RECURSO DE REVISÃO
PROVA TESTEMUNHAL
DEPOIMENTO
DOCUMENTO ESCRITO
REJEIÇÃO
Sumário


I- No Processo Penal Português, não é permitido às testemunhas deporem por escrito, isso decorrendo directamente dos princípios, regentes em Audiência, da oralidade, da imediação e do contraditório — veja-se os art.ºs 128, 129, 355 e 96, do CPP;
II- O princípio da continuidade da defesa implica que o Tribunal tem de assegurar essa continuidade e permanência, e disso constitui afloramento, por exemplo, o art.º 66, n.º 4 do CPP.
III- A mudança de defensor, e a proposição de que essa defesa é melhor do que a anterior, nunca poderia servir de fundamento legal para se proceder uma revisão de decisão condenatória transitada em julgado.

Texto Integral

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

O arguido/condenado AA, invocando os art.ºs 449, n.º 1 al.ª d), 450, n.º 1, al.ª c), 451, do CPP, interpôs Recurso Extraordinário de Revisão do Acórdão proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – ... – JC Criminal – Juiz ..., transitado em julgado em 30/09/2024, que tem o seguinte dispositivo:

“1. Absolver o arguido AA da prática em momento anterior a 13 de setembro de 2022 de um crime abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável contra a filha BB.

2. Condenar o arguido AA, pela prática em autoria material e na forma consumada contra a sua filha CC por pelo menos duas vezes em datas não apurada dos meses de agosto e setembro de 2022, 2 (dois) crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previsto e punido pelos artigos 171º n.º 1, 172.º n.º 1 a), com a agravação prevista no artigo 177.º n.º1 a), todos do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão por cada um dos crimes.

3. Condenar o arguido AA, pela prática em autoria material e na forma consumada contra a sua filha BB:

a) Em data não apurada do mês de setembro de 2022, posterior ao dia 13, 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previsto e punido pelos artigos 171º n.º 1, 172.º n.º 1 a), com a agravação prevista no artigo 177.º n.º1 a), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão;

b) No dia 18 de setembro de 2022, 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previsto e punido pelos artigos 171º n.º 1, 172.º n.º 1 a), com a agravação prevista no artigo 177.º n.º1 a), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;

c) No dia 19 de setembro de 2022, 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previsto e punido pelos artigos 171º n.º 2, 172.º n.º 1 a), com a agravação prevista no artigo 177.º n.º 1 a), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

4. Proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares e condenar o arguido AA na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

5. Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, cuja taxa de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 8.º n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais, com referência à tabela III anexa e 513.º do Código de Processo Penal, –– se fixa em 2 UC”.

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O requerimento de recurso contém as seguintes conclusões:

“a) A imutabilidade do trânsito em julgado da decisão penal tem albergue com fundamento no princípio da segurança jurídica, visto que não haveria estabilidade social, nem tampouco, jurídica, se a relação consolidada no cerne do processo penal pudesse acriticamente ser reavaliada;

b) Todavia, a segurança jurídica, alicerçada no caso julgado não detém natureza absoluta, pelo que, mediante determinadas circunstâncias, a decisão pode ser revista:

c) Tais condições impõe a reavaliação do processo, na medida em que a manutenção do caso julgado, ocasiona prejuízos processuais e violação de direitos constitucionais, havendo a necessidade de sacrificar a sua intangibilidade, em homenagem ao princípio da justiça e busca da verdade material;

d) O instrumento processual penal disposto para o efeito de reanalisar a decisão transitada em julgado, é o recurso de revisão, previsto no seu artigo 449º;

e) In casu, o presente recurso de revisão é admissível, posto que estão preenchidos os pressupostos do n.º 1, al. d) do artigo 499º do CPP, posto que, de acordo com a declaração (doc.02) é apresentada de maneira superveniente e, sobretudo, apresenta informações que põe em causa a justiça da decisão, nomeadamente, a inocência do Recorrente acerca de parte dos factos em que foi condenado;

