TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CORREIO DE DROGA
MEDIDA DA PENA
PENA DE PRISÃO
Sumário


I. Os denominados «correios de droga» desempenham papéis fundamentais no transporte, disseminação e comercialização ao serviço das redes e associações criminosas que se dedicam ao tráfico internacional, visando a obtenção de elevadas vantagens económicas provenientes dos mercados ilícitos onde atuam.
II. Agindo como «correio de droga», vindo da Guiné-Bissau, intercetado na posse de cerca do 30kg de cocaína, que transportava na bagagem à chegada do aeroporto de Lisboa, constituiu-se o arguido autor de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro.
III. A substância em causa – cocaína – insere-se, atento o seu grau de periculosidade, na tabela I-B anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93 e na tabela I anexa à Convenção Única de Estupefacientes de 1961, das Nações Unidas, que contêm as substâncias potencialmente mais perigosas.
IV. Não vem questionado o elevado grau de ilicitude revelado pelo tipo e pela quantidade do produto de estupefaciente transportado.
V. Estas atividades evidenciam elevadas necessidades de prevenção geral, reconhecidas na «Estratégia da UE em Matéria de Drogas 2021-2025», face ao aumento e elevada gravidade, dimensão e sofisticação das atividades do crime organizado, convergindo neste sentido os relatórios de segurança interna, que identificam o «tráfico ilícito de estupefacientes» como um fenómeno que continua a impor-se «como uma das principais áreas de atuação do crime organizado», constituindo o tráfico através dos aeroportos uma «ameaça adicional», bem como o relatório de 2023, confirmado no relatório de 2025, do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência, que salienta, uma vez mais, os elevados riscos para a saúde e para a vida dos consumidores e a dimensão e dinâmica dos mercados internacionais e nacionais das drogas ilícitas, incluindo a cocaína.
VI. Na determinação da medida da pena, fixada em 7 anos de prisão, o tribunal da condenação tomou em conta as circunstâncias relevantes por via da culpa, que define o seu limite (artigo 40.º do CP), e das exigências de prevenção (artigo 71.º do CP), segundo um critério de proporcionalidade constitucionalmente imposto (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
VII. A medida da pena levou em conta a jurisprudência do STJ quanto ao papel dos denominados «correios de droga» no funcionamento deste mercado ilícito e na disseminação de produtos estupefacientes e à sua utilização pelas redes de tráfico aproveitando-se de situações de carência e fragilidade de que visam tirar vantagem.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido, com a identificação dos autos, recorre do acórdão Juízo Central Criminal de ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, que o condenou na pena de 7 (sete) anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-B, anexa.

2. Pretendendo ver reduzida a pena, apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões:

“1. O acórdão recorrido condenou o Recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, em autoria, p. e p. pelo art.º. 21º, n.º 1 do D. L. n.º 15/93, de 21 de janeiro, com referência à tabela I-B, anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 7 anos de prisão;

2. O Recorrente, é um “correio de droga”, sem ligação direta à estrutura do tráfico internacional de estupefacientes;

3. Não tem antecedentes criminais;

4. Confessou a prática dos factos;

5. Na data dos factos, o Recorrente, que contava 53 anos de idade, sempre tinha tido uma conduta exemplar e conforme ao dever ser, trabalhando desde criança, estando inserido familiar, social e profissionalmente.

6. Em meio prisional, após a prática dos factos, o Recorrente tem uma conduta de adequação às regras.

7. Nos termos do art.º 71.º, n.º 2, als. d) e e), do CP, para determinação da medida da pena e, além do mais, são consideradas as condições pessoais do agente e a sua situação económica, bem como, a conduta anterior ao facto e a posterior a este.

8. No caso concreto, todas estas circunstâncias depõem a favor do Recorrente, pelo que deviam e devem ser levadas em conta na determinação da medida concreta da pena.

9. As condições pessoais do Recorrente e da sua conduta anterior e posterior aos factos, denotam, também, serem diminutas, no seu caso, as exigências de prevenção especial.

10. Porque todas as referidas circunstâncias demonstram que as exigências de prevenção especial se encontram substancialmente mitigadas, afigura-se-nos que a pena tem de ser reduzida.

11. Constitui boa prática a existência de alguma equivalência e equidade nas penas aplicadas.

12. Considerando a jurisprudência dos Tribunais Superiores, em casos de tráfico internacional agravado, envolvendo toneladas de estupefaciente (cocaína), avulta a divergência do quantum das penas habitualmente aplicadas, face à pena decidida nos presentes autos.

13. A divergência no quantum das penas é incompreensível, quer à luz do Direito e dos seus princípios, quer, sobretudo, ao olhar e interpretação do cidadão, homem médio.

14. A pena a aplicar ao Recorrente, considerando a matéria provada deverá situar-se nos cinco anos de prisão.

15. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 71.ºdo CP.

3. Respondeu o Ministério Público, exprimindo a sua concordância com o decidido e, em consonância, defendendo que o recurso deve ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido o seguinte parecer (transcrição), também no sentido da improcedência do recurso:

“(…)

7. Analisando o acórdão recorrido verifica-se que o mesmo padece de erros manifestos, revelados, nomeadamente a partir do facto provado na alínea 3), que importa retificar (artigos 249.º do Código Civil e 380.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do Código de Processo Penal).

