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CRIME FISCAL
NON BIS IN IDEM
Sumário
I. A investigação criminal no âmbito dos crimes fiscais é complexa, por força da necessidade de conjugar complexa e vasta documentação, nem sempre entregue no momento fiscal próprio, com diversos âmbitos espaciais e múltiplas interacções subjectivas, tudo a dificultar a definição do âmbito da actividade criminosa. II. A actividade investigatória do titular da acção penal deve ser orientada de modo a evitar que alguém seja acusado em processos diferentes, pela prática de factos de idêntica natureza, cometidos no âmbito de uma mesma actividade, em períodos temporais coincidentes ou próximos. III. A conduta dos arguidos descrita na factualidade provada nos presentes autos tem a mesma natureza da que fundamentou a sua condenação no processo anterior. IV. Há diferenças factuais entre ambos os processos (nem sequer totalmente), mas a conduta é a mesma, o seu desígnio criminoso é o mesmo e o crime cometido é precisamente igual (mas não tinha sequer de o ser). V. Cabia ao titular da acção penal evitar a duplicação das investigações e assim a sujeição a julgamento dos arguidos pela mesma sua conduta criminosa, pois a tal impede, precisamente, a força do caso julgado da condenação sofrida pelos arguidos em tal processo (violação do princípio non bis in idem).
Texto Integral
Acordam os juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
(Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa– Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 13)
I – Relatório
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, aos arguidos AA (sociedade comercial por quotas, pessoa coletiva n.° ..., com sede na ..., representada por BB) e BB (filho de CC e de DD, nascido a ... de ... de 1994, solteiro, empresário e residente na ...) foi imputada na pronúncia a prática, a primeira arguida, em coautoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude qualificada, previsto e punível pelos artigos 6.°, 103.º, n.° 1, alíneas a), b) e c), n.° 2 e 104.°, n.° 1. alíneas d) e e), e n.° 3, todos do Regime Geral das Infrações Tributárias, sendo responsável nos termos dos artigos 11.°, n.° 1, do Código Penal e 7.°, 11.° 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias; e o segundo arguido, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude qualificada, previsto e punível pelos artigos 6.°. 103.°. n.° 1, alíneas a), b) e c) e n.° 2 e 104.°. n.° 1, alíneas ti) e e), e n.° 3, todos do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Os arguidos apresentaram contestação onde invocaram, como questão prévia, a existência de violação do princípio do non bis in idem — excepção de caso julgado por, no seu entendimento, os factos constantes da pronúncia fazerem parte integrante do crime continuado de fraude fiscal qualificada pelo qual os arguidos foram condenados no processo comum singular que, com o n.° 876/17.2IDLSB, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa — Juiz 5, o que veio a ser indeferido e alvo de apresentação por si de recurso interlocutório.
Na sequência da audiência de discussão e julgamento foi a seguinte a decisão proferida: “Pelo exposto, e na sequência da comunicada alteração não substancial:
a. Condeno a arguida AA, pela prática de 1 (um) crime de fraude qualificada, previsto e punível pelos artigos 6.°, 103.°, n.° 1, alíneas a), b) e c), n.° 2 e 104.°, n.° 1, alíneas d) e e), e n.° 3, todos do Regime Geral das Infrações Tributárias, sendo responsável nos termos dos artigos 11.°, n.° 1, do Código Penal e 7.°, n.° 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 500 dias de multa à taxa diária de €10,00 (dez euros), no montante total de €5.000 (cinco mil euros);
b. Condeno o arguido BB, pela prática de 1 (um) crime de fraude qualificada, previsto e punível pelos artigos 6.°, 103.°, n.° 1, alíneas a), b) e c) e n.° 2 e 104.°, n.° 1, alíneas d) e e), e n.° 3, todos do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
c. Suspendo a execução da pena de prisão de 2 anos e 6 meses de prisão em que o arguido BB vai condenado pelo período de 3 (três) anos condicionada ao pagamento, no período da suspensão, dos valores ainda em dívida nos presentes autos […]”;
II- Fundamentação de facto
Após a realização da audiência de discussão e julgamento, e inexistindo factos não provados, foi a seguinte a matéria de facto dada como provada:
“ Produzida a prova, resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1. A sociedade AA foi constituída em ... de ... de 2013, sob a forma de sociedade por quotas;
2. A sociedade AA tem por objeto social o transporte de mercadorias não superior a 3.500 kg e obriga-se com a intervenção de um gerente.
3. Desde ... de ... de 2013 até à presente data, BB exerce as funções de gerente da sociedade AA;
4. Desde ... de ... de 2013 e até à presente data, BB toma as decisões de gestão da sociedade AA, em nome e no interesse desta última, contratando trabalhadores, negociando e assinando contratos, recebendo diretamente valores dos clientes, pagando vencimentos aos trabalhadores, distribuindo trabalho a estes últimos, pagando diretamente aos fornecedores e liquidando impostos;
5. A sociedade AA está registada em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), pelo exercício da atividade de transportes rodoviários de mercadoria, com o CAE 49410, estando enquadrada no regime geral;
6. No exercício da sua atividade, a sociedade AA está obrigada a proceder à entrega da declaração de rendimentos relativamente à sua atividade e ao posterior pagamento do imposto respeitante à referida atividade;
7. Em data não concretamente apurada, mas certamente anterior ano de 2015, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, formulou um plano que lhe permitiria obter proventos financeiros indevidos, em prejuízo do Estado Português;
8. O plano passava por não declarar os rendimentos auferidos com a prestação de serviços a clientes e o não pagamento ao Estado Português do respetivo imposto, bem como pelo fabrico e emissão de faturas não correspondentes a serviços prestados, de forma a imputar as referidas faturas como despesas na respetiva contabilidade e a, consequentemente, reduzir os valores a pagar a título de IVA e IRC pela sociedade AA;
9. No exercício da sua atividade, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, prestou serviços, durante o ano 2015, sobre os quais cobrou o valor total de 348.151,41€ (trezentos e quarenta e oito mil, cento e cinquenta e um euros e quarenta e um cêntimos);