f) Sucede que a doutrina e a jurisprudência são pacíficas no sentido de assegurar que o meio de prova novo não necessita ser categóricos, em prol de provar a inocência, sendo suficiente a mera demonstração de que através do seu conteúdo, a decisão confrontada está em desconformidade com a justiça;

g) Portanto, a presente recurso satisfaz todos os seus pressupostos de admissibilidade, devendo ser admitido e procedente, sobretudo, pelo facto de possuir uma prova que ilustra a provável fiabilidade da decisão, enclausurando o Recorrente, injustamente;

h) Na distante hipótese deste recurso não ser admitido com alicerce no facto de a testemunha DD ter sido prescindida na fase de julgamento – na época o Recorrente estava a ser representado pela Dra. EE, deve ser ponderado o facto de que, nesta altura, a presente defesa não estava habilitada nos autos, não sendo esse lapso processual da sua parte e, por derradeiro, não devendo ser penalizada no sentido de ser admitido o recurso e, sobretudo, a dispensa da aludida testemunha, representa uma mera formalidade processual, ao passo que a rejeição do recurso, diante de uma prova nova, é uma afronta aos direitos fundamentais do Recorrente e, por conseguinte, transgressão ao Estado Democrático de Direito, onde questões burocráticas prevalecem sobre a dignidade humana e a verdade material;

i) TODAVIA, por reforço argumentativo mesmo sendo evidente a admissibilidade do presente recurso, por princípio, caso haja o entendimento que pugna pela sua inadmissibilidade, requer-se, desde já, nos termos dos artigos 204º, 282, n.º3, ambos da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade material do artigo 449º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de não admitir o recurso de revisão, quando a testemunha foi prescindida, por defesa anterior, mas, posteriormente, a testemunha prescindida apresentou declaração superveniente reconhecida em Cartório Notarial, sendo que o conhecimento de tais circunstâncias, apenas foram conhecidas pelos novos mandatários, posteriormente, em homenagem aos princípios da dignidade da pessoa humana, plasmada no n.º 1, direito ao recurso e ao contraditório, nos moldes do artigo 32º, n.º 1, e o princípio da presunção de inocência, consagrada no artigo 32º, n.º 2, bem como, o direito à defesa técnica, contida no n.º 3 do artigo 32º, todos da CRP;

j) Como tal, consoante o que reiteradamente invocamos, o Recorrente não pode ser prejudicado com o cerceamento do seu recurso e, em consequência, da sua dignidade humana, contraditório, presunção de inocência e o direito de escolher o seu defensor, em função de um lapso da mandatária anterior, ao prescindir da testemunha, contudo, esta apresentar uma declaração superveniente a elencar factos que inocentam o Recorrente, sendo que, isto tudo apenas foi conhecido pela nova defesa, aquando da sua intervenção ao final do processo;

k) O Recorrente foi acusado pela prática de crimes de abuso sexual contra suas duas filhas, BB e CC. No entanto, importa-nos apreciar apenas a condenação relativamente à sua filha CC, visto que em relação à BB, o mesmo confessou os factos;

l) Portanto, em relação à sua filha CC, o Recorrente foi acusado (doc.03) pelo seguinte: Dois crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, na forma consumada, p. e p. pelos Artsº. 171º, nº. 1, 172º, nº.1, a) e 177º, nº.1, a) - todos do Código Penal, ambos na pessoa de CC”;

m) Posteriormente, o Recorrente foi condenado – injustamente -, conforme o Acórdão (doc.01), relativamente à sua filha CC, pelo seguinte: “2. Condenar o arguido AA, pela prática em autoria material e na forma consumada contra a sua filha CC por pelo menos duas vezes em datas não apurada dos meses de agosto e setembro de 2022, 2 (dois) crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previsto e punido pelos artigos 171º n.º 1, 172.º n.º 1 a), com a agravação prevista no artigo 177.º n.º1 a), todos do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão por cada um dos crimes;

n) Contudo, relativamente à sua filha CC, o Recorrente não praticou precisamente nenhum facto criminoso contra a mesma, sendo injustamente condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual, recebendo, por conseguinte, uma pena de prisão, o que não deve prosperar;

