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INSTRUÇÃO
PRONÚNCIA
FACTOS DA ACUSAÇÃO
RAI
OBJECTO DO PROCESSO
Sumário
I – A instrução é concebida pela lei adjectiva como uma instância de controlo e não como uma instância de investigação. II - O Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação do Ministério Público. III - Tendo sido apresentado um requerimento para a abertura da instrução sem a descrição expressa de factos que integrem o tipo de crime e a responsabilidade penal de alguém, e sem ser enquadrada a respectiva qualificação jurídica, encontra-se por definir o objecto do processo sobre o qual o Tribunal se possa debruçar, o que torna inadmissível este procedimento e, por isso, o requerimento dos assistentes, na medida em que não dá cumprimento ao disposto no artigo 283º, nº3, b) e c), aplicável por via do disposto no artigo 287º, nº 2, do CPP, teria de ser, como foi, rejeitado. (elaborado pela CIJ)
Texto Integral
Acordam os Juízes que constituem a Conferência nesta 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
Os assistentes AA e BB, vieram recorrer do despacho proferido pelo Juízo de Instrução Criminal do Funchal, que não admitiu a abertura de instrução.
Os assistentes apresentaram motivação, formulando as seguintes conclusões:
I. No dia 22/11/2024, foram os Recorrentes notificados do arquivamento do processo crime desencadeado, tendo o Sr. Procurador determinado o arquivamento dos autos por falta de constituição dos Recorrentes como assistentes, sendo o crime em causa de natureza particular.
II. Mas, contrariamente ao arguido pelo Ministério Público, o Recorrente AA havia requerido a sua constituição como assistente por requerimento de 18/10/2024.
III. O Recorrente reencaminhou ao processo, em 25/11/2024, em reação ao despacho de arquivamento, a referida constituição de assistente.
IV. Mas, em momento anterior a esse, as mandatárias dos Recorrentes nunca haviam sido notificadas de qualquer despacho do Ministério Público, nos mesmos termos em que foi remetido aos queixosos, para constituição de assistente.
V. Porque não obtiveram qualquer resposta em tempo útil, nomeadamente antes de corrido o prazo para requerimento da abertura da instrução, e dado que as nulidades verificadas no inquérito devem ser arguidas perante o Juiz de Instrução, conforme consignado no artigo 268.° do CPP, foi requerida a abertura de instrução com fundamento nessas nulidades em 17/12/2024.
VI. Por despacho de 16/12/2024, notificado à mandatária Dr.a CC em 18/12/2024, sob a Ref.a 56366354, os argumentos suscitados pela mandatária em reclamação dirigida ao Ministério Público foram reconhecidos pelo Digníssimo Tribunal a quo, tornando o requerimento de abertura de instrução redundante, o que deveria ter sido declarado pelo mesmo Tribunal.
VII. Porém, ao invés disso, por despacho do Tribunal a quo, de 04/02/2025, foram os Recorrente notificados da inadmissibilidade legal da instrução e, consequentemente, do arquivamento do processo.
VIII. O único motivo pelo qual requereram a abertura de instrução prende-se com o facto de não terem atempadamente obtido uma resposta à reclamação deduzida, sob pena de poderem perder um prazo de reação ao despacho de arquivamento.
IX. Resulta de diversos acórdãos que o requerimento de abertura de instrução formulado pode fundar-se apenas e tão só na invocação de nulidades — de inquérito e/ou da acusação - se não se deverem considerar sanadas.
X. Posto isto, não deveria ter sido determinado o arquivamento dos autos, mas a anulação de todos os atos posteriores ao despacho de arquivamento, incluindo o próprio, com a consequente devolução dos autos ao Ministério Público para notificação dos Assistentes nos termos do disposto no artigo 285.° do CPP.
O Ministério Público apresentou a resposta, formulando as seguintes conclusões:
1. Os presentes autos tiveram o seu início com a queixa escrita por advogado, apresentada em 02-06-2023, no âmbito da qual eram relatados factos suscetíveis de integrar, em abstrato, a prática de crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180º, nº1 do CP.
2. Em 15-11-2024, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, com fundamento na falta de legitimidade do MP para a prossecução do procedimento criminal, por falta de constituição como assistente.