1. No exercício da sua atividade, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, prestou serviços, durante o ano 2016, sobre os quais cobrou o valor total de 142.426,09€ (cento e quarenta e dois mil, quatrocentos e vinte e seis euros e nove cêntimos);
2. Os valores dos serviços prestados por BB, em nome e no interesse da sociedade AA, constituem proveitos ou ganhos desta última, encontrando-se sujeitos a tributação em sede de IRC;
3. Por tal facto, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, deveria proceder à entrega das declarações anuais de rendimento, referentes aos exercícios de 2015 e 2016, até aos dias 31 de maio de 2016 e 31 de maio de 2017, respetivamente, para efeitos de determinação da matéria coletável e sujeita a IRC;
4. No entanto, com intenção de não proceder ao pagamento do imposto devido, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, não procedeu à entrega das respetivas declarações de IRC, ocultando à Administração Tributária os rendimentos auferidos nos anos de 2015 e 2016;
5. Verificada a omissão de declaração de valores recebidos por BB, em nome e no interesse da sociedade AA, a Administração Tributária apurou que existem ganhos, sujeitos a tributação, resultantes dos serviços prestados pela referida sociedade;
15. De acordo com os valores cobrados por BB, em nome e no interesse da sociedade AA, deveria aquele ter aposto, nas declarações anuais respeitantes aos exercícios de 2015 e de 2016, os valores tributáveis de 348.151,41€ (trezentos e quarenta e oito mil, cento e cinquenta e um euros e quarenta e um cêntimos) e de 142.426,09€ (cento e quarenta e dois mil, quatrocentos e vinte e seis euros e nove cêntimos), respetivamente;
16. Face aos valores apurados, resultava um lucro tributável de 452.179,77€ (quatrocentos e cinquenta e dois mil, cento e setenta e nove euros e setenta e sete cêntimos) e a obrigação de entregar ao Estado Português, a título de IRC, o montante de 94.957,75€ (noventa e quatro mil, novecentos e cinquenta e sete euros e setenta e cinco cêntimos), relativamente ao exercício de 2015;
1. Atendendo aos valores apurados, resultava um lucro tributável de 382.261,43€ (trezentos e oitenta e dois mil, duzentos e sessenta e um euros e quarenta e três cêntimos) e a obrigação de entregar ao Estado Português, a título de IRC, o montante de 87.434,69€ (oitenta e sete mil, quatrocentos e trinta e quatro euros e sessenta e nove cêntimos), relativamente ao exercício de 2016;
17. BB, em nome e no interesse da sociedade AA, teria de proceder ao pagamento das quantias de IRC, apuradas e devidas aos Cofres do Estado Português, até aos dias 30 de novembro de 2016 e 30 de novembro de 2017, respetivamente, o que não fez;
18. Acresce que, em 2015 e em execução do plano delineado, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, emitiu as seguintes faturas, nas quais colocou o nome de EE e de onde constava a realização de serviços por este em benefício da sociedade AA:
N.o
Nome
Data
Descrição
Base tributável
IVA deduzido
Fls. dos autos
28
EE
.../.../2015
Prestação de serviços
19.565,22€
4.500,00€
94
31
EE
.../.../2015
Prestação de serviços
8.696,65€
2.000,00€
93
33 Total
EE
.../.../2015
Prestação de serviços
34.242,52€
7.785,78€
93
62.503,39€
14.375,78€
1005
20. Em 2016 e em execução do plano delineado, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, emitiu as seguintes faturas, nas quais colocou os nomes de EE, FF e ..., e de onde constava a realização de serviços por estes em benefício da sociedade AA:
N.o
Nome
Data
Descrição
Base tributável
IVA deduzido
Fls. dos autos
36
EE
.../.../2016
Prestação de serviços
13.043,48£
3.000,00£
95
39
EE
.../.../2016
Prestação de serviços
4.347,83£
1.000,00£
96
42
EE
.../.../2016
Prestação de serviços
6.521,74£
1.500,00£
95v
43
EE
.../.../2016
Prestaçlão de serviços
6.466,28£
1.487,24£
95
1
FF
.../.../2016
Prestação de serviços distribuidor
375,00E
0,00£
96v
2
FF
.../.../2016
Prestação de serviços distribuidor
415,00E
0,00£
97
Prestação de serviços
3
FF
.../.../2016
distribuidor
520,00£
0,00£
97v
200
000
EE
.../.../2016
Prestação de serviços
4.347,83£
1.000,00€
98v
O
Prestação de serviços
5
FF
.../.../2016
distribuidor
475,00€
0,00€
98
44
EE
.../.../2016
Prestação de serviços
10.869,57€
2.500,00£
100
6
FF
.../.../2016
Prestação de serviços455,00€ distribuidor
0,00€
99v
200
000
EE
.../.../2016
Prestação de serviços
13,043,48€
3.000, 00€
99
1
7
FF
.../.../2016
Prestação de serviços distribuidor
515,00€
0,00€
100v
200
000
EE
.../.../2016
Prestação de serviços
15.217,39€101
3.500,00€
2
200
001
EE
.../.../2016
Prestação de serviços
20.500,00E
4.715,00€
101v
O
9
FF
.../.../2016
Prestação de serviços distribuidor
513,00£
0,00€
102v
20000 11
EE
30/11/2016
Prestação de serviços
8.000.00€
1.840,00€
103
10
FF
30/11/2016
Prestação
592,50€
0,00€
103v
1 1600/ 00 0062
Resumo do Sucesso, Unipessoal, Ida.
30/1112016
Prestação de serviços de transporte
10.000,00€
2.300,00€
106
12
FF
31/12/2016
Prestação de serviços distribuidor
565,00€
0,00€
104
20000 0 4
EE
31/12/2016
Prestação de serviços
10.000,008
2.300,00€
104v
Total
_
_
126.783,10€
28.142,24€
1011
21. Nos anos de 2016 e 2017, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, declarou custos ficticiamente suportados, com base nas referidas faturas;
22. Sucede que os serviços e bens, discriminados nas referidas faturas, não foram prestados por EE, FF, nem pela sociedade ..., Lda., em benefício da sociedade AA, nem BB pagou efetivamente o preço constante das mesmas;
23. Na verdade, as referidas faturas não respeitam a quaisquer operações realizadas, tendo sido fabricadas por BB, em nome e no interesse da sociedade AA, em execução do plano conjunto já descrito;
24. As referidas faturas foram impressas do Portal das Finanças e preenchidas manualmente;
25. Assim e com base naqueles custos, BB, em nome e no interesse da sociedade AA declarou, em sede de IRC, nos anos de 2016 e 2017, por referência aos exercícios de 2015 e 2016, prejuízo fiscal nos valores de 62.503,39€ (sessenta e dois mil, quinhentos e três euros e trinta e nove cêntimos) e de 126.783,10€ (cento e vinte e seis mil, setecentos e oitenta e três euros e dez cêntimos), respetivamente;
26. Porém, sucede que a sociedade AA não suportou, na verdade, tais custos, pelo que a mesma obteve lucros de valor superior aos declarados.