o) O que eventualmente pode ter ocorrido é a Sra. CC, dada a sua tenra idade – facilitando uma eventual manipulação - na altura dos factos, sido induzida pelos familiares a declarar em juízo factos inexistentes, com o fito de prejudicar o seu pai ou, até mesmo, por vingança relativamente à sua irmã – BB, conduzindo o Poder Judiciário a tomar uma decisão equivocada;

p) Os concretos motivos, evidentemente, se desconhecem, todavia, o que é cristalino é que as declarações prestadas pela Sra. CC, estão desprovidas de verossimilhança e, apesar disto, fatalmente, foram valoradas no sentido de condenar o Recorrente, sendo condenado por dois crimes de abuso sexualmente injustamente, recebendo, por derradeiro, a funesta pena de prisão efetiva;

q) tanto é que o processo iniciou-se como auto de notícia (doc.04), perante a GNR, onde, no dia 20.09.2022, BB, apresenta queixa contra o Recorrente. Logo, quem deu início ao processo, foi a referida vítima. A primeira intervenção de CC no processo, dá-se no dia 24.09.2022, através do auto de declarações (doc.05), diante da Polícia Judiciária. Portanto, CC, não realizou a competente queixa para deflagrar as investigações, pelo que, apenas foi ouvida, em decorrência da queixa realizada pela sua irmã, BB, mantando-se inerte até então, não havendo nenhuma queixa formal em virtude de alguma prática inadequada por parte do Recorrente;

r) Essas circunstâncias levantadas pela defesa são desencadeadas pela declaração (doc.02), devidamente reconhecida em Cartório Notarial, no dia 11 de Setembro de 2024 – configurando-se meio de prova superveniente -, exarada pela Sra. DD, cujo conteúdo, em síntese, afirma que a ex-mulher do Recorrente na companhia das suas duas filhas, BB e CC, foram até a cada da declarante. Na oportunidade, a declarante perguntou o que tinha ocorrido às meninas, pelo que BB, respondeu que os factos ocorreram em conformidade com o que o Recorrente havia relatado. Todavia, CC, por sua vez, havia dito perante a sua mãe, irmã e a declarante que o seu pai não lhe tinha feito absolutamente nada;

s) É evidente que o referido meio de prova afigura como um elemento superveniente que dá ensejo ao presente pedido de revisão, na medida em que, se trata de uma declaração de compromisso de honra – como tal, se o seu teor não fosse credível, certamente, a Sra. DD, não iria arriscar-se em assinar um documento contendo inverdades e sujeita às penas legais, sobretudo, pelo facto de a declarante não ter absolutamente nenhum benefício ou vantagem com a declaração, a não ser o senso de justiça e humanidade que lhe inspiraram a relatar tais factos -, cujo teor exime o Recorrente de parte da culpa dos ilícitos criminais em que foi condenado;

t) O referido meio de prova nova, põe em causa a justiça da decisão, posto que, se as declarações da Sra. DD forem confirmadas, através da realização das diligências pertinentes,

certamente, a justiça da condenação estará em causa, considerando que se comprovado que o Recorrente não praticou os dois crimes de abuso sexual contra a sua filha CC, a pena decretada deverá ser vertiginosamente reduzida, tendo, inclusivamente, a possibilidade de auferir do benefício da suspensão da execução da pena de prisão;

u) Essas circunstâncias, levantam uma série de questões, dentre elas a primordial: se CC já havia sido vítima de abuso por parte do Recorrente, por qual razão a mesma não prestou queixa? Se, de facto, estava transtornada com as “cócegas” promovidas pelo Recorrente, por que não buscou as autoridades antes? Mas, pelo contrário, apenas narrou eventos criminosos perpetrados pelo seu progenitor contra si, após a sua irmã ter realizado queixa;

v) Estamos convictos que CC jamais foi vítima de abuso por parte do Recorrente, contudo, o que estimulou o conteúdo das suas declarações, foi com o único escopo de agravar a situação daquele, como mecanismo de vingança pelo que ocorreu com a sua irmã, BB;

