CONTRATO DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE DOS GERENTES DEMANDADOS
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
OMISSÃO DE CAUSA DE PEDIR
Sumário


Verifica-se ineptidão da petição inicial por omissão de causa de pedir pois o alegado pelo AA não permite compreender o motivo da demanda dos 2º e 3 RR gerentes da empresa entidade empregadora.

Texto Integral


I. RELATÓRIO

O autor AA recorreu do despacho saneador na parte em que julgou “verificada a excepção de ineptidão da petição inicial e absolveu os Réus BB e CC da instância.”
Fazendo a necessária retrospectiva: o autor intentou acção de processo comum contra três RR: a empresa “EMP01..., Lda” e os ora absolvidos da instância BB e CC, peticionando a respectiva condenação solidária no reconhecimento da caducidade do contrato de trabalho, no pagamento da compensação de € 22.909,04, das remunerações vencidas e vincendas, das férias e subsídio de férias, das horas de formação não pagas, dos danos não patrimoniais e juros.
Alegou em suma que: foi admitido a prestar trabalho na primeira Ré em 01.02.1985; esteve de baixa médica até ../../2023 e comunicou à primeira Ré que se iria apresentar ao trabalho em 10.07.2023; quando se apresentou ao trabalho deparou-se com as instalações fabris encerradas; enviou duas cartas registadas à Ré solicitando informação de quando devia retomar a prestação de trabalho, as quais foram devolvidas; diariamente, até ao dia ../../2023 permaneceu em frente às instalações da Ré e as mesmas mantiveram-se encerradas; os 2º e 3º Réus, legais representantes da empresa Ré, em 16-11-2023 enviaram carta registada com aviso de recepção em que afirmam que o Autor não interpelou a entidade patronal para retomar o seu posto de trabalho, nem compareceu no seu local de trabalho, nem apresentou justificação para a ausência, pelo que abandonou o trabalho, declarações estas que são falsas; os 2º e 3º Réus são gerentes de facto da Primeira Ré, e nessa qualidade assumem a responsabilidade solidária  nos termos do artigo 335.º, n.º 2 do Código do Trabalho e artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais.
Os RR contestaram, por exceção e por impugnação, entre o mais excecionaram a ilegitimidade dos RR pessoas singulares.
No despacho saneador foi proferia a decisão ora recorrida em que se absolveu da instância os 2º e 3º RR, por falta de causa de pedir geradora de ineptidão da petição inicial.