27. BB atuou sempre como representante legal da sociedade AA, agindo em nome e no interesse desta; 28. Com as condutas descritas, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, conseguiu, para si e para esta sociedade, um benefício ilegítimo:
a. em 2015, em sede de IRC, no valor de €84.178,69 e em sede IVA no valor de €94.450,67;
b. em 2016, em sede de IRC, no valor de €60.572,06 e em sede IVA no valor de €60.900,25, no montante global de €301.101,67, que não foram entregues à Autoridade Tributária e Aduaneira; 29. Ao não proceder à declaração dos rendimentos auferidos pela sociedade AA, BB quis evitar o pagamento de imposto sobre os rendimentos da mesma, apropriando-se de tais quantias, bem sabendo que as mesmas deveriam ser entregues à Administração Tributária; 30. BB agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei, tendo obtido uma vantagem e enriquecimento indevidos no montante total de €301.101,67 (trezentos e um mil cento e um euros e sessenta e sete cêntimos) de IRC e IVA dos anos de 2015 e 2016, devido e não pago, montante com que se locupletou e utilizou em proveito do mesmo e da sociedade AA; 31. BB sabia que o montante de €301.101,67 (trezentos e um mil cento e um euros e sessenta e sete cêntimos) não pertencia à sociedade AA e que, em nome e no interesse desta última, estava obrigado a entregá-lo nos Cofres do Estado; 32. BB sabia que, ao não proceder à entrega do referido montante, atuava contra a vontade do Estado Português, tendo, no entanto, decidido ficar com o mesmo e utilizá-lo em seu proveito e da sociedade AA; 33. BB sabia que as faturas referidas eram falsas, por não corresponderem a serviços prestados e, ainda assim, não se inibiu de as fabricar e usar, com o intuito de obter vantagem patrimonial em prejuízo do Estado Português; 34. Ao agir da forma descrita, BB pôs em crise a fidedignidade daqueles documentos e lesou a fé pública dos mesmos perante a generalidade das pessoas e dos serviços respetivos, com o intuito de causar desfalque patrimonial ao Estado Português; 35. Ao apresentar os referidos documentos junto da Administração Tributária, BB quis induzir em erro os funcionários da mesma, por forma a determiná-los a efetuar registo de prejuízos patrimoniais e lucros e a processar os respetivos dados, no convencimento de que aqueles documentos tinham informação fidedigna;
36. Com base no engano que provocaram nos funcionários da Administração Tributária, BB apropriou-se daqueles valores, indicados como vantagem patrimonial, em detrimento do Estado Português e do respetivo património;
37. BB, atuando em nome e no interesse da sociedade AA, visou obter vantagens patrimoniais não permitidas por lei e, consequentemente, diminuição das receitas tributárias do Estado Português (pagamento de imposto a menos do que o devido realmente e reembolso do imposto), o que fez, alterando factos e valores constantes das declarações entregues, fazendo uso de faturas que não titulavam transações comerciais, as quais serviram de base à Administração Tributária para determinar a matéria coletável e liquidar o imposto, o que conseguiu;
38. BB sabia que as faturas que usou não correspondiam a transações que a sociedade AA tivesse celebrado, tendo, ainda assim, atuado como descrito, com intenção de inserir nas declarações de IRC e IVA factos que sabia serem falsos, criando na Administração Tributária o falso convencimento de que aquelas representavam, com fidelidade, a sua atividade sujeita a tributação e que, assim, determinavam esta última a aceitar a liquidação feita como se fosse verdadeira, o que conseguiu;
39. Com a sua conduta, BB conseguiu obter vantagens patrimoniais não permitidas por lei, à custa de um empobrecimento do património do Estado Português, colocando em risco a fé pública que a lei fiscal atribui à fatura como documento essencial a emitir por cada transmissão de bens ou prestação de serviços e às declarações de imposto como documento idóneo de autoliquidação do mesmo, assente no compromisso de verdade que o contribuinte assume ao emiti-las;
40. BB agiu como descrito de forma livre, voluntária e consciente, em nome e no interesse da sociedade AA;
41. BB atuou, em nome e no interesse da sociedade AA, sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas; Mais se provou que:
42. A sociedade arguida realizou voluntariamente pagamentos à autoridade tributária e, após, estabeleceu com esta um plano de pagamentos para pagamento das quantias em causa nos autos, o qual está a ser cumprido;
43. A sociedade arguida faturou cerca de €250.000,00 mensais no ano fiscal de 2023;
44. Consta do certificado de registo criminal da arguida AA que a mesma já foi julgada e condenada no âmbito do processo n.° 876/17.2IDLSB, Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, por decisão de 2022/11/22, transitada em julgado em 2023/01/04, pela prática, em 2016/12/13, de um crime de fraude fiscal qualificada, na pena de 400 dias de multa, à taxa diária de 5,00, que perfaz o total de 2.000,00 euros, extinta em 2023/01/18;
45. O arguido BB é empresário na área do transporte de mercadorias auferindo cerca de €2.300,00 mensais;
46. Vive com a companheira e dois filhos com 8 e 3 anos em casa arrendada, contribuindo com cerca de €2.000,00 nas despesas domésticas;
47. Tem o 12.° ano incompleto;
48. Consta do certificado de registo criminal do arguido BB que o mesmo já foi julgado e condenado no âmbito do processo 876/17.2IDLSB, Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, por decisão de 2022/11/22, transitada em julgado em 2023/01/04, pela prática, em 2016/12/13, de um crime de fraude fiscal qualificada, na pena de 1 (um) ano e 6 (meses) de prisão suspensa por três anos.”
III- Convicção da matéria de facto:
O Tribunal a quo justificou a convicção da matéria de facto nos seguintes termos: “O Tribunal fundou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, na análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127.°, do Código de Processo Penal. No caso vertente, a convicção positiva fundou-se na articulação dos meios de prova disponibilizados nos autos, designadamente, e desde logo, na confissão do arguido BB, por si e na qualidade de representante legal da sociedade arguida, de toda a prova documental constante dos autos e, bem assim, nos depoimentos das testemunhas GG, HH, II (inspetores tributários e aduaneiros), JJ (funcionária pública a exercer funções na Secção de Finanças de ... e KK. Vejamos. O arguido confessou a factualidade por que vem pronunciado apenas com exceção do montante global a título de vantagem patrimonial criminal vertido na pronúncia, o qual, referiu, não é o que consta do relatório da Divisão de Processos Criminais Fiscais da Direção de Finanças de Lisboa, elaborado pelas senhoras inspetoras tributárias GG e HH e que terá sido feito constar da acusação e subsequentemente na pronúncia por lapso. Produzida prova a este conspecto, com efeito, as testemunhas GG e HH, com intervenção no processo de inspeção fiscal que está na base dos presentes autos e que elaboraram, respetivamente, o relatório (fls. 991 e ss.) e o parecer (fls. 1018) juntos aos autos, com cujo teor foram confrontadas e confirmaram, bem como a testemunha II, esclareceram de forma objetiva os cálculos efetuados com vista ao apuramento da vantagem patrimonial ilícita dos arguidos tendo sido coincidentes no valor que transmitiram. Referiram que o processo começou por uma informação preliminar da inspeção tributária na medida em que se detetaram divergências entre os valores declarados pelos clientes e a sociedade arguida, constatando-se, posteriormente, a existência de omissões em prestação de serviços e utilização de faturação falsa de duas sociedades emitentes e duas pessoas singulares, admitindo ainda que possa ter existido lapso no apuramento do montante da vantagem criminal na acusação. A testemunha JJ, funcionária do serviço de finanças de ..., referiu-se à a existência do plano prestacional de pagamento das quantias em dívida pela sociedade arguida (fls. 1235 a 1241) tendo sido confrontada com o mesmo cujo teor confirmou. Tais depoimentos foram coerentes, esclarecedores e sustentados pela prova documental, o que os credibiliza, pelo que o Tribunal deu como provado o valor global de vantagem patrimonial criminal (ponto 28 dos factos provados), e, bem assim, a existência do plano de pagamento. A testemunha KK depôs sobre factos relativos à personalidade e caráter do arguido confirmando a inserção social e profissional do mesmo. No que tange às condições socioeconómicas dos arguidos, o Tribunal tomou em consideração as declarações prestadas pelo arguido BB, por si e enquanto representante legal da sociedade arguida, as quais se afiguraram verosímeis, atendendo à forma espontânea e clara com que foram produzidas. Relativamente aos antecedentes criminais, o Tribunal valorou o certificado do registo criminal junto aos autos.”