w) Por conta da sua tenra idade – 14 anos - na altura dos factos e, por sua vez, falta de experiência e facilidade de manipulação, CC pode ter sido induzida por seus familiares e/ou pessoas próximas a prestar declarações falaciosas contra o Recorrente, ocasionando a restrição da liberdade deste, representando o triunfo da mentira sobre a verdade material;

x) Esta possibilidade – e cremos que seja a verdade real – de adulteração do depoimento de CC é coadunada pela declaração (doc.02), onde a Sra. DD, teve o zelo de deslocar-se perante o Cartório Notarial e reconhecer as suas declarações que são categóricas no sentido de afirmar que CC, afirmou perante si, sua mãe e a sua irmã, que o Recorrente não lhe fez absolutamente nada;

y) A credibilidade de uma declaração/testemunha é medida de acordo com o seu interesse na causa, sua relação com os intervenientes e/ou benefícios que pode angariar por força de um depoimento/declarações adulteradas. Todavia, relativamente à Sra. DD, a mesma não tem interesse na causa, nem tampouco, receberá algum benefício – ainda que somente moral -, por ter prestado, eventualmente, declarações fraudulentas e, ainda, sob o compromisso legal de reconhecer a sua assinatura, podendo sofrer consequências, no caso de incumprir com a verdade. Nessa ordem de ideias é inconcebível que a Sra. DD, iria ter o trabalho de se deslocar ao Notário e se obrigar legalmente com o reconhecimento da sua assinatura, se as suas declarações não fossem credíveis, bem como, o seu compromisso não fosse com a verdade e a justiça, diante da indevida restrição da liberdade do Recorrente, que foi embasada em falácias;

z) Por esses motivos as declarações prestadas pela Sra. DD são consistentes e representam a verdade, configurando, de acordo com o que reiteradamente arguimos anteriormente, meio de prova nova, com o viés de atribuir admissibilidade ao presente recurso e, posteriormente, modificar o acórdão já transitado em julgado;

aa) a prova nova que põe em causa a credibilidade do acórdão, podendo, este – e cremos que seja -, tratar de um erro judiciário que foi decretado com fundamento num depoimento forjado de CC, caso, após a realização das diligências necessárias, seja efetivamente reconhecido que o Recorrente não praticou crime nenhum contra CC, isto inevitavelmente impactará no quantum da sua pena;

bb)De acordo denota-se no acórdão (doc.01), relativamente à CC, o Recorrente foi condenado por dois crimes de abuso sexual, caso tais crimes sejam absolvidos, na dosimetria da pena, o mesmo poderá ter uma redução que não ultrapasse os 05 (cinco) anos de prisão, podendo dar ensejo à suspensão da execução da pena de prisão, positivada no artigo 50º do Código Penal;

cc)Não temos o intento de nesta fase discutir a dosimetria da pena, contudo, mencionamos a questão da possibilidade da execução da pena de prisão, porque uma vez sendo inverídico o depoimento de CC, o Recorrente poderá ter acesso ao benefício, sobretudo pelo facto de que não averba outra condenação a não ser do presente processo, conforme o boletim (doc.09), além de não ser uma pessoa essencialmente hostil de acordo com os relatórios sociais acostados no processo principal, tendo a sua liberdade restrita injustamente;

dd)Inclusivamente, o próprio artigo 457º, n.º 217 do CPP, permite, no caso de dúvida sobre a condenação, suspender a execução da pena de prisão, o que se aproveita o momento para se requerer, posto que, diante dos argumentos pormenorizadamente explorados, é manifesto que em decorrência da declaração (doc.02) o acórdão comete, mesmo que inconscientemente, um erro judiciário e flagrante injustiça ao condenar o Recorrente, pelos crimes hipoteticamente praticados contra CC, requerendo-se a sua suspensão da execução da sua pena, enquanto o recurso é julgado;

ee) Portanto, diante do elemento probatório superveniente, há a imperiosa necessidade de produção de diligência e um novo julgamento, a fim de atestar, com supedâneo na declaração (doc.02) e nos meios de prova que dela podem se obter, que irrefutavelmente, o Recorrente não praticou os dois crimes de abuso sexual contra CC, o qual fora condenado”.