RECURSO DO AUTOR- CONCLUSÕES:
1. O Autor, não se conformando com o teor do Despacho Saneador na parte em que julga verificada a exceção de ineptidão da petição inicial e, consequentemente, absolve os Réus BB e CC da instância, interpõe o presente recurso.
2. ... a excepção de ineptidão da petição inicial quanto aos Réus BB e CC, já que da petição não resulta factualidade que viabilize a formulação de um juízo de mérito sobre a pretensão contra os recorridos.
...6. Com efeito, refere o Senhor Juiz “a quo” que se verifica a excepção de ineptidão da petição inicial, por falta de indicação da causa de pedir.
..8. Para a verificação da existência da causa de pedir haverá que lançar mão dos pressupostos da responsabilidade civil nos termos do disposto no art. 483 do Código Civil e art. 79 do Código das Sociedades Comerciais e art. 335 do Código do Trabalho.
9. Haverá que verificar-se a existência de: facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre facto e dano.
10.Vejamos então se tais pressupostos estão verificados ou não estão verificados:
a) facto ilícito:
11.Ora, o Autor esteve de baixa medica até ../../2023 (n. 6 da petição) e como esta terminou, teve que se apresentar ao trabalho nas instalações da Entidade Empregadora. Tendo tal facto ocorrido em 10-07-2023 (n.7 e 8 da petição), e tendo previamente, enviado e-mail para a Entidade Empregadora em 06-07-2023, a comunicar que naquele dia 10-07- 2023, se iria apresentar ao trabalho nas instalações daquela sitas em Rua ..., ..., ..., ....
12.No dia de dar inicio à prestação do trabalho encontrou as instalações da empresa fechadas a cadeado (n. 10 e 11 da petição).
13.Pelo que de seguida e no mesmo dia 10-07-2023, dirigiu-se ao ACT de ... e enviou cartas registadas para a sede e para os escritórios da sociedade (n. 13, 14 e 15 da petição), onde comunicava que se tinha apresentado ao trabalho, que as instalações se encontravam fechadas a cadeado e que foi marcada uma reunião com o técnico da ACT de ... para ../../2023. E por fim solicitava que o informassem por qualquer meio quando devia retomar a prestação de trabalho.
14.Mais ocorre que em 16-11-2023, os aqui recorridos que são os Segundo e Terceiro Réus, na petição inicial, intitulando-se legais representantes da empresa Ré, agindo em representação desta e por si, enviaram uma carta registada com aviso de receção em que afirmam que o Autor não interpelou a Entidade Patronal para retomar o seu posto de trabalho, não compareceu no seu local de trabalho, ou apresentou justificação para a ausência e que deste modo revelava o Autor que expressava o firme propósito de não retomar o trabalho e deste modo concluem que o Autor abandonou o trabalho – docs. 14 e 15 que constituem a carta e respetivo envelope.( n.33 e 34 da petição).
15.A supra identificada carta tem o seguinte teor:
.....
16.Do teor daquela carta, constata-se que os recorridos, agindo em representação da Entidade Empregadora e por si, ao arrepio de todas as comunicações do Autor e do ACT de ..., referiram entre outros que representam a entidade patronal e rescindem unilateralmente o contrato de trabalho que o Autor manteve com a Entidade Empregadora.
17.Ora apurada que está toda a ilicitude praticada por parte dos recorridos, duvidas não restam que os mesmos são responsáveis pelos danos causados ao Autor e que são os peticionados na petição inicial.
b) Culpa:
18.Salvo o devido respeito, não subsistem duvidas de que os recorridos agiram com culpa.
19.De facto foram notificados quer pelo Autor por altura da retoma do trabalho após a baixa medica, quer porque em consequência das instalações se encontrarem encerradas a cadeado, foram, também, notificados pelo ACT de ..., sobre os factos que ocorreram aquando da apresentação do Autor a prestar trabalho.
20.Acresce ainda que os recorridos, intitulando-se Entidade Patronal através daquela carta de 16-11-2023 vieram rescindir o contrato de trabalho que o Autor mantinha para com a sociedade Ré.
21.Pelo que duvidas não restam sobre a culpa dos recorridos para com o Autor no âmbito da presente ação.
c) dano:
22.Os recorridos, com a sua atuação causaram danos avultados ao Autor, conforme se narra na petição inicial, danos esses que ascendem a 53.629,71€ ( cinquenta e três mil e seiscentos e vinte e nove euros e setenta e um cêntimo).
d) nexo de causalidade entre facto e dano:
23.Como supra se referiu, verificamos que os recorridos com os seus comportamentos praticaram vários factos ilícitos em relação ao Autor.
24.Na verdade os recorridos intitulando-se legais representantes da empresa Ré, agindo em representação desta e por si, enviaram em 16- 11-2023, carta registada com aviso de receção em que afirmam que o Autor não interpelou a Entidade Patronal para retomar o seu posto de trabalho, não compareceu no seu local de trabalho, ou apresentou justificação para a ausência e que deste modo revelava que expressava o firme propósito de não retomar o trabalho e deste modo concluem que o Autor abandonou o trabalho.
25.Tal não corresponde à verdade, já que na verdade o Autor enviou varias cartas registadas com aviso de receção, assim como o ACT de ... a questionarem a Entidade Empregadora por altura da sua apresentação ao trabalho após a baixa medica, sem que contudo houvesse resposta a tais comunicações.
26.Com efeito, a atuação dos recorridos configura a causa adequada do prejuízo sofrido pelo Autor e que atinge o montante de 53.629,71€ (cinquenta e três mil e seiscentos e vinte e nove euros e setenta e um cêntimo).
27.Pelo que e sem mais, constata-se que não se verifica a exceção de ineptidão da ineptidão da petição inicial quanto aos recorridos.
28.A decisão ora em recurso, violou entre outros os disposto no art. 483 do Código Civil e art. 79 do Código das Sociedades Comerciais e art. 335 do Código do Trabalho.
29.Pelo que deve ser proferido Douto Acordão que ordene o prosseguimento da ação contra os recorridos.
Nestes Termos e nos mais de Direito aplicável, revogando- se o Despacho Saneador na parte em que julga verificada a excepção de ineptidão da petição inicial, em relação aos recorridos BB e CC e substituindo-o por Douto Acordão em que os mesmos sejam julgados parte legitima...”

SEM CONTRA-ALEGAÇÕES
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: sustenta a improcedência do recurso.