IV. Dos recursos
1. Do recurso interlocutório
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“Questão prévia – exceção de caso julgado Na contestação apresentada pelos arguidos, vêm estes suscitar a exceção de caso julgado, alegando, para tal, que no processo n.º 876/17.2IDLSB, do Juiz 5, do Juízo Local Criminal de Lisboa, foram julgados pelos mesmos factos que constituem o crime em causa nos presentes autos. Argumentam os arguidos que o “processo n.º 876/17.2IDLSB, corresponde ao período compreendido entre ... e o dos presentes autos ao período compreendido entre ... a ..., pelo que, se está perante uma linha temporal ininterrupta. Estando em causa os mesmos factos e o mesmo objeto jurídico a proteger, nomeadamente o pagamento dos impostos devidos à Autoridade Tributária e Aduaneira, cujo pagamento era da responsabilidade da sociedade AA E perante a mesma resolução criminosa”. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de não existir qualquer exceção de caso julgado que cumpra conhecer, uma vez que os “actos por que os arguidos foram condenados no P. 876 e estão acusados neste processo são diversos, ainda que haja um período temporal coincidente – ... - e o crime em causa o mesmo (essencialmente porque o modus operandi foi o mesmo – uso de facturas falsas que não titulavam qualquer operação real – mas cujos valores nelas inscritos serviram ou para empolar prejuízos aquando da entrega das declarações de IRC (nos presentes autos), ou para aumentar despesas aquando das declarações mensais de IVA (no P.876)” Cumpre apreciar e decidir. Dispõe o artigo 29.º, 5.º da CRP que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Neste normativo está ínsito o direito fundamental da proibição do ne bis idem, ou seja, que ninguém poderá ser julgado pela prática do mesmo delito, impedindo-se, desta forma, a múltipla perseguição penal, simultânea ou sucessiva, a partir de um mesmo facto com potencial relevância criminal.1 Para que se verifique a exceção de caso julgado, tem que existir a identidade de objeto entre os dois processos, considerando a paridade fática dos mesmos, e identidade dos agentes. Neste sentido a doutrina aponta três vectores da identidade do facto que devem ser tidos em conta, a saber: a identidade do agente, a identidade do facto legalmente descrito e a identidade de bem jurídico agredido. Agente, facto e bem jurídico são os três crivos de identificação da identidade do acontecimento que se pretende submeter a um processo. Só perante a identidade destes três conjuntos de elementos (agente, facto legalmente descrito e bem jurídico) é que se pode afirmar que o facto que se pretende submeter a um certo processo é o mesmo ou é distinto de outro facto submetido, anteriormente ou concomitantemente, a outro processo (…) 2. No processo n.º 876/17.2IDLSB os arguidos foram julgados e condenados por factos praticados nos meses de ... a ..., integradores de um crime de fraude fiscal qualificada , previsto e punido pelos artigos 6.º, 103.º, n.ºs 1, al. a), b) e c), 2 e 104.º, n.ºs 1, al. d) e), 2, al. a), 3, todos do RGIT. No âmbito dos presentes autos os arguidos estão igualmente acusados de um crime de fraude fiscal qualificada previsto e punido pelos artigos 6.º, 103.º, n.ºs 1, al. a), b) e c), 2 e 104.º, n.ºs 1, al. d) e), 2, al. a), 3, todos do RGIT, por factos relativos aos exercícios de 2015 e 2016 - mais concretamente por factos ocorridos entre ........2015 a ........2015 e entre ........2016 e ........2016 - sendo que as obrigações de declaração de tais anos em sede de IRC teriam lugar até aos dias ........2016 (relativamente aos rendimentos de 2015) e até dia ........2017 (relativamente aos rendimentos relativos a 2016). Quanto à identidade dos agentes e a identidade do bem jurídico protegido em ambos os processos, tal não suscita dúvidas, uma vez que tanto os arguidos, como os crimes em causa são os mesmos, neste caso, BB e AA e o crime de fraude fiscal qualificada, respetivamente. O que se impõe decidir é se os factos são os mesmos, tendo em consideração que não é o processo que determina se o facto é ou não o mesmo, mas sim as características materiais do facto que podem infirmar ou confirmar a identidade do mesmo. A identidade do facto é, por seu turno, um conceito normativamente modelado para o qual concorrem não só aspectos naturalísticos do objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado, acontecimento em causa, como também as conexões normativas que lhe conferem as qualidades que justificarão a sua integração no objecto dum processo3. Ora, no processo 876/17.2IDLSB, deu-se como provado que os arguidos sabiam que emitiram e usaram faturas que não correspondiam a qualquer negócio efetivamente celebrado com o respetivo emitente e que, ao atuar do modo descrito, alteravam os valores que deviam estar relevados na contabilidade das sociedades arguidas, das quais eram gerentes de facto e/ou de direito, o que fizeram com o intuito de que não fosse liquidada a totalidade do imposto de IVA devido, nomeadamente pela sociedade arguida AA Já nos presentes autos, os arguidos estão acusados de nos períodos supra referidos, fazendo uso de faturas que não titulavam transações comerciais, as quais serviram de base à Administração Tributária para determinar a matéria coletável e liquidar o imposto e atuando em nome e no interesse da sociedade AA, visaram obter vantagens patrimoniais não permitidas por lei e, consequentemente, diminuição das receitas tributárias do Estado Português (pagamento de imposto a menos do que o devido realmente e reembolso do imposto), o que fizeram, alterando factos e valores constantes das declarações de IRC entregues. Embora o facto de se tratarem de impostos diferentes não seja motivo para, sem mais, se possa dizer que inexiste exceção de caso julgado4, a verdade é que, para além desta contingência, no que respeita às faturas inscritas na contabilidade (montantes e datas de emissão) e o modus operandi descritos em ambas as situações, neste último onde até diferem os fornecedores das faturas fictícias, percebe-se que são em tudo distintos. Inexistindo, conforme exposto, identidade dos factos em ambos os processos, entende-se que não se verifica a exceção de caso julgado. Pelo exposto, declara-se improcedente a exceção de caso julgado invocada pelos arguidos. Notifique.”
Inconformados, os arguidos apresentaram recurso da decisão judicial transcrita, extraindo-se das suas alegações as seguinte conclusões, que se passam a transcrever:
“1. Os Recorrentes vêm pronunciados nos presentes autos pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos art.ºs 6.º, 103.º n.º 1 al. a), b), c), 2 e 104.º n.º 1, al. d) e), 2, al. a) e 3 todos do RGIT. 2. No processo nº 876/17.2IDLSB foram, igualmente, acusados e condenados pela prática do mesmo crime, ou seja, crime fraude fiscal qualificada previsto e punido pelas mesmas disposições legais, tendo a sentença transitado em julgado em 04-01-2023. 3. Razão pela qual os Recorrentes invocaram junto do Tribunal exceção de caso julgado peticionando a absolvição dos arguidos. 4. O Tribunal, por despacho proferido em 10 de Maio de 2024, veio considerar improcedente a exceção de caso julgado, em virtude de considerar que não existe caso julgado entre os dois processos. 5. Ora, o Tribunal a quo reconhece que há uma identidade do bem jurídico protegido e dos sujeitos em ambos os processos. 6. Fundamentando, porém, que não há identidade quanto aos factos. 7. Ora, não podem os recorrentes concordar com tal decisão. 8. Reconhecendo o Tribunal a quo a identidade dos agentes e do mesmo crime em ambos os processos, e que o facto de se estar perante impostos distintos não afasta por si só o caso julgado, importa apenas considerar a existência de identidade dos factos. 9. No processo n.º 876/17.2IDLSB estavam em causa factos praticados entre ... a ..., ou seja, nos dois processos o período temporal é coincidente e o que não é, é contínuo sem interrupção. 10. Em ambos os processos, as faturas emitidas não correspondem a transações reais. 11. O modus operandi, no que diz respeito à conduta dos arguidos, é igual em ambos os processos. 12. Sem dúvida que se está perante uma única resolução criminosa, uma mesma atividade criminógena e o mesmo modo de execução em ambos os processos. 13. Não pode haver dúvidas que se está perante uma situação de caso julgado formal e material, e que andou mal o Tribunal a quo ao não considerar procedente a exceção de caso julgado violando, dessa forma, o preceituado no art.º 29.º n.º 5 da CRP, e art.º 79.º do CP. 14. Termos em que devem os Recorrentes serem absolvidos do ilícito nos presentes autos, sob pena de violação dos princípios ne bis in idem e do caso julgado.”