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Em 1ª Instância foi elaborada informação no sentido da negação da Revisão, escrevendo-se que: “o presente recurso de revisão é manifestamente improcedente e, consequentemente, deverá ser recusado por não respeitar os pressupostos ínsitos na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal”.

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Neste Tribunal o Sr.º Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pela negação da Revisão.

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Com interesse para a decisão a proferir são os seguintes os factos provados no Acórdão cuja revisão se pede:

“A) Produzida a prova resultaram provados os seguintes factos da acusação:

1. O arguido é pai de BB, nascida no dia ... de ... de 2006 e de CC, nascida no dia ... de ... de 2007.

2. Até ao dia 19 de setembro de 2022, o arguido residiu com ambas, juntamente com mãe das menores FF, na Rua ..., na ....

3. Durante o crescimento das suas filhas, o arguido sempre brincou com as mesmas, nomeadamente, fazendo-lhes cócegas em várias partes do corpo.

4. Sucede que, em pelo menos duas ocasiões distintas ocorridas em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre os meses de agosto e setembro de 2022, o arguido no seguimento de mais uma brincadeira com cócegas com a sua filha CC, colocou as suas mãos no interior das coxas desta, próximo das suas virilhas, acariciando aquele local.

5. Em face da conduta do arguido, a sua filha CC sempre se sentiu desconfortável, pedindo ao arguido para parar.

6. Em data não concretamente apurada do mês de setembro de 2022, mas posterior ao dia 13 e anterior ao dia 18, o arguido abeirou-se da sua filha BB, aproveitando o facto da mesma estar sozinha e começou a fazer-lhe cócegas.

7. Ato contínuo, aproveitou tal brincadeira e dirigiu as suas mãos para a zona do interior das coxas de BB, próximo das suas virilhas, acariciando aquele local.

8. No dia 18 de setembro de 2022, depois do jantar, o arguido e a sua filha BB foram passear a pé, na zona da sua residência.

9. A determinada altura, e aproveitando o facto de estarem numa rua, junto a uma zona de mato e ocultados por um camião, o arguido colocou-se atrás de BB e começou a fazer-lhe cócegas, tendo, em ato contínuo, introduzido os dedos por baixo dos calções e tocado com os seus dedos na vulva da filha, massajando-a.

10. Por se sentir desconfortável e receosa do pai, BB, simulando os efeitos de um ataque de cócegas, arremessou-se para o chão, fazendo cessar a conduta do pai.

11. No dia 19 de setembro de 2022, entre as 22h30m e as 23h00m, no interior da residência do agregado familiar, o arguido dirigiu-se ao quarto de BB, aproveitando o facto de a mesma se encontrar sozinha.

12. BB encontrava-se deitada de lado na cama, a fazer um vídeo na aplicação Tik-tok para enviar para o seu namorado.

13. Nesse momento, o arguido deitou-se ao lado da mesma, e ajudou-a a fazer o vídeo.

14. Ato contínuo, certificando-se pela audição que a sua mulher não estava nas proximidades, afastou a perna direita de BB, colocou a sua mão pela parte de baixo dos calções que ela vestia e introduziu um dedo no interior da sua vagina.

15. Após, perguntou à filha se estava a gostar e se queria que o pai continuasse tendo BB respondido que não estava a gostar e que queria que o pai parasse.

16. O arguido cessou a conduta e saiu do quarto de BB para ir fumar.

17. Em todos os episódios descritos, AA agiu no intuito de obter satisfação sexual, conformando-se com facto de para isso molestar sexual e psicologicamente as suas filhas BB e CC, que sabia serem menores e incapazes de se oporem aos seus avanços pelo ascendente de autoridade que exercia sobre elas na qualidade de pai.

18. O arguido sabia ainda que as suas condutas colocavam em causa a autodeterminação sexual e a integridade da formação e desenvolvimento da personalidade das suas filhas menores, bem assim como que eram proibidas e fortemente punidas por lei.

19. Agiu sempre de forma livre deliberada e consciente, podia determinar-se em sentido contrário de acordo com a avaliação que efetivamente fez e, ainda assim, não se absteve de as praticar.