Assim:

Na página 10 do respetivo ficheiro pdf, onde consta que:

«Deste modo, tendo em conta a matéria de facto provada, transportando o arguido, cocaína com o peso líquido total de 28.997,361 gramas, quase 30 quilogramas»

Deve eliminar-se o segmento final e passar a constar:

«Deste modo, tendo em conta a matéria de facto provada, transportando o arguido, cocaína com o peso líquido total de 30.298,361 gramas»

Da mesma forma, na página 11, onde consta que:

«b) A gravidade do ilícito, o qual se situa num patamar elevado, considerando a actuação em causa, isto é, a natureza e quantidade do produto estupefaciente que transportava – 28.997,361 gramas, quase 30 quilogramas»

Deverá eliminar-se o trecho final e passar a constar:

«b) A gravidade do ilícito, o qual se situa num patamar elevado, considerando a actuação em causa, isto é, a natureza e quantidade do produto estupefaciente que transportava – 30.298,361,361 gramas»30298.361

8. Quanto ao mérito do recurso.

Conforme referido, o arguido insurge-se, apenas, contra a medida da pena.

Emerge do artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, que a aplicação das penas visa a pro-teção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (pre-venção especial).

O artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, por sua vez, preceitua que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Na aferição do grau da culpa e das necessidades de prevenção, o artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal manda atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

«Neste elenco exemplificativo (…) encontramos circunstâncias que relevam para a culpa, outras para a prevenção geral, outras para a prevenção especial, mas há também fatores ambivalentes. (…) A maior parte dos fatores relativos à execução do facto [als. a, b) c)] terão relevância para o grau de culpa do agente (…); no entanto, estes fatores tam-bém têm influência na prevenção geral, na medida em que o modo de execução de um crime, relacionando-se com a intensidade da culpa do agente, tem reflexos no grau de instabilidade e alarme social provocado na sociedade e poderá também indiciar o maior ou menor grau de necessidades de prevenção especial, embora estas necessidades também dependam significativamente do comportamento anterior e, especialmente, posterior do agente. Já os fatores relativos à personalidade do agente [als. d) e f)] também poderão relevar para o grau de culpa do agente, mas ainda para a prevenção especial e, reflexamente, para a prevenção geral (…). Quanto aos fatores relativos à conduta do agente, anterior e posterior à prática do facto [al. e)], relevarão mais diretamente para a prevenção especial e, pelo menos reflexamente, para a prevenção geral, do que para a culpa» (Maria da Conceição Ferreira da Cunha, As Reações Criminais no Direito Português, Universidade Católica Editora, 2022, páginas 154-156).

Segundo o artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal, a culpa define o máximo inultrapassável da pena. Quanto às exigências de prevenção, as de prevenção geral traçam o mínimo da pena e as de prevenção especial definem, dentro daqueles dois limites, a medida justa e necessária da pena.

Na assertiva síntese do Supremo Tribunal de Justiça, «a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível» (acórdão de 22 de setembro de 2004, processo 1636/04, apud acórdão de 31 de janeiro de 2012, processo 8/11.0PBRGR.L1.S1, relatado pelo conselheiro Raul Borges, www.dgsi.pt).

É oportuno salientar ainda que nesta operação, o julgador, por imperativo constitucional (art. 18.º, n.º 2, da Constituição), deve fugir à aplicação de penas excessivas e desproporcionadas [v. a título de exemplo o acórdão n.º 3/2006 do Tribunal Constitucional, (…) (www.tribunalconstitucional.pt), e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de novembro de 2020, processo 936/18.2PBSXL.S1, (…), de 6 de outubro de 2021, processo 401/20.8PAVNF.S1, e de 3 de novembro de 2021, processo 99/20.3GGPTG.S1 (…) (www.dgsi.pt)].

In casu, o tribunal coletivo ponderou (transcrição com a retificação assinalada em 7.):

«a) As exigências de prevenção geral, que se traduzem na necessidade de reprimir este tipo de crimes, sendo elevadas as necessidades de prevenção neste tipo criminal de tráfico de estupefacientes, considerando, por um lado, as consequências que o consumo de cocaína assume na nossa sociedade, com graves efeitos no tecido social, quer pela degradação da juventude, bem como da família, quer pelo risco grave para a saúde pública e para a sociedade, afectadas por esse consumo e, consequentemente, pelo tráfico que o gera, determina e amplia; e, por outro lado, a frequência da prática destes crimes de tráfico nesta comarca, essencialmente, pela via aérea, com desembarque ou passagem pelo Aeroporto Humberto Delgado, que cumpre combater; e, finalmente, os efeitos das drogas, que provocam mortes e lançam muitos jovens no mundo da marginalidade, criminalidade violenta e prostituição.

b) A gravidade do ilícito, o qual se situa num patamar elevado, considerando a actuação em causa, is-to é, a natureza e quantidade do produto estupefaciente que transportava – 30.298,361 gramas;

c) A intensidade do dolo, sendo certo que o arguido agiu com dolo directo;

d) A ausência de antecedentes criminais e a grande sensibilidade à pena que dele se espera pelo facto de ser primário;

f) A situação de carência económica do arguido;

g) A admissão parcial dos factos, mas sem grande relevância para a descoberta da verdade, atento o teor da prova documental e pericial constante dos autos, bem como o arrependimento;

h) Preso preventivamente no EP..., AA revelou desde o início capacidade para se adaptar às regras institucionais e desejo em ter uma atividade laboral, tendo sido colocado como faxina, há cerca de 6 meses;

i) Considera-se relevante a necessidade de acompanhamento estruturado que lhe permita ultrapassar as fragilidades internas que apresenta, designadamente, a necessidade de desenvolver o pensamento consequencial e alternativo, capacidade avaliação dos riscos, bem como uma maior consciência crítica sobre as condutas delinquenciais.»

