exceções de preenchimento abusivo das livranças e de prescrição do crédito cambiário, julgando improcedentes os embargos de executado apresentados pelos Recorrentes.
II. O presente recurso é admissível nos termos do artigo 672.º, n.º 2, alínea c), do CPC, na medida em que tal decisão se encontra em contradição com outros Acórdãos já proferidos e transitados em julgado sobre a mesma matéria.
III. O Acórdão recorrido e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 01-06-2023, no âmbito do processo n.º 3630/06.3.....-...1 apresentam decisões opostas no domínio da mesma legislação, concretamente a respeito de se saber se existe ou não necessidade de interpelar o avalista quando tal obrigação não resulte do pacto do preenchimento.
IV. Neste Acórdão-fundamento, ao contrário do Acórdão recorrido, entendeu-se que «Estando em equação uma livrança em branco, ainda que tal não decorra do pacto de preenchimento (ou dos contratos de financiamento ou de idêntica natureza celebrados), por ao mesmo não se ter vinculado, o princípio da boa fé impõe a comunicação/interpelação ao avalista sobre o montante em dívida a inscrever nas livranças e sobre a data de vencimento destas».
V. Num e noutro caso, estava em causa a questão de saber se a credora exequente deveria, antes do preenchimento da livrança, proceder à interpelação das pessoas que prestaram o aval em branco.
VI. O mesmo entendimento (o do Acórdão-fundamento) é, ainda, acolhido pelos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2019, proferido no âmbito processo n.º 1959/16.1T8MAI-A.P1.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-01-2011, proferido no âmbito do processo n.º 1847/08.5TBBRR-A.L1-6, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-12-2016, proferido no âmbito do processo n.º 5528/11.4 YYLSB-Al.1.7.
VII. O princípio da boa-fé impunha a interpelação dos Recorrentes de forma a dar-lhes conhecimento do incumprimento, do vencimento das prestações e da faculdade de, querendo, cumprirem voluntariamente as obrigações a que se haviam vinculado.
VIII. Assim, ao decidir como decidiu – i. e., que a Recorrida não se encontrava obrigada a interpelar os Recorrentes – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 10.º da LULL e 762.º, n.º 2 do Código Civil, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que a Recorrida se encontrava obrigada a informar os Recorrentes do incumprimento da obrigação, ainda que tal não resultasse do pacto de preenchimento e que tal preenchimento e execução sempre se deveria ter verificado em 2016.
IX. O Acórdão recorrido e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido a 11-06-2019, no âmbito do processo n.º 5046/16.4T8CBR-A.C1, apresentam decisões opostas no domínio da mesma legislação, concretamente a respeito do dies ad quo da contagem do prazo de prescrição da livrança.
X. Neste Acórdão-fundamento, ao contrário do Acórdão recorrido, entendeu-se que «(…) na hipótese de se verificar o incumprimento da respectiva obrigação, resolvido o contrato, com fundamento nesse incumprimento, a boa-fé determina que a livrança seja coincidentemente preenchida com a resolução do contrato, iniciando-se, a partir desse momento a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70º da LULL».
XI. Num e noutro caso, estava em causa a questão de saber, designadamente para o efeito do início de contagem do prazo de prescrição da livrança, se a livrança em branco deverá ser preenchida aquando do incumprimento da obrigação garantida
XII. Tendo o contrato, cujo cumprimento era garantido pela livrança dada à execução, sido resolvido em Maio de 2016, o crédito da Recorrida venceu-se, também, nessa data, altura em que a Recorrida deveria ter preenchido a livrança.
XIII. Como tal, atento o disposto no artigo 70.º da LULL, a livrança preenchida com data de vencimento de 17-05-2022 já se encontrava prescrita aquando do início da presente execução.
XIV. A ausência da previsão de um limite temporal não significa que a Recorrida possa preencher a livranças arbitrariamente, sob pena de subversão da finalidade da prescrição, com a admissão de créditos imprescritíveis, dependentes da data aposta pelo credor e em manipulação do prazo de prescrição previsto no artigo 70.º da LULL.
XV. Como referem Heinrich Ewald Hörster e Maria Emília Teixeira, in “Aval e prescrição” (Revista de direito comercial, 23-01-2022, disponível em www.revista-dedirei-tocomercial.com): “Efetivamente, o regime da prescrição deve estar ao serviço da segurança jurídica. As suas regras devem garantir a calculabilidade e previsibilidade dos seus efeitos. Deste modo, subjaz ao direito de prescrição o princípio de que certas situações, certos factos, que durante bastante tempo se mantiveram sem serem questionadas, já não podem ser postas em causa em atenção ao interesse da paz e segurança jurídicas. O tráfico jurídico exige clareza e as regras formais relativas à prescrição devem ser respeitadas estritamente.”
XVI. Continuam os mesmos Autores dizendo que “Se se considerar, sem mais, que o Banco pode escolher o momento em que preenche a livrança e, ao fazê-lo, pode inserir de forma arbitrária o momento de vencimento da letra, sem ter em conta outros critérios, os quais são até de índole legal, isto seria equivalente a dizer que o Banco pode, se assim o quiser, contornar o prazo de prescrição previsto no artigo 70.º, n.º 1 da LULL, mesmo sabendo-se que esta norma tem natureza imperativa. Todavia, não cabe na vontade do Banco decidir sobre a aplicação daquela norma, pelo que, conceder-se que o prazo de três anos apenas começa a contar a partir da data de vencimento que o Banco escolhe colocar na livrança, é dizer que o prazo de três anos de prescrição começa a contar a partir da manifestação de vontade do Banco. Com isto fica desvirtuado de forma completa e grosseira o instituto legal da prescrição e a ratio legis daquela norma, concebida toda ela em função da celeridade dos processos cambiários. A admitir-se tal tese, seria o mesmo que dizer que o Banco pode decidir tornar os seus créditos imprescritíveis e dar como letra morta o estipulado no artigo 70.º, n.º 1 da LULL.
