ACIDENTE DE TRABALHO
PRATICANTE DESPORTIVO
IPATH
FRANQUIA
Sumário

Padece de IPATH o futebolista que, em virtude das sequelas emergentes de acidente de trabalho, ficou impedido de executar as tarefas concretas e essenciais, caracterizadoras ou definidoras do trabalho habitual a que se dedicava à data do acidente, ainda que posteriormente tenha chegado a participar nalguns jogos.

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Sinistrado: AA
Responsável civil (adiante designada por R.): Caravela - Companhia de Seguros, S.A.
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O A. demandou a R. nesta acção especial alegando que no dia 25.05.2021, pelas 10h00, na Marinha Grande, no decorrer de um treino da equipa principal de futebol profissional da UDL, quando desenvolvia a sua atividade profissional sob as ordens, direção e fiscalização da sua entidade empregadora, sofreu uma entorse/rotação da anca direita durante uma disputa de bola. Como consequência directa e necessária do acidente sofreu lesões que o incapacitaram temporária e permanentemente impossibilitado de continuar a exercer a sua profissão de futebolista profissional e teve despesas médicas e medicamentosas. Foi acompanhado pelos serviços clínicos da Ré, que concluiu que as lesões apresentadas resultam de um processo degenerativo, não compatível com o evento participado, pelo que lhe foi atribuída alta “sem nexo de causalidade”, em 06-07-2021.
Com estes fundamentos pediu a condenação da Ré a pagar-lhe:
a) O capital de remição de pensão anual vitalícia devida por incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, até aos 35 anos, devida desde o dia 06.02.2022, acrescida de juros até efetivo e integral pagamento.
b) O capital de remição correspondente à pensão anual vitalícia por incapacidade parcial permanente de 8,88%, a partir dos 35 anos.
c) as prestações devidas a título de incapacidade temporária absoluta pelo período compreendido entre 26.05.2021 e 05.02.2022, no montante de 2.963,90 € (descontada, já, a franquia contratualmente prevista, de 60 dias).
d) a quantia de € 10.022,00 (dez mil e vinte dois euros), valor que o A. despendeu com a intervenção cirúrgica, acrescida de juros de mora à taxa legal.
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A Ré Caravela - Companhia de Seguros, S.A contestou, alegando, em síntese, não aceitar o acidente, o nexo causal entre as sequelas que o sinistrado apresenta no exame singular e o acidente dos autos, considerando que as sequelas que apresenta são pré-existentes e degenerativas.
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Saneados os autos efetuado o julgamento, o tribunal julgou a ação parcialmente procedente e:
I- Fixou ao Autor AA uma IPP de 4,5% com IPATH resultante da aplicação do factor de 1,5 sobre a incapacidade de 3%, sendo a alta reportada a 06-02-2022; e
II Condenou a Ré CARAVELA-COMPANHIA DE SEGUROS, S.A a pagar ao Autor AA:
a) indemnização devida pelos períodos de incapacidade temporária sofridos no valor de € 4.482,45 – art.º 6.º da Lei n.º 27/2011 de 16 de junho.
b) a pensão anual e vitalícia de € 4.565,00, com início em 07-02-2022, pagável no domicilio do Autor, adiantada e mensalmente, até ao 3º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo que nos meses de Maio e Novembro deverão acrescer mais ¼, a título de, respectivamente, subsidio de férias e de Natal, devendo ser aplicado os sucessivos coeficientes de atualização, com os limites contidos no art.º 4.º da Lei n.º 26/2011, de 16 de Junho;
c) um subsídio por situação de elevada incapacidade permanente no montante de € 4.132,79, devidos a partir de 07-02-2022,
d) acrescido de juros de mora à taxa legal desde os respectivos vencimentos até integral e efectivo pagamento.
III- Absolveu a Ré do demais contra si peticionado.
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1. Recurso do A.
Inconformado, o A. recorreu, concluindo:
1. O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de absolvição da Ré daquele pedido na circunstância de a cirurgia em causa (artroscopia da anca) não ter permitido o regresso do A. à sua atividade de futebolista profissional.
2. Tal conclusão assenta no entendimento de que apenas é adequada a cirurgia que produz como resultado a cura ou que permite o regresso à atividade profissional.
3. Ora, o entendimento conforme à letra do art.º 59º, n.º 1, al. f), da Lei Fundamental, é o de que a entidade responsável deve reembolsar o sinistrado sempre que a cirurgia por este suportada é adequada ao restabelecimento do seu estado de saúde, ainda que tal resultado não seja alcançado.
4. Dito isto, afigura-se claro que para determinar a responsabilidade da Ré no reembolso dos custos de tal cirurgia era essencial apurar se a artroscopia da anca se enquadrava nas leges artis, face ao quadro clínico do A., independentemente do risco de tal cirurgia poder não produzir o resultado desejado (regresso à atividade profissional).
5. Quanto a este ponto, a prova produzida pela R. assentou no depoimento do seu responsável clínico, o Dr. BB, que subscreveu o relatório transcrito no ponto 23º dos factos provados.
6. Segundo a douta sentença recorrida, o depoimento de BB, médico ortopedista, não foi de molde a infirmar a prova pericial carreada para os autos, desde logo atento o modo parcial como depôs, e no qual fez tábua rasa dos demais elementos clínicos e periciais juntos, que simplesmente refutou, com recurso a expressões redondas e vagas.
7. Resulta de tal conclusão que nenhuma prova credível foi produzida pela Ré no sentido da inadequação da artroscopia da anca perante o quadro clínico do A..
8. E, no sentido de tal adequação, pronunciaram-se os Drs. CC (médico da entidade empregadora do sinistrado) e DD, como se extrai dos pontos 21º e 24º dos factos provados.
9. Precisamente por tal motivo, extrai-se da fundamentação da matéria de facto que tal intervenção cirúrgica, conforme decorre, não só das declarações prestadas pela testemunha CC em sede de audiência final, médico ortopedista da Ré, mais ainda do teor do relatório clínico junto a fls. 22v e transcrito em 21) dos factos provados (Atendendo à especificidade da patologia em causa, penso que deverá ser transferido para centro onde seja praticada artroscopia da anca), era um procedimento adequado para a lesão identificada.
10. Para o Tribunal recorrido, é irrelevante que, segundo as leges artis, tal cirurgia seja adequada a produzir aquele resultado. O que releva, apenas, é o resultado em si.
11. Tal entendimento abriria caminho à desproteção do sinistrado e a tomadas de posição, pelas entidades responsáveis, restritivas da autorização de tratamentos, com respaldo na respetiva incerteza do resultado… e tal incerteza é uma certeza de qualquer cirurgia.