Mais se provou

20. CC, em data não concretamente apurada do início do mês de setembro de 2022, anterior ao dia 15, foi viver com a sua avó materna para ..., deixando de ter contactos regulares com o arguido seu pai.

21. BB sofreu encefalite autoimune que levou ao estado de coma e a forçou a internamento hospitalar no período compreendido entre 18 de janeiro de 2022 e 11 de março de 2022, na sequência do qual sofreu alterações físicas que percecionou como negativas, desenvolvendo por esse motivo sintomas depressivos.

22. Por causa da factualidade descrita no ponto 21, BB não passou com aproveitamento o ano escolar, ficando retida.

23. No contexto do acompanhamento e tratamento da filha no período a que se alude em 21, o arguido começou a sentir atração física por BB.

24. Após a filha BB ter denunciado a ocorrência dos factos à progenitora, o arguido procurou tratamento psicológico em outubro de 2022 que mantém e que tem como objetivos o treino de competências sociais, reforço de autoestima, estimulação da expressão e normalização de emoções, autorregulação emocional, aumento das estratégias de coping e aumento da motivação no trabalho.

25. O arguido procurou igualmente tratamento psiquiátrico que mantém com regularidade mensal estando medicado com Venlafaxina 75mg dia e Olanzapina 10 mg dia.

26. Antes da sua conduta ser denunciada pela filha, designadamente aquando da factualidade descrita no ponto 21 dos factos provados, o arguido não ponderou procurar tratamento psicológico e/ou psiquiátrico.

27. O arguido não considera ter qualquer distúrbio sexual.

28. BB foi confrontada com a certeza de que o arguido seu pai praticou os factos que sempre a deixaram desconfortável descritos nos pontos 7 e 9 com a intenção descrita no ponto 17, porque sentia por si o descrito no ponto 23 dos factos provados, a partir do momento em que sofreu a factualidade descrita no ponto 14 dos factos provados, tudo lhe provocando grande sofrimento, angústia e ansiedade.

29. CC foi confrontada com a certeza de que o arguido seu pai praticou os factos descritos no ponto 4 com a intenção descrita no ponto 17 dos factos provados, a partir do momento em que soube pela sua irmã a ocorrência dos factos descritos nos pontos 7, 9 e 14, o que lhe provocou sofrimento, angústia e ansiedade.

30. BB, concomitantemente aos factos, envolveu-se numa relação de namoro com jovem da sua idade que perceciona como tóxica e abusiva.

31. Por causa da factualidade descrita nos pontos 6 a 16, 21, 22, 23, 28 e 30, BB desenvolveu quadro depressivo e tentou o suicídio por ingestão abusiva de comprimidos no dia 08 de dezembro de 2023, tendo estado internada no Hospital Psiquiátrico....

Factos atinentes ao relatório social

32. O arguido cresceu junto do agregado familiar constituído pelos progenitores e dois irmãos, tendo o pai sido polícia e a mãe auxiliar de ação médica.

33. Iniciou escolaridade em idade regulamentar tendo reprovado no 10.º ano da área de ciências com a qual não se identificou.

34. Após ingressou num curso profissional de eletrónica e telecomunicações que lhe conferiu o 12.º ano.

35. Iniciou a vida sexual ativa aos 18 anos de idade no contexto de uma relação afetiva estável.

36. Manteve o matrimónio com a mãe das suas duas únicas filhas durante 18 anos, tendo sido os factos em causa nestes autos, em que as mesmas são ofendidas que determinaram a rutura da relação conjugal.

37. Iniciou o percurso laboral aos 17 anos no ramo hoteleiro tendo exercido funções de bagageiro, rececionista e auditor noturno.

38. Em momento posterior experimentou atividade no ramo imobiliário, voltando posteriormente à hotelaria.

39. Nos últimos cinco anos desempenha funções no BNP Paribas sito no ... auferindo 1.000,00€ líquidos mensais.

40. O arguido é pessoa bem considerada pelo núcleo familiar próximo de progenitores e padrinho, bem assim como no meio laboral em que se encontra inserido.”