3. Posteriormente, os recorrentes apresentaram requerimento de constituição como assistentes e requerimento de Abertura de Instrução, requerendo que fosse declarado nulo todo o processado anterior ao despacho de arquivamento, porquanto o mandatário do denunciante BB não havia sido notificado para requerer a sua constituição como assistente e quanto à sociedade denunciante, porque a mesma requereu a sua constituição como assistente, em 18-10-2024.
4. O Tribunal rejeitou o RAI.
5. A fase de instrução destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (cfr. artigo 286º, nº1, do Código de Processo Penal).
6. De acordo com o disposto nos art. 286°, n° 1, e 287°, n° 1, al. b), e n° 2, ambos do C.P.P., nos casos em que o procedimento não dependa de acusação particular o assistente pode requerer a abertura de instrução relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tenha acusado, devendo o requerimento conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, bem como as menções das alíneas b) e c) do n° 3 do art. 283° do CPP.
7. O requerimento do assistente para abertura de instrução deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar.
8. Quando o Ministério Público tiver arquivado os autos onde se investigue, apenas, crimes de natureza particular, o denunciante, constituído assistente, não pode requerer abertura de instrução (art.º 287°, n°l, al. b), do CPP), mas sim, deduzir acusação, visto que nestes crimes, só este tem essa competência.
9. Ainda que se considerasse, que o RAI de assistente em crimes de natureza particular era admissível, sempre cumpre referir que, neste caso, o mesmo também não cumpre os requisitos previstos no artigo 283º nº3 do CPP.
10. Nos crimes de natureza pública ou semipública o denunciante pode declarar na denúncia que deseja constituir-se assistente, já nos crimes de natureza particular, a declaração é obrigatória.
11. Quando se trate de crime particular, a falta dessa declaração na denúncia, implica o não prosseguimento do processo. Ou seja, nesses casos a denúncia não foi validamente efetuada.
12. Na denúncia escrita relativa a crimes de natureza particular, não existe o dever legal de advertência ao denunciante da obrigatoriedade da constituição de assistente, quer o denunciante tenha ou não manifestado esse desejo.
13. Nessas situações, o direito de constituição como assistente manter-se-á até ao limite temporal em que ocorreria a extinção do direito de queixa, ou seja, até ao decurso do prazo de seis meses previsto no artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal.
14. No caso dos autos, constatamos que foi apresentada denúncia escrita, por advogado, relatando factos que integram um crime de natureza particular, ocorridos em ...-...-2023, sem que se tenha feito constar da queixa que desejavam constituir-se como assistentes, pelo que a denúncia não foi validamente efetuada.
15. No entanto, tal não era obstáculo a que apresentassem nova queixa ou que requeressem a sua constituição como assistentes no prazo de 6 meses, previsto no artigo 115º, nº1 do CP.
16. In casu, o Ministério Público fez a advertência legal prevista no nº4 do artigo 246º do CPP, apesar de a tal não estar obrigado.
17. A realização da advertência não atribui direitos ao denunciante, nem se sobrepõe ao limite temporal previsto no artigo 115º do CP, que deve ser, sempre, respeitado.
18. Ainda que se considere que a sociedade requereu a sua constituição como assistente em 18-10-2024, inexistia uma denúncia válida, dado que o prazo previsto no artigo 115º do CP, já se mostrava ultrapassado, desde 21-11-2023.
19. Outro não poderia ser o despacho senão o de arquivamento e o inquérito não padece qualquer de nulidade.
20. Por isso, bem andou o Tribunal em rejeitar a abertura de instrução.
O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação de Lisboa, emitiu parecer em 7/05/2025, corroborando a posição expressa em primeira instância.
Os autos foram a vistos e à conferência.
Do âmbito do recurso e da decisão recorrida:
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo Recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem, apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º n.º 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º nº 1 e 412º nºs 1 e 2, ambos do CPP.
Em face da motivação, são as seguintes as questões a considerar:
- Ocorreu violação do artigo 247º, nº 1 do CPC, aplicável ex vi do artigo 4º do CPP?
- Ocorreu violação do artigo 115º do CP e artigos 286º, nº 1 e 287º, nº 1, alínea b) e nº 2 do CPP?
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
Os assistentes AA e BB veio requerer a abertura da fase de instrução em face da prolação do despacho de arquivamento constante da ref.ª 56170876.
Alega que o primeiro assistente foi notificado do despacho de arquivamento do mesmo constando que haviam sido denunciados factos susceptíveis de integrar a prática do crime de difamação p. e p. nos termos do art.º 180.º do Código Penal, ilícito esse que reveste a natureza particular e que o queixoso não se havia constituído assistente para os devidos efeitos, o que, pela falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir o procedimento criminal, determinava o arquivamento dos autos.