12. Por fim, a própria testemunha Dr. CC depôs de forma taxativa no sentido de que o resultado da cirurgia em causa era sempre incerto, não obstante a respetiva adequação à situação clínica do A. (minuto 38:30 a 39:19 do ficheiro Diligencia_3223-21.5T8CSC_2024-07-01_10-30-25).
13. E é por tal motivo, que se considera que a sentença recorrida, nesse ponto, viola o disposto no art.º 59º, n.º 1, al. f), da Lei Fundamental, ao exigir, como condição de reembolso, que o sinistrado demonstre ter voltado à vida ativa por força da cirurgia.
14. De resto, o simples cotejo com a jurisprudência citada pelo tribunal recorrido, permite reforçar o entendimento do A..
15. Veja-se, a título exemplificativo, o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20.1.2022 (Proc. 629/14.0TTGMR.4.G1, Vera Sottomayor, em www.dgsi.pt):
Estando em causa o restabelecimento do estado de saúde, da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e a sua recuperação para a vida ativa, nas situações em que o sinistrado tenha procurado, ainda que à revelia da seguradora, cuidados ou tratamentos médicos que lhe proporcionaram o restabelecimento do seu estado de saúde e se justificados à luz da “legis artis”,
16. Termos em que deve a douta sentença ser revogada e a Ré condenada no reembolso, ao sinistrado, da despesa referida no ponto 27º dos factos provados.
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Contra-alegou a ré, pedindo a improcedência deste recurso e concluindo:
I. O sinistrado só poderia ter recorrido a médico de sua escolha numa das situações previstas no art.º 28.º, n.º 2 da LAT, designadamente, a prevista na alínea “d) Se lhe for dada alta sem estar curado, devendo, neste caso, requerer exame pelo perito do tribunal.”;
II. Se considerava não estar curado quando lhe foi dada alta pelos serviços médicos da recorrida, deveria ter requerido exame médico por perito do tribunal, procedimento de que a lei faz depender a possibilidade de recorrer a outro médico assistente – artigos 33.º e 34.º da LAT;
III. Também o Protocolo de Colaboração na Gestão de Sinistro, que é parte integrante das Condições Gerais e Particulares, prevê que, no caso de o sinistrado optar por não seguir o protocolo de recuperação definido ou aprovado pelos serviços clínicos da Recorrida, deve assinar um termo de responsabilidade, ficando a seu cargo todas as responsabilidades daí advindas;
IV. O A. não deu cumprimento a qualquer destas disposições legais e contratuais, tendo envolvido no processo de recuperação outro médico que não o médico assistente, sem autorização da Recorrida, nem intervenção do juízo do trabalho territorialmente competente;
V. Em consequência, o parecer médico que levou o A. a decidir-se pela necessidade da intervenção cirúrgica em evidência e pela sua adequação à resolução do problema da sua anca direita, provém de alguém que não era seu médico assistente nem tinha legitimidade para ter intervindo no processo de recuperação, intervenção essa que ocorreu ainda antes de lhe ter sido atribuída alta pelos serviços da Recorrida;
VI. Acresce que nada existe no processo que possa legitimamente sustentar a conclusão de que a artroscopia da anca era o procedimento mais adequado segundo as leges artis, tendo em conta a existência dos sinais de doença degenerativa descritos no processo clínico, os quais foram integralmente reproduzidos no ponto 38. da matéria de facto provada.
VII. Para ter direito ao ressarcimento pela Recorrida, e de acordo com o disposto no artigo 23.º da Lei n.º 98/2008, de 4 de setembro (LAT), é ainda necessário que o A. tenha comprovado que a despesa com a cirurgia que contratou à revelia da Recorrida foi necessária e adequada ao restabelecimento do estado de saúde do mesmo e da capacidade de trabalho e de ganho, na profissão de praticante desportivo profissional de futebol – v., a propósito, Acórdão da Relação de Guimarães de 20-01-2022, Proc.º 629/14.0TTGMR.4.G1 e Acórdão da Relação de Évora de 18-10-2018, Proc.º 2650/15.T8PTM.E1, in www.dgsi.pt, entre outros. Ora,
VIII. O que ficou provado nos autos foi que o A. tentou retomar a sua atividade profissional de forma gradual, mas não conseguiu suportar mais do que alguns exercícios de reforço muscular dos membros superiores, em ginásio, e uma total incapacidade para o treino de campo, em virtude de dores insuportáveis na anca direita – cf. 32 a 34 dos factos provados.
IX. Significa isto que a intervenção cirúrgica falhou em toda a linha, portanto, não foi o tratamento adequado ao restabelecimento do estado de saúde geral do A. e da respetiva capacidade de trabalho e de ganho, na profissão de praticante desportivo profissional de futebol. Assim sendo,
X. Não tendo o A. demonstrado a necessidade e adequação do procedimento cirúrgico contratado pelo A. para os fins acima mencionados, é de concluir que a Recorrida não está obrigada a reembolsar o A. da correspondente despesa, não merecendo a douta sentença recorrida qualquer censura, nesta parte, não existindo igualmente qualquer fundamento para considerar que a mesma viola o disposto no artigo 51.º, n.º 1, al. f) da Constituição da República Portuguesa. Não obstante,
XI. E admitindo, sem conceder, que ao A. pudesse ser reconhecido fundamento na respetiva pretensão, nunca a Recorrida poderia ser condenada a pagar a totalidade do preço contratado em pago pelo A., antes, apenas o preço que suportaria se a dita cirurgia, caso fosse o ato médico adequado ao restabelecimento do sinistrado, fosse diretamente por si assegurada.
Rematou pedindo que se confirme a douta sentença recorrida, na parte em que absolve a Recorrida do pagamento das despesas referidas em 27. dos factos provados.
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2. Recurso da R.
Também a R. seguradora recorreu, tendo concluído:
I. A sentença não faz qualquer alusão ao facto, decorrente das declarações prestadas pelo A. e por várias testemunhas e alegado pela recorrente em 30. e 31. da contestação, tendo o A. igualmente prestado declarações nesse sentido no Auto de Exame Médico de fls. (Ref.ª CITIUS 136236977), de que o mesmo procurou ativamente continuar a sua carreira de futebolista, já em plena época 2021/2022, no PORTOMOSENSE;
II. O próprio A. informou os autos, aquando da realização do Auto de Exame Médico de 11-03-2022, que “Realizou múltiplos tratamentos de recuperação a título particular e/ou da entidade patronal, que terão terminado em fevereiro de 2022, após o que retomou a atividade profissional – no dia 06.02.2022 embora pela equipa do Portomosense (…)”;
III. Também a ora recorrente juntou aos autos um documento, com a sua alegação de 30. e 31. da contestação, que consiste em publicação existente no site www.zerozero.pt, no qual está inventariado todo o percurso profissional dos jogadores de futebol que exercem (ou exerceram) funções ao serviço de equipas portuguesas, demonstrando que o A., no período restante até ao termo da época 2021/2022, efetuou 5 jogos pelo PORTOMOSENSE, durante nunca menos de 40 minutos em cada um deles;
IV. Este documento não foi impugnado pelo A., pelo que deve o facto que o mesmo pretendia provar considerar-se provado, de acordo com o disposto no artigo 368.º do CCivil.