O Ministério Público apresentou resposta, extraindo-se da mesma as seguintes conclusões (que se transcrevem): 1 – Os arguidos vêm recorrer do douto despacho proferido em 10 de Maio de 2024, que declarou improcedente a exceção de caso julgado invocada pelos arguidos. 2 - Sumariamente, dizem os arguidos que os factos constantes dos presentes autos são coincidentes com os factos do processo n.º 876/17.2IDLSB, que correu termos pelo do Juiz 5, deste Juízo Local Criminal de Lisboa, pois que estavam em causa factos praticados, no essencial, entre ... a ... e, o período que não é coincidente com tal período temporal, é contínuo sem interrupção. 3 – Juntaram certidão da sentença proferida no aludido P. 876/17.2IDLSB, no qual ambos os arguidos foram condenados pela prática em co-autoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 6.º, 103.º, n.º 1, alínea c), e 104.º, n.º 1, alíneas d) e), e n.º 2, alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias. 4 - Nestes autos os arguidos estão igualmente acusados da prática, em co-autoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 6.º, 103.º, n.ºs 1, al. a), b) e c), 2 e 104.º, n.ºs 1, al. d) e), 2, al. a), 3, todos do RGIT; por factos relativos aos exercícios de 2015 e 2016 - mais concretamente por factos ocorridos entre ........2015 a ........2015 e entre ........2016 e ........2016 - sendo que as obrigações de declaração de tais anos em sede de IRC teriam lugar até aos dias ........2016 (relativamente aos rendimentos de 2015) e até dia ........2017 (relativamente aos rendimentos relativos a 2016). 5 – Todavia, ainda que o crime e o modus operandi sejam os mesmos – porque em ambos os processos com recurso a facturas falsas que não titulavam qualquer operação económica real - e haja coincidência quanto ao mês de ..., ora os valores nelas inscritos serviram para empolar prejuízos aquando da entrega das declarações de IRC – caso dos presentes autos -, ou para aumentar despesas aquando das declarações mensais de IVA – o que sucedeu no P.876/17. 6 – Isto é, se nestes autos temos em vista o empolamento de custos a fim de diminuir o pagamento do IRC, já no P. 876/17 teve-se em vista aumentar as despesas aquando das declarações mensais de IVA, a fim de aumentar o valor do reembolso daquele imposto. 7 – Como daqui resulta, inexiste qualquer excepção de caso julgado que cumpra conhecer, pelo que o recurso interposto deve ser julgado totalmente improcedente e a douta decisão recorrida mantida, determinando-se em consequência o prosseguimento dos autospara julgamento.”
2. Questão a decidir no recurso interlocutório
Resulta do art.º 412.º n.º 1 do Código de Processo Penal (e do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995) que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sequência da respetiva motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido por si formulado, de forma a permitir o conhecimento das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida, sem prejuízo, das questões de conhecimento oficioso, que eventualmente existam.
No recurso interlocutório cumpre apreciar se se mostra verificada a exepção do caso julgado.
De acordo com o disposto no art. 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, “[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, no que é a consagração expressa do princípio ne bis in idem ou da excepção do caso julgado em processo penal.
De modo a melhor podermos apreciar a questão colocada pelo recorrente, não podemos deixar de ter presente a factualidade que se mostra provada no processo n.º 876/17.2IDLSB, que é a seguinte: “A) A sociedade arguida ... é uma sociedade por quotas, tem como objecto social a compra e venda de imóveis por compra própria e revenda dos adquiridos para o mesmo fim, consultadoria e gestão imobiliária, investimentos imobiliários, elaboração, gestão e execução de todo o tipo de projectos, nomeadamente, na área de apoios comunitários, consultoria para os negócios e a gestão, prestação de serviços na área de arquitectura e engenharia civil, serviço de restauração e bebidas e, em sede de IVA, encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral. B) Desde a sua constituição, em ........2009, que como gerente foi unicamente designado o arguido LL, sendo unicamente ele quem, de facto e direito, assumia as funções inerentes à gerência da sociedade, sendo concretamente o responsável pela liquidação, retenção e posterior colocação dos impostos à disposição da administração fiscal. C)A sociedade arguida AA é uma sociedade por quotas, tem como objecto social o transporte de mercadorias não superior a 3.500 kg e, em sede de IVA, encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral. D)Desde a sua constituição, em ........2013, que como gerente foi unicamente designado o arguido BB, sendo unicamente ele quem, de facto e direito, assumia as funções inerentes à gerência da sociedade, sendo o responsável pela liquidação, retenção e posterior colocação dos impostos à disposição da administração fiscal. E)A sociedade ... é uma sociedade por quotas, tem como objecto social mediação imobiliária, gestão de marcas, leilões, administração de condomínios, gestão de plataformas informáticas, comércio electrónico e seguros e, em sede de IVA, encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral. F) Na data da sua constituição, em ........2015, foi nomeado como gerente MM e, em ........2018, este cessou funções e, em sua substituição foi designado NN. G)Pessoa de identidade não concretamente apurada decidiu criar a sociedade ... com vista pelo menos, e sem que ocorressem quaisquer transacções efectivas ou tivesse lugar o pagamento do valor nas mesmas previsto, a que esta sociedade emitisse facturas a favor de outras sociedades para que estas passassem a apresentar, para efeitos fiscais, maiores valores de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) por elas suportados a nível das aquisições registadas nas suas contabilidades e, assim, se apurassem valores de IVA a entregar ao Estado inferiores aos realmente devidos. H)Nessa sequência, no dia ... de ... de 2016, foi constituída a sociedade ..., tendo sido designado como gerente OO e indicado que a mesma teria como objeto social o transporte e entrega de pequenas encomendas ao ..., efectuado por meio de veículos de peso bruto inferior a 2,5 toneladas, construção civil e instalação elétrica. I) A ... nunca desenvolveu qualquer actividade relacionada com o objeto social designado, sendo a sua actividade pelo menos a emissão de facturas nos termos atrás referidos. J) Sabendo que a sociedade ... se dedicava à actividade acima referida, os arguidos LL e BB e bem assim pessoa de identidade não concretamente apurada em representação da ... combinaram com o individuo de identidade não concretamente apurada que actuava em representação da ... para que, em nome da sociedade ..., este emitisse facturas a favor das sociedades que aqueles representavam com vista a fazerem inscrever o seu valor na contabilidade destas sociedades para que assim se apurassem valores de IVA a entregar ao Estado inferiores aos realmente devidos. K)Em nome da sociedade ... este indivíduo emitiu as seguintes facturas a favor das sociedades ...e ...:
SujeitoPassivo
Período
Totalperíodo
NºFatura
Data
Valordo IVA
Fls.
Futuro Retiro
...
€20.401,00
FT ...
........2016
€ 3.680,00
71
FT ...
........2016
€ 9.747,40
72
FT ...
........2016
€ 2.530,00
73
FT ...
........2016
€ 4.443,60
74
Radicais do Asfalto
...
€ 20.480,38
FT ...
........2017
€ 6.275,55
179-A e 180
FT ...
........2017
€ 6.925,33
178 e 180
FT ...