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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

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Conforme é sabido, os Recursos Extraordinários de Revisão, previstos nos art.ºs 449 a 466 CPP, constituem um meio processual destinado a reparar erros judiciários, que pela sua importância, se impõe serem reparados, e justifiquem a prevalência do princípio da Justiça material sobre o imperativo geral da segurança Jurídica e da regra do caso Julgado.

Abrange as Sentenças transitadas em julgado, e os despachos, também transitados, que tiverem posto fim ao processo – art. 449.º, n.º 1 e n.º 2 do CPP.

Em tais excepcionais casos, o princípio expresso no brocardo latino res judicata pro verirate habetur (a coisa julgada tem-se por verdade) tem de ceder se estivermos perante uma Sentença (ou decisão final) que contradiga ostensivamente a verdade histórica ou material, e por causa disso se mostre inaceitavelmente injusta.

Estes recursos, têm consagração Constitucional restrita às condenações, no art.º 29.º, n.º 6, da CRP: “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.”

Podem requerer a revisão, art.º 450, n.º 1, al.ª c) do CPP “o condenado ou seu defensor, relativamente a Sentenças condenatórias.

Comportam os recursos de revisão duas fases – a fase do juízo rescindente a ser decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça; a fase do juízo rescisório, que tem lugar apenas quando é autorizado o pedido de revisão e o processo baixa à 1ª instância para novo Julgamento.

Estando-se na faze do juízo rescindente, por este Tribunal, tem de se analisar se existe fundamento legal para conceder a pedida revisão.

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No caso, o recurso (dirigido aos «Exmos. Srs. Drs. Ministros» (sic) deste Tribunal) é interposto em representação do arguido/condenado AA, e fundamenta-se — segundo se logra extraír, considerando a sua verbosidade — numa “declaração” («devidamente reconhecida em Cartório Notarial»), da DD, denominado de «meio de prova superveniente».

Essa declaração destinar-se-ia a comprovar que a vítima (e filha do recorrente) CC «havia dito perante a sua mãe, irmã e a declarante, que o seu pai não lhe tinha feito absolutamente nada».

Reconhecendo-se que o depoimento da autora desta “declaração” foi prescindido em Audiência pela defesa, apresenta-se como “reforço argumentativo”, a indicação de que a declaração só foi emitida após a Audiência, tendo sido objecto de «reconhecimento da assinatura» em 10/09/24 (na realidade, vários meses depois da Audiência e da condenação).

Como “justificação” para a testemunha ter sido prescindida afirma-se que o recorrente estava «representado pela Dra. EE» e que só passou a ser representado pelo signatário do recurso (dr. GG), a partir de 28/10/24, pretendendo concluir-se que «não teve nenhuma relação com a presente defesa».

Vai-se ainda mais longe afirmando-se que «o facto de a Dra. EE, ter-se equivocado ou erroneamente concebido que a Sra. DD não teria nenhuma relevância», «não pode prejudicar» o recorrente.

E remata-se, no final, com o pedido de uma pena que não ultrapasse 5 anos de prisão «para dar ensejo» à sua suspensão, na premissa de que «seja efetivamente reconhecido que o Recorrente não praticou crime nenhum contra CC».

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Nada disto tem cabimento, como é evidente.

Nem a denominada “declaração” constitui uma prova permitida, e ainda que o fosse, nunca constituiria um meio de prova novo.

Concretizando, na medida do necessário:

No Processo Penal Português, não é permitido às testemunhas deporem por escrito, isso decorrendo directamente dos princípios, regentes em Audiência, da oralidade, da imediação e do contraditório — veja-se os art.ºs 128, 129, 355 e 96, do CPP.

Tal como consta do Código de Processo Penal, Comentado, STJ, 2014, p. 482: “o testemunho será sempre prestado na forma oral, não sendo permitido à testemunha fazê-lo por escrito, salvo breve consulta a apontamentos (…) Malatesta, aliás, inclui esta característica como característica fundamental do testemunho, «aquele que o especifica como uma das formas particulares da afirmação de pessoa, diferenciando-a da outra forma particular chamada documento» (In A Lógica das Provas em Matéria Criminal)”.