V. Acresce, ainda, que este facto foi expressamente confirmado por testemunhas, conforme depoimentos transcritos na alegação que antecede.
VI. Pelo exposto, deve ser acrescentado à douta sentença o Facto 43, em 4.1. Factos provados, com a redação supra proposta.
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VII. A determinação da existência de IPATH deve ser estabelecida em concreto e não de forma meramente teórica;
VIII. Note-se que o próprio A., em palavras suas, não indicou um único gesto/ação que tivesse deixado de poder fazer, em consequência do acidente de trabalho, tendo sempre afirmado que apenas deixou de os poder fazer com a mesma intensidade que antes do acidente;
IX. É necessário verificar se o sinistrado pode, considerando a sua capacidade restante, retomar o essencial das suas tarefas, seja no seu posto de trabalho ou em outro posto de trabalho, desde que no âmbito da sua qualificação, experiência ou competência técnico-profissional;
X. O critério decisivo para se considerar existir IPATH pressupõe sempre que haja recurso à reconversão profissional, o que não sucedeu no caso dos autos.
XI. O A. não precisou de qualquer tipo de reconversão profissional para ser admitido a jogar no PORTOMOSENSE, conforme melhor resulta da alegação que antecede.
XII. Ponderados concretamente os critérios de que os n.ºs 5-A e 10 das Instruções Gerais da TNI fazem depender a atribuição de IPATH, é de concluir que não existe fundamento legal para a atribuição de IPATH no caso dos autos, pelo que,
XIII. É de concluir que a sentença recorrida, ao atribuir a IPATH ao sinistrado, violou o disposto no n.º 5-A e no n.º 10 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades;
XIV. Não existindo fundamento para a atribuição de IPATH, também não é possível atribuir o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, previsto no art.º 67.º, n.º 3, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT);
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XV. Ao considerar provada a existência da apólice de seguro, oportunamente junta aos autos pela Ré, presume-se que o Tribunal tomou conhecimento do seu conteúdo;
XVI. A Cláusula Sexta do Protocolo de Colaboração na Gestão de Sinistro, constante das Condições Especiais e Particulares da Apólice de Seguro prevê a existência de uma franquia contratual, a partir de cujo decurso a recorrente assume o pagamento das indemnizações por incapacidade temporária, ao passo que a Cláusula Nona fixa a duração daquela em 60 dias;
XVII. A existência e eficácia da franquia foi consignada na Ata da Tentativa de Conciliação de 06-04-2022, e foi expressamente aceite pelo A. na petição inicial.
Assim sendo,
XVIII. Condenar a ora recorrente ao pagamento de indemnização por incapacidade temporária ao A., fazendo tábua rasa das referidas estatuições de natureza contratual, contraria frontalmente a norma do art.º 405.º do Código Civil, que estipula a liberdade de contratar e conformar o contrato de acordo com as cláusulas que as partes entenderem ser as mais adequadas.
Pelo exposto,
XIX. É de concluir que a ora recorrente só pode ser responsabilizada pelo pagamento das ITA’s a partir de 26-07-2021, ou seja, após o desconto dos 60 dias de franquia;
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XX. A douta sentença recorrida fixou uma pensão anual e vitalícia, com base na IPATH atribuída, ignorando o teor das disposições imperativas que constam dos art.º 3.º, n.º 2 e 4.º da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho;
XXI. O art.º 3.º, n.º 2, determina que a pensão anual fixada com base em IPATH é paga apenas enquanto o sinistrado não perfizer 35 anos de idade, o que, no caso dos presentes autos, sucederá em 28-05-2025;
XXII. O artigo 4.º, alínea b), determina que, a partir dessa data, o sinistrado passa a ter direito apenas à pensão anual e, agora sim, vitalícia, calculada com base na IPP que lhe foi fixada nos presentes autos, com os limites que ali são fixados;
XXIII. Estas normas são concretizações do princípio da mutualidade, e justificam-se pelo facto de os praticantes desportivos profissionais auferirem elevados montantes remuneratórios, em regra, muito superiores aos auferidos pela generalidade dos trabalhadores por conta de outrem. Além disso,
XXIV. São normas que estabelecem derrogações ao regime jurídico constante da Lei n.º 98/2009, 4 de setembro (LAT), cujo art.º 48.º, n.º 3, não prevê qualquer limitação ao valor da PAV;
XXV. É forçoso concluir, portanto, que estas normas da Lei n.º 27/2011 têm natureza imperativa. Nestes termos,
XXVI. É de concluir ainda que a douta sentença recorrida violou as disposições legais imperativas dos artigos 3.º, n.º 2 e 4.º da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho, o que a sujeita a revogação por decisão de tribunal superior que dê cumprimento, em substituição da mesma, ao estatuído nas disposições omitidas, designadamente, consignando o valor da pensão até aos 35 anos e o valor da mesma, daí em diante.
Rematou pedindo que seja revogada a sentença recorrida e substituída por acórdão que:
a) Revogue a atribuição de IPATH ao sinistrado, com a consequente revogação da condenação da recorrente ao pagamento de subsídio de elevada incapacidade;
b) Reduza a indemnização por incapacidades temporárias em que a recorrente foi condenada, em função da existência de um período de franquia contratual;
c) Corrija a pensão anual e vitalícia que a recorrente foi condenada a pagar, adequando-a ao disposto nos artigos 3.º, n.º 2 e 4.º da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho.
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Contra-alegou o sinistrado, concluindo:
1. Não tendo a ré impugnado os pontos 31º a 37º, forçoso é concluir que tal matéria sustenta a decisão de atribuição de IPATH.
2. E bem assim, perante tal factualidade dada como provada, despiciendo seria analisar os motivos pelos quais o A. procurou relançar a carreira no Portomosense e as razões que o levaram a desvincular-se de tal instituição (elencadas no referido requerimento de 26.1.23).
3. Em qualquer caso, o A. esclareceu que procurou relançar a carreira num escalão inferior, amador, ao serviço do Portomosense, não tendo, ainda assim, conseguido acompanhar o ritmo mais baixo, por força das dores resultantes da lesão sofrida na anca (08:12 a 8:40 do ficheiro Diligencia_3223-21.5T8CSC_2024-06-19_10-25-18).
4. Na transcrição do depoimento do A. levada a cabo pela ré, EXPLICITAMENTE, a ré pretende que o A. se referia a exame (em limitações de mobilidade da anca) realizado para ser admitido no Portomosense.