NÃO FORAM APRESENTADAS RESPOSTAS AO PARECER.
O recurso foi apreciado em conferência.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso[1]): excepção de ineptidão da petição inicial por omissão de causa de pedir quanto à pretensão formulada contra os 2º e 3º RR, gerentes.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:
Os constantes do relatório.
B) DIREITO
Apenas está em causa saber se o pedido formulado contra os RR gerentes carece de causa de pedir, como se entendeu na primeira instância
Da decisão da 1ª instância extraem-se as seguintes ideias essenciais:
“Tendo presente que em regra só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade – cfr. art. 197.º n.º 3 da CSC, os mencionados artigos do Código das Sociedade Comerciais - 78º, 79º e 83º-, constituem excepção.”
“A responsabilidade dos gerentes perante os credores tem como pressuposto o facto de a sociedade não ter bens suficientes para através deles se obter o pagamento dos credores e insere-se no âmbito da responsabilidade civil ou aquiliana- cfr. art. 483.º do CC – tendo natureza delitual e não obrigacional”
“ para que se verifique a responsabilização dos gerentes da sociedade, nos termos das disposições legais referidas, é necessário: - Que a atuação dos mesmos tenha constituído inobservância culposa de disposições legais ou contratuais destinadas a proteger os interesses dos credores sociais; - Que o património da sociedade se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos credores sociais; - Que se verifique a existência de um nexo causal entre o(s) ato(s) do(s) gerente(s) e a insuficiência do património social para satisfação dos credores sociais.”
Segundo a primeira instância o autor não alegou estes requisitos, referindo-se:
em lugar algum da petição inicial é alegado pelo Autor que o património da primeira Ré se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos credores sociais (não foi alegado qual o património da primeira Ré e/ou a existência de quaisquer credores) e muito menos a existência de qualquer nexo causal entre os actos praticados pelos segundo e terceiro Réus e a insuficiência desse património social (para além da carta enviada em representação da primeira Ré declarando o abandono do trabalho por parte do Autor, nenhum outro acto praticado pelos Réus foi alegado pelo Autor, e menos ainda que esses actos tenham contribuído para a insuficiência do património da sociedade).”
Finalmente, concluiu-se que o autor tem que indicar o facto genético do direito ou da pretensão que aspira fazer valer, articulando factos suficientes constitutivos do direito, o que não fez. Sendo a petição totalmente omissa quanto a este aspecto no respeita aos pedidos formulados contra os RR gerentes, a consequência é a ineptidão da petição, sem possibilidade de convite de aperfeiçoamento.
Apreciação do Tribunal da Relação:
A primeira instância decidiu bem.
Estribou-se na ideia essencial de que só o património da sociedade responde pelas suas dívidas e apenas a título excepcional poderá ser atingido o património dos gerentes, desde que se verifiquem certos requisitos.
Das normas que regem a matérias (78º, 79º CSC) colhe-se que os gerentes só respondem perante os credores quando (1) o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (2) em resultado da inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes.
O autor é trabalhador da sociedade ré e não dos gerentes. O vínculo contratual e os direitos e obrigações daí advenientes, por regra, apenas se repercutem e são exigíveis perante as partes contratantes. A ré empresa é a devedora sobre quem o autor credor poderá reclamar os seus direitos. As dividas da sociedade são pagas apenas com o património da empresa e não com o património pessoal dos sócios ou gerentes/administradores. Só assim não será mediante a verificação de requisitos muitos específicos.
Da leitura da petição inicial, bem como das próprias alegações de recurso, decorre que o autor não alegou sequer o primeiro requisito, ou seja, que o património da empresa não chegue para pagar o que reclama. Muitos menos alegou que os RR gerentes agiram de forma a delapidar o património.
Assim sendo, não se percebe a que título são os RR gerentes demandados.
Também da leitura das alegações decorre que o autor labora num outro erro ao considerar que a responsabilidade dos gerentes se refere à violação de qualquer norma ou dever, mormente o da violação do dever de ocupação efectiva ou de pagar o vencimento ao trabalhador. Ora, do que se trata aqui é apenas da “inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores”. O que está em causa é uma actuação do gerente (referindo-nos ao caso presente) que lese e cause dano à empresa, de tal forma que ela fica impedida de satisfazer as suas obrigações. Ou seja, o credor não vê o crédito satisfeito em razão da insuficiência do património social decorrente de violação daqueles deveres por parte do gerente.
Sendo mais raros os casos de violação de disposições contratuais, referimos como exemplos de “disposições legais destinadas à protecção dos credores” as seguintes hipóteses:
 “a conservação do capital social (vg artºs 31º-34º, 514º, 236º, 346º, 1; 513º, 220º, 2; 317º, 4): proibição, em princípio, de distribuição de bens sociais aos sócios sem prévia deliberação destes, proibição de distribuição de bens sociais quando o património líquido da sociedade seja ou se tornasse (em consequência da distribuição) inferior à soma do capital e das reservas legais e estatutárias, interdição da distribuição de lucros do exercício em certas circunstâncias e de reservas ocultas; ilicitude da amortização de quotas sem ressalva do capital social; ilicitude da aquisição de quotas e de ações próprias sem ressalva do capital social. É também o caso das normas relativas à constituição e utilização da reserva legal (artºs 218º, 295º, 296º). São igualmente normas de proteção dos credores as que proíbem a subscrição de ações próprias (artº 316º, 1), bem como certas aquisições e detenções de ações próprias (artºs 317º, 2, e 323º, entre outros).”- Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos, em anotação ao artº 78º,  Código das Sociedades Comerciais em Comentário, 2017, páginas 958 a 967 (anotação ao artigo 78º CS).
E concluem os mesmos autores:
“Tem de haver, portanto, dano para a sociedade. E decorrente da violação de normas de proteção dos credores sociais. Um dano causado à sociedade pela violação de outras normas é suscetível de conduzir à responsabilidade para com a sociedade, não para com os credores sociais – ainda que estes sejam afetados, mediatamente, por aquele dano. Depois, não é qualquer dano para a sociedade que funda a responsabilidade perante os credores sociais. Há de consistir em uma diminuição do património social em montante tal que ele fica sem forças para cabal satisfação dos direitos dos credores. Só quando se verifica esta insuficiência do património social existe dano (mediato) relevante para os credores da sociedade.”