Considera que não foi validamente tida em conta o pedido de constituição de assistente que o Denunciante enviou via email a dia 18/10/2024 e que reencaminhou no dia 25/11/2024, quando foi notificado do despacho de arquivamento pelo que deverá ser apreciada devidamente a constituição de assistente validamente constituída, valorando-se a mesma para os devidos efeitos.
Refere que relativamente ao agora assistente BB foi apresentada queixa-crime em 02 de junho de 2023 através de email que ia acompanhada de procuração forense de ambos os denunciantes.
Descreve que, não obstante as mandatárias constituídas no presente processo não foram notificadas de qualquer despacho., mormente no que concerne à constituição de assistente BB, violando grosseiramente o consagrado legalmente nos termos do art.º 247.º nº. 1 do Código de Processo Civil por aplicação subsidiária nos termos do art.º. 3º do Código de Processo Penal, devendo para os devidos efeitos ser declarado nulo todo o processado ocorrido até então, no que a BB diz respeito.
Cumpre apreciar.
Dispõe o art. 286.°, n.° 1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Por sua vez, dispõe o n.º 2 do art. 287.º do mesmo diploma legal que o requerimento de abertura da instrução “deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (...) não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através duns e doutros, se espera provar”.
Por fim, estando em causa o requerimento apresentado pelo assistente, deve obedecer aos requisitos estabelecidos nas als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º do Código de Processo Penal, ou seja, com “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “a indicação das disposições legais aplicáveis”.
Em face deste enquadramento legal, torna-se patente que o requerimento de abertura de instrução apresentado por assistente deve conter uma verdadeira acusação alternativa, ou seja, tem de alegar de facto e de direito, em termos de apresentar a acusação que, na sua perspectiva, deveria ter sido proferida.
Assim, é necessária uma delimitação do campo factual sobre o qual a instrução há-de versar, ou seja, o assistente terá de indicar os actos de instrução que pretende realizar, os meios de prova que não tenham sido considerados em sede de inquérito e os factos que, através de uns e outros, espera provar e pelos quais gostaria de ver proferido um despacho de pronúncia.
Tem de enumerar e descrever os factos concretos que pretende imputar aos arguidos e que sejam integradores do crime ou crimes por que pretende vê-los pronunciados.
Se não são descritos factos ou o são deficientemente, sendo que apenas com o seu apuramento em sede de instrução é possível proferir um despacho de pronúncia, este redunda numa alteração substancial do requerimento nos termos da al. f) do n.º 1 do art. 1.º do Código de Processo Penal, e, como tal, nulo por força do n.º 1 do art. 309.º do mesmo diploma legal.
Por outro lado, tem de ser indicado o respectivo enquadramento legal, podendo ainda haver uma discussão normativa, assente, embora, numa factualidade concreta.
Só ante um requerimento elaborado nestes termos é que, caso o arguido seja pronunciado, não haverá lugar a nova acusação, uma vez que o requerimento do assistente actuou como tal.
Está uma forma de vinculação temática do Juiz de Instrução, no que tange à actividade de investigação e à própria decisão instrutória, como, de resto, decorre do disposto no n.º 1 do art. 303.º e no n.º 1 do art. 309.º, ambos do Código de Processo Penal.
No fundo, deparamo-nos com uma consequência da estrutura acusatória do processo penal e do princípio do contraditório, relacionando-se com as garantias de defesa do arguido, que assim se vê protegido contra o alargamento do objecto do processo, sendo capaz de organizar a respectiva defesa perante os factos de que é acusado.
Assim o estatuem o n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa e o n.º 3 do art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Ora, analisando o caso dos autos, verifica-se que os agora assistentes não alegam quais quer factos objectivos ou subjectivos de um tipo de ilícito, apenas pretendendo que seja apreciada a eventual nulidade do inquérito, matéria que, nos termos em que o faz, deveria ter sido suscitada perante o Ministério Público e não por via de abertura de instrução.
De resto, ainda que o fizessem, sempre estaria em causa a prática de um crime de natureza particular, relativamente ao qual o assistente não tem legitimidade para a abertura de instrução (art. 287.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal).
Assim, por inadmissibilidade legal da instrução, decido rejeitar o requerimento para o efeito apresentado pelos assistentes, nos termos do n.º 3 do art. 287.º do Código de Processo Penal.
Por seu turno, o requerimento de abertura de instrução apresentado tem o seguinte teor:
AA, denunciantes com faculdade de se constituírem assistentes, discordando integralmente do despacho de arquivamento vêm de acordo com o disposto nos arts. 68° n°. 3 al. b) e 287° n°. 1 al. b) do CPP requerer a CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE E A ABERTURA DA INSTRUÇÃO, nos termos e com os seguintes fundamentos:
A. RELATIVAMENTE AO DENUNCIANTE CONSULTÓRIO DO CONDOMÍNIO DE AA
10. Foi o mesmo notificado, no despacho de arquivamento do M.° P.°, de que haviam sido denunciados factos suscetíveis de integrar a prática do crime de difamação p. e p. nos termos do art.° 180° do CP, ilícito esse que reveste a natureza particular,
20. E que o queixoso não se havia constituído assistente para os devidos efeitos, o que, pela falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir o procedimento criminal, determinava o arquivamento dos autos.
3º. Salvo o devido respeito discordamos em absoluto de tal decisão.
4º. Ora que não foi validamente tida em conta a constituição de assistente que o Denunciante enviou via email a dia 18/10/2024 e que reencaminhou no dia 25/11/2024, quando foi notificado do despacho de arquivamento, até à presente data sem qualquer sucesso - cf. documento nº. 1 que ora se junta e que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
5º. Nesse sentido deverá ser apreciada devidamente a constituição de assistente validamente constituída, valorando-se a mesma para os devidos efeitos.
B. RELATIVAMENTE AO DENUNCIANTE BB
I. DA FALTA DE NOTIFICAÇÃO AO MANDATÁRIO CONSTITUÍDO:
6º. Os Denunciantes apresentaram queixa-crime na data de 02 de junho de 2023 através de envio por email.
7º. A referida queixa ia acompanhada de procuração forense de ambos os denunciantes, documento nº. 2 que ora se junta e que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
8º. Contudo até à presente data as mandatárias constituídas no presente processo não foram notificadas de qualquer despacho.
9º. Mormente no que concerne à Constituição de Assistente do Denunciado BB.
10º. Violando grosseiramente o consagrado legalmente nos termos do art.° 247° n°. 1 do CPC, por aplicação subsidiária nos termos do art.°. 3° do CPP.
11º. Constituindo assim uma nulidade prevista nos termos do art.º 195º nº. 1 do CPC.
12º. Devendo para os devidos efeitos ser declarado nulo todo o processado ocorrido até então, no que ao Denunciado BB diz respeito.
II. DA CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE DO DENUNCIANTE BB:
13º. Nesse sentido, vem o Denunciado BB,
porque é ofendido, está em tempo e tem mandatário constituído, requer que seja admitida a sua constituição de assistente nos presentes autos.
TERMOS EM QUE NOS DEMAIS DE DIREITO REQUER A V. EXA. QUE SEJA DECLARADA ABERTA A INSTRUÇÃO E EM CONSEQUÊNCIA SEJA ADMITIDA A CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTES DE AMBOS OS DENUNCIADOS.
JUNTA:
- DOCUMENTOS: DOIS DOCUMENTOS
- Comprovativos de pagamento de Taxa de Justiça, pela abertura de instrução e pela Constituição de Assistente.
O referido requerimento pretende reagir ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, no qual se fez consignar:
Foram denunciados factos susceptíveis de consubstanciar a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal, ilícito que, de acordo com o estatuído no nº 1 do artigo 188º do aludido Diploma Legal, reveste natureza particular.
Neste tipo de ilícitos, impõe o artigo 50º nº 1 do Código de Processo Penal, que o queixoso se constitua assistente e deduza acusação particular.
No caso concreto, os queixosos foram advertidos das formalidades legalmente previstas para a prossecução do respectivo procedimento criminal, sem que, contudo, tenham requerido a sua admissão, aos autos, na qualidade de assistentes.
Assim, por falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir o procedimento criminal, determina-se o arquivamento dos autos, nos termos do n.º 1 do artigo 277º do Código de Processo Penal.
Vejamos então:
Antes de mais, cumpre referir que o inquérito não padece de qualquer nulidade, ainda que se considere que a constituição, como assistente, da sociedade, em 18/10/2024, porquanto o prazo previsto no artigo 115º do CP, terminou a 21/10/2023, sendo certo que os factos em causa terão ocorrido em .../.../2023.
Improcede, pois, o recurso nesta dimensão.
Nos termos do disposto no artigo 287º, nº 1, alínea b), do CPP, a instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
O requerimento de abertura de instrução deve conter, nos termos do nº 2 do artigo 287º do CPP, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o Juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), do CPP.
O requerimento de abertura de instrução deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; bem como as disposições legais aplicáveis.
A estrutura acusatória do processo criminal, imposta a nível constitucional, implica que o conhecimento do Tribunal de Instrução Criminal esteja limitado pelo objecto processual, que começa por ser inicialmente delimitado, ainda que com grande flexibilidade, pela denúncia e, posteriormente, em definitivo, pela acusação ou, em caso de arquivamento, pelo requerimento de abertura de instrução.
Resulta assim, que a instrução é concebida pela lei adjectiva como uma instância de controlo e não como uma instância de investigação.
O requerimento de abertura de instrução, formulado pelo assistente, constitui uma verdadeira acusação em sentido material (Vide Ac. RP 5.5.93, CJ III, 243; RC 24.11.93, CJ V, 61; RE 14.4.95, CJ I, 280; RL 20.5.97, CJ III, 143).
O Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação do Ministério Público.
O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo Ministério Público) que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial (Vide MARQUES DA SILVA, Germano - Do processo penal preliminar, p. 264).
Se o assistente requerer a instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre o qual recairá a actividade do juiz de instrução, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz fica sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados (Vide SOUTO MOURA - Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, p. 120; Ac RP 19.2.97, BMJ 472, p. 585).
Em virtude do princípio da vinculação temática, a partir da abertura da instrução, só é possível alterar ou ampliar o objecto processual através do instituto jurídico da alteração dos factos, segundo o qual, em sede de instrução, apenas é admitida uma alteração não substancial dos factos enunciados no requerimento de abertura de instrução, estando completamente afastada a possibilidade duma alteração substancial desses factos – artigo 303º do CPP.
A confirmar tudo o que se vem dizendo, a lei adjectiva prescreve, no artigo 309º, nº 1, do CPP que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura de instrução.
Analisando o requerimento de abertura de instrução, verifica-se que o mesmo não constitui uma acusação alternativa susceptível de ser integralmente confirmada em sede de pronúncia e ulteriormente submetida a julgamento.
No caso concreto, não se vislumbra a dita “acusação” com as limitações de descrição temporal, espacial e nominativa à mesma inerentes.
Conforme decidiu o Ac TRC, Desemb. Jorge Jacob, de 30 de Setembro de 2009, p. 910/08.7TAVIS.C1, in www.dgsi.pt, “… são precisamente os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Tanto assim que, como afirma Figueiredo Dias …“também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado.” Ou seja:
- Os elementos objetivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos …
- Os elementos subjetivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.
Num crime doloso – só esse interessa tratar aqui – da acusação ou da pronuncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o criminoso), e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).”
Conforme já referido os assistentes no seu requerimento de abertura de instrução, não contemplaram na narração dos factos a totalidade daqueles elementos.
Assim, sem uma acusação alternativa não se pode abrir a fase processual da instrução (Vide Ac RE 13.1.98., BMJ 473, 586; Ac RP 23.05.01, p. n.º 0110362, 362/01, 1ª secção, in CJ ano XXVI, t III, pág 238; Ac RP 13.06.0l, p. n.º 0110352, 352/01, 1ª secção; Ac TC 27/2001, Proc. n.º 189/00, in DR II série, n.º 70 de 23 de Março de 2001, pág. 5265; Ac RP 04.04.01, p. n.º 0110047, 047/01, 1ª secção; Ac RG de22 /11/04, proferido no âmbito do P. n.º 157/03.9PBVCT do 2º Juízo Criminal; Acórdão do STJ n.º 7/2005 (DR I-A, de 4 de Novembro de 2005).
Pelas razões expostas, importa concluir que o requerimento de abertura de instrução em apreciação é nulo e este vício processual, à semelhança do que sucede com a nulidade da acusação, na fase preliminar do julgamento, é de conhecimento oficioso e determina a rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução.