5. Ora, como se extrai do depoimento do A., corretamente contextualizado, este referia-se a exames realizados ao serviço da União de Leiria, antes do acidente (26:30 a 27:50 do ficheiro Diligencia_3223-21.5T8CSC_2024-06-19_10-25-18).
6. A possibilidade de reconversão profissional é matéria de facto (modificativa do direito invocado pelo A.) que a R. jamais alegou, sendo seu o ónus de o fazer.
7. E bem assim, jamais a R. requereu a intervenção do IEFP, pelo que, uma vez mais, pretender, nesta sede, que tal diligência é essencial, mais do que ao exercício intempestivo de um direito processual, tal linha de argumentação corresponde a uma conduta processual totalmente alheia aos princípios da boa fé.
8. No que respeita à atribuição de IPATH, “esquece-se” a R. que a junta médica se pronunciou nesse sentido, POR UNANIMIDADE.
9. Ou seja, sem o mais ínfimo meio de prova que sustente tal pretensão (de não atribuição de IPATH ao A.), a R. contraria a conclusão do seu próprio perito… sendo que, em momento algum, suscitou a necessidade de esclarecimentos pelo mesmo, como lhe era permitido processualmente, caso entendesse necessário dissipar qualquer obscuridade ou imprecisão no relatório pericial.
10. E, quando se afirma que a R. não produziu o mais ínfimo meio de prova, não nos esquecemos do Dr. BB, testemunha arrolada pela R., cujo depoimento é assim qualificado pelo Tribunal Recorrido: não foi de molde a infirmar a prova pericial carreada para os autos, desde logo atento o modo parcial como depôs, e no qual fez tábua rasa dos demais elementos clínicos e periciais juntos, que simplesmente refutou, com recurso a expressões redondas e vagas.
11. Nada, nas alegações da R., permite contrariar a conclusão alcançada pelo Tribunal Recorrido quanto a tal depoimento.
12. Pelo que, despida de truques e das conjeturas conclusivas do seu Ilustre Signatário, NADA, mas rigorosamente NADA, sobeja nas alegações da R. que permita, ainda que remotamente, lançar alguma dúvida sobre o bem decidido pelo Tribunal Recorrido quanto à atribuição de IPATH.
13. E, perante o que antecede, nada mais haveria do que, nos termos da Lei, determinar a condenação da R. no pagamento das prestações previstas na LAT (e, aqui, tem a R. razão no que se refere ao período de atribuição de IPATH, até aos 35 anos, e PAV por IPP, daí em diante, sendo esta obrigatoriamente remível).
14. No que respeita à existência de cláusula de franquia, assumindo esta natureza meramente obrigacional, apenas vincula os contratantes e não pode, em caso algum, afastar normas imperativas, que, aliás, visam assegurar a efetivação de um direito constitucional (nomeadamente, o art.º 48º da LAT e a art.º 59º, n.º 1, al. f), da CRP).
15. Posto o que antecede, e não obstante ter o A. reconhecido a existência de tal cláusula (art.º 49º da p.i.), certo é que impendia sobre a R. o ónus de a invocar, na contestação, e, consequentemente, requerer a intervenção do tomador do seguro, o que não fez.
Impetra a final que seja negado o provimento ao recurso interposto pela R. nos termos assinalados, mantendo-se o decidido pela primeira instância (apenas admitindo a alteração da sentença no que se refere à redução do período de atribuição de IPATH, até aos 35 anos, e, daí em diante, PAV pela IPP atribuída pela junta médica, obrigatoriamente remível, por inferior a 30%).
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O DM do MºPº teve vista e pronunciou-se pela improcedência do recurso do recurso do A. e pela procedência parcial do recurso da R.
As partes não responderam ao parecer.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
É sabido que o objeto dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 635/4, 639/1 e 2, e 663, todos do Código de Processo Civil.
Importa apurar nos autos se é atendível o aditamento à matéria de facto pretendido pela ré, se a despesa referida no ponto 27 dos factos provados deve ser suportada pela R., se o sinistrado tem IPATH e deve ter o correspondente subsídio, há lugar a franquia, ao reembolso da despesa com artroscopia, e quais as prestações devidas ao sinistrado, atento a sua qualidade de desportista.
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Começando pelo recurso da decisão da matéria de facto, verificamos que existe consenso das partes quanto a esta factualidade, como admitiu o sinistrado nas alegações.
E destarte, face aos seus termos e à prova, aditar-se-á tal a final (assinalando-se no local próprio a cheio).
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São, pois, estes os factos provados:
1. O Autor nasceu em 28-05-1990.
2. E é futebolista profissional, na modalidade de futebol de onze.
3. Em 21.9.2020, o Autor celebrou contrato de trabalho desportivo com a União de Leiria Futebol, SAD, mediante o qual se obrigou a prestar, com regularidade, a atividade de futebolista profissional, em representação e sob autoridade e direção de tal entidade, nos precisos termos constantes de fls. 70v a 72v, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
4. A empregadora do Autor participou o sinistro à Ré em 04-06-2021, nos precisos termos constantes de fls. 73v a 75, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
5. O autor foi submetido a perícia médica neste Tribunal, no âmbito da qual lhe foi fixada uma incapacidade temporária absoluta (ITA) entre 26-05-2021 e 05-02-2022, e uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 5%, tendo ainda a data da consolidação médico-legal das lesões sido fixada em 05-02-2022, nos precisos termos constantes do auto de exame médico, constante de fls. 49 a 51, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
6. Na data referida em 3) o autor auferia a retribuição anual de € 9.130,00.
7. Em 25-05-2021, a União de Leiria Futebol, SAD, tinha a sua responsabilidade sinistral integralmente transferida para a ora Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º 10.00117289.
8. Realizou-se tentativa de conciliação, conforme auto de 06-04-2022, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
9. No dia 25.05.2021, pelas 10h00, na Marinha Grande, no decorrer de um treino da equipa principal de futebol profissional da UDL, o Autor, desenvolvia a sua atividade profissional sob as ordens, direção e fiscalização da sua entidade empregadora.
10. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o Autor sofreu uma entorse da anca direita com mecanismo de abdução tendo efectuado espagarta durante uma disputa de bola.
11. O Autor foi de imediato acometido de fortes dores no membro inferior direito, tendo interrompido a sessão de treino,
12. E assistido pela equipa médica da entidade empregadora, tendo ficado impossibilitado de permanecer em campo e continuar a treinar com os restantes colegas de equipa.
13. O sinistro foi participado à Ré, pela UDL – SAD, em 4.6.2021 (DOC. 2).
14. Nos dias que se seguiram ao acidente descrito, o Autor manteve dores e dificuldade na marcha, e realizou tratamento conservador, nomeadamente, através de repouso e anti-inflamatórios.