XVII. Neste sentido entende, também, Carolina Cunha, in “Aval e Insolvência (Coimbra: Almedina, pp. 79 e 80) que “(…) como é sabido, a partir do momento em que se verifica este evento, fica o credor legitimado a preencher o título pelo valor em dívida e a proceder à respectiva cobrança. Mas pode demorar o tempo que entender a efectuar o preenchimento da letra ou livrança? E é inteiramente livre de completar o título, apondo-lhe a data de vencimento que lhe parecer mais conveniente? A resposta é, obviamente, negativa. Mesmo perante – ou sobretudo perante – as hipóteses de subscrição cambiária em branco, não é possível ignorar a valoração legislativa vertida na rapidez da prescrição cambiária. (…) Mas (e este é o busílis da questão) quando se pode dizer exercitável o direito cambiário nas hipóteses de subscrição em branco? Justamente a partir do momento em que o respetivo portador está legitimado a preencher o título – ou seja (tipicamente), a partir da ocorrência do incumprimento e eventual resolução do contrato fundamental. (…) Se persistir em preencher e/ ou acionar o título para lá desse limite temporal, ou em indicar uma data de vencimento posterior a ele, incorre em preenchimento abusivo e culposo.”
XVIII. Ademais, a Recorrida, colocada na posição do real declaratário, não poderia concluir que a vontade manifestada pelos aqui Recorrentes seria, justamente, a de ficarem obrigados para além do prazo prescricional de 3 anos, nem é razoável concluir que os aqui Recorrentes, com a assinatura dos pactos, pretenderiam ficar sujeitos ao preenchimento da livrança ad aeternum, sem qualquer limite temporal.
XIX. A este respeito, veja-se o entendimento Heinrich Ewald Hörster e Maria Emília Teixeira, in “Aval e prescrição” (Revista de direito comercial, 23-01-2022, disponível em www.revistadedireitocomercial.com): «Admitir que um avalista, ao celebrar o pacto de preenchimento que permite ao Banco indicar a data de vencimento, teria consentido em que este podia inserir qualquer data no futuro que lhe seria conveniente é falta de sensatez e de razoabilidade. Ninguém no seu perfeito juízo consente numa situação dessas, ainda por cima sem ter sido alertado para o efeito e sem ter tido explicações quanto ao risco que corre. A data de vencimento com que a livrança pode ser preenchida e com que o avalista consente é uma data legitimamente previsível dentro do contexto negocial cambiário – entre Banco e avalista – como é óbvio, e a previsibilidade para o avalista está correlacionada com a data em que a própria livrança ainda pode ser acionada.»
XX. Verifica-se, assim, abuso do direito, nas modalidades de venire contra factum proprium e de supressio, uma vez que, tendo resolvido o contrato em 2016 e não tendo executado a livrança, estando, ainda, o crédito a ser pago no âmbito de um PER, a Recorrida criou nos Recorrentes a expectativa de que não iria exercer o seu direito.
XXI. Pelo exposto, ao decidir como decidiu – i. e., que o crédito que a Recorrida fez valer não se encontra prescrito – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 70.º da LULL e 236.º e 334.º do Código Civil, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que a Recorrida, ao executar a livrança avalizada pelos Recorrentes, 6 anos após a resolução do contrato, exerceu um direito que já se encontra prescrito, agindo, assim, de maneira abusiva”.
5. Estas alegações mereceram resposta do recorrido, que pugna, desde logo, pela admissibilidade do recurso, por inexistência de conflito jurisprudencial que é pressuposto da revista excepcional com fundamento na al. c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.
Diz o recorrido, fundamentalmente, que “os Recorrentes selecionam frases isoladas de Acórdãos de Tribunais Superiores que, segundo eles, colidem com a decisão do tribunal a quo, sem cuidar de aplicar o restante teor dessa jurisprudência invocada. Na verdade, os Recorrentes selecionaram passagens de Acórdãos proferidos pela 2ª instância e pelo Supremo Tribunal de Justiça que, se lidos na íntegra e em conjunto com as referidas citações, têm o mesmo entendimento e fazem a mesma aplicação do Direito que a decisão proferida pela Relação do Porto nestes autos, que os Embargantes acusam de padecer de contradição com outro proferido pela Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental”.
Pugna ainda, subsidiariamente, pela improcedência do recurso.
6. O Exmo. Desembargador Relator determinou a subida dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.
7. Subidos os autos, proferiu a presente Relatora despacho em que se decidiu:
“Pelo exposto, determina-se a remessa dos autos à Formação, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 672.º, n.º 3, do CPC”.
8. A Formação admitiu, por Acórdão, a revista excepcional.
1.ª) se existe preenchimento abusivo por falta de interpelação dos avalistas; e
2.ª) se o direito cambiário se encontra prescrito pelo facto de a data aposta nas livranças não ser a do incumprimento ou da resolução contratual.
OS FACTOS
São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:
1. A exequente/embargada é dona e legítima portadora de duas livranças preenchidas, subscritas pela sociedade “S..., S.A.”, actualmente sujeita a Processo Especial de Revitalização, e avalizadas pelos executados/embargantes.
2. As referidas livranças, emitidas em 05/05/2022 e com data de vencimento em 17/05/2022, mostram-se preenchidas pelos seguintes valores:
- Livrança n.º 94/2022, no montante global de € 359.104,36 (trezentos e cinquenta e nove mil, cento e quatro euros e trinta e seis cêntimos);
- Livrança n.º 95/2022, no montante global de € 344.609,38 (trezentos e quarenta e quatro mil, seiscentos e nove euros e trinta e oito cêntimos).
3. A primeira das referidas livranças foi entregue à exequente acompanhada do doc.2 junto à contestação dos embargos e nos termos do qual a sociedade subscritora das livranças referidas em 1. e 2. e os aqui executados/embargantes, na qualidade de avalistas, declararam o seguinte:
“ (…) enviamos uma livrança em branco, por nós subscrita e avalizada pelas pessoas abaixo identificadas, destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em dívida a V.ª Ex.ª, por via de Remessas Documentárias à Exportação (RDE’s) por nós solicitadas, até ao limite de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros), acrescido dos respetivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V.ª Ex.ª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento (BANCO BIC – Lisboa) e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização. (…)”.
4. A segunda das referidas livranças foi entregue à exequente acompanhada do doc.1 junto à contestação dos embargos e nos termos do qual a sociedade subscritora das livranças referidas em 1. e 2. e os aqui executados/embargantes, na qualidade de avalistas, declararam o seguinte:
“ (…) enviamos uma livrança em branco, por nós subscrita e avalizada pelas pessoas abaixo identificadas, destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em dívida a V.ª Ex.ª, por crédito concedido e/ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados, até ao limite de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), acrescido dos respetivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V.ª Ex.ª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento (BANCO BIC – Lisboa) e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização. (…)”.
5. O embargante AA foi membro do Conselho da administração da subscritora das livranças dos autos - “S..., S.A.” – até ... de ... de 2019.
6. Em 4 de maio de 2016 a exequente enviou à subscritora das livranças dos autos as cartas juntas à contestação dos embargos como documento 8 cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
7. A subscritora das livranças dadas à execução requereu, no ano de 2016, processo especial de recuperação que correu termos no Tribunal a Comarca do Porto-Este, Juízo de Comércio sob o nº. 540/16..8....
8. No referido PER foi reconhecido à exequente um crédito no valor de € 714.547,09, tendo a mesma votado favoravelmente o plano de recuperação apresentado que foi homologado por sentença proferida em 5 de Setembro de 2016.
9. O Plano atrás referido foi incumprido, tendo, no ano de 2019, sido requerido novo processo especial de recuperação que correu termos no Tribunal a Comarca do Porto-Este, Juízo de Comércio sob o nº. 1596/19.9.8....
10. No referido PER a exequente, em 3 de Dezembro de 2019, reclamou créditos não valor de € 627.397,05, tendo o plano de recuperação sido homologado por sentença proferida em 7 de maio de 2020.
11. Em 5 de maio de 2022 a exequente enviou aos executados embargantes as cartas registadas juntas à contestação dos embargos sob os documentos 4 e 5, dirigidas à Travessa ... em ..., dando-lhe conta que se encontrava em dívida a quantia de € 359.104,36, relativa “às responsabilidades em assunto” – “S..., S.A./Remessas documentárias de Exportação/Interpelação ao pagamento de livrança – e solicitando o pagamento do referido valor até ao dia 17 de maio, data de vencimento da livrança, sob pena de instauração de processo de execução.
12. No mesmo dia a exequente enviou aos executados embargantes as cartas registadas juntas à contestação dos embargos sob os documentos 6 e 7, dirigidas à Travessa ... em ..., dando-lhe conta que se encontrava em dívida a quantia de € 344.609,38, relativa “às responsabilidades em assunto” – “S..., S.A./Conta Corrente Caucionada de € 100.000,00, resolvida em 24/5/2016/Contrato de Mútuo Protocolo PME Crescimento 2013 BIC no valor de € 500.000,00 resolvido em 12 de maio de 2016/Livrança descontada de € 12.000,00 vencida em Março de 2016/saldo devedor na conta à ordem/Interpelação ao pagamento de livrança – e solicitando o pagamento do referido valor até ao dia 17 de maio, data de vencimento da livrança, sob pena de instauração de processo de execução.
O DIREITO
Sobre a letra / livrança, em particular a letra / livrança em branco, é possível encontrar na doutrina especializada algumas ideias importantes para compreender plenamente o caso dos autos1.
A letra ou livrança pode ser criada (sacada) e posta em circulação sem estar completamente preenchida, ficando o portador autorizado a preenchê-la mais tarde – é o que se chama letra ou livrança em branco.
Ensina António Ferrer Correia que “[l]etra em branco é, antes de mais, aquela a que falta algum dos requisitos indicados no artigo 1.º da L.U., mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária”2. Segundo o ilustre Professor, “[a] admissibilidade da letra em branco resulta claramente do art. 10.º da L.U.”.
Há uma multiplicidade de razões que podem justificar a criação de uma letra / livrança em branco mas o mais habitual é ela estar associada a operações bancárias de abertura de crédito em conta corrente caucionada3. Neste caso, o banco mantém em carteira a letra / livrança com a data de vencimento e o valor em branco e preenche-os apenas quando, perante o incumprimento do cliente, toma a decisão de propor uma acção para cobrança da dívida.