........2017
€ 7.279,50
179 e 180
...
...
€ 15.574,91
FT ...
........2017
€ 416,30
455
FT ...
........2017
€ 440,45
456
FT ...
........20
€ 830,30
457
FT ...
........20
€ 811,44
458
FT ...
........20
€ 795,11
459
FT ...
........20
€ 800,17
460
FT ...
........20
€ 810,75
461
FT ...
........20
€ 835,82
462
FT ...
........20
€ 854,45
463
FT ...
........20
€ 847,55
464
FT ...
........20
€ 853,30
465
FT ...
........20
€ 894,70
466
FT ...
........20
€ 851,00
467
FT ...
........20
€ 805,00
468
FT ...
........20
€ 781,77
469
FT ...
........20
€ 890,10
470
FT ...
........20
€ 862,50
471
FT ...
........20
€ 876,30
472
FT ...
........20
€ 890,10
473
FT ...
........20
€ 427,80
474
L) Não obstante saberem que os serviços referidos nessas facturas não haviam sido prestados pelo respectivo emitente, bem como que o preço respectivo e o IVA nas mesmas referido como liquidado não havia sido pago pelas sociedades ..., AA e ..., os arguidos LL, BB e pessoa de identidade não concretamente apurada e em representação da ... registaram tais facturas, respectivamente, na contabilidade das sociedades arguidas ..., AA e ... M) Em consequência de tal contabilização, considerando o IVA ali referido como liquidado para efeitos de dedução àquele que fora recebido, nas declarações trimestrais de IVA por si apresentadas, as sociedades arguidas ..., AA e ... apresentaram como IVA a deduzir ao por si devido a favor do Estado o valor de imposto falsamente inscrito naquelas facturas, indicando igualmente como seu fornecedor de serviços o sujeito passivo que figurava como seu emitente. N) Em função disso, nos períodos de tributação por IVA que a seguir se indicam, as sociedades arguidas ..., AA e ... apresentaram, indevidamente, como IVA a deduzir ao imposto devido ao Estado, os seguintes valores trimestrais:
Sujeito passivo
Período
Vantagem Patrimonial ilegítima obtida
...
…
€ 20.401,00
AA
…
€ 20.480,38
... Unipessoal Lda
…
€ 15.574,91
O)Em consequência de tal dedução indevida e seu registo nas aludidas declarações, os arguidos LL e BB bem como pessoa não concretamente apurada, cada um em representação, respectivamente, das sociedades arguidas ... e ..., não remeteram, nem ordenaram remeter, tais valores à Administração Tributária no prazo previsto no artigo 41.º do CIVA, e os competentes serviços do Estado igualmente não lhes exigiram o pagamento de tais montantes. P) Os arguidos LL e BB bem como pessoa de identidade não concretamente apurada em representação da ... e o indivíduo de identidade não concretamente apurada que actuava em representação da ..., agiram, respectivamente, em nome e no interesse das sociedades arguidas ... ... e ..., bem como em favor dos seus próprios interesses individuais, tendo-o feito em comunhão de esforços e de vontades, segundo um plano comum previamente traçado, com o propósito de obterem vantagens patrimoniais que sabiam não lhes serem devidas, bem sabendo que, dessa forma, lesavam patrimonialmente o Estado. Q)Sabiam que emitiram e usaram faturas que não correspondiam a qualquer negócio efectivamente celebrado com o respectivo emitente e que, ao actuar do modo descrito, alteravam os valores que deviam estar relevados na contabilidade das sociedades arguidas, das quais eram gerentes de facto e/ou de direito, o que fizeram com o intuito de que não fosse liquidada a totalidade do imposto de IVA devido pelas sociedades arguidas ...,AA. e ... R)Mesmo assim, não se abstiveram de agir do modo descrito, o que fizeram e quiseram. S) Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. T)O arguido LL é … auferindo mensalmente, pelo menos a quantia de €986. U)O arguido LL é casado, sendo a esposa …, auferindo, mensalmente, a quantia de cerca de €1.000. V)O arguido LL tem um filho com 6 anos de idade. W) O arguido LL reside em habitação pertencente à sua progenitora. X)O arguido LL suporta, mensalmente, a quantia de pelo menos €463 a título de uma prestação bancária de uma habitação de que o arguido é proprietário. Y)O arguido LL é licenciado em …. Z)A sociedade arguida ... encontra-se com a actividade suspensa desde .... AA) O arguido LL foi condenado, em .../.../2009, pela prática, em .../.../2009, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, do Código Penal, numa pena de 75 dias de multa e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 meses. BB) O arguido LL foi condenado, em .../.../2011, pela prática, em .../.../2007, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º1 e 69.º, n.º1, alínea a), ambos do Código Penal, numa pena de 50 dias de multa e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 meses. CC) O arguido LL foi condenado, em .../.../2019, pela prática, em .../.../2016, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 105.º, 6.º e 7.º, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias, numa pena de 150 dias de multa. DD) Os arguidos AA, ..., e BB, não têm averbada qualquer condenação aos respectivos certificados do registo criminal.”
Afirma o despacho recorrido, reconhecendo que entre ambos os processos há identidade de sujeitos, um período temporal coincidente (...), igual modus operandi e a violação do mesmo bem jurídico, com a prática de um mesmo crime, que entre os dois processos há divergência quanto aos concretos factos cometidos, quer quanto ao imposto não pago (nos autos presentes estaria em causa apenas o IRC, enquanto no processo n.º 876/17.2IDLSB, o IVA), quer quanto aos fornecedores/clientes, assentando aí, no essencial, o seu entendimento para não reconhecer a excepção invocada pelos arguidos nos presentes autos.
Cumpre, todavia, declarar conter o despacho recorrido algumas, relevantes, imprecisões e que poderão ter ditado o seu sentido decisório:
1. Desde logo, não é correcto afirmar estar nos presentes autos apenas em causa o imposto IRC, pois que, conforme podemos recolher da factualidade provada, nos presentes autos está igualmente em causa o imposto IVA, o que decorre, por exemplo, dos factos 28, 30 e 38: “28. Com as condutas descritas, BB, em nome e no interesse da sociedade AA, conseguiu, para si e para esta sociedade, um benefício ilegítimo:
a. em 2015, em sede de IRC, no valor de €84.178,69 e em sede IVA no valor de €94.450,67;
b. em 2016, em sede de IRC, no valor de €60.572,06 e em sede IVA no valor de €60.900,25 […]” […] 30. BB agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei, tendo obtido uma vantagem e enriquecimento indevidos no montante total de €301.101,67 (trezentos e um mil cento e um euros e sessenta e sete cêntimos) de IRC e IVA dos anos de 2015 e 2016, devido e não pago, montante com que se locupletou e utilizou em proveito do mesmo e da sociedade AA; […]
38. BB sabia que as faturas que usou não correspondiam a transações que a sociedade AA tivesse celebrado, tendo, ainda assim, atuado como descrito, com intenção de inserir nas declarações de IRC e IVA factos que sabia serem falsos, criando na Administração Tributária o falso convencimento de que aquelas representavam, com fidelidade, a sua atividade sujeita a tributação e que, assim, determinavam esta última a aceitar a liquidação feita como se fosse verdadeira, o que conseguiu;
2. Por outro lado, é afirmado no despacho recorrido que entre presentes autos e os autos n.º 876/17.2IDLSB estão em causa diferentes fornecedores, mas a sociedade ..., surge em ambos os processos como uma das entidades a quem os arguidos emitiram facturas, em troca de (fictícios) serviços prestados (cfr. nos presentes autos, facto provado 20 e nos autos 876/17.2IDLSB os factos provados H), I), J), K) e P).