15. A primeira consulta de Ortopedia teve lugar em 08-06-2021, sob a orientação do médico Dr. EE, e do respetivo memorial clínico consta o seguinte:
“ICD9: ENTORSES E DISTENSÕES DE LOCAL NÃO ESPECIFICADO DE ANCA E COXA
Diagnóstico/Evolução Clínica: A Desportivo a 25.05.21 – numa disputa de bola fez movimento de abdição extenso da anca direita – tipo espargata, tendo sentido dor na face anterior da anca; Dor a rotação interna Fez ecografias – negativas Peço RM – lesão do labrum?”
16. Nessa ocasião, foi logo pedida nova consulta de Ortopedia e Exame das articulações, que ficou marcada para 17-06-2021, tendo o sinistrado sido considerado Sem Incapacidade (SI) pelos serviços clínicos da Ré.
17. O Autor realizou, em 10-06-2021 ressonância magnética à anca direita de cujo relatório consta:
“Sem alterações de sinal ósseo medular que sugiram focos de contusão. Espaços articulares femoroacetabulares conservados.
Morfologia ligeiramente abaulada entre a cabeça e colo femoral à direita que relacionamos em primeira hipótese com um quadro possível de conflito femoroacetabular tipo cam. Não nos parece existir compromisso da integridade do labrum acetabular.
Sem evidentes coleções anómalas peritrocantéricas embora com ligeiros sinais de trocanerite. Observa-se também um aspecto algo espessado na inserção do Psoas no pequeno trocânter femoral num contexto inflamatório/entesopático.
18. Em 17-06-2021, teve lugar consulta de Ortopedia, em cujo memorial clínico se pode ler o seguinte:
“ICD9: ENTORSES E DISTENSÕES DE LOCAL NÃO ESPECIFICADO DE ANCA E COXA
Diagnóstico/Evolução Clínica: Data e autor Textos: “17-06-2021 15:43 Dr. CC (Médico)” “Fez RMN – sem alt relevantes para além de sinais de conflito femuro-acetabular tipo CAM … Mantém mts queixas… incapaz de regressar à atividade desportiva – é profissional de futebol Peço ARTRO-RM para exclusão definitiva de natureza traumática recente Mantem si volta prox sem” f
19. Nessa ocasião o sinistrado foi considerado Sem Incapacidade (SI) pelos serviços clínicos da Ré.
20. A Artro Ressonância Magnética à anca direita solicitada pelo Dr. CC realizou-se em 26-06-2021, e do respetivo relatório médico consta o seguinte:
Obteve-se uma boa distensão da cápsula articular pelo contraste injectado.
Refiro uma deformação do contorno antero/superior, na transição cabeça/colo do fémur, predispondo a conflito tipo CAM.
O ângulo de cobertura da cabeça femoral pelo acetábulo é de 38° (normal). Não há sinais de retroversão acetabular.
Observo ligeira labiação osteofitária marginal no contorno superior da cabeça do fémur e na fóvea, sem alterações da cartilagem de revestimento.
Na margem acetabular observo irregularidade do contorno, com formação microquística subcortical, osteofitose marginal e uma lesão da junção condrolabral, com insinuação de lâmina de contraste na região antero-superior do labrum.
Observo marcados fenómenos de entesopatia com hiperostose acentuada no pequeno trocânter a nível da inserção do psoas, estando o tendão íntegro, sem tendinose ou bursite.
Não identifico alterações dos tendões nadegueiros ou bursites trocantéricas.
Chamo a atenção para uma rotura do tendão comum dos retos abdominais com os adutores, sobretudo lateralizada à direita, aspecto incompletamente estudado, uma vez que o exame não foi dirigido para o estudo desta região, sugerindo-se caso haja sintomas a realização de exame dirigido”
21. Em 01-07-2021 teve lugar uma consulta de Ortopedia de seguimento, em cujo memorial clínico se pode ler o seguinte:
“Diagnóstico/Evolução clínica: Artro-RM- Sinais de conflito tipo CAM, associado a alterações de natureza degenerativa mas com lesão condrolabral, q não se poderá excluir que seja de natureza aguda (o sinistrado nega queixas álgicas prévias ao sinistro)… identifica também outras alterações regionais sem relação com o episódio atual Atendendo à especificidade da patologia em causa, penso que deverá ser transferido para centro onde seja praticada artroscopia da anca – o sinistrado já terá sido avaliado em contexto particular com especialista da área e manifesta interesse em ser acompanhado por esse especialista (Dr. DD) – eu nada tenho a opor Fica ao critério da companhia
22. Nessa ocasião o sinistrado foi considerado Sem Incapacidade (SI) pelos serviços clínicos da Ré.
23. Em 06-07-2021, é realizada a consulta de Ortopedia com o Dr. BB, Ortopedista dos serviços clínicos da ora R., em cujo memorial clínico se pode ler o seguinte:
“ICD9: ENTORSES E DISTENSÕES DE LOCAL NÃO ESPECIFICADO DE ANCA E COXA
Diagnóstico/Evolução clínica: Coxalgia após esforço à drt. Impigement fémur acetabular com sinais de artrose da anca. Tratam-se de lesões crónicas pelo que não devemos autorizar a cirurgia solicitada
24. Em 13-07-2021, é realizada a consulta de Ortopedia com o Dr. DD, Ortopedista particular, em cujo relatório consta:
Observado em consulta de especialidade da anca na sequência de entorse/torção da anca direita sem melhoria com tratamento conservador.
Clinicamente com queixas articulares e testes labrais positivos.
Ressonância magnética confirmou rotura do labrum anca direita.
Proposta para artroscopia da anca direita técnica out-inside.
Plano: cruentação/trimming do rerbordo acetabular e sutura do labrum com suturas-âncoras knotless e osteocondroplatia femoral para protecção sutura labral.
25. Por missiva datada de 05 de agosto de 2021 a Ré comunicou, respectivamente, ao Autor e à UDL UNIÃO DE LEIRIA – FUTEBOL, SAD, que o médico assistente da Ré concluiu que as lesões apresentadas resultam de um processo degenerativo, não compatível com o evento participado, pelo que lhe foi atribuída alta “sem nexo de causalidade, em 06-07-2021.
26. Por força do sinistro referido em 9), foi o Autor, em 09.09.2021, submetido a intervenção cirúrgica, sem autorização da Ré, identificando-se, além do mais, rotura labral, entre as 12h e as 3h, tendo sido efetuada além do mais sinovectomia, osteoplastia acetabular, trimming acetabular, osteoplastia femoral, entre outros, que decorreu sem complicações, tendo tido alta para o domicílio com indicação de realização de marcha com duas canadianas, nos precisos termos constantes da nota de alta de ortopedia junta como documento 5 com a petição inicial, cujo teor se dá integralmente por reproduzido.
27. Os pais do Autor suportaram o pagamento da cirurgia, no valor de 10.022,00 €.
28. No âmbito dos presentes autos, foi o Autor foi sujeito a exame médico singular no dia 11.03.2022.
29. Em tal data apresentava, a nível funcional, as seguintes queixas:
Fenómenos dolorosos, limitação e impotência funcional ao nível da anca direita, condicionando limitação profissional importante, em todas as corridas, saltos, impulsos, quedas e remates, entre outro de ginásio.
30. Em tal exame, o perito concluiu que o Autor apresentava, à data, como sequelas, mobilidades da anca direita dolorosas, acompanhadas de défices articulares na abdução e rotações, condicionando importantes repercussões profissionais.
31. E bem assim, concluiu o perito que os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões, se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo, se exclui a pré-existência do dano corporal e/ou na eventualidade deste, o mesmo terá sido despoletado pelo evento em apreço e/ou agravado pelo mesmo e que assumindo-se ainda a existência de eventuais lesões degenerativas ao nível da articulação em causa tais não impedem e/ou são causa da existência de eventuais novas lesões agudas, nomeadamente a lesão condrolabral, que motivou a intervenção cirúrgica e as sequelas valoradas na presente avaliação.
32. Posteriormente a tal intervenção, o Autor tentou retomar a sua atividade como jogador de futebol, de forma gradual.
33. Contudo, o Autor apenas conseguiu suportar alguns exercícios de reforço muscular dos membros superiores, em ginásio.
34. Ao tentar efetuar treino de campo, em data não apurada da época de 2021/2022, com corrida ligeira, o Autor sentiu dores insuportáveis na anca direita, tendo de imediato interrompido o treino.
35. O futebol é um desporto de alta exigência, com um grau de imprevisibilidade ao nível das exigências e competências físicas singulares requeridas;
36. E o futebolista profissional depara-se, ao longo dos treinos e jogos, com um grande número de ações persistentes e repentinas que envolvem múltiplos recursos da sua global competência, de entre os quais se destacam os seguintes:
Exigências físicas posturais de pé, curvado e fletido; esforço muscular contínuo, esforço de equilíbrio e controlo muscular da totalidade do corpo; persistentes e rápidas mobilidades, com mudanças rápidas de postura;
Exigências rápidas de locomoção, constantes em corrida, com quedas frequentes;
Elevada intensidade de esforço dinâmico ao nível do sistema tronco-anca-perna-pés, quando pontapeia ou imobiliza uma;
Necessidade de manuseamento de pesos de vários quilogramas com os membros superiores e inferiores e tronco em exercícios de fortalecimento muscular em ginásio.
37. Por força das lesões sofridas no acidente em causa nos autos, o Autor encontra-se absolutamente incapacitado de realizar quaisquer destas ações e, consequentemente, impossibilitado de continuar a exercer a sua profissão de futebolista profissional.
38. O sinistrado, à data do evento supra referido, era portador de Lesão CAM e presença de quistos subcorticais no conorno acetabular e osteofitose marginal. Entesopatias múltiplas.
39. O Autor não apresentava quaisquer queixas álgicas prévias ao sinistro.
40. Em sede de incidente de fixação de incapacidade foi proferida decisão considerando-se o Autor afectado de ITA entre 26-05-2021 a 05-02-2022 (256 dias) bem como de uma incapacidade permanente parcial de 4,5% com IPATH (resultante da aplicação do factor de 1,5 sobre a incapacidade de 3%) sendo a data da alta reportada a 06-02-2022
41. Como consequência directa e necessária do evento referido em 9) sofreu o Autor lesão da junção condolarolabral com insinuação da lâmina de contraste na zona anterosuperior do labrum tendo, em consequência de tais lesões, ficado afectado de rigidez articular com limitação da flexão activa.
42. Como consequência directa e necessária do evento referido em 9) ficou o Autor afectado das incapacidades temporárias e permanente referidas em 40).
43. Nos 3 meses que ainda restavam até ao fim da época de 2022, o sinistrado fez 6 jogos pela ASSOCIAÇÃO DESPORTIVA PORTOMOSENSE, e nunca menos de 40 minutos por jogo.
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De Direito
Recurso do sinistrado
Ficou assente que (26) por força do sinistro referido em 9), foi o Autor, em 09.09.2021, submetido a intervenção cirúrgica, sem autorização da Ré, identificando-se, além do mais, rotura labral, entre as 12h e as 3h, tendo sido efetuada além do mais sinovectomia, osteoplastia acetabular, trimming acetabular, osteoplastia femoral, entre outros, que decorreu sem complicações, tendo tido alta para o domicílio com indicação de realização de marcha com duas canadianas, nos precisos termos constantes da nota de alta de ortopedia junta como documento 5 com a petição inicial, cujo teor se dá integralmente por reproduzido. (27) Os pais do Autor suportaram o pagamento da cirurgia no valor de 10.022,00 €.
Considerou a sentença recorrida que o sinistrado realizou a cirurgia à revelia da seguradora, embora a operação fosse
“motivada por algumas das sintomatologias que o sinistrado apresentava por causa do acidente (factos provados 26) e 31)). Contudo, a referida cirurgia não proporcionou ao Autor a retoma do seu trabalho – factos provados 32, 33, 34 e 37. Ademais, não resulta da factualidade dada por provada que a intervenção cirúrgica a que o Autor foi submetido em consequência e por causa do acidente era o tratamento adequado à melhoria do seu estado geral que, como decorre da factualidade por provada, não ocorreu. Em suma, não provou o Autor, como lhe competia, que a realização da artroplastia foi um bem, ou uma necessidade, adequada a melhorar o seu estado geral. Ou seja, não tendo o Autor feito prova, como lhe competia, que a intervenção cirúrgica a que foi submetido em 09.09.2021. por si contratada, foi adequada ao restabelecimento do seu estado de saúde e à recuperação para a sua vida activa, improcede o pedido de condenação da Ré a pagar-lhe o valor despedido com a realização da mesma”.
O sinistrado insurge-se, esgrimindo que não é apenas adequada a cirurgia que produz como resultado a cura ou que permite o regresso à atividade profissional, devendo antes a entidade responsável reembolsar o sinistrado sempre que a cirurgia por este suportada é adequada ao restabelecimento do seu estado de saúde, ainda que tal resultado não seja alcançado. Para determinar a responsabilidade da Ré no reembolso dos custos de tal cirurgia era essencial apurar se a artroscopia da anca se enquadrava nas leges artis, face ao quadro clínico do A., independentemente do risco de tal cirurgia poder não produzir o resultado desejado (regresso à atividade profissional).
Acrescenta que a prova produzida pela R. assentou no depoimento do seu responsável clínico, o Dr. BB, que subscreveu o relatório transcrito no ponto 23º dos factos provados, o qual não infirmou a prova pericial carreada para os autos, e nenhuma prova credível foi produzida pela Ré no sentido da inadequação da artroscopia da anca perante o quadro clínico do A., sendo que os Drs. CC (médico da entidade empregadora do sinistrado) e DD (pontos 21º e 24º dos factos provados) se pronunciaram no sentido da adequação.
Vejamos.
Nos termos do disposto na Lei dos Acidentes de Trabalho (n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que Regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais), o trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos na presente lei (art.º 2º).
Dispõe o art.º 23 da LAT, que
O direito à reparação compreende as seguintes prestações:
a) Em espécie — prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa;
b) Em dinheiro — indemnizações, pensões, prestações e subsídios previstos na presente lei.
Como escreve Maria José Costa Pinto, in Os danos não patrimoniais nos processos laborais: alegação, prova e quantificação da indemnização”, no Prontuário de Direito do Trabalho, 2016, II, pp. 265 e ss., “Constituindo uma responsabilidade civil sem culpa e com natureza excepcional (cfr. o n.º 2 do art.º 483.º do Código Civil), este regime só vale nos casos em que o legislador o quis e nos termos em que o quis.
Na lei especial que estabelece actualmente o regime da reparação dos acidentes de trabalho, a noção de acidente de trabalho e o círculo de danos indemnizáveis são delimitados nos artigos 8.º e 23.º da LAT, de molde a que o direito à reparação inclua, apenas, as prestações em espécie “necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa”, lógica que subjaz também à previsão das prestações em dinheiro contempladas nos artigos 47.º e ss. da mesma lei (…).
Assim, não há dúvida de que são apenas objeto do direito à reparação as prestações necessárias e adequadas.
O ponto crucial aqui consiste em saber quem tem o ónus da prova.
Face ao disposto do artigo 342, n.º 2, do código civil, é ao sinistrado que incumbe satisfazer esse ónus, e não à seguradora.
No caso, tal não foi feito.
Desta sorte, o recurso do sinistrado improcede necessariamente.
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Recurso da ré
1. Da IPATH
É sabido que existe incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) quando o trabalhador vítima do sinistro fica impedido, em virtude das sequelas dele emergentes, de executar as tarefas concretas e essenciais, caracterizadoras ou definidoras do trabalho habitual a que se dedicava à data do acidente (cfr. a. RL 28.05.2025, o qual acrescenta: “como escreve Carlos Alegre, In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2.ª Edição, Coimbra, pp. 122-123. “[a] noção de trabalho habitual é, mais uma vez, de contornos vagos e imprecisos. O trabalho de um trabalhador é, normalmente constituído por um conjunto de tarefas, nas quais (em uma ou mais) está suficientemente exercitado para fazer delas a sua função ou missão e diz-se que constitui o seu trabalho habitual. Mas não é habitual apenas porque é executado todos os dias – pode, até, não ser executado a largos espaços de tempo –, é habitual, porque constitui aquilo que sabe fazer, em que se especializou, no que é a razão do seu emprego ao serviço de determinada entidade”. Podendo não se traduzir numa impossibilidade de desempenho de todas as tarefas inerentes ao posto de trabalho, é entendimento pacífico que a incapacidade para o trabalho habitual se deve aferir em função do núcleo essencial das funções, seja do ponto de vista qualitativo, seja do ponto de vista quantitativo. Tal como vem dito no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30 de Maio de 2018, “[o] exercício de uma profissão/trabalho habitual é caracterizado pela execução, e necessidade dessa execução, de um conjunto de tarefas que constituem o núcleo essencial dessa atividade profissional, não se podendo deixar de concluir que o sinistrado fica afetado de IPATH se as sequelas do acidente lhe permitem, apenas, desempenhar função meramente residual ou acessória do trabalho habitual de tal modo que não permitiria que alguém mantivesse, apenas com essa(s) tarefa(s) residual (ais), essa profissão/trabalho habitual”. E, continua o aresto, “definidas e enquadradas que sejam, na TNI, as lesões que o sinistrado apresente (questão esta de cariz essencialmente técnico/médico), o juízo a fazer quanto à questão de saber se as mesmas determinam, ou não, IPATH passa também pela apreciação de diversos outros aspetos, como o tipo de tarefas concretas que o trabalho habitual do sinistrado envolve, conjugado, se for o caso, com outros elementos probatórios e com as regras do conhecimento e experiência comuns, o que extravasa um juízo puramente técnico-científico”).
No caso, o trabalhador ficou com as limitações mencionadas nos pontos 33 e ss., mormente 36, 37, 40 e 42 (36. E o futebolista profissional depara-se, ao longo dos treinos e jogos, com um grande número de ações persistentes e repentinas que envolvem múltiplos recursos da sua global competência, de entre os quais se destacam os seguintes: Exigências físicas posturais de pé, curvado e fletido; esforço muscular contínuo, esforço de equilíbrio e controlo muscular da totalidade do corpo; persistentes e rápidas mobilidades, com mudanças rápidas de postura; Exigências rápidas de locomoção, constantes em corrida, com quedas frequentes; Elevada intensidade de esforço dinâmico ao nível do sistema tronco-anca-perna-pés, quando pontapeia ou imobiliza uma; Necessidade de manuseamento de pesos de vários quilogramas com os membros superiores e inferiores e tronco em exercícios de fortalecimento muscular em ginásio.
37. Por força das lesões sofridas no acidente em causa nos autos, o Autor encontra-se absolutamente incapacitado de realizar quaisquer destas ações e, consequentemente, impossibilitado de continuar a exercer a sua profissão de futebolista profissional.
40. Em sede de incidente de fixação de incapacidade foi proferida decisão considerando-se o Autor afectado de ITA entre 26-05-2021 a 05-02-2022 (256 dias) bem como de uma incapacidade permanente parcial de 4,5% com IPATH (resultante da aplicação do factor de 1,5 sobre a incapacidade de 3%) sendo a data da alta reportada a 06-02-2022.
42. Como consequência directa e necessária do evento referido em 9) ficou o Autor afectado das incapacidades temporárias e permanente referidas em 40).
Ficou, assim, impedido, em virtude das sequelas dele emergentes, de executar as tarefas concretas e essenciais, caracterizadoras ou definidoras do trabalho habitual a que se dedicava à data do acidente, o que vale por dizer que ficou afetado de IPATH.
O facto de ter participado ainda nalguns jogos posteriormente (43) não afasta esta conclusão, tanto mais que o terá feito, comprovadamente, apenas durante períodos parcelares (não menos de 40 minutos, em lugar dos vulgares 90 minutos) e em divisão competitiva (como é publico e notório) inferior.