Resulta, assim, claro que os aspetos essenciais à determinação da pena foram tidos em conta, nalguns casos, de resto, com pouco rigor e especial tolerância para com o arguido [a «situação de carência económica», que, de alguma forma, mitiga a censurabilidade da conduta, é contrariada pelos factos provados nas alíneas 16), 17) e 18) e quanto ao «arrependimento» apenas se provou o que consta da alínea 12), ou seja, que o arguido «referiu estar arrependido», o que, como é sabido, não é sinónimo de arrependimento, sobretudo quando, como se lê na fundamentação probatória do acórdão, o mesmo «referiu que pensava que apenas trazia em cada mala 500 gramas de cocaína …»].

Quanto ao facto de o arguido ser um «correio de droga, sem ligação direta à estrutura do tráfico internacional de estupefacientes», convocamos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de novembro de 2024, proferido no processo 448/23.2JELSB.S1, de que foi relator o conselheiro António Augusto Manso:

«(…) os "correios de droga", por não serem os dominus negotii, poderão ter sido, numa fase inicial, alvo de tratamento diferenciado, não sendo a sua acção punida tão severamente. Por isso, ou também por isso, o número dos “correios de droga” não para de crescer nos últimos anos, sendo prementes e elevadas, ainda por este motivo também, as exigências de prevenção.

O "correio de droga" integra-se no mundo do narcotráfico no transporte intercontinental de produtos estupefacientes, sendo o seu posicionamento de segunda linha ou de segundo plano em relação ao dono do negócio, sendo apenas executor pago ao transpor-te realizado.

Aparentemente, parece "residual" (…) a sua participação nos factos, sendo até visto com comiseração ou piedade, pois coloca em risco a sua liberdade e, por vezes, a saúde ou até a própria vida. Na sua origem, a figura do correio, está associada às "cinturas humanas mais degradadas das grandes metrópoles sul americanas, mais tarde da Nigéria e de outros países do continente africano", como agora a Guiné-Bissau.

Porém, (…) o Supremo Tribunal de Justiça vem desde há muito enfatizando a importância dos "correios de droga", como peça fundamental na execução do ilícito e na cadeia delitiva do tráfico de estupefacientes concorrendo, de modo directo, para a sua disseminação, pelo que não merecem um tratamento penal de favor. No caso do tráfico internacional de estupefacientes, por meio dos chamados "correios de droga" assume-se como um critério de grande intensidade a prevenção geral, visando forte dissuasão de actividade compensatória financeiramente para aqueles, sob pena de uma verdadeira invasão, já por si muito acentuada, de introdução de estupefacientes na Europa através de países da periferia Europeia Atlântica, como Portugal.»

Refira-se, por fim, que a pena de 7 anos de prisão não se afasta dos padrões sancionatórios seguidos pelo Supremo Tribunal em situações paralelas e em que estão envolvidas quantidades de cocaína bastante inferiores à que o arguido transportava [v. os exemplos citados no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de julho de 2024, proferido no processo 489/23.0JELSB.L1.S1, relatado pelo conselheiro Agostinho Torres, nos quais são aplicadas penas entre os 4 anos e os 6 anos e 3 meses de prisão, ou a situação objeto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de fevereiro de 2024, processo 101/23.7JELSB.L1.S1, relatado pela conselheira Teresa de Almeida, em que a arguida foi condenada na pena de 6 anos e 6 meses de prisão por ter transportado cerca de 9 quilogramas de cocaína, ou a do já citado acórdão de 7 de novembro de 2024, proferido no processo 448/23.2JELSB.S1, relatado pelo conselheiro António Augusto Manso, em que o arguido foi condenado na pena de 6 anos e 2 meses de prisão por ter transportado 6.025,200 gramas de cocaína].

Aqui chegados, sendo lição da doutrina e orientação da jurisprudência que as operações de determinação da medida da pena apenas são passíveis de correção pela via de recurso se ocorrer «errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, (…) falta de indicação de fatores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, (…) indicação de fatores (…) irrelevantes ou inadmissíveis» ou se «tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (v. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, página 197, e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de setembro de 2021, processo 98/20.5PC LRA.C1.S1, relatado pelo conselheiro Paulo Ferreira da Cunha, com exaustivo apontamento de jurisprudência), circunstâncias que não se observam no caso em apreço, entendemos que a pena fixada no acórdão recorrido deve ser confirmada.»

5. Notificado nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, respondeu arguido dizendo que concorda com o Ministério Público no que respeita à retificação do acórdão, «porquanto a quantidade constante do acórdão em crise é inferior à efetivamente apreendida e dada como provada, razão pela qual, nesta parte, se acompanha o douto parecer», mas, no mais, «mantém a posição vertida na motivação apresentada em sede de recurso, pugnando pela redução da pena de prisão, o que continua a considerar de inteira justiça».

Acrescentando: «De resto, foi esta a posição do Ministério Público junto da primeira instância, em sede de alegações orais finais, logo no dia em que foi produzida toda a prova. Com efeito, nas suas alegações, o Ministério Público, pugnando pela condenação do Recorrente, em sede de medida da pena referiu: “… tudo ponderado, entende o Ministério Público que o mesmo deve ser condenado numa pena não tão próxima dos limites mínimos, mas também entre os 5 e os 6 anos, atendendo às circunstâncias em que os factos ocorreram, assim se fazendo a costumada justiça” (ata de 13.11.2024 com a referência citius ... ... .12 entre as 15.10m e a 15.12m – minuto 9.14). É certo que, posteriormente, no parecer a que foi atribuída a referência citius número ......39 de 7.2.2025, o mesmo Magistrado do Ministério Público, entendeu de forma diferente, considerando que a pena decidida pelos Senhores Juízes que compuseram o Tribunal Coletivo, era adequada e justa, convencido que ficou da “bondade dos argumentos explanados no douto acórdão”, posição agora seguida no parecer a que se responde, que pugna pela não procedência da pretensão do Recorrente. Ora, o cidadão comum tem dificuldade em compreender a mudança de posição, o que se torna ainda mais incompreensível quando tal alteração vem do Magistrado do Ministério Público que assistiu a toda a produção de prova e que, então, entendeu justa e adequada uma pena situada entre os 5 e os 6 anos de prisão.»

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso seguiu para julgamento em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

7. O tribunal de 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:

“1) No dia 09 de Janeiro de 2024, pelas 18h46, o arguido desembarcou no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, procedente da Guiné-Bissau, no voo TP..78.

2) De seguida, o arguido apresentou-se nos serviços da Alfândega, no corredor verde “nada a declarar”.

3) Durante a revista pessoal efectuada, foram detectadas, dissimuladas no interior das duas malas que transportava no porão, com as etiquetas com os números ..47 TP ....10 e ..47 TP ....19:

- 12 (doze) embalagens, vulgo “placas”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 12004,530 gramas;

- 7 (sete) embalagens, vulgo “placas”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 7022,000 gramas;

- 3 (três) embalagens, vulgo “placas”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 3014,000 gramas;

- 1 (uma) embalagem, vulgo “placa”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 998,000 gramas;

- 1 (uma) embalagem, vulgo “placa”, contendo ureia com o peso líquido de 1301,000 gramas;

- 1 (uma) embalagem, vulgo “placa”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 997,000 gramas;

- 1 (uma) embalagem, vulgo “placa”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1005,000 gramas;

- 1 (uma) embalagem contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1034,000 gramas;

- 1 (uma) embalagem, vulgo “placa”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1001,000 gramas;

- 1 (uma) embalagem, vulgo “placa”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1004,000 gramas;

- 50 (cinquenta) embalagens, vulgo “bolotas”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 499,513 gramas;

- 35 (trinta e cinco) embalagens, vulgo “bolotas”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 348,896 gramas;

- 7 (sete) embalagens, vulgo “bolotas”, contendo cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 69,422 gramas.

4) Nessas circunstâncias, foi ainda apreendido ao arguido:

- 1 (uma) mala de viagem, do tipo “trolley”, de cor bege, da marca “Yue Hua Luggage”;

- 1 (uma) etiqueta de bagagem, com o n° ..47 TP ....10, referente ao voo TP ...48, em nome de AA, a qual se encontrava aposta na mala de cor bege;

- 1 (uma) mala de viagem, do tipo “trolley”, de cor cinzento escuro, da marca Conwood;

- 1 (uma) etiqueta de bagagem, com o n° ..47 TP ....19, referente ao voo TP ...48, em nome de AA, a qual se encontrava aposta na mala de cor cinzenta escura;

- 1 (um) cartão de embarque, em nome de AA, datado de 09 de janeiro e referente ao voo TP..78, Bissau/Lisboa;

- 2 (duas) etiquetas de bagagem, com os números ..47 TP ....19 e ..47 TP ....10;

- a quantia de €53,12€ (cinquenta e três euros e doze) em nota e moedas emitidas pelo Banco Central Europeu;

- (um) telemóvel Samsung, modelo Galaxy S22 Ultra, de cor branco, com os IMEI .............54 e .............52;

- (um) passaporte da Republica da Gambia, com o n° PC....09, em nome de BB;

- 1 (um) passaporte da Republica da Guiné-Bissau, com o n° C......37, em nome de CC;

- 1 (um) passaporte da Republica da Guiné-Bissau, com o n° C......49, em nome de DD;

- 1 (um) passaoorte da Republica da Guiné-Bissau, com o n° C......07, em nome de EE;

- 1 (um) passaporte da Republica da Guiné-Bissau, com o n° C......41, em nome de FF.

5) O arguido conhecia perfeitamente a natureza e as características estupefacientes do produto que transportava e que lhe foi apreendido.

6) Produto esse que aceitara transportar por, para tanto, lhe ter sido prometida quantia monetária não apurada.

7) O telemóvel apreendido foi utilizado pelo arguido nos contactos que estabeleceu para concretizar o transporte da cocaína apreendida.

8) Os documentos, quantias monetárias e objectos apreendidos ao arguido e acima indicados destinavam-se a ser utilizados na actividade de tráfico de estupefaciente e eram fruto da mesma.

9) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização de cocaína eram proibidos e punidos por lei.

12) O arguido admitiu parcialmente os factos e referiu estar arrependido.

13) Não tem antecedentes criminais.

14) O arguido AA residia à data dos alegados factos num apartamento de tipologia T3 , arrendada pelo irmão e cunhada, numa zona urbana da ..., descrita como sem problemáticas delinquenciais significativas. Habitava nesta morada com um filho de 14 anos, o irmão e cunhada, e 3 sobrinhos, filhos do irmão. Residia há cerca de 3 anos integrado neste agregado, sendo o contexto familiar e a relação entre os membros descrita como harmoniosa e com uma dinâmica adequada. O irmão do arguido encontrava-se emigrado na ... a trabalhar.

15) Tinha uma relação estabelecida com uma companheira há já alguns anos, e deslocava-se frequentemente ao seu país de origem, ..., para visitar a família, sendo que à data, 3 dos seus 4 filhos já se encontravam a viver em Portugal, integrados junto de familiares. A relação com esta companheira mantinha-se estável e gratificante, apesar de maioritariamente, residir em Portugal.

16)A nível laboral, trabalhava habitualmente na construção civil, com períodos de intervalo, em que se deslocava à ..., onde era proprietário de um estabelecimento comercial, no qual vendia bens como perfumes e roupas que importava da Europa.

17) Destas atividades obtinha rendimentos variáveis, mas aparentemente suficientes para garantir a sua sustentabilidade e a da família, não lhe sendo identificados períodos de crise financeira ou solicitações de cariz económico a qualquer membro familiar.

18) No que concerne à realidade económica do arguido à data dos alegados factos, descreve uma situação económica estável, com ganhos na ordem dos 800€ e 1000€ líquidos, no exercício de funções ligadas à construção civil, não tendo á data feito referência aos ganhos que obtinha na atividade comercial que dispunha na ....

19) Da história passada do arguido AA ressalta o facto de ter crescido no seio de uma família numerosa, sendo e de acordo com a tradição muçulmana, tendo o pai 2 esposas e os respetivos filhos a partilhar a mesma casa. Terá sido educado de acordo com regras e valores inerentes à tradição da família e levado um modo de vida assente no trabalho e entreajuda entre os membros da família e isento de consumos de álcool ou estupefacientes. O pai dedicava-se ao comércio de gado, atividade que envolveu os membros da família, tendo contudo AA iniciado depois uma atividade própria no comércio de vestuário, a que se dedicou integralmente até emigrar para Portugal, em 1993.

20) Não são referidas dificuldades de adaptação, acolhimento ou integração laboral em Portugal, onde se conseguiu legalizar com facilidade e contou com o suporte de alguns familiares. Segundo o próprio decidiu viver junto da família do irmão há cerca de 3 anos, para estar mais acompanhado. Tem contudo como projecto futuro, viver com os 3 filhos que vieram recentemente para Portugal.

21) Na sequência da sua atual situação jurídico penal, a companheira e filho mais novo, virão igualmente para Portugal para apoiar o arguido e reunir a família durante a presente reclusão de AA, perspetivando eventualmente permanecer no país.

22) No futuro, o arguido perspetiva igualmente manter-se a viver em Portugal com a família , e a nível laboral, retomar atividade na construção civil, onde refere dispor de uma ampla rede de contactos neste sector.

23) Preso preventivamente no EP..., AA revelou desde o início capacidade para se adaptar às regras institucionais e desejo em ter uma atividade laboral. Apesar da sua situação como preso preventivo, foi colocado como faxina, há cerca de 6 meses.

24) O impacto da presente situação prisional no arguido surge circunscrita às consequências que teve para si, dada a sua privação de liberdade, a qual motivou igualmente a desestruturação do seu modo de vida sobretudo a nível profissional. O espaço comercial que dispõe na ... manteve, contudo, atividade e passou a ser gerido por familiares.

25) Não obstante, não se identificam outros impactos negativos, nomeadamente no que concerne à sua imagem perante a família e amigos, que continuam a revelar-se um importante suporte durante a sua reclusão e o visitam regularmente no EP....

26) Considera-se relevante a necessidade de acompanhamento estruturado que lhe permita ultrapassar as fragilidades internas que apresenta, designadamente, a necessidade de desenvolver o pensamento consequencial e alternativo, capacidade avaliação dos riscos, bem como uma maior consciência crítica sobre as condutas delinquenciais.»

Âmbito e objeto do recurso

8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP].

Limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocado qualquer dos vícios ou nulidades a que se referem os n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pela decisão recorrida e pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

9. A única questão colocada pela recorrente à apreciação deste Tribunal diz respeito à medida da pena de prisão aplicada, que pretende ver reduzida para cinco anos de prisão.

10. A determinação da medida da pena vem fundamentadas nos seguintes termos:

«Atento o disposto no art. 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, o crime de tráfico de estupefacientes cometido pelo arguido é punido, em abstracto, com pena de prisão 4 a 12 anos.

Na determinação da medida concreta da pena, importa atender à culpa do agente e às exigências de prevenção de futuros crimes, como dispõe o art. 71º, nº 1 do Código Penal.

Nos termos do disposto no art. 40º, nº 2 do Código Penal, a culpa constitui o limite máximo inultrapassável da pena a determinar.

Assim, atento o disposto no nº 2 do citado art. 71º, o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente:

a) As exigências de prevenção geral, que se traduzem na necessidade de reprimir este tipo de crimes, sendo elevadas as necessidades de prevenção neste tipo criminal de tráfico de estupefacientes, considerando, por um lado, as consequências que o consumo de cocaína assume na nossa sociedade, com graves efeitos no tecido social, quer pela degradação da juventude, bem como da família, quer pelo risco grave para a saúde pública e para a sociedade, afectadas por esse consumo e, consequentemente, pelo tráfico que o gera, determina e amplia; e, por outro lado, a frequência da prática destes crimes de tráfico nesta comarca, essencialmente, pela via aérea, com desembarque ou passagem pelo Aeroporto Humberto Delgado, que cumpre combater; e, finalmente, os efeitos das drogas, que provocam mortes e lançam muitos jovens no mundo da marginalidade, criminalidade violenta e prostituição.

b) A gravidade do ilícito, o qual se situa num patamar elevado, considerando a actuação em causa, isto é, a natureza e quantidade do produto estupefaciente que transportava – 28.997,361 gramas, quase 30 quilogramas;

c) A intensidade do dolo, sendo certo que o arguido agiu com dolo directo;

d) A ausência de antecedentes criminais e a grande sensibilidade à pena que dele se espera pelo facto de ser primário;

f) A situação de carência económica do arguido;

g) A admissão parcial dos factos, mas sem grande relevância para a descoberta da verdade, atento o teor da prova documental e pericial constante dos autos, bem como o arrependimento;

h) Preso preventivamente no EP..., AA revelou desde o início capacidade para se adaptar às regras institucionais e desejo em ter uma atividade laboral, tendo sido colocado como faxina, há cerca de 6 meses.;

i) Considera-se relevante a necessidade de acompanhamento estruturado que lhe permita ultrapassar as fragilidades internas que apresenta, designadamente, a necessidade de desenvolver o pensamento consequencial e alternativo, capacidade avaliação dos riscos, bem como uma maior consciência crítica sobre as condutas delinquenciais.

Tudo visto e ponderado, revela-se adequado e proporcional aplicar ao arguido a pena de 7 (sete) anos de prisão.»

11. O recorrente vem condenado pela prática, como autor, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, que pune quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III.

A substância em causa – cocaína, comummente incluída no grupo das vulgarmente denominadas «drogas duras» – insere-se, atento o seu grau de periculosidade, na tabela I-B anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93 e na tabela I anexa à Convenção Única de Estupefacientes de 1961, das Nações Unidas, que contêm as substâncias potencialmente mais perigosas.

A distribuição das drogas pelas tabelas das convenções, nomeadamente pelas Tabelas I, II, III e IV da Convenção Única (Decreto-Lei n.º 435/70, de 12 de setembro, e seu Protocolo de 1972 – Decreto-Lei n.º 161/78, de 21 de dezembro), leva em conta a sua gravidade, reconhecida cientificamente, e o consequente grau de controlo a que as submete (assim, Lourenço Martins, Droga e Direito, Aequitas, 1994, p. 37). Como tem sido reiteradamente afirmado1, o Decreto-Lei n.º 15/93 não acolhe a distinção vulgarmente feita, mas difícil de estabelecer, entre drogas duras («hard drugs») e drogas leves («soft drugs»). Apesar de a distinção não ter relevância direta na definição típica dos crimes ou da moldura abstrata das penas correspondentes, tem-se salientado que este diploma «não deixa de afirmar no preâmbulo que “a gradação das penas aplicáveis ao tráfico, tendo em conta a real perigosidade das respetivas drogas afigura-se ser a posição mais compatível com a ideia de proporcionalidade”, havendo que atender à inserção de cada droga nas tabelas anexas, o que constitui indicativo da respetiva gradação, pois a organização e colocação nas tabelas segue, como princípio, o critério da sua periculosidade intrínseca e social”.

O tipo de crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo abstrato, multicompreensivo e pluriofensivo, protetor de diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, salientando-se que o bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública (assim, acórdão de 2.10.2014, Proc. 45/12.8SWSLB.S1). Mas não só. “Em segundo lugar, estará em causa a protecção da economia do Estado, que pode ser completamente desvirtuada nas suas regras (…) com a existência desta economia paralela ou subterrânea erigida pelos traficantes” (como salienta Lourenço Martins, loc. cit, p. 122).

12. O crime da previsão do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos, moldura a partir da qual há que determinar a pena concretamente aplicável, de acordo com os critérios e fatores estabelecidos na Parte Geral do Código Penal (artigo 48.º daquele diploma).

13. Dispõe o artigo 40.º do Código Penal que a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa2.

Nos termos do n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, em observância do critério de proporcionalidade com fundamento no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»3.

Para a medida da gravidade da culpa há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências e intensidade do dolo ou da negligência), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram e o grau de violação dos deveres impostos ao agente [als. a), b) e c)], bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade (condições pessoais e situação económica, conduta anterior e posterior ao facto, e falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. d), e), f)].

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Aqui se incluem as consequências não culposas do facto (v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves, comportamento anterior e posterior ao crime (com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. a) e) e f)]. O comportamento do agente [als. e) e f)] adquire particular relevo em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem insistentemente sublinhado, é na consideração destes fatores, determinados na averiguação do «grande facto» caraterizado pelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, constituem o substrato da determinação da pena, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, cit.), que devem pautar a sua aplicação4.

14. É, pois, neste quadro que importa verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade que constitucionalmente se impõem na sua determinação.

Nesta apreciação importa considerar as circunstâncias que, constituindo o respetivo substrato, a justificam, tendo presente que o recurso não se destina a proceder a uma nova determinação da pena, mas, apenas, a verificar o respeito por aqueles critérios, com eventual correção da medida da pena aplicada, se o caso a justificar5.

15. Antes de mais, importa, porém, proceder à retificação do acórdão, como promovido pelo Ministério Público e aceite pelo arguido, no que respeita ao peso do total das embalagens de cocaína transportadas, que corresponde a 30.298,361 gramas e não a 28.997,361 gramas, como por erro de soma se fez constar. Tratando-se de erro cuja correção não importa modificação essencial, pode este Tribunal proceder à correção, em recurso (artigo 380.º, n.º 1, al. b), do CPP).

Assim, na página 10 do acórdão em ficheiro pdf, onde consta que: «Deste modo, tendo em conta a matéria de facto provada, transportando o arguido, cocaína com o peso líquido total de 28.997,361 gramas, quase 30 quilogramas», alterando-se tal valor e eliminando-se o segmento final, dele deve passar a constar: «Deste modo, tendo em conta a matéria de facto provada, transportando o arguido, cocaína com o peso líquido total de 30.298,361 gramas».

Da mesma forma, na página 11, onde consta que: «b) A gravidade do ilícito, o qual se situa num patamar elevado, considerando a actuação em causa, isto é, a natureza e quantidade do produto estupefaciente que transportava – 28.997,361 gramas, quase 30 quilogramas», deverá passar a constar: «b) A gravidade do ilícito, o qual se situa num patamar elevado, considerando a actuação em causa, isto é, a natureza e quantidade do produto estupefaciente que transportava – 30.298,361gramas».

16. Não questiona o recorrente o elevado grau de ilicitude revelado pelo tipo e pela quantidade do produto de estupefaciente – cocaína –, com o peso bruto de 30.298,361 gramas, transportado no âmbito de uma atividade que as investigações criminológicas enquadram na utilização, direta ou indireta, dos denominados «correios de droga», que desempenham papéis fundamentais no transporte, disseminação e comercialização ao serviço das redes e associações criminosas que se dedicam ao tráfico internacional6, visando a obtenção de elevadas vantagens económicas provenientes dos mercados ilícitos onde atuam.

A alegação do recorrente de que «é um “correio de droga”, sem ligação direta à estrutura do tráfico internacional de estupefacientes» não contraria a necessária e natural ligação desta atividade à dos agentes do tráfico internacional, nomeadamente para aquisição dos produtos para os destinatários dos «correios», pelas mais diversas formas.

Como nota o acórdão recorrido, são muito elevadas as necessidades de prevenção geral.

São estas necessidades reconhecidas, designadamente, na «Estratégia da UE em Matéria de Drogas 2021-2025»7, adotada pelo Conselho da União Europeia, face ao aumento e elevada gravidade, dimensão e sofisticação das atividades do crime organizado. Convergem neste sentido, os relatórios de segurança interna, que identificam o «tráfico ilícito de estupefacientes» como um fenómeno que continua a impor-se «como uma das principais áreas de atuação do crime organizado», constituindo o tráfico através dos aeroportos uma «ameaça adicional» (assim, Relatório Anual de Segurança Interna, 2024, p. 60-61)8. O relatório de 2023 do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência salienta, uma vez mais, os elevados riscos para a saúde e para a vida dos consumidores e a dimensão e dinâmica dos mercados internacionais e nacionais das drogas ilícitas, incluindo a cocaína, recentemente confirmado no relatório de 20259.

17. Alega o arguido, a seu favor, não ter antecedentes criminais, ter confessado os factos, a sua inserção familiar, social e profissional, a adequação da sua conduta às regras do estabelecimento prisional, as suas condições pessoais e situação económica, bem como comportamento anterior e posterior ao facto, a revelarem «diminutas exigências de prevenção especial» justificando a redução da pena.

Como se vê da fundamentação, foram estas circunstâncias, no essencial, tomadas em consideração, o que levou o tribunal a concluir pela «grande sensibilidade à pena», enquanto fator positivo de elevado relevo na avaliação das condições pessoais.

18. Finalmente apela o recorrente à «equivalência e equidade das penas», notando divergência quanto ao referente jurisprudencial a ter em conta. O que, a verificar-se, não respeitaria o critério do artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, segundo o qual, nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.

19. Como se salientou no acórdão de 29.05.2024, Proc. 2476/23.9JAPRT.P1.S1 (em www.dgsi.pt), este Tribunal tem sido chamado, com frequência, a apreciar casos similares de crimes de tráfico praticados pelos comummente designados «correios de droga», utilizados pelas redes e organizações de tráfico em situações de carência económica e fragilidade de que estas, donas do negócio, visam tirar vantagem, e enfatizado a sua importância no funcionamento deste mercado ilícito, em particular na disseminação de produtos estupefacientes, nomeadamente de cocaína.

Salientou-se no acórdão de 19.2.2014 (Maia Costa), Proc. 86/13.8JELSB.S1, em www.dgsi.pt que «os “correios”, não sendo embora os donos da droga que transportam, (…) são, no entanto, uma peça importante, porventura cada vez mais importante, para fazer a conexão entre produção e consumo, sem a qual não existe negócio», citado no acórdão de acórdão de 23.5.2018, Proc. 595/16.7 JAPDL.L1.S1, em que se salienta a necessidade de se atender aos «padrões sancionatórios» que vêm sendo estabelecidos na jurisprudência para casos de idêntica ou semelhante gravidade, sem prejuízo, como se impõe, da consideração das especificidades próprias e das circunstâncias concretamente relevantes para a determinação da pena do caso concreto).

Disse-se a este propósito no acórdão de 21.2.2024 (Teresa Féria), Proc. 510/22.9JELSB.S1), em que estava em causa uma pena de 5 anos e 2 meses, num caso de um «correio de droga» que, vindo do Brasil, transportava cocaína com o peso de 2779,200g: «contrariamente ao alegado pela recorrente, se mostra conforme ao referente jurisprudencial para casos semelhantes ao dos autos, que é de aplicação de penas entre os 5 e os 7 anos de prisão, e que vem sedimentando um entendimento segundo o qual os chamados “correios de droga”, não obstante ser facto público e notório que, na sua maioria, são escolhidos para tais tarefas por serem pessoas em situação de pobreza e de extrema vulnerabilidade social, não devem receber um tratamento penal de favor atenta a essencialidade da sua conduta no comércio internacional de estupefacientes e a consequente e correlativa imperiosidade de acautelar as necessidades de prevenção geral. Tal constata-se de modo particularmente evidente nos Acórdãos proferidos nos processos adiante indicados, todos disponíveis em www.dgsi.pt: Proc. n.º 8/21.2JAPDL.S1, em 22-06-2022, (…); Proc. n.º 429/21.0JELSB.L1.S1 em 23-11-2022, (…); Proc. n.º 78/22.6JELSB.S1 em 15-02-2023, (…); Proc. n.º 1129/22.0JAPRT.P1.S1, em 04-15-2023, (…); Proc. n.º 2332/22.8JAPRT.S1, em 06-07-2023, (…); Proc. n.º 176/22.6JELSB.L1.S1, em 13-09-2023, (…); Proc. n.º 648/23.5JAPRT.S1, em 11-10-2023, (…); Proc. n.º 202/22.9JELSB.L1.S1, em 26-10-2023, (…); Proc. n.º 8/21.2F1PDL.L1.S1, em 08-11-2023, (…)».

De entre os acórdãos mais recentes, citam-se, na linha da jurisprudência anterior, o acórdão de 29.5.2024, Proc. 2476/23.9JAPRT.P1.S1 – respeitando a um crime de tráfico de 1115 gramas de cocaína, punido com 5 anos e 4 meses de prisão –, de 7.11.2024, Proc. 448/23.2JELSB.S1 – respeitante a um crime de tráfico de 6 kg. de cocaína, punido com 6 anos de prisão e 2 meses de prisão – e de 5.3.2025, Proc. 182/24.0JELSB.L1.S1 – respeitante a um crime de tráfico de 15 kg de cocaína, punido com 6 anos de prisão.

20. Assim, na presença e consideração de todos estes elementos, não se surpreende motivo que justificadamente possa constituir base de divergência quanto à medida da pena de 7 anos de prisão, aplicada no acórdão recorrido, com fundamento na violação dos critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade legalmente impostos na sua determinação.

Em consequência, é o recurso julgado improcedente.

Quanto a custas

21. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP, só há lugar ao pagamento da taxa de justiça pelo arguido quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. O quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais, entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

22. Pelo exposto, acorda-se na secção criminal em:

a) Retificar o texto do acórdão recorrido, de modo a que nas páginas 10 e 11, onde se lê «Deste modo, tendo em conta a matéria de facto provada, transportando o arguido, cocaína com o peso líquido total de 28.997,361 gramas, quase 30 quilogramas», passe a constar: «Deste modo, tendo em conta a matéria de facto provada, transportando o arguido, cocaína com o peso líquido total de 30.298,361 gramas».

b) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de junho de 2025

José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria Margarida Ramos de Almeida

José A. Vaz Carreto

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1. Assim, o acórdão de 29.05.2024, Proc. n.º 2476/23.9JAPRT.P1.S1, que se segue de perto, remetendo para, entre outros, os acórdãos de 6.2.2019, Proc. 98/12.9GCSCD.L1.S1, de 30.4.2008, Proc. 07P4723, de 2.5.2015, Proc. 132/11.0JELSB.S1, e de 27.5.2012, Proc. 445/12.3PBEVR.E1.S1.,

2. Assim, quanto a este ponto, o acórdão de 28.05.2025, Proc. n.º 1140/22.0PFSXL.L1.S1, que se segue.

3. Sobre estes pontos, que seguidamente se desenvolvem, na determinação do sentido e alcance do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, como em acórdãos anteriores, Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357 – cfr., de entre muitos outros, o acórdão de 15.1.2019, Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, e, de entre os mais recentes, o acórdão de 05.03.2025, Proc. 1524/23.7PBFAR.E1.S1, em www.dgsi.pt.

4. Assim, entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.

5. Assim, por todos, o acórdão de 17.12.2024, Proc. 77/12.6GTCSC.L2.S1, em www.dgsi.pt, e outros nele citados, reafirmando jurisprudência reiterada. Cfr., em particular, o acórdão de 21.12.2011 (Raul Borges), Proc. n.º 595/10.0GFLLE.S1, com exaustiva indicação de jurisprudência, também em www.dgsi.pt.

6. Salientando este aspeto, os acórdãos de 5.3.2025, Proc. 182/24.0JELSB.L1.S1,(este é do Carlos Lobo, fui adjunto: Guiné, cocaína, 15 kg, 6 anos) de 5/01/2025, Proc. 527/23.6JELSB.S1, de 7.11.2024, Proc. 448/23.2JELSB.S1 (Manso, fui adjunto, 6 kg,, 6ª2m) de 06/07/2023, Proc. 2332/22.8JAPRT.S1, de 09/06/2022, Proc. 135/21.6JELSB.L1.S1, de 24/03/2022, Proc.134/21.8JELSB.L1.S1

7. Em https://www.consilium.europa.eu/media/54087/qc0521073ptn_002.pdf.

8. Em https://www.portugal.gov.pt/pt/gc24/comunicacao/documento?i=relatorio-anual-de-seguranca-interna -rasi-2024.

9. Acessíveis em https://www.emcdda.europa.eu/publications/european-drug-report/2023/cocaine_en e https://www.euda.europa.eu/publications/european-drug-report/2025/cocaine_en.