Estas imprecisões poderão ter condicionado o sentido decisório, sendo certo que o reconhecimento da coincidência de um mesmo período temporal entre ambos os processos (o mês de ...) foi ultrapassado, acriticamente, não se retirando assim qualquer consequência de tal constatação.
Não podemos deixar de reconhecer ser a investigação criminal actividade complexa, e, no âmbito dos crimes fiscais, ainda mais potenciada, por força da necessidade de conjugar complexa e vasta documentação, nem sempre entregue no momento fiscal próprio, com diversos âmbitos espaciais e múltiplas interacções subjectivas, tudo a dificultar a definição do âmbito da actividade criminosa. Mas é precisamente por dever estar ciente desta complexidade, que o actividade do Ministério Público, enquanto titular da acção penal, se deverá reger de modo a evitar a duplicação das investigações, sobretudo, que venham a desaguar em diferentes acusações, implicando a realização de diversos julgamentos, quando a matéria em causa tem a mesma natureza, pois tal pode gerar a existência de situações de litispendência (excepção com a qual se pretende, desde logo, evitar a contradição de decisões relativas a uma mesma conduta) ou de caso julgado (excepção com a qual se pretende impedir que alguém seja condenado duas vezes pela prática de um mesmo crime).
No caso concreto, está em causa apreciar a excepção do caso julgado, cumprindo avaliar se há ou não entre os presentes autos e o processo n.o 876/17.2IDLSB identidade dos factos consubstanciadores do reconhecido mesmo tipo de crime.
“[…] 2) O objecto relativamente ao qual é mister pôr o problema da identidade do facto como pressuposto do caso julgado há-de ser o próprio conteúdo da sentença, não só nos expressos termos em que é formulada, mas ainda naqueles até onde se podia e devia estender o poder cognitivo do tribunal. A força consuntiva de uma sentença relativamente a futuras acusações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos a seu julgamento […] Na verdade, posta uma questão penal ante um magistrado, deve este necessariamente resolvê-la. E resolvê-la esgotantemente até onde deva e possa. Aquilo, pois, que, devendo tê-lo sido, não se decidiu na sentença directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.[…] E nem se diga que o que assim deixou de ser tomado em consideração deve justamente dar lugar a um novo processo Efectivamente, isso implicaria um largo prejuízo da economia processual e da bolsa dos próprios interessados, além de fazer depender da maior ou menor diligência do juiz a possibilidade de renovar o vexame para o acusado de ser objecto de novos julgamentos.
O juiz tem, pois, de estender a sua actividade cognitiva até onde pode e deve.
E pelos limites deste dever de cognição há que medir o âmbito do conteúdo da sentença, e, portanto, os termos da sua força consuntiva relativamente a futuras acusações.
A esta luz, o problema de saber quais os limites da eficácia do caso julgado em matéria penal está, assim, logicamente condicionado por este outro de determinar até que ponto pode e deve ir a actividade cognitiva do juiz.
E assim somos conduzidos a abordar, nos seus termos esquemáticos, esta questão:
3) Abolido o processo inquisitório e firmado o sistema acusatório, veio a tirar-se ao juiz a iniciativa do procedimento criminal, estabelecendo-se a máxima de que ele não actua ex officio. Para que ele conheça de um facto penal é agora necessário que uma outra entidade, uma «parte», o acuse. Ao princípio do conhecimento oficioso substitui-se assim o princípio da acusação. Cumpre ao acusador fixar o se e o objecto concreto da actividade processual . Por isso mesmo, o tribunal não poderá ocupar-se de factos que não sejam acusados: assim, o objecto da sentença e o da acusação devem ser um e o mesmo, entre um e outro há-de verificar-se uma relação de identidade.
4) Posto desta maneira o problema, pode começar por se pensar que tal relação de identidade terá que ser literal. Ao juiz só seria dado confirmar ou negar, nos seus termos literais, os factos acusados.
A consequência de um tal critério seria, contudo, a possibilidade de uma interminável série de processos com base em acusações substancialmente idênticas, se bem que formalmente diversas.
[…]
A vontade da parte acusadora não pode ser, assim, interpretada senão como visando a que o objecto do processo, que submete a julgamento, seja apreciado esgotantemente em todas as suas necessárias conexões.
Isto aparece como especialmente imperioso nos sistemas cm que domina o princípio acusatório formal conjugado com o da legalidade. Na verdade, nos termos deste princípio, não poderá o Ministério Público reservar-se o juízo sobre a oportunidade da acusação, antes deve deduzi-la sempre que verifique existirem indícios suficientes da prática de um facto criminoso por uma certa pessoa.
Mas então, estará fora de toda a dúvida a conclusão de que ao acusar um facto não se poderá querer arbitrariamente limitar a actividade cognitiva do juiz a um certo aspecto dele, que se enuncia, forçando-se o tribunal a condenar ou a absolver o arguido nesses precisos termos.
A ideia radica-se, aliás, pela tendência moderna para controlar a actividade do acusador público, a termos de o forçar, por vezes contra a sua vontade, a deduzir a acusação e pela própria existência nos modernos sistemas processuais penais, influenciados pelo Código de Instrução Criminal Francês de 1808, de uma pré-decisão judicial (despacho de pronúncia ou equivalente). Esta decisão tem, de facto, o significado de poupar o arguido ao julgamento quando para tal não há fundamentos bastantes e fixa positivamente os termos precisos da acusação, de sorte que é praticamente em relação ao seu conteúdo que se põe o problema dos limites dos poderes cognitivos do tribunal.
Ora sendo esta a função do despacho de pronúncia, tudo se concita a favor da conclusão de que ele procura interpretar e traduzir a acusação com o sentido de exprimir a vontade de uma cognição esgotante do seu objecto.
De resto, esta esgotante cognição não só corresponde ao interesse da realização da pretensão punitiva do Estado, como é imposta pela consideração dos interesses do acusado, que verá dessa forma — nos máximos limites possíveis e respeitando-se o seu direito de defesa — decidida a sua sorte. Efectivamente, por isso que assim alcança o correspondente caso julgado o mais lato âmbito possível, ele põe-se ao abrigo do vexame de novos julgamentos, conseguindo, portanto, no máximo realizável, a sua paz jurídico-criminal.”, assim, Eduardo Correia, A teoria do concurso em Direito Criminal, Unidade e Pluralidade de Infracções, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz [Reimpressão] Livraria Almedina Coimbra, 1983, págs. 303, 304, 312 e 313.
Constatamos que os presentes autos se iniciaram em momento posterior aos do processo 876/17.2IDLSB, muito embora, sob o ponto de vista factual, se mostrem circunscritos à prática de factos anteriores aos que naquele se identificam, o que permite fazer a pergunta da sua razão de ser.
Estando em causa a análise do comportamento fiscal dos arguidos, por que motivo o titular da acção penal nos presentes autos “decidiu” investigar factos praticados em 2015 e 2016 e naqueles outros (anteriores aos presentes autos) factos iniciados em ... e no ano de 2017, sendo que a natureza da conduta criminal descrita é em tudo semelhante, isto é, diz respeito à declaração por parte dos arguidos de transacções comerciais inexistentes, com isso pretendendo retirar proveito económico, com prejuízo do erário público?