Ainda que fosse permitido — que não é — nunca constituiria um meio de prova novo, na medida em que a testemunha que terá produzido a declaração escrita, estava arrolada para ser ouvida em Audiência.

Não o foi, por ter sido prescindida por quem a indicou: a defesa.

Quanto à apreciação, transcrita supra (e que aqui se não repete), sobre a defesa na Audiência — não sendo este o lugar para avaliar a sua ética (sendo no entanto conveniente chamar a atenção para o art.º 112, n.º 1, al.ª a) do EOA) —, tem de se esclarecer que o aqui recorrente estava validamente assistido por defensora, tal como o impõe o art.º 64, do CPP.

E esta, no uso da sua autonomia técnica, referida no art.º 81, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, prescindiu — tal como consta da Acta da Audiência — da inquirição da testemunha DD.

Aqui chegados, tem também de se chamar atenção para o princípio da continuidade da defesa, isto é, o que o Tribunal tem de assegurar é essa continuidade, e disso constitui afloramento, por exemplo, o art.º 66, n.º 4 do CPP.

Essa permanência e continuidade da defesa foi assegurada, tendo, inclusive, havido recurso ordinário do Acórdão condenatório, julgado improcedente.

A proposição — longe de estar demonstrada, perante o seu resultado — de que esta defesa é melhor do que a anterior, nunca poderia servir de fundamento legal para se proceder uma revisão da decisão condenatória transitada em julgado.

Em conclusão, mostra-se evidente não se verificar qualquer uma das causas previstas no art.º 449, do CPP, nomeadamente a al.ª d), referente à descoberta de um meio de prova novo (“se descobrirem novos (…) meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”).

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Numa — inusitada — antecipação da decisão, fornece-se a seguinte e longa asserção: ”requer-se, desde já, nos termos dos artigos 204º, 282, n.º3, ambos da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade material do artigo 449º, n.º 1, al.ª d) do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de não admitir o recurso de revisão, quando a testemunha foi prescindida, por defesa anterior, mas, posteriormente, a testemunha prescindida apresentou declaração superveniente reconhecida em Cartório Notarial, sendo que o conhecimento de tais circunstâncias, apenas foram conhecidas pelos novos mandatários, posteriormente, em homenagem aos princípios da dignidade da pessoa humana, plasmada no n.º 1, direito ao recurso e ao contraditório, nos moldes do artigo 32º, n.º 1, e o princípio da presunção de inocência, consagrada no artigo 32º, n.º 2, bem como, o direito à defesa técnica, contida no n.º 3 do artigo 32º, todos da CRP”.

Bom, se se antecipou a decisão de negação da revisão (previsível, face a ausência de fundamentos) , não se acertou na sua ratio decidendi, que não é, obviamente, a que nesta asserção confusamente se lhe pretende atribuir, sem ainda ter sido proferida.

Acrescentando-se que a exigência — no nosso sistema de fiscalização concreta da Constitucionalidade — de “suscitação prévia da questão de Constitucionalidade”, não significa que se possa antecipar a decisão, e atribuir-lhe uma ratio decidendi que não corresponde à realidade, para justificar um posterior recurso para o Tribunal Constitucional, no âmbito da fiscalização prévia da Constitucionalidade.

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Concluindo — e repetindo — é manifesto não se verificar qualquer dos fundamentos para a revisão, previstos no art.º 449, n.º 1, do CPP (nomeadamente o da al.ª d), pelo que o pedido de revisão do Acórdão proferido nos presentes autos, tem de ser negado.

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Nos termos relatados, decide-se negar a revisão do Acórdão condenatório proferido nestes autos, pedida em representação do arguido/condenado AA, considerando o pedido manifestamente infundado.

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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s.

Nos termos do artº 456.º do CPP, condena-se, ainda, o recorrente no pagamento de 6 UC´s, por o pedido ser manifestamente infundado.

Lisboa, 12/06/2025

José Piedade

Ana Costa Paramés

Ernesto Nascimento

Helena Moniz (Presidente da Secção)