*
Assim sendo, temos de concluir que o autor não alegou factos que se encaixem nestes normativos.
Na realidade, a este propósito, o autor apenas alega que os 2º e 3 RR atuaram na qualidade de legais representantes da ré e que lhe enviaram uma carta invocando falsamente abandono de trabalho.
Mais concretamente quanto aos pedidos formulados contra estes RR referem apenas que:
42. Ora, toda a atuação dos Segundo e Terceiro Réus, que se vem narrando nesta petição, como se descreve, mais não configura do que a gerência de facto por parte destes.
43. E nesta qualidade de gerência de facto, assumem a responsabilidade solidaria e daí também serem demandados.
44. Atentos os factos supra narrados, resulta a responsabilidade pessoal e solidaria dos Segundo e Terceiro Réus quanto á caducidade do contrato de trabalho que o Autor mantinha com a Empresa Ré, atento o disposto nos arts. 335º n.2 do Código do Trabalho e arts. 78º e 79º do Código das Sociedades Comerciais.”

O alegado no total da petição inicial apenas permite compreender o pedido formulado contra a ré sociedade, mas já não contra os RR gerentes.
Repare-se que a petição inicial, peça através da qual a Acão entra em juízo, está sujeita a exigências, entre elas a formulação do pedido e narração da causa de pedir – 552º/1/d/e, CPC. O pedido é a pretensão formulada ao tribunal, sendo um corolário do princípio do dispositivo e do ónus de impulso processual inicial - 3º, 1, CPC. A causa de pedir é o acervo essencial dos factos que tipicamente integram a previsão da norma ou instituto que concede à parte o efeito pretendido.
Quer o pedido, quer a causa de pedir devem ser compreensíveis. A petição é inepta se o pedido e a causa de pedir forem omitidos ou se, embora minimamente existindo, forem obscuros e não permitirem entender quais sejam, ou se a causa de pedir for tão genérica ou abstracta que, em bom rigor, não contem alegação de factos concretos   - 186º, 2, a), CPC e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, Vol. I, 4º ed, p. 374.
Decisivo é que o tribunal não tenha dúvida sobre o fundamento do pedido e que a parte contrária possa exercer o contraditório (repare-se que, no caso, a incompreensão dos RR foi expressa embora através da arguição da excepção de ilegitimidade)-186º, 3, CPC.
Ora, no caso inexiste materialidade própria quanto ao pedido formulado quanto aos 2º e 3º RR, concluindo-se pela inexistência de causa de pedir, tudo gerador de ineptidão parcial da causa de pedir (caso se entendesse que do alegado não se retira o efeito pretendido pelo autor, sempre haveria lugar a improcedência da acção por razões de mérito, o que ainda seria mais gravoso para a parte).

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em manter a decisão recorrida e negar provimento ao recurso - 87º, CPT e 663º, CPC.
Custas a cargo do autor.
Notifique.
05-06-2026

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Dinis Ramos Veiga

[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC.