O princípio de que o Supremo Tribunal de Justiça tem competência para a decisão de dispensa do remanescente da taxa de justiça relativamente a toda a actividade processual desenvolvida em todas as instâncias judiciais só deverá aplicar-se aos casos em que o Supremo profere a decisão final.
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Requerente: Óptica 2, Lda.
Requeridos:
— AA e mulher, BB; CC; DD e mulher, EE;
— M.., S.A.
I. — RELATÓRIO
1. Óptica 2, Lda., propôs a presente acção declarativa contra
I. — AA e mulher, BB; CC; DD e mulher, EE;
II. — M.., S.A.,
pedindo:
I. — a título principal, e em síntese,
a. — que seja declarado que é titular do direito de preferência prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Barcelos com os n.ºs 1148 e 1150;
b. — que, em consequência do exercício do direito de preferência, seja transmitida a propriedade dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Barcelos com os n.ºs 1148 e 1150;
c. — que, em consequência da transmissão da propriedade, os Réus sejam condenados a entregar-lhe os prédios descritos, livres e desocupados, “no estado em que se encontravam à data da aquisição”;
II. — a título subsidiário, “que os Réus sejam condenados no pagamento de uma indemnização em montante a apurar à data do trânsito em julgado, mas nunca inferior a €17.599,28 a título de danos patrimoniais e €1.565.600,00 a título de danos não patrimoniais”.
2. O Tribunal de 1.ª instância:
I. — não admitiu a reconvenção;
II. — julgou improcedente a excepção de caducidade,
III. — julgou improcedente a acção, absolvendo os Réus do pedido.
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação.
3. O Tribunal da Relação confirmou, por unanimidade, a decisão do Tribunal de 1.ª instância de julgar improcedente a acção, absolvendo os Réus do pedido.
4. Inconformada, a Autora Óptica 2, Lda., interpôs recurso de revista.
5. O Supremo Tribunal de Justiça não tomou conhecimento do objecto do recurso.
6. A Autora Óptica 2, Lda., vem agora requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
7. Fá-lo nos seguintes termos:
1. A 23 de Abril de 2025, este Douto Tribunal proferiu Acórdão no sentido