O critério do preenchimento da letra / livrança em branco deve ser feito de acordo com o chamado “pacto de preenchimento”, que consiste numa convenção, com natureza de pacto fiduciário, sobre o modo de preenchimento da letra / livrança. O pacto de preenchimento é pressuposto da criação da letra / livrança em branco.
Em contrapartida, o preenchimento integral da letra / livrança não é pressuposto nem da existência nem da circulação da letra / livrança embora seja pressuposto da sua apresentação a pagamento e da sua cobrança. Como se enuncia, sugestivamente, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 25.05.2017 (Proc. 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1), “[o] preenchimento, em obediência ao pacto, é o quid que confere força executiva ao título”.
Deve ficar claro, desde o início, que uma letra / livrança em branco não deixa de produzir efeitos, vinculando logo os respectivos signatários, nomeadamente os avalistas do subscritor e sujeitando-os aos riscos inerentes a todos os títulos em branco.
Como é do conhecimento geral, o aval é uma garantia pessoal, mais precisamente uma garantia de pagamento do direito cartular dada por uma pessoa a favor de outra. Por força do aval surge um novo sujeito passivo, embora o responsável principal continue a ser a pessoa avalizada4.
Esclarecendo a natureza jurídica do aval e a posição que ocupa o avalista, diz António Ferrer Correia:
“Desta forma, parece fácil indicar a natureza jurídica do aval: é uma garantia; a obrigação do avalista é uma obrigação de garantia – garantia da obrigação do avalizado. Economicamente, não há dúvida quanto a ser a obrigação do avalista uma obrigação de garantia: o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário (...) [e] a simples leitura de algumas disposições legais convence-nos de que a apontada finalidade económica do acto se reflecte efectivamente no seu regime jurídico (...). Essa garantia [dada pelo avalista] vem inserir-se ao lado da obrigação de um determinado subscritor, cobrindo-a, caucionando-a (...) Por conseguinte, a extensão e o conteúdo da obrigação do avalista aferem-se pela do avalizado; quer isto dizer que a obrigação do avalista é acessória em face da do avalizado”5.
Enfatizando o aspecto do risco, diz, por seu turno, Paulo Melero Sendim:
“O avalista de uma letra sacada em branco, se, antes de estar preenchida, garante uma das suas operações cambiárias (de saque, aceite, endosso, aceite ou outro aval), constitui o valor patrimonial de garantia com a sua declaração de confiança do aval dado. Nesse seu valor assume o risco inicial específico da letra em branco (…). A participação do aval no risco inicial próprio da letra em branco compreende-se, e com ela igualmente a sua acessoriedade com a operação da letra que avaliza, uma vez que se veja que esta garantia cambiária não só pode, por si, assumir esse mesmo risco, mas a ele não se pode furtar”6.
Explicam ainda com notável clareza Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos que os signatários de uma letra / livrança em branco estão vinculados mesmo antes do preenchimento da letra / livrança:
“Conjugados os artigos 1.º e 10.º da LULL, tem de se admitir que todos os que aponham a sua assinatura numa letra ou livrança em branco ficam vinculados duplamente. Por um lado ficam numa situação jurídica de sujeição ao exercício do poder potestativo de preenchimento do título por qualquer dos portadores e, por outro lado, ficam ainda obrigados ao seu pagamento conforme a qualidade em que o assinam e a sua posição na cadeia cambiária. A questão não é de tempo, não é relevante a data do preenchimento, mas apenas que, ao tempo da sua cobrança, ele esteja preenchido. Na maior parte das vezes, nem é possível saber com precisão quando é que vieram a ser preenchidos (…).
Não tem sentido permitir a sua desvinculação antes do preenchimento. Os signatários de letras ou livranças em branco sabem que esses títulos estão em branco, porque tiveram oportunidade de o constatar quando os tiveram na mão para os assinar e quando os endossaram ainda em branco. Sabem também que esses títulos poderão mais tarde vir a ser preenchidos e apresentados a pagamento. Sabem ainda em que condições deverão ser preenchidos. Não é aceitável, nem crível, nem admissível que não saibam bem o que está convencionado sobre o seu preenchimento e os riscos envolvidos”7.
Mais adiante, precisam os autores:
“Estruturalmente, a posição jurídica do interveniente na letra em branco, antes do preenchimento, é de sujeição. Está sujeito a que o portador a preencha, pelo valor que for e com vencimento na data que for. O portador, ao preencher a letra, exerce um poder potestativo. Quando, além de aceite ou sacada em branco, a letra seja ainda avalizada em branco, o pacto de preenchimento torna-se mais complexo. Pode incluir o avalista numa estrutura trilateral. Não é crível que alguém avalize em branco sem se informar do conteúdo do pacto de preenchimento e do risco que assume” 8.
Não obstante tecidas a propósito da letra ainda em branco (i.e., ainda antes de preenchida), estas considerações têm interesse para compreender a posição dos signatários e, sobretudo, dos avalistas em face do portador da letra / livrança depois de preenchida. Percebe-se que os avalistas estão, ab initio, numa posição de verdadeira sujeição jurídica9.
Enquadrado o tema da letra / livrança em branco, do pacto de preenchimento e da posição dos avalistas em traços gerais, passe-se às duas questões a decidir no presente recurso.
Elas são simples de enunciar e os títulos dados à exposição das respectivas respostas denunciam já o sentido da decisão.
Da (des)necessidade de interpelação dos avalistas e, consequentemente, do (não) preenchimento abusivo das livranças dadas à execução
Pode ler-se no Acórdão recorrido:
“Vejamos pois da pertinência das questões suscitadas, começando pelo alegado preenchimento abusivo das livranças dadas à execução.
Como resulta dos autos, na decisão recorrida o Tribunal “a quo” considerou desde logo que “não resultando dos pactos estabelecidos qualquer obrigação para o embargado de, antes de preencher as livranças, informar os avalistas dos valores em incumprimento”, concluindo pela não verificação do alegado preenchimento abusivo das mesmas.
Mais entendeu que a ser assim “nada impede a exequente/embargada, pese embora tenha reclamado o seu crédito contra a sociedade subscritora das livranças no âmbito do PER e mesmo que o plano de recuperação esteja a ser cumprido, possa instaurar a competente acção executiva contra os avalistas.”.
Ora é precisamente contra tal posição, que agora se insurgem os apelantes/embargantes neste seu recurso.
Mas sem razão como já de seguida veremos.
Assim a propósito desta questão, cabe referir desde logo, o que resulta do art.º 10º da LULL segundo o qual, “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.”.
Perante o exposto, tem pois razão o tribunal “a quo” quando afirma não resultar da lei que o avalista tenha que ser interpelado previamente ao preenchimento da livrança, salientando antes a obrigação da livrança em branco dever ser feito de acordo com o previamente acordado entre os subscritores da mesma.
Não deve ser esquecido, como aliás referem os apelantes/embargantes quando que nestes casos deve ser tido em conta o que dispõe o nº2 do artigo 762.º do Código Civil, segundo o qual, “no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé.”
Ora nos autos e como se refere na decisão recorrida, está provado que os embargantes autorizaram o embargado a preencher as livranças dos autos, apondo nas mesmas a “data de vencimento, local de pagamento (BANCO BIC – Lisboa) e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização. (…)”, ou seja, os valores que não se mostrassem pagos aquando do preenchimento das livranças e que respeitassem a “Remessas Documentárias à Exportação (RDE’s) por nós solicitadas”, no que respeita à livrança 94/2022 e a “crédito concedido e/ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados” no que respeita à livrança 95/2022.
Daqui decorre, também, que nos aludidos pactos não ficou estabelecida a obrigação para o embargado de, antes de preencher as livranças, informar os avalistas dos valores em incumprimento.
Nestes termos, por aqui não pode proceder a argumentação dos apelantes/executados de que o preenchimento das livranças pela apelada/exequente foi abusivo.
Por outro, também concordamos com o entendimento inscrito na sentença segundo o qual e apesar de ter reclamado o seu crédito contra a sociedade subscritora das livranças no âmbito do PER, lhe ser possível vir instaurar a competente acção executiva contra os avalistas aqui embargantes.
Isto por se saber que a obrigação do avalista é uma obrigação autónoma, independente da relação subjacente estabelecida entre o portador e o subscritor do título, razão pela qual não lhe é possível, para além da excepção de pagamento, vir invocar quaisquer outras excepções fundadas nesta relação.
Em suma, também por aqui não procede a alegação de que se encontra verificada no caso a excepção de preenchimento abusivo das livranças dos autos por parte da exequente ora embargada”.
Reiteram os recorrentes, apesar disto, que existiu preenchimento abusivo, porquanto, mesmo quando tal obrigação não resulte do pacto do preenchimento, o princípio da boa fé obriga a que o portador tenha de interpelar os avalistas antes de lhe exigir o pagamento (cfr. conclusões II a VIII).
A verdade, porém, é que basta lançar um olhar à jurisprudência deste Supremo Tribunal para se ver que este entendimento não merece ser acolhido e que existe um alargado consenso em torno da posição contrária.
Antes de mais, diga-se que a lei cambiária não exige que o portador da letra / livrança proceda à interpelação dos avalistas nem, aliás, à prestação de qualquer informação aos avalistas para exigir a realização do seu direito.
Como já se dizia, por todos, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.2017 (Proc. 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1):
“A lei cambiária não impõe ao portador do título que antes de accionar o avalista do subscritor lhe dê informação acerca da situação de incumprimento que legitima o preenchimento do título que o próprio autorizou”.
Mas há ainda que olhar para o pacto de preenchimento: poderia dar-se o caso de aquela interpelação ser uma condição imposta no pacto de preenchimento. Como se viu atrás, o critério do preenchimento da letra / livrança em branco deve ser feito de acordo com o “pacto de preenchimento”.
A verdade é que o pacto de preenchimento dos autos não prevê tal condição, pelo que, também por aí, não se pode dar razão aos recorrentes.
Como pode ler-se no sumário do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2019 (Proc. 295/14.2TBSCR-A.L1.S1):
“I. — A livrança em branco deve ser preenchida de harmonia com um contrato ou com um pacto de preenchimento, expresso ou tácito.
II. — Quando o pacto de preenchimento não exija a comunicação do facto legitimador do preenchimento ao avalista, a ausência de comunicação não determina que o preenchimento seja abusivo”.
Nem se argumente, como fazem os recorrentes, que “[o] princípio da boa-fé impunha a interpelação dos Recorrentes de forma a dar-lhes conhecimento do incumprimento, do vencimento das prestações e da faculdade de, querendo, cumprirem voluntariamente as obrigações a que se haviam vinculado” (cfr. conclusão VII).