Conforme resulta sumariado, do douto Acórdão supra aludido, ao qual nos arrimámos nos excertos que transcrevemos para decisão da questão aqui em apreço:
«I) Não contendo o requerimento da assistente a descrição dos necessários elementos objetivos e subjetivos do crime de falsificação de documento que imputa aos arguidos, os factos narrados não integram qualquer ilícito criminal e como tal nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia.
II) O juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos elementos objetivos e subjetivos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.
III) O facto do dolo poder ser provado com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não significa que se possa dispensar a respetiva alegação.»
Conforme se decidiu no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Fevereiro de 2018 proferido no processo 29/16.7TRLSB.S1: “A narração de factos no requerimento de instrução induz uma actividade sequencial vinculada, por banda do tribunal, a saber i) estabelecer os limites da actividade instrutória do tribunal que terá como limites os factos narrados e sujeitos a verificação/comprovação; ii) se verificados/comprovados, conduzir à organização de uma peça processual - a decisão instrutória - em que seja possível ao juiz de instrução estruturar um «requerimento» (acusatório) contendo os factos que o tribunal de julgamento há-de ter como atendíveis para constituição/formação de um juízo culpabilidade, ou isenção de responsabilidade criminal, relativamente ao visado na acusação/decisão instrutória.
Tratando-se de requerimento impulsionado pelo assistente - não cuidaremos das demais situações que a norma contempla - a exigência de uma narração factual capaz e apta a ser transmutada em acusação não pode deixar se ser uma exigência axial e determinante no acto deformação/estruturação a desenvolver.
Como se procurou demonstrar supra a narração/descrição factual da situação que se pretende ver verificada através da actividade probatória a efectuar pelo magistrado instrutor não pode deixar de recair sobre uma realidade escalonada com precisão e configurada de modo a constituir um guião susceptível de materializar uma realidade integrável e subsumível numa norma incriminante.
É, por conseguinte, uma constatação inarredável que o requerimento se deve perfilar como um putativo e antecipado requerimento acusatório, sob a cominação de não o sendo lhe falecerem as capacidades intrínsecas e performativas de uma peça processual apta a prosseguir os fins para que é destinada.
Adite-se que no plano da garantia da defesa não pode o requerimento deixar de integrar os factos que o assistente imputa (realmente) ao arguido/denunciado.
Em caso e arquivamento do inquérito, e após a actividade investigatória do Ministério Público, esta entidade formulou, quanto a uma realidade denunciada e que na perspectiva/compreensão cognitiva do assistente constituiriam ilícito penal, um juízo de exculpação do arguido.
Mantendo o assistente a perseverança na existência de factos penalmente relevantes e requerendo a instrução para comprovação de factos donde retira esse juízo de culpabilidade do arguido, não pode deixar de descrever os factos (concretos) que imputa ao arguido de modo a que este tenha possibilidade de organizar a sua defesa e contraditar, pontualmente e especificadamente, cada um dos factos que lhe hajam sido assacados no requerimento de abertura de instrução.” – fim de citação.
Tendo sido apresentado um requerimento para a abertura da instrução sem a descrição expressa de factos que integrem o tipo de crime e a responsabilidade penal de alguém, e sem ser enquadrada a respectiva qualificação jurídica, encontra-se por definir o objecto do processo sobre o qual o Tribunal se possa debruçar, o que torna inadmissível este procedimento e, por isso, o requerimento dos assistentes, na medida em que não dá cumprimento ao disposto no artigo 283º, nº3, b) e c), aplicável por via do disposto no artigo 287º, nº 2, do CPP, teria de ser, como foi, rejeitado.
A rejeição por inadmissibilidade legal da instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal - falta de tipicidade - e aqueles em que exista um obstáculo que impeça o procedimento criminal ou a abertura da instrução, designadamente a falta de factos e da sua qualificação jurídica que possam conduzir a uma pronúncia (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado - 1996, 7ª Ed„ pgs. 455).
Conclusivamente, face ao supra exposto, este Tribunal de Recurso conclui pelo acerto da decisão do Tribunal a quo, que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da instrução.
Improcede, assim, totalmente o recurso.
Dispositivo:
Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar totalmente não provido o recurso e, consequentemente, mantem-se o despacho recorrido.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, a cada um.
Acórdão elaborado pelo Primeiro signatário em processador de texto que reviu integralmente, sendo assinado pelo próprio e pelos Desembargadores Adjuntos.
Lisboa, 18 de Junho de 2025
Carlos Alexandre
Rui Miguel Teixeira
Mário Pedro Seixas Meireles