RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
ACIDENTE DE TRABALHO
MORTE
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
RESPONSABILIDADE AGRAVADA
CULPA
ÓNUS DA PROVA
PESCA
DEVERES DO EMPREGADOR
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ERRO DE DIREITO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário


I. Não existe norma jurídica que imponha o uso de colete salva-vidas por tripulantes de embarcações de pesca que não estejam efetivamente embarcados.
II. De acordo com o direito vigente, apenas é obrigatório o uso de colete salva-vidas a bordo de embarcações de pesca local e não de pesca costeira.
III. Tem-se em vista o reforço da segurança dos tripulantes que se encontrem a bordo de embarcações de pesca local.

Texto Integral


Processo n.º 799/22.3T8FAR.E1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,

I - Relatório

1. AA, BB e CC propuseram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra DD, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 110 000,00 (cento e dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento. Esse montante decompõe-se da seguinte forma: € 20 000,00 (vinte mil euros) pelo dano intercalar sofrido pela vítima, marido e pai dos Autores, e € 30 000,00 (trinta mil euros) para cada um dos Autores a título de danos não patrimoniais, por estes diretamente suportados.

2. O Réu DD defendeu-se por exceção e por impugnação.

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal de 1.ª Instância proferiu sentença que julgou a ação improcedente, por não provada e, em consequentemente, absolveu o Réu DD do pedido.

4. Não conformados, os Autores AA, BB e CC interpuseram recurso de apelação.

5. O Réu DD apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

6. Por acórdão de 25 de maio de 2023, o Tribunal da Relação de Évora decidiu o seguinte:

Por todo o exposto acordam os juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e em consequência confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes.”

7. De novo não resignados, os Autores AA, BB e CC interpuseram recurso de revista, formulando as seguintes Conclusões:

1 - Os Autores eram familiares (mulher e filhos) de EE, que faleceu por afogamento no dia ... de 2019, pelas 21 horas, após ter caído à ria, no cais de ..., em ..., enquanto desempenhava funções de “técnico reparador de artes de pesca” ao serviço do Réu.

2 - A questão principal em apreço consiste em saber se impendia sobre o Réu, enquanto entidade empregadora, a obrigação legal de disponibilizar à vítima um colete salva-vidas, equipamento que permitiria evitar o desfecho fatal do sinistro ocorrido.

3 - Quer o tribunal de primeira instância quer o douto Tribunal da Relação entenderam que não existia essa obrigação legal, uma vez que, nos termos do n.º 4, do artigo 70.º do Regulamento dos Meios de Salvação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 191/98, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 9/2011, de 18/1, regulamentado pela Portaria n.º 64/2011, de 3/2, essa obrigação apenas existiria para as pessoas embarcadas nas embarcações de pesca local, quando em operação (sendo a embarcação em causa classificada como “embarcação de pesca costeira”).

4 - Por sua vez, entendem os Autores/Recorrentes que a obrigação de o Réu disponibilizar à vítima um colete salva-vidas resulta da avaliação das circunstâncias concretas do trabalho desempenhado, bem como das normais gerais relativas à promoção da segurança e saúde no trabalho, previstas na alínea g), do n.º 1 do artigo 127.º, e o artigo 281.º do Código do Trabalho, bem como o artigo 5.º e o artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, na sua redacção actual.

5 - É essencial que se encontrem claramente definidas as obrigações legais das entidades empregadoras, no que respeita à prevenção de acidentes e à promoção da segurança e saúde no trabalho, clarificação essa que, em face das normas de carácter geral neste âmbito, apenas poderá ser realizada mediante concretização jurisprudencial.

6 - Essa concretização revela-se, por isso, essencial para que todas as partes envolvidas (entidades empregadoras e trabalhadores) tenham noção exacta dos seus deveres e obrigações, bem como dos riscos associados a cada actividade, podendo assim tomar as providências materiais necessárias a acautelar esses riscos, evitando quer a ocorrência de sinistros quer os litígios que dos mesmos decorrem.

7 - Ao abrigo das alíneas a) e b) do artigo 672.º do Código de Processo Civil, entendem os Recorrentes que o presente recurso deve ser admitido, por força da particular relevância jurídica e social da questão em apreço.

Assim,

8 - O facto de o trabalhador sinistrado (marido e pai dos Autores) se encontrar a trabalhar no cais, e não numa embarcação, não afasta a obrigação da entidade empregadora assegurar as condições de segurança necessárias para o trabalhador exercer o seu trabalho.

9 - O facto de o trabalhador estar a realizar trabalho nocturno (às 21h, em Março), num cais com pouca iluminação e visibilidade, com redes e outros materiais de pesca espalhados pelo chão, com pavimento molhado e sem qualquer barreira de protecção, implica um risco acrescido de queda à água, que não podia ser ignorado e deveria ter sido acautelado pelo Réu empregador.

10 - Não sendo possível ao empregador mudar as características do cais nem o local dos trabalhos, a única forma de acautelar o risco de queda à água, bem com as consequências que da mesma podiam advir, era fornecer ao trabalhador um colete salva-vidas e exigir a utilização do mesmo.

11 - Ao não identificar correctamente os riscos de acidente existentes (em concreto, de queda à água) e ao não fornecer o equipamento de protecção adequado para acautelar esses riscos (colete salva-vidas), o Réu empregador violou ilicitamente a alínea g), do n.º 1 do artigo 127.º, e o artigo 281.º do Código do Trabalho, bem como o artigo 5.º e o artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro (na sua redação actual), praticando assim um facto ilícito que provou danos ao trabalhador e indirectamente aos aqui Autores, familiares daquele.

12 - A utilização de colete salva-vidas não impediria a queda à água verificada, mas seria apta a impedir o resultado verificado (o falecimento do trabalhador por afogamento), encontrando-se por isso demonstrado o nexo de causalidade entre a omissão do Réu empregador (a falta de fornecimento de colete salva-vidas) e o dano ocorrido (a morte do trabalhador).