Não nos cabe responder à pergunta colocada, mas tão-somente afirmar que a actividade acusatória deve ser orientada de modo a evitar, precisamente, que uma pessoa seja acusada, em processos e momentos diferentes, pela prática de factos de idêntica natureza, cometidos no âmbito de uma mesma actividade.
“O objecto do caso julgado penal é mais extenso que o da litispendência, pois que também vai além do objecto do processo. O caso julgado abrange o que foi conhecido e também o podia ter sido conhecido pelo tribunal. […] É que no âmbito da divergência entre o objecto do processo e o objecto do caso julgado pode inserir-se nova acusação no mesmo processo ou outro processo, pelos factos não contidos no despacho de pronúncia (acusação, adaptamos nós), e que sobrevindo antes da pronúncia a eles respeitante o caso julgado relativamente à primeira, estarão abrangidos pelo seu âmbito (p. 31).
[…]
O caso julgado material consubstancia precisamente a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto. O caso julgado material tem assim uma função negativa: non bis in idem. […]. (p. 35).
O caso julgado […] não tem efeitos substantivos; como caso julgado material, o seu valor em outros processos é um valor puramente processual, impeditivo da renovação da apreciação judicial sobre a mesma matéria. É simples «exceptio judicati». (p. 37).
Em matéria penal, a pena consiste na restrição de direitos naturais, por isso exige a justiça que esses mesmos direitos não sejam perturbados injustificadamente. […] Quer dizer que, em caso algum, deve transformar-se o homem em meio ou instrumento de um fim de utilidade social, embora este seja de grande valia. Aqueles direitos do homem são anteriores à formulação positiva do direito do Estado, como o próprio homem é logicamente anterior ao cidadão. (p. 39).
Enquanto se estuda o caso julgado como impedimento a uma nova apreciação do mesmo objecto em outro processo, o problema mais importante é sem dúvida demarcar os limites do caso julgado, indicar a extensão do caso julgado, que forma ao mesmo tempo o conteúdo da proibição do «non bis in idem». […] Costuma desdobrar-se a questão na determinação da identidade das pessoas […] e identidade do facto […]. A identidade das pessoas demarca os limites subjectivos, a identidade do facto, os limites objectivos do caso julgado. (p. 45).
O conceito de identidade do facto não irá buscar-se assim ao direito material; a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real. […] Por isso que a extensão do caso julgado obedece ao princípio de evitar a renovação de processos relativamente a factos que já poderiam ter sido apreciados judicialmente […). (p. 53).
De comum, para fundamentar naturalisticamente a identidade, deve atender-se aos factos praticados, ou seja, à acção. Podem variar as circunstâncias, os elementos acidentais da actividade que constitui objecto do processo, mas não a própria acção. E por isso haverá caso julgado material quando se acusa em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue […] (p. 54), temos vindo a acompanhar (identificando as páginas respectivas no final de cada parágrafo), Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, III, reimpressão Universidade Católica, Lisboa, 1981.
A conduta dos arguidos descrita na factualidade provada nos presentes autos tem a mesma natureza da que fundamentou a sua condenação no processo anterior, n.º 876/17.2IDLSB. É certo que há diferenças factuais (mas nem sequer é total a diferença, como vimos) entre ambos os processos, mas a conduta é a mesma, o seu desígnio criminoso é o mesmo e o crime cometido é precisamente igual (mas não tinha sequer de ser), e cabia ao titular da acção penal evitar a duplicação das investigações e assim a sujeição a julgamento dos arguidos pela mesma sua conduta criminosa.
A tal impede, precisamente, a força do caso julgado da condenação sofrida pelos arguidos em tal processo.
“O termo crime não deve ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor, como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado - e não tanto de um crime - que se quer evitar.
Entender o termo crime, empregue no n.° 5 do art. 29.° da CRP, como referência a um determinado tipo legal, a uma certa e determinada descrição típica normativa de natureza jurídico-criminal, seria esvaziar totalmente o conteúdo do preceito, desvirtuando completamente a sua ratio e em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Um tal entendimento seria permitir - o que é inaceitável - que aquele que foi julgado e condenado por ofensas à integridade física (art. 43.” do CP) pudesse, pelos mesmos factos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio (art. 131.º do CP).
O que referido preceito da CRP proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.
Fixado o sentido do termo crime, importa, ainda, precisar o que se deve entender por comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, consabido que o instituto do caso julgado só funciona quando existe identidade de facto e de sujeitos de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão, ou, por outras palavras, o que se deve entender por mesmo objecto processual.
Ora, aquele não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. Daqui resulta que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do «objecto do processo».
Deste modo, de acordo com esta visão naturalística, ter-se-á de concluir que ainda que aqueles não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, certo é não poderem ser posteriormente apreciados, já que a sua apreciação violaria frontalmente a regra ne bis in idem, entrando em aberto conflito com os fundamentos do caso julgado.”, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Março de 2006, relatado por Oliveira Mendes, processo n.º 05P4403, disponível in www.dgsi.pt5.
“Como escreve Fernanda Palma, “O princípio non bis in idem é a expressão da garantia de que a perseguição criminal mediante o processo penal não é instrumento de arbitrariedade do poder punitivo, utilizável renovadamente e sem limites, mas é antes um modo controlável e garantido de aplicação do Direito Penal (...)” - [cf. Direito Penal, Parte Geral, I, p. 136], apud, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27 de Novembro de 2019, relatado por Maria José Nogueira, processo n.º 41/16.6IDCTB, disponível in www.dgsi.pt6 (citado na decisão recorrida, mas sem que do mesmo tivesse retirado o ensinamento devido).
Em face do que se vem analisando, não podemos deixar de reconhecer que a acusação deduzida contra os arguidos nos presentes autos (com consagração na factualidade provada após a realização da audiência de discussão e julgamento a sustentar a sua condenação) descreve uma conduta, por via do mesmo preciso desígnio criminoso, que já foi alvo de acusação, julgamento e de condenação no processo n.º 876/17.2IDLSB, pelo que só podemos concluir ter sido assim violado o princípio do non bis in idem consagrado no já supra citado art. 29.º, n.º 5 da CRP, pelo que mais não resta do que reconhecer total fundamento para o recurso interlocutório interposto, o que prejudica assim o conhecimento do recurso da decisão final condenatória.
V. Decisão
Em face do exposto, julga-se totalmente procedente o recurso interlocutório interposto da decisão judicial proferida em 10 de Maio de 2024 e, em consequência, declara-se a violação do princípio non bis in idem em virtude da condenação dos arguidos no processo n.º 876/17.2IDLSB pela prática dos mesmos factos e do mesmo crime objecto dos presentes autos, autos estes que, assim, devem ser arquivados.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 18 de Junho de 2025
Texto processado e revisto integralmente pelo relator – art- 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Mário Pedro M.A.S. Meireles
Rosa Vasconcelos
Francisco Henriques
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1. Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24-01-2024, processo n.º 662/18.2IDPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
2. Teresa Beleza e Frederico da Costa Pinto [Direito Processual Penal I, Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado, 2001, pág. 25-26.
3. Teresa Beleza e Frederico da Costa Pinto [Direito Processual Penal I, Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado, 2001, pág. 25-26].
4. Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27-11-2019, processo n.º 41/16.6IDCTB.C1, disponível em www.dgsi.pt.
5. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3d51733aca6a9f468025722f00536a0c?OpenDocument
6. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/c6919b52a47eb37e802584ef003d2631?OpenDocument