Desta sorte, os factos assentes – e não postos em crise – não merecem censura e suportam a conclusão de que padece de IPATH.
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2. Da franquia
Nos termos do disposto no artigo 18.º da Lei n.º 48/2023, de 22 de agosto, é aplicável o regime vigente à data do acidente, previsto na lei n.º 27/2011, de 16 de junho.
A R. insurge-se contra a decisão por não ter considerado a franquia.
O Tribunal a quo lavrou, em sede de fundamentação:
“Resulta do disposto no art.º 48.º, n.º 3, al. d), da LAT que o sinistrado tem direito pela incapacidade temporária absoluta a uma indemnização diária igual a 70% da retribuição nos primeiros 12 meses e de 75% no período subsequente.
A título de ITA, considerando que esteve 256 dias de incapacidade, tem o autor direito a receber a quantia de € 4.482,45 (€9.130,00 (retribuição anual):365 x 70% x 256).
Ou seja, a título de ITA, tem o sinistrado direito à quantia global de € 4.482,45, a cargo da Ré, descontada, eventualmente, a franquia contratualmente prevista – art.º 6.º da Lei n.º 27/2011 de 16 de junho”.
Tal franquia foi prevista em 60 dias para os casos de incapacidade temporária.
Assim, é certa a razão da seguradora neste ponto, a qual só está vinculada à reparação a partir do decurso da franquia.
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Das prestações de IPATH
Dispõe o art.º 3.º da aludida Lei n.º 27/2011 de 16 de junho, relativa às pensões por incapacidade permanente absoluta, que:
1 - Para efeitos de reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho dos praticantes desportivos profissionais dos quais resulte uma incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, as pensões anuais calculadas nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, obedecem aos seguintes limites máximos:
a) 14 vezes o montante correspondente a 15 vezes a remuneração mínima mensal garantida em vigor à data da fixação da pensão, até à data em que o praticante desportivo profissional complete 35 anos de idade;
b) 14 vezes o montante correspondente a 8 vezes a remuneração mínima mensal garantida em vigor à data da alteração da pensão, após a data referida na alínea anterior.
2 - Para efeitos de reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho dos praticantes desportivos profissionais dos quais resulte uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, as pensões anuais calculadas nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, só são devidas até à data em que o praticante complete 35 anos de idade e tem como limite máximo 14 vezes o montante correspondente a 15 vezes a remuneração mínima mensal garantida em vigor à data da fixação da pensão.
Por seu turno, o artigo 4.º dispõe:
Para efeitos de reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho dos praticantes desportivos profissionais dos quais resulte uma incapacidade permanente parcial para todo e qualquer trabalho, as pensões anuais calculadas nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, obedecem aos seguintes limites máximos:
a) 14 vezes o montante correspondente a 8 vezes a remuneração mínima mensal garantida em vigor à data da fixação da pensão, até à data em que o praticante desportivo profissional complete 35 anos de idade;
b) 14 vezes o montante correspondente a 5 vezes a remuneração mínima mensal garantida em vigor à data da alteração da pensão, após a data referida na alínea anterior.
Tem, assim, a recorrente razão neste ponto, uma vez que, face às aludidas normas, a pensão anual fixada com base em IPATH só é paga enquanto o sinistrado não perfaz 35 anos de idade (em 28-05-2025), sendo a partir dessa data devida apenas a pensão anual e vitalícia, calculada com base na IPP que lhe foi fixada nos presentes autos, com os limites que ali são fixados.
Procede o recurso da R., pois, nesta parte.
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Temos assim que o sinistrado tem direito a receber, descontada a franquia, de ITAs, € 3.431,88 (tendo em atenção que “O sinistrado esteve em situação de ITA no período compreendido entre 26-05-2021 a 05-02-2022 ou seja, num total de 256 dias”, e face ao disposto no art.º 48.º, n.º3, al. d), da LAT, que lhe cabe receber pela incapacidade temporária absoluta a uma indemnização diária igual a 70% da retribuição nos primeiros 12 meses e de 75% no período subsequente, deduzindo 60 dias - 9.130,00 € (retribuição anual): 365 x 70% x 196).
Cabe-lhe receber a pensão anual e vitalícia fixada em b), como as legais atualizações, até 28/05/2025, data em que perfez 35 anos, e a partir da qual tem direito à pensão anual e vitalícia correspondente à IPP de 4,5% (art.º 48/3/c, LAT), a remir oportunamente nos termos do art.º 75 da LAT.
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Em súmula, improcede, o recurso do sinistrado.
O recurso da R. procede parcialmente, reduzindo-se a indemnização por incapacidades temporárias em que a recorrente foi condenada, em função da existência de um período de franquia contratual e retificando-se a pensão anual e vitalícia que a recorrente foi condenada a pagar, nos termos do disposto nos artigos 3.º, n.º 2 e 4.º da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho.
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DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal julga
a) improcedente o recurso do sinistrado;
b) parcialmente procedente o recurso da ré e consequentemente altera o dispositivo da sentença nos seguintes termos (que se assinalam a cheio):
I- Fixa ao Autor AA uma IPP de 4,5% com IPATH resultante da aplicação do factor de 1,5 sobre a incapacidade de 3%, sendo a alta reportada a 06-02-2022; e
II Condenou a Ré CARAVELA-COMPANHIA DE SEGUROS, S.A a pagar ao Autor AA:
a) indemnização devida pelos períodos de incapacidade temporária sofridos no valor de € € 3.431,88 – art.º 6.º da Lei n.º 27/2011 de 16 de junho.
b) a pensão anual de € 4.565,00 €, com as legais atualizações, com início em 07-02-2022, correspondendo à IPATH e IPP, devida até 27/05/2025;
bb) à pensão anual e vitalícia correspondente à IPP de 4,5% (art.º 48/3/c, LAT), a liquidar, e, oportunamente, a remir nos termos do art.º 75 da LAT;
pagável no domicílio do Autor, adiantada e mensalmente, até ao 3º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo que nos meses de Maio e Novembro deverão acrescer mais ¼, a título de, respectivamente, subsidio de férias e de Natal, devendo ser aplicado os sucessivos coeficientes de atualização, com os limites contidos no art.º 4.º da Lei n.º 26/2011, de 16 de Junho;
c) um subsídio por situação de elevada incapacidade permanente no montante de € 4.132,79, devido a partir de 07-02-2022 até 28/05/2025;
d) acrescido de juros de mora à taxa legal desde os respectivos vencimentos até integral e efectivo pagamento.
III- No mais vai a Ré absolvida.
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Custas do recurso do A. pelo autor.
Custas do recurso da R. pelas partes, na proporção de 2/3 para a R. e 1/3 para o sinistrado

Lisboa, 18 de junho de 2025
Sérgio Almeida
Paula Santos
Francisca Mendes