13 - Numa queda com estas características e neste contexto, à noite, em Março, com água do mar bastante fria (como é do conhecimento comum), e encontrando-se a vítima totalmente vestida e calçada, o risco de afogamento é bastante elevado, quer a pessoa saiba ou não nadar.

14 - Assim, soubesse o trabalhador nadar ou não, deveria o Réu, em qualquer dos casos, ter identificado o risco existente e acautelado esse mesmo risco, fornecendo o colete salva-vidas e exigindo a utilização do mesmo.

15 - Ao não identificar o risco de acidente e ao não fornecer o equipamento de protecção adequado, o Réu empregador não teve a diligência de um “bonus pater familiae”, que se exigiria a uma entidade patronal minimamente diligente e atenta à segurança dos seus trabalhadores, tendo, dessa forma, agido pelo menos com mera culpa, nos termos do artigo 483.º, e do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil.

16 - Essa falta de diligência é agravada pela ausência de contratação de seguro de acidente de trabalho, tendo ainda o Réu empregador violado culposamente o artigo 79.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.

17 - Em face do exposto, o Réu encontra-se obrigado a reparar os danos provocados, nos termos do n.º 1 do artigo 483.º, do artigo 486.º e do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil.

18 - Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou os artigos referidos no número anterior.

Nestes termos, requer a V. Exas., face a tudo o que ficou supra alegado, que seja concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-a por outra que condene o Réu a indemnizar os Autores conforme peticionado.”

8. Por seu turno, o Réu DD apresentou contra-alegações com as seguintes Conclusões:

1. Existe nos presentes autos, dupla conforme, ou seja, duas decisões no mesmo sentido, ambas absolutórias do ora recorrido.

2. Encontra-se definitivamente estabilizada a matéria de facto dos autos.

3. Não se verifica qualquer dos fundamentos previstos no art.º 672, n.º 2 CPC

4. Deve o presente recurso de revista excepcional ser rejeitado (art.º 672, n.º 2 CPC).

5. Ainda que o não fosse, sempre deverá o mesmo ser julgado improcedente, assim se absolvendo dele o recorrido e mantendo integralmente o sentido do mui douto Acórdão recorrido.

6. O M.º Tribunal de 1ª Instância e o Venerando Tribunal da Relação recorrido, fizeram correcto julgamento da matéria de facto e aplicação do Direito, com justa solução jurídica da causa.

7. Não merece, pois, provimento qualquer das conclusões do recurso apresentado, que deve ser considerado totalmente improcedente.

TERMOS EM QUE DEVEM VOSSAS EXCELÊNCIAS, EGRÉGIOS JUÍZES CONSELHEIROS, REJEITAR O PRESENTE RECURSO, POR INADMISSIBILIDADE LEGAL OU, QUANDO ASSIM O NÃO ENTENDAM, O DEVERÃO JULGAR TOTALMENTE IMPROCEDENTE, MANTENDO-SE NA SUA ÍNTEGRA O MUI DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO,

ASSIM FAZENDO, EGRÉGIOS CONSELHEIROS, NOS ALUMIARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS O CAMINHO DA VIRTUDE E DA JUSTIÇA, COM A CANDEIA DA VOSSA SABEDORIA, E PELO QUE DESDE JÁ SE VOS DIRIGE HUMILDE VÉNIA.”

9. Tratando-se de revista excecional, interposto à luz do art. 672.º, n.º 1, al a), do CPC, a Relatora remeteu os autos à Formação do Supremo Tribunal de Justiça.

10. Por acórdão de 29 de novembro de 2023, a Formação de Apreciação Preliminar admitiu o recurso de revista excecional.

II – Questões a decidir

Atendendo às conclusões do recurso que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, está em causa a questão de saber se o acórdão recorrido padece ou não de erro de direito na apreciação da conduta do Réu, enquanto entidade empregadora de EE, no que respeita à (in)observância das regras de segurança do trabalho – arts. 127. n.º 1, al, g), e 281.º, do Código do Trabalho, arts. 5.º e 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro (na sua redação atual), art. 79.º da Lei 98/2009, de 4 de setembro, e arts. 483.º, 486.º, n.º 2, e 487.º, do CC.

III – Fundamentação

A. De Facto

Foi considerada como provada a seguinte factualidade:

1. Em 6 de julho de 1964, EE inscreveu-se junto da competente autoridade marítima, na categoria de “moço de embarcação de pesca”.

2. Do registo de I.N.S. referente à cédula n.º ...61 constam as seguintes indicações: “6/7/964 Sabe nadar e remar”

3. Da inscrição marítima resulta ainda que a cédula de EE foi “conferida” nas seguintes ocasiões: 18/2/1965; 7/6/1966; 7/6/1967; 27/3/1968; 26/6/1969; e, 28/2/1974.

4. E diversas fotos, com a inscrição das seguintes datas: 6/7/1964; 1/5/1969; 21/10/1977; 7/7/1999; e, 23/8/2004.

5. Em 16 de fevereiro de 2019, o réu apresentou requerimento à Capitania do Porto de ..., solicitando autorização para que o trabalhador EE pudesse embarcar na embarcação de que era proprietário denominada “J...”, com a matrícula .- ....-C, na qualidade de trabalhador não marítimo, desempenhando as funções de “Técnico Reparador de Artes de Pesca, o que veio a ser deferido por despacho de 11 de março de 2019.

6. De acordo com o mesmo despacho o embarque do não marítimo ficava sujeito às seguintes condições:

a. Não estar incluído na lotação de segurança da embarcação nem ser excedido o número máximo de pessoas que podem embarcar;

b. Não serem exercidas a bordo funções que preencham o conteúdo funcional específico de qualquer das categorias de marítimos;

c. Serem garantidas as condições de segurança e habitabilidade a bordo;

d. Serem apresentados, no momento da confirmação do rol da tripulação, os seguros por acidentes de trabalho obrigatórios por lei e o seguro por incapacidade permanente absoluta ou morte, que garanta, no mínimo, os montantes exigidos para os casos de morte ou desaparecimento no mar ou incapacidade absoluta permanente que sejam aplicáveis igualmente a marítimos embarcados;

e. Para embarcações cuja área de navegação não seja local, é exigido comprovativo de aptidão física e psíquica, emitido por médico da especialidade de Medicina do Trabalho, à semelhança do exigido para embarque de marítimos;

f. Em Embarcações de pesca local, tenha sempre envergado o colete de salvação, quando embarcados;

g. Ser possuidor de um contrato de trabalho;

h. O período de embarque não pode exceder um ano, contado a partir da data de validação do rol da tripulação;

i. Para cidadãos não nacionais deve ser apresentada a respetiva autorização da DGRM. (aceite)

7. Desde fevereiro de 2019, EE trabalhou por conta e sob as ordens do réu DD, desempenhando as funções de técnico reparador de artes de pesca.

8. No dia 18 de março de 2019, cerca das 21 horas, no exercício das suas funções, e quando se encontrava no cais de ..., em ..., no desempenho de tarefas relacionadas com o embarque, o EE caiu à ria, por circunstâncias que não se lograram apurar.

9. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, EE não envergava colete salva vidas.

10. Passados alguns minutos, EE acabou por submergir e foi considerado desparecido.

11. Foi encontrado pela polícia marítima, já sem vida, na manhã do dia ... de março de 2019, pelas 9h45, data em que foi declarado o óbito.

12. A morte de EE foi devida a afogamento.

13. Tendo sofrido ainda as lesões traumáticas descritas no aludido relatório, embora as mesmas não tenham concorrido para a sua morte.

14. O EE tinha 69 (sessenta e nove) anos de idade aquando a sua morte.

15. E era uma pessoa ativa e trabalhadora.

16. Ao receberem a notícia da morte trágica do seu familiar, os autores sofreram um enorme choque emocional.

17. Desde o momento em que receberam a notícia e até ser encontrado o corpo do EE, os autores viveram momentos de grande angústia e desespero.

18. Os autores sofreram e ainda sofrem dor e desgosto pela morte trágica do seu familiar.

19. Os autores pensam quase diariamente no sofrimento e aflição que o seu familiar terá sofrido no momento da morte, o que lhes causa grande tristeza e angústia.

20. A autora AA e o seu marido viviam juntos há 46 anos, sendo este quem sustentava o agregado familiar.

21. A morte do marido deixou a autora AA devastada e desamparada, por ter sido privada da companhia e do auxílio que este lhe prestava.

22. Desde a morte do marido que a autora vive ansiosa e deprimida, chorando várias vezes, fechando-se em casa, sem vontade de sair e de socializar com amigos ou familiares, sentindo-se cansada e sem energia física para tratar dos seus afazeres domésticos, ou sequer para se alimentar ou vestir-se.

23. A autora AA moveu contra o réu um processo especial emergente de acidente de trabalho, que correu termos no Juízo de Trabalho de ... – Juiz ..., sob o n.º 3065/19.8...

24. Em 5 de Janeiro de 2021, foi proferida sentença no referido processo, onde foram considerados provados os seguintes factos:

“A) A A. é viúva do sinistrado EE;

B) O sinistrado trabalhava por conta e sob ordens e direcção do aqui Réu DD, a bordo da embarcação “J...”, com matrícula .- ....-C;

C) No dia 18 de março de 2019, o sinistrado EE, quando se encontrava no cais de ... para embarcar, caiu à Ria e foi dado como desaparecido;

D) Foi encontrado pela polícia marítima no dia seguinte, já sem vida, dia 19/03/2019, de manhã, data em que foi declarado o óbito;

E) O sinistrado sofreu as lesões descritas no Relatório da Autópsia, junto aos autos, as quais foram a causa directa e necessária da morte do sinistrado;

F) Após a morte do sinistrado, a sua família teve conhecimento de que o mesmo não tinha quaisquer descontos de Segurança Social, nem era portador de qualquer seguro de acidentes de trabalho;

G) Em 12 de Março de 2010 foi realizada a tentativa de conciliação entre a A. e o R., tendo este último reconhecido a existência e caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente, as lesões e a morte do sinistrado e a A. como única beneficiária, e não aceitou o valor do salário declarado pela beneficiária nem a categoria profissional desempenhada pelo sinistrado;

H) O sinistrado exercia à data dos factos a categoria de Técnico Reparador de Artes Pesca de Covos ou Anzol;

I) A vítima acordou com o R., em 15 de Fevereiro de 2019 como Técnico Reparador de Artes de Pesca de Covos ou Anzol, o salário de € 450,00 mensais;

J) Tal acordo foi entregue da Capitania de ..., Delegação Marítima da ... no dia 16/02/2019;

K) O valor ilíquido obtido com as vendas de pescado da embarcação eram na ordem de € 103.129,03/ano em 2018 e de € 98.108,63 em 2019.

L) Trabalhavam a bordo o mestre e outros 3 trabalhadores;

M) Do valor das vendas é descontado as despesas de combustível, de isco, de manutenção, de mecânica, encargos diversos outros de cerca de 1/3, sendo o restante repartido em 3 parte para o barco e o restante para os tripulantes;

N) O falecido auferia mensalmente e em média € 798,55 x 12 meses (€ 9.582,6/ano);

O) Em despesas com o funeral gastou a A. € 1750,00;

P) A A. nasceu em ... de Novembro de 1957.”

25. A referida sentença considerou a acção procedente e, em consequência, determinou o seguinte:

“A) Declara-se que o acidente descrito nos autos é um acidente de trabalho;

B) Declara-se que existe um nexo de causalidade entre esse mesmo acidente as lesões sofridas pelo sinistrado que foram causa directa e necessária da sua morte;

C) À data do acidente de trabalho o sinistrado auferia mensalmente e em média € 798,55 x 12 meses (€ 9.582,6/ano);

D) Que a A. AA é viúva do sinistrado;

E) E em consequência, condena-se o Réu DD a pagar à A. AA a pensão anual de € 2.874,78 até perfazer a idade da reforma por velhice e de € 3.833,04 partir dessa idade, ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho, devida desde o dia 20 de Março de 2019 (dia seguinte ao da morte do sinistrado), a quantia de € 5.752,00 a título de subsídio por morte, acrescida de juros legais desde a data da citação do R., e a quantia de € 1.750,00 a título de despesas com o funeral, acrescida de juros legais desde a data da citação do R..”

26. No âmbito da mesma sentença foi ainda determinada prestação de caução do pagamento da referida pensão.

27. A referida sentença transitou em julgado em 23 de fevereiro de 2021.

28. Através de escritura de habilitação de herdeiros celebrada no dia 30 de maio de 2022, no Cartório Notarial sito na Rua..., em ..., a autora AA, na qualidade de cabeça de casal na herança aberta por óbito do seu marido EE, declarou serem herdeiros daquele, além dela própria, os seus dois filhos, BB e CC.

29. A embarcação em causa é uma embarcação de pesca costeira.

Factos não provados

a) Após ter caído à água, EE começou de imediato a esbracejar e a pedir socorro.

b) Tentando manter-se à tona, durante alguns minutos;

c) Entre o momento em que caiu à água e até desaparecer, o EE passou por grande aflição e desespero, sofrendo imenso terror por sentir estar a afogar-se e pressentir a própria morte.

d) O trabalhador EE não sabia nadar;

e) Facto que era do conhecimento do réu DD.

f) O réu sabia que, em caso de queda à água, EE poderia morrer afogado, estando consciente dessa possibilidade, mas tendo-se conformado com ela”.

B. De Direito

1. O Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente o recurso de apelação interposto pelos Autores AA, BB e CC.

2. É desse acórdão que os Autores interpõem recurso de revista excecional, com as seguintes Conclusões para o efeito relevantes:

(…)

8 - O facto de o trabalhador sinistrado (marido e pai dos Autores) se encontrar a trabalhar no cais, e não numa embarcação, não afasta a obrigação da entidade empregadora assegurar as condições de segurança necessárias para o trabalhador exercer o seu trabalho.

9 - O facto de o trabalhador estar a realizar trabalho nocturno (às 21h, em Março), num cais com pouca iluminação e visibilidade, com redes e outros materiais de pesca espalhados pelo chão, com pavimento molhado e sem qualquer barreira de protecção, implica um risco acrescido de queda à água, que não podia ser ignorado e deveria ter sido acautelado pelo Réu empregador.

10 - Não sendo possível ao empregador mudar as características do cais nem o local dos trabalhos, a única forma de acautelar o risco de queda à água, bem com as consequências que da mesma podiam advir, era fornecer ao trabalhador um colete salva-vidas e exigir a utilização do mesmo.

11 - Ao não identificar correctamente os riscos de acidente existentes (em concreto, de queda à água) e ao não fornecer o equipamento de protecção adequado para acautelar esses riscos (colete salva-vidas), o Réu empregador violou ilicitamente a alínea g), do n.º 1 do artigo 127.º, e o artigo 281.º do Código do Trabalho, bem como o artigo 5.º e o artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro (na sua redação actual), praticando assim um facto ilícito que provou danos ao trabalhador e indirectamente aos aqui Autores, familiares daquele.

12 - A utilização de colete salva-vidas não impediria a queda à água verificada, mas seria apta a impedir o resultado verificado (o falecimento do trabalhador por afogamento), encontrando-se por isso demonstrado o nexo de causalidade entre a omissão do Réu empregador (a falta de fornecimento de colete salva-vidas) e o dano ocorrido (a morte do trabalhador).

13 - Numa queda com estas características e neste contexto, à noite, em Março, com água do mar bastante fria (como é do conhecimento comum), e encontrando-se a vítima totalmente vestida e calçada, o risco de afogamento é bastante elevado, quer a pessoa saiba ou não nadar.

14 - Assim, soubesse o trabalhador nadar ou não, deveria o Réu, em qualquer dos casos, ter identificado o risco existente e acautelado esse mesmo risco, fornecendo o colete salva-vidas e exigindo a utilização do mesmo.

15 - Ao não identificar o risco de acidente e ao não fornecer o equipamento de protecção adequado, o Réu empregador não teve a diligência de um “bónus pater familiae”, que se exigiria a uma entidade patronal minimamente diligente e atenta à segurança dos seus trabalhadores, tendo, dessa forma, agido pelo menos com mera culpa, nos termos do artigo 483.º, e do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil.

16 - Essa falta de diligência é agravada pela ausência de contratação de seguro de acidente de trabalho, tendo ainda o Réu empregador violado culposamente o artigo 79.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.

17 - Em face do exposto, o Réu encontra-se obrigado a reparar os danos provocados, nos termos do n.º 1 do artigo 483.º, do artigo 486.º e do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil.

18. - Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou os artigos referidos no número anterior.

3. Foi determinada a subida dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, onde a Relatora verificou os pressupostos gerais de recorribilidade e a existência de dupla conformidade decisória, tendo os autos sido remetidos à Formação de Apreciação Preliminar, nos termos do art. 672.º, n.º 3, do CPC, que admitiu a revista excecional.

4. Perante a admissão do recurso de revista excecional pela Formação de Apreciação Preliminar do Supremo Tribunal de Justiça, nada mais há a considerar nesta sede.

Questão de saber se o Réu, enquanto entidade empregadora de EE, (des)respeitou as regras de segurança do trabalho – arts. 127. n.º 1, al, g), e 281.º, do Código do Trabalho, arts. 5.º e 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro (na sua redação atual), art. 79.º da Lei 98/2009, de 4 de setembro, e arts. 483.º, 486.º, n.º 2, e 487.º, do CC

1. Impõe-se, pois, apurar se o acidente de trabalho de que foi vítima EE se ficou a dever a conduta ilícita e culposa do Réu DD, enquanto sua entidade empregadora, por violação das regras de segurança do trabalho.

2. De acordo com o art. 59.º, n.º 1, als. c) e f), da CRP, “Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: (…) c) A prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde; (…) f) A assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional”.

3. Por seu turno, o Código do Trabalho, em matéria de prevenção de acidentes de trabalho e doenças profissionais, como que se limita a estabelecer princípios gerais, remetendo para disciplina especial de prevenção e reparação, conforme os arts. 281.º a 284.º do mesmo corpo de normas. Destaca-se, nesta sede, o preceito do art. 281.º (“Princípios gerais em matéria de segurança e saúde no trabalho”), segundo o qual:

“1 - O trabalhador tem direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde.

2 - O empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção.

3 - Na aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve mobilizar os meios necessários, nomeadamente nos domínios da prevenção técnica, da formação, informação e consulta dos trabalhadores e de serviços adequados, internos ou externos à empresa.

4 - Os empregadores que desenvolvam simultaneamente actividades no mesmo local de trabalho devem cooperar na protecção da segurança e da saúde dos respectivos trabalhadores, tendo em conta a natureza das actividades de cada um.

5 - A lei regula os modos de organização e funcionamento dos serviços de segurança e saúde no trabalho, que o empregador deve assegurar.

6 - São proibidos ou condicionados os trabalhos que sejam considerados, por regulamentação em legislação especial, susceptíveis de implicar riscos para o património genético do trabalhador ou dos seus descendentes.

7 - Os trabalhadores devem cumprir as prescrições de segurança e saúde no trabalho estabelecidas na lei ou em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, ou determinadas pelo empregador”.

4. A regulamentação da prevenção e reparação dos acidentes de trabalho encontra-se consagrada, desde logo, na Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro – i.e., no denominado Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho -, a qual, além de se consubstanciar na concretização das referidas normas do Código do Trabalho, resultou da transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 89/391/CEE, do Conselho, de 12 de junho, alterada pelo Regulamento (CE) n.º 1882/2003, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de setembro, pela Diretiva n.º 2007/30/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho, e pelo Regulamento (CE) n.º 1137/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro, respeitante à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança na trabalho e da saúde dos trabalhadores. Decorre ainda do seu art. 2.º, n.º 2, que este diploma legal transpôs para a ordem jurídica interna outras diretivas – nele devidamente mencionadas -, uma vez que se trata de matéria dotada de enorme dispersão legislativa europeia e nacional.

5. Conforme o art. 5.º, n.º 1, da Lei n.º 102/2009, “O trabalhador tem direito à prestação de trabalho em condições que respeitem a sua segurança e a sua saúde, asseguradas pelo empregador ou, nas situações identificadas na lei, pela pessoa, individual ou coletiva, que detenha a gestão das instalações em que a atividade é desenvolvida”.

6. Por seu turno, o art. 15.º do mesmo diploma legal estabelece as obrigações gerais da entidade empregadora no âmbito da segurança no trabalho:

“1 - O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho.

2 - O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:

a) Evitar os riscos;

b) Planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos fatores ambientais;

c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;

d) Integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador no conjunto das atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adotar as medidas adequadas de proteção;

e) Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção;

f) Assegurar, nos locais de trabalho, que as exposições aos agentes químicos, físicos e biológicos e aos fatores de risco psicossociais não constituem risco para a segurança e saúde do trabalhador;

g) Adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à conceção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista a, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais;

h) Adaptação ao estado de evolução da técnica, bem como a novas formas de organização do trabalho;

i) Substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso;

j) Priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual;

l) Elaboração e divulgação de instruções compreensíveis e adequadas à atividade desenvolvida pelo trabalhador.

3 - Sem prejuízo das demais obrigações do empregador, as medidas de prevenção implementadas devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador.

4 - Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.

5 - Sempre que seja necessário aceder a zonas de risco elevado, o empregador deve permitir o acesso apenas ao trabalhador com aptidão e formação adequadas, pelo tempo mínimo necessário.

6 - O empregador deve adotar medidas e dar instruções que permitam ao trabalhador, em caso de perigo grave e iminente que não possa ser tecnicamente evitado, cessar a sua atividade ou afastar-se imediatamente do local de trabalho, sem que possa retomar a atividade enquanto persistir esse perigo, salvo em casos excecionais e desde que assegurada a proteção adequada.

7 - O empregador deve ter em conta, na organização dos meios de prevenção, não só o trabalhador como também terceiros suscetíveis de serem abrangidos pelos riscos da realização dos trabalhos, quer nas instalações quer no exterior.

8 - O empregador deve assegurar a vigilância da saúde do trabalhador em função dos riscos a que estiver potencialmente exposto no local de trabalho.

9 - O empregador deve estabelecer em matéria de primeiros socorros, de combate a incêndios e de evacuação as medidas que devem ser adotadas e a identificação dos trabalhadores responsáveis pela sua aplicação, bem como assegurar os contactos necessários com as entidades externas competentes para realizar aquelas operações e as de emergência médica.

10 - Na aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve organizar os serviços adequados, internos ou externos à empresa, estabelecimento ou serviço, mobilizando os meios necessários, nomeadamente nos domínios das atividades técnicas de prevenção, da formação e da informação, bem como o equipamento de proteção que se torne necessário utilizar.

11 - As prescrições legais ou convencionais de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas para serem aplicadas na empresa, estabelecimento ou serviço devem ser observadas pelo próprio empregador.

12 - O empregador suporta a totalidade dos encargos com a organização e o funcionamento do serviço de segurança e de saúde no trabalho e demais sistemas de prevenção, incluindo exames de vigilância da saúde, avaliações de exposições, testes e todas as ações necessárias no âmbito da promoção da segurança e saúde no trabalho, sem impor aos trabalhadores quaisquer encargos financeiros.

13 - Para efeitos do disposto no presente artigo, e salvaguardando as devidas adaptações, o trabalhador independente é equiparado a empregador.

14 - Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos n.os 1 a 12.

15 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o empregador cuja conduta tiver contribuído para originar uma situação de perigo incorre em responsabilidade civil.”

7. Pode afirmar-se que deriva do preceito contido no art. 5.º da Lei n.º 102/2009 que “(…) o empregador deve identificar os riscos previsíveis, quer na concepção dos locais e dos processos de trabalho, combatendo-os na origem, anulando-os, ou limitando os seus efeitos, quer enquanto durar a prestação de trabalho, de forma a garantir um nível eficaz de protecção.1.

8. No entendimento dos Autores/Recorrentes, AA, BB e CC,Ao não identificar correctamente os riscos de acidente existentes (em concreto, de queda à água) e ao não fornecer o equipamento de protecção adequado para acautelar esses riscos (colete salva-vidas), o Réu empregador violou ilicitamente a alínea g), do n.º 1 do artigo 127.º, e o artigo 281.º do Código do Trabalho, bem como o artigo 5.º e o artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro (na sua redação actual), praticando assim um facto ilícito que provou danos ao trabalhador e indirectamente aos aqui Autores, familiares daquele”. Por conseguinte, de acordo com os mesmos, recai sobre o Réu DD a obrigação de indemnizar os familiares da vítima nos termos dos arts. 483.º, n.º 1, 486.º e 487.º, n.º 2, do CC.

9. Em conformidade com a factualidade dada como provada, designadamente com os factos provados sob os n.os 24 a 27, o falecido EE sofreu um acidente de trabalho, nos termos do art. 8.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, segundo o qual:

1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:

a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;

b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.

c) No caso de teletrabalho ou trabalho à distância, considera-se local de trabalho aquele que conste do acordo de teletrabalho.”

10. Entende-se por acidente de trabalho qualquer “evento imprevisto e indesejável, (…) um acontecimento súbito, de verificação inesperada e de origem externa, que provoca direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador, encontrando-se este no local e no tempo de trabalho ou nas situações em que é consagrada a extensão do conceito de acidente de trabalho.” 2.

11. Da harmonização prática dos arts. 8.º e 7.º da Lei n.º 98/2009 decorre a natureza objetiva da responsabilidade civil da entidade empregadora pelos danos causados por acidente de trabalho.

12. Essa responsabilidade é suscetível de sofrer agravamento no caso de atuação culposa da entidade empregadora, nos termos do art. 18.º da Lei n.º 98/2009.

13. Para que o Réu seja responsável pelo acidente com base em conduta culposa sua, além da prova da inobservância das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho, os Autores devem também demonstrar a existência de nexo de causalidade entre a conduta da entidade empregadora e o acidente.

14. De acordo com os arts. 483.º e 486.º do CC, e com o art. 18.º da Lei n.º 98/2009, a responsabilidade civil do Réu pela morte de EE, por violação ou omissão das regras de segurança no trabalho, pressupõe:

i. que a entidade empregadora haja culposamente incumprido o dever legal que sobre si impendia de garantir a segurança do de cujus, de acordo com as respetivas regras jurídicas; e

ii. que dessa violação – por ação ou omissão – por parte da entidade empregadora tenha resultado o acidente sofrido pelo trabalhador, em termos de causalidade adequada, conforme o art. 563.º do CC.

15. Recorde-se que no âmbito da responsabilidade agravada da entidade empregadora, “para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador, ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18º, nº1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação.” 3.

16. Efetivamente, “A interpretação dos preceitos enunciados revela, na arquitectura das responsabilidades fixadas e de acordo com os valores estabelecidos no diploma legal, a consagração de uma responsabilidade objectiva regra, do empregador (art. 7 da LAT), - sem embargo do recurso à responsabilidade subjectiva para todas as matérias não especialmente reguladas - e, por outro lado, o não afastamento da responsabilidade delitual, implicando a culpa, quando se encontrem preenchidos os requisitos do art. 18.º do LAT, permitindo uma reparação agravada. Atribui-se neste último caso ao trabalhador o ónus de provar que o acidente ocorreu por culpa do empregador ou seu representante, ou por o mesmo não ter culposamente cumprido as normas sobre segurança e saúde no trabalho, bem como a verificação de um nexo causal entre o acto ilícito culposo ou a violação das regras de segurança por parte empregador, seu representante, entidade contratada, ou empresa utilizadora de mão-de-obra, e a ocorrência do acidente – cfr. Maria Adelaide Domingos, Viriato Reis e Diogo Navarra (Acidentes de Trabalho e doenças profissionais. Introdução., in Colecção Formação Inicial, Centro de Estudos Judiciários, Julho 2013, p.21 e seg.” 4.

17. Importa, pois, determinar se o acidente que vitimou o marido e pai dos Autores foi causado por uma qualquer violação culposa – por ação ou omissão - das regras de segurança e saúde no trabalho, por parte da entidade empregadora, i.e., ponderar a existência de nexo causal entre a violação – por ação ou omissão – das regras de segurança no trabalho e o acidente concretamente verificado5.

18. De resto, o ónus de alegação e prova da existência do nexo de causalidade cabe aos titulares do direito à reparação, nos termos do art. 342.º do CC6.

19. A propósito da inobservância das regras de segurança e higiene no trabalho em casos de culpa da entidade empregadora, é necessário demonstrar que o acidente ficou a dever-se à inobservância de determinada regra de segurança, assim como “(…) a certificação de que foi essa omissão a causa adequada do acidente reclama, como antes de afirmou, a demonstração de que o acidente decorreu naturalisticamente da acção ilícita da empregadora, sem a qual aquele acidente não teria ocorrido; a violação daquelas regras de segurança tornavam previsível a eclosão do acidente (juízo abstrato de adequação), nas concretas circunstâncias em que o mesmo ocorreu e com as consequências dele decorrentes (juízo concreto de adequação); o acidente representa a concretização objetivamente previsível de um dos perigos típicos que a ação da empregadora era susceptível de criar e que, justamente, justificaram a criação das regras de segurança violadas; a verificação do acidente não ficou a dever-se a circunstâncias contemporâneas da acção alheias ao modelo de perigo, não conhecidas do agente e para ele imprevisíveis, não tendo a realização do modelo de perigo sido precipitada por circunstâncias que o não integram. – ac. RC de 7-4-2017 no proc. 424/13.3TTLRA.C1, in dgsi.pt.7.

20. De acordo com a factualidade provada, o falecido EE, no tempo e local de trabalho, aproximadamente pelas 21 horas, quando se encontrava no cais de ..., em ..., no desempenho de tarefas respeitantes ao embarque, caiu à ria, em virtude da verificação de circunstâncias que não foi possível apurar. Nessa ocasião, EE não envergava colete salva-vidas.

21. Segundo o Despacho da Capitania do Porto de ..., de 11 de março de 2019, o colete salva-vidas deveria ser envergado sempre que os tripulantes se encontrassem em embarcações de pesca local – factos provados sob os n.os 5, 6, 8 e 9.

22. Não existe norma jurídica que imponha o uso de colete salva-vidas por tripulantes de embarcações de pesca que não estejam embarcados, ou seja, quando estes se encontrem tão somente na realização de operações relativas ao embarque.

23. Na verdade, tal como referido na decisão recorrida, de acordo com o direito vigente, apenas é obrigatório o uso de colete salva-vidas a bordo de embarcações de pesca local, nos termos da Portaria n.º 64/20118, de 3 de fevereiro, e do art. 70.º, n.º 4, do Regulamento dos Meios de Salvação, anexo ao DL n.º 191/989, de 10 de julho, alterado pelo DL n.º 9/2011, de 18 de janeiro. Este diploma legal introduziu no ordenamento jurídico pátrio a obrigação do uso de colete salva-vidas a bordo de embarcações de pesca local. Tem-se em vista o reforço da segurança dos tripulantes que se encontrem a bordo.

24. Com efeito, conforme o corpo da Portaria n.º 64/2011,

O Decreto-Lei n.º 9/2011, de 18 de Janeiro, que altera o Decreto-Lei n.º 191/98, de 10 de Julho, e o anexo que aprovou o Regulamento dos Meios de Salvação Nacionais, introduziu uma norma que prevê a obrigação de os tripulantes das embarcações da pesca local envergarem os respectivos coletes de salvação, quando em operação.

Trata-se de uma norma que visa um reforço da segurança a bordo e que surge na sequência dos acidentes mortais que se têm verificado, bem como da necessidade de criar e desenvolver uma cultura de prevenção e segurança entre estes trabalhadores, capaz de fazer diminuir a ocorrência de acidentes.”

25. Por sua vez, segundo o art. 2.º da Portaria n.º 64/2011,

Para efeitos do disposto nos n.os 4 e 5 do artigo 70.º do Regulamento dos Meios de Salvação, considera-se que a embarcação se encontra em operação sempre que não esteja encalhada, amarrada ou fundeada em áreas convencionalmente utilizadas para o embarque e desembarque das tripulações.”

26. Nos termos do art. 1.º, n.º 1, al. e), do DL n.º 9/2011,

e) Embarcação ou navio - o engenho aquático utilizado ou susceptível de ser utilizado na água como meio de transporte e com outra finalidade, aqui se incluindo, nomeadamente, as plataformas flutuantes e os pontões”.

27. Segundo o art. 70.º do DL n.º 9/2011,

(…)

2 - A primeira das bóias, referidas no número anterior, é dispensada em embarcações de pesca de boca aberta que não efectuem navegação nocturna.

3 - As embarcações de pesca local devem possuir coletes de salvação para 100 % das pessoas embarcadas.

4 - As pessoas embarcadas nas embarcações da pesca local, quando em operação, devem envergar os respectivos coletes de salvação.

(…)

28. Interpretar consiste em retirar do texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento10. O escopo final de todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei; interpretar em matéria de leis quer dizer, não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, de entre as várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva11. O elemento gramatical (letra da lei) e o elemento lógico (espírito da lei) têm sempre que ser utilizados conjuntamente12.

29. O texto constitui o ponto de partida da interpretação (art. 9.º, n.º 1, e n.º 2, do CC). Como tal, cabe-lhe uma função negativa, que se traduz em eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer ressonância nas palavras da lei. De resto, presume-se que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento (art. 9.º, n.º 3, do CC).

30. O elemento racional ou teleológico da interpretação da lei (art. 9.º, n.º 1, do CC) consiste na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste objetivo constitui um auxílio da maior relevância para determinar o sentido com que a norma deve valer. O esclarecimento da ratio legis revela a "valoração" ou ponderação dos diversos interesses em jogo que a norma regula e, por conseguinte, o peso relativo dos mesmos interesses, a preferência de um deles em detrimento do outro traduzida na solução consagrada na norma. Acresce que a descoberta daquela "racionalidade" inspiradora do legislador na fixação de determinado regime jurídico permite ao intérprete apoderar-se de um ponto de referência que simultaneamente o habilita a definir o exato alcance da norma e a discriminar outras situações típicas com o mesmo ou com diferente recorte13. No caso em apreço, pode dizer-se que o legislador intencionou reforçar a segurança a bordo em virtude da verificação de acidentes mortais e da necessidade de desenvolver uma cultura de prevenção e segurança entre estes trabalhadores.

31. Do recurso aos diversos cânones hermenêuticos na interpretação dos mencionados diplomas legais resulta a inexistência de qualquer obrigação legal da entidade empregadora do falecido EE de lhe fornecer um colete salva-vidas para ser utilizado em operações de terra com vista ao embarque, independentemente da natureza da embarcação em causa – de pesca costeira ou local. A obrigação de envergar o colete salva-vidas apenas impende sobre os tripulantes de embarcações de pesca local que já se encontrem a bordo.

32. De um lado, o falecido EE não se encontrava a bordo de qualquer embarcação, porquanto desempenhava então tarefas preparatórias do embarque, quando, por motivos desconhecidos, caiu à ria; de outro lado, estava em causa uma embarcação de pesca costeira e não de pesca local.

33. Efetivamente, decorre igualmente dos autos, conforme refere o acórdão recorrido, que a embarcação em apreço não era de pesca local, mas antes de pesca costeira, pelo que a obrigação de envergar o colete no interior da embarcação também não existia, justamente por não se tratar de embarcação de pesca local.

34. Quanto ao mais, os Autores/Recorrentes também não lograram provar que o falecido EE não sabia nadar e que tal facto seria do conhecimento do Réu, sua entidade empregadora. Por conseguinte, não se verifica a violação culposa, por ação ou omissão, de qualquer norma respeitante à segurança e higiene no trabalho aplicável ao caso sub judice.

35. Por conseguinte, não pode dizer-se que o não fornecimento e não uso de colete salva-vidas foi causa adequada do acidente sofrido pela marido e pai dos Autores, porquanto não se verifica o requisito da responsabilidade civil que se traduz na conduta ilícita e culposa da entidade empregadora. É que não se demonstrou que o acidente haja decorrido de qualquer conduta ilícita e culposa da entidade empregadora. Não ocorreu o incumprimento de regras de segurança, suscetível de tornar previsível a eclosão do acidente (juízo abstrato de adequação), nas circunstâncias concretas em que este teve lugar e com as consequências dele derivadas (juízo concreto de adequação). O acidente em causa não representa a concretização objetivamente previsível de um dos perigos típicos que as regras de segurança legalmente previstas visam prevenir. O legislador não consagrou as regras de segurança que os Autores/Recorrentes pretendem existir. A verificação do acidente ficou a dever-se a circunstâncias estranhas ou alheias ao modelo de perigo em apreço, não conhecidas da entidade empregadora e para ela de algum modo imprevisíveis. Não se realizou, pois, o modelo de perigo subjacente ao regime legal de proteção da segurança no trabalho.

36. Não resultam outrossim provados - nem tão pouco foram alegados em sede de petição inicial - os factos que os Autores/Recorrentes invocam agora no seu recurso de revista excecional e que dizem respeito às circunstâncias ou ao meio envolvente em que o acidente se verificou – “cais com pouca iluminação e visibilidade, com redes e outros materiais de pesca espalhados pelo chão, com pavimento molhado e sem qualquer barreira de protecção, implica um risco acrescido de queda à água”.

37. Deste modo, não ficou provada qualquer violação, pelo Réu, dos preceitos contidos nos arts. 127.º, n.º 1, al, g), e 281.º, do Código do Trabalho, arts. 5.º e 15.º, da Lei n.º 102/2009.

38. Ainda que a pretensão dos Autores/Recorrentes fosse eventualmente suscetível de ser acolhida de iure constituendo, não o é, todavia, de iure constituto.

39. Não impende, assim, sobre o Réu, a obrigação de indemnizar os Autores/Recorrentes ao abrigo dos arts. 483.º e ss. do CC.

IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista excecional interposto pelos Autores AA, BB e CC, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Autores, sem prejuízo do apoio judiciário de que possam beneficiar.

Notifique-se.

13.05.2025

Maria João Vaz Tomé (Relatora)

Jorge Leal

António Magalhães

_____________________________________________




1. Cf. Diogo Vaz Mareco, Lei 102/2009 Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho Anotado, Forte da Casa, Petrony Editora, 2016, anotação ao art. 15.º, pp. 51 e ss..↩︎

2. Cf. Jerónimo Freitas, “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, A obrigação de segurança no trabalho”, in Prontuário de Direito do Trabalho, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 1.º Semestre de 2020, Número I, p. 392.↩︎

3. Cf. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2024 (Júlio Gomes), de 17 de abril de 2024, Proc. n.º 179/19.8T8GRD.C1.S1-A – disponível para consulta in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/205c45b828a5492080258b04003c11a1?OpenDocument.↩︎

4. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de maio de 2021 (Manuel Capelo), Proc. n.º 756/20.4T8GMR.G1.S1 – disponível para consulta in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/12cc98f1fe69fea8802586d80056c10a?OpenDocument.↩︎

5. Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2018 (Ferreira Pinto), Proc. n.º 750/15.7T8MTS.P1.S1 – disponível para consulta in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6a3debc72dc7e0e480258244003aee8c?OpenDocument; de 6 de maio de 2015 (António Leones Dantas), Proc. n.º 220/11.2TTTVD.L1.S1 – disponível para consulta in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f945ee6eb2d8540c80257e3e0045f708?OpenDocument; e de 14 de janeiro de 2015 (António Leones Dantas), Proc. n.º 644/09.5T2SNS.E1.S1 – disponível para consulta in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7b1db9fcfaa8c45080257dce00380dae?OpenDocument.↩︎

6. Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de maio de 2021 (Manuel Capelo), Proc. n.º 756/20.4T8GMR.G1.S1; e de 29 de outubro de 2013, Proc. n.º 402/07.1TTCLD.L1.S1 - disponível para consulta in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/761799A01749858E80257C14004ED7B4.↩︎

7. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de maio de 2021 (Manuel Capelo), Proc. n.º 756/20.4T8GMR.G1.S1.↩︎

8. Disponível para consulta in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/portaria/64-2011-280492.↩︎

9. Disponível para consulta in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/191-1998-485046.↩︎

10. Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1994, p.175.↩︎

11. Cf. Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, Arménio Amado - Editor, Sucessor, Coimbra, 1978, pp.21-26; João de Matos Antunes Varela/Fernando Andrade Pires de Lima, Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1957, p.130.↩︎

12. Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1994, pp.181-182.↩︎

13. Cf. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1994, p.183.↩︎