Como explicam Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “[c]onjugados os artigos 1.º e 10.º tem de se admitir que todos os que aponham a sua assinatura numa letra ou livrança em branco ficam vinculados duplamente. Por um lado, ficam numa situação jurídica de sujeição ao exercício do poder potestativo de preenchimento do título por qualquer dos portadores e, por outro lado, ficam ainda obrigados ao seu pagamento conforme a qualidade em que o assinam e a sua posição na cadeia cambiária”10.
Concluem ainda os autores de forma lapidar:
“[O avalista][ o]u avaliza, ou não avaliza”11.
Por fim, pode adiantar-se que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019 (Proc. 1959/16.1T8MAI-A.P1.S1) invocado pelos recorrentes como militando no mesmo sentido do Acórdão-fundamento que está na base da admissibilidade do presente recurso (cfr. conclusão VI), não está em contradição com o Acórdão recorrido, uma vez que não decide que há preenchimento abusivo por falta de interpelação aos avalistas (afirma, aliás, o contrário), mas sim, simplesmente, que a falta de comunicação aos avalistas da resolução do contrato e dos montantes em dívida tem um efeito – o efeito de “que a obrigação que o avalista assumiu se vence e se torna exigível apenas com a citação para a execução fundada nas livranças”.
Isto é comprovável através da leitura do respectivo sumário:
“I - A resolução do contrato tem que ser oposta à contraparte no contrato, e não também ao avalista nas livranças entregues em branco nos termos do contrato.
II - O que não significa que o facto da resolução do contrato, causa legitimadora do preenchimento das livranças e da responsabilização cambiária do avalista, não deva ser objeto de comunicação ao avalista.
III - De igual forma, impõe-se a comunicação ao avalista sobre o montante em dívida a inscrever nas livranças e sobre a data do respetivo vencimento.
IV - A falta dessas comunicações não implica, porém, que as livranças não podiam ter sido preenchidas, nem significa que o seu preenchimento foi abusivo e que as livranças são inexequíveis quanto ao avalista, nem implica a extinção da execução que foi instaurada contra o avalista.
V - Tal tem simplesmente como consequência que a obrigação que o avalista assumiu se vence e se torna exigível apenas com a citação para a execução fundada nas livranças, que foram preenchidas de acordo com os respetivos pactos de preenchimento”.
Não procede, em suma, a alegação de preenchimento abusivo por falta de interpelação dos avalistas, já que nem as normas nem os princípios jurídicos nem o pacto de preenchimento aplicáveis in casu o exigiam.
Da (des)necessidade de a data aposta nas livranças corresponder à data do incumprimento ou da resolução do contrato e, consequentemente, da (não) prescrição do crédito cambiário
Pode ler-se no Acórdão ora posto em crise:
“Por fim, quanto à alegada prescrição do crédito cambiário, o que cabe dizer é o seguinte:
Segundo os executados/embargantes as livranças dadas à presente execução foram abusivamente preenchidas no que respeita às respectivas datas de vencimento, já que as mesmas deveriam corresponder às datas do processo especial de revitalização ou do incumprimento dos contratos subjacentes ou da resolução dos mesmos.
A ser assim concluem pela procedência da prescrição atenta a data em que o requerimento executivo deu entrada em juízo.
Sabemos todos que de acordo com o previsto no art.º 306º, nº1 do Código Civil, o prazo da prescrição só começa a correr quando o respectivo direito puder ser exercido.
Aplicando tal regra ao caso particular das letras e livranças, é também sabido que foi vontade do legislador associar o início do prazo de prescrição à data de vencimento constante do título, por ser este o momento a partir do qual o portador do título está em condições de exigir aos obrigados cambiários o respectivo pagamento.
Assim, atento o disposto no art.º 70º, nº1 da LULL (sabendo-se que o subscritor de uma livrança responde nos mesmos termos que o aceitante de uma letra por força do previsto no art.º 78º, nº1 do mesmo diploma legal), “todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento”.
Continuando o raciocínio, importa recordar que segundo o previsto no art.º 32º da LULL “o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”, razão pela qual é aplicável ao avalista do aceitante da letra ou do subscritor da livrança, o prazo de prescrição que é aplicável ao aceitante ou subscritor, ou seja, o prazo de três anos a contar da data de vencimento constante do título.
Como bem se refere na sentença recorrida, as dúvidas que se suscitam a este propósito são facilmente resolvidas nos casos em que o título é emitido já completo, isto é, quando todos os seus elementos essenciais constam do mesmo.
No entanto, o mesmo já não ocorre nos casos, como o dos autos, em que o tútulo é emitido em branco, sendo o seu preenchimento feito pelo seu portador em momento posterior, situação em que se pode suscitar a questão do preenchimento abusivo e da prescrição.
É pois nestas situações que se coloca a dúvida sobre “a limitação temporal ao preenchimento da letra ou livrança em branco”, ou seja sobre a questão de saber se deve ou não existir um limite temporal ao preenchimento pelo portador do título em branco.
A propósito da resposta a dar a esta questão, cf. o que ficou dito no acórdão do STJ de 19.06.2019, no processo nº1025/18.5T8PRT.P1.S1, relatado pelo Conselheiro Bernardo Domingos em www.,dgsi.pt:
“A questão de saber se o início de contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no art.º 70º, nº 1, da LU (ex vi art.º 77º da LU) se afere em função da data de vencimento inscrita na livrança ou com base no vencimento da obrigação causal, tem sido respondida em sentido afirmativo da primeira proposição pela jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal (cfr. entre muitos outros, os acórdãos de 12/11/2002 (proc. nº 3366/02), de 30/09/2003 (proc. n.º 2113/03), de 29/11/2005 (proc. nº 3179/05), de 09/02/2012 (proc. n.º 27951/06.6YYLSB-A.L1.S1), de 19/10/2017 (proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt), não havendo razões justificativas para nos afastarmos desta orientação consolidada. O acórdão recorrido nesta parte secundou este entendimento que, como se disse, não há motivos ponderosos para deixar de seguir. Improcede pois nesta parte a pretensão dos recorrentes de ver reconhecida a prescrição da sua hipotética obrigação cambiária enquanto avalista.
Quanto à questão de saber se o portador da livrança em branco pode apor nesta uma qualquer data de vencimento, enquanto não tiver decorrido o prazo de prescrição da obrigação causal, a resposta depende do que tiver sido acordado no pacto de preenchimento. Ora como bem se observa no acórdão recorrido a recorrente subscreveu o pacto de preenchimento da livrança e só em presença do preenchimento efectivo da livrança e dos demais circunstancialismos, se poderá aferir se tal preenchimento é conforme ao pactuado, interpretado de acordo com os princípios que regem a interpretação das declarações contratuais (art.º 236 seg do CC) temperadas com o principio da boa-fé (art.º 227º e 239º do CC).”.
Analisando no caso concreto tal questão, bem andou o tribunal “a quo” quando referiu ser vontade do legislador não consagrar um limite temporal quanto ao referido preenchimento.
E discorreu igualmente de forma acertada quando fez notar que a mais recente posição jurisprudencial maioritária vai no sentido de que o prazo de prescrição previsto no art.º 70º da LULL corre a partir do vencimento inscrito pelo portador, mas sempre desde que não se mostre violado o pacto de preenchimento anteriormente subscrito, por ser este o elemento que confere ao título força e eficácia cambiária.
Por outro lado, é aceite que o incumprimento por parte do subscritor da livrança das obrigações que assumiu é uma condição necessária mas não determinante para o preenchimento da mesma, designadamente no que toca ao seu vencimento.
Regressando ao caso concreto, também nós concluímos que das declarações que constam do pacto de preenchimento (cf. pontos 3 e 4 dos factos provados) – interpretados de acordo com as regras previstas no art.º 236º do CC – não resulta a obrigatoriedade de a exequente/embargada preencher as livranças dadas à execução na data do incumprimento da obrigação ou no prazo de três anos após esse incumprimento.
A ser assim tem pois razão a Sr.ª Juiz “a quo” quando conclui do seguinte modo:
“Ante o exposto, não é possível sustentar-se que as livranças em apreço se encontram prescritas, uma vez que não se evidencia, à luz dos pactos de preenchimento e na interpretação dos mesmos, que a exequente/embargada tivesse que nelas inserir obrigatoriamente como data de vencimento a data do incumprimento ou da resolução dos contratos, pois que, para tanto, era necessário que esta conduta confrontasse o estipulado no pacto ou, ainda, que essa circunstância se tenha traduzido numa situação de abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil), na modalidade de supressio ou venire contra factum proprium, sendo certo que, como tem sido afirmado pela jurisprudência, o mero decurso do prazo, sem mais, não permite ao devedor invocar uma legítima confiança na renúncia por parte do credor ao exercício dos direitos que lhe assistem.
Por conseguinte terá também a invocada excepção de prescrição que improceder, visto que desde as datas de vencimento apostas nas livranças dadas à execução (17 de maio de 2022) até a entrada a presente execução não decorreram mais de três anos.”
Nestes termos, cabe referir que também aqui não merece provimento o recurso dos autos”.
Os recorrentes discordam, mais uma vez, sustentando que se verificou já a prescrição do crédito (cfr. conclusões IX a XXI). Evocam, em particular, o princípio da boa fé e argumentam que a data relevante para o vencimento do crédito é a data da resolução do contrato (cfr., em especial, conclusões X e XII).
Mas tão-pouco aqui lhes assiste razão.
Conforme se esclarece no Acórdão deste Supremo Tribunal de 24.10.2019 (Proc. 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2)
“Para efeitos de prescrição de tais títulos o que releva é a data de vencimento neles aposta pela exequente”.
Quer dizer: a data de vencimento é a data aposta pelo portador e, contado desde esta data (Maio de 2022), o prazo de prescrição não se esgotou.
Já se evocou, na resposta à questão anterior, a premissa enunciada de início de que o critério do preenchimento das livranças em branco deve ser feito de acordo com o “pacto de preenchimento”.
No entanto, no silêncio do pacto de preenchimento, não há data pré-definida que tenha de ser respeitada – não tem de ser, nomeadamente, a data da resolução do contrato que deu origem à relação subjacente. Sucede até que, na qualidade de avalistas, os recorrentes deram ampla liberdade ao portador para o preenchimento das livranças, designadamente quanto à data de vencimento.
Vem declarado:
- “(…) enviamos uma livrança em branco, por nós subscrita e avalizada pelas pessoas abaixo identificadas, destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em dívida a V.ª Ex.ª, por via de Remessas Documentárias à Exportação (RDE’s) por nós solicitadas, até ao limite de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros), acrescido dos respetivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V.ª Ex.ª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento (BANCO BIC – Lisboa) e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização. (…)” (cfr. facto provado 3); e
-“ (…) enviamos uma livrança em branco, por nós subscrita e avalizada pelas pessoas abaixo identificadas, destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em dívida a V.ª Ex.ª, por crédito concedido e/ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados, até ao limite de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), acrescido dos respetivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V.ª Ex.ª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento (BANCO BIC – Lisboa) e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização. (…)” (cfr. facto provado 4).
Uma questão distinta desta – à qual, não obstante, os recorrentes reconduzem indevidamente a questão a apreciar em concreto – é a de saber se “[a] ausência da previsão de um limite temporal não significa que a Recorrida possa preencher a livranças arbitrariamente, sob pena de subversão da finalidade da prescrição, com a admissão de créditos imprescritíveis, dependentes da data aposta pelo credor e em manipulação do prazo de prescrição previsto no artigo 70.º da LULL” (cfr. conclusão XIV e ainda conclusões XVI a XX).
Quanto a este ponto, não deixa de se dizer que o portador da letra / livrança em branco não poderá preencher a letra / livrança de forma arbitrária, com a data que bem entender, ou aleatória. Ele não tem, de facto, um poder absolutamente livre, ilimitado ou que possa apresentar-se sem um mínimo de justificação objectiva, havendo, por isso situações em que o preenchimento da letra / livrança em certa data é, em concreto, abusivo.
Não é este, contudo, o caso dos autos. Avaliando as circunstâncias decorrentes da factualidade provada, não se vislumbra que a aposição da data de Maio de 2022 nas livranças seja desproporcionada ou desrazoável, que o preenchimento tenha sido desconforme ao princípio da boa fé ou consubstancie abuso do direito.
Recorde-se que a sociedade subscritora das livranças se apresentou a PER em 2016 (cfr. facto provado 7). A portadora terá decidido – como é correcto – reclamar o seu crédito no PER e aguardar o desenlace do processo e a execução do plano de recuperação, aí aprovado também com o seu voto favorável (cfr. facto provado 8), antes de se voltar contra os avalistas. Acontece que a subscritora não cumpriu o plano de recuperação, tendo voltado a apresentar-se a PER em 2019 (cfr. facto provado 9). Face a isto, não pode considerar-se de todo injustificado ou incompreensível que a portadora tenha decidido, por fim, preencher a letra para tentar obter o pagamento que lhe era devido à custa dos avalistas / ora recorrentes (cfr. factos provados 1, 2, 11 e 12).
Improcede, assim, também a alegação de prescrição do direito da ré.
Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.
Catarina Serra (relatora)
Fernando Baptista
Orlando Nascimento
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1. Cfr., entre muitos outros, Adriano Vaz Serra, “Títulos de crédito”, in: Boletim do Ministério da Justiça,1956, n.º 60, pp. 5 e s. e n.º 61, pp. 5 e s., Paulo Melero Sendim, Letra de câmbio – L.U. de Genebra, volume I – Circulação cambiária, e volume II – Obrigações e garantias cambiárias, Universidade Católica Portuguesa, Coimbra, Almedina, s.d., António Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, volume III – Letra de câmbio, Universidade de Coimbra, 1975, José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, volume III – Títulos de crédito, Lisboa, 1992, Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, volume I, Coimbra, Almedina, 2020 (2.ª edição), pp. 349 e s., Paulo Olavo Cunha, Lições de Direito Comercial, cit., p. 256 e s., e Direito Comercial e do Mercado, cit., pp. 362 e s., António Pereira de Almeida, Direito Comercial, volume III – Títulos de crédito, Lisboa, AAFDL, 1988, Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Lisboa, Petrony, 1996 /7.ª edição), Fátima Gomes, Manual de Direito Comercial, cit., pp. 198 e s., Carolina Cunha, Manual de letras e livranças, Coimbra, Almedina, 2016, e Aval e insolvência, Coimbra, Almedina, 2017.
2. Cfr. António Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, cit., p. 131.
3. Neste sentido se pronuncia, por exemplo, Carolina Cunha, Aval e insolvência, cit., pp. 19-20.
4. Cfr. Catarina Serra, “Nótula sobre o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE (o direito de o credor agir contra o avalista no contexto de plano de insolvência)”, in AA.VV., Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes – vol. I, Universidade Católica, 2011, p. 383. O aval é uma garantida dita “tradicional” e, pela sua dependência em relação ao título de crédito e pela sua limitada autonomia, foi já “ultrapassada”, no contexto do comércio jurídico bancário, por garantias mais eficazes como a garantia autónoma. Cfr. Catarina Serra, “Garantia bancária on first demand e responsabilidade do banco perante o beneficiário da garantia na hipótese de insolvência do sujeito garantido”, in: Estudos em homenagem ao Professor Doutor António Cândido de Oliveira, Coimbra, Almedina, 2017, p. 168.
5. Cfr. António Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, cit., pp. 206-207 (sublinhados do autor).
6. Cfr. Paulo Melero Sendim, Letra de câmbio – L.U. de Genebra, volume II – Obrigações e garantias cambiárias, cit., p. 835 e p. 837 (sublinhados do autor).
7. Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, cit., p. 395.
8. Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, cit., p. 399.
9. Esta sujeição é bem descrita nas palavras do Acórdão desta 2.ª Secção de 19.10.2017 (Proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1): “Ao dar o aval ao subscritor em livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo o risco de esse contrato não ser respeitado e de ter de responder pela obrigação constante do título”.
10. Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, cit., p. 395.
11. Cr. Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, cit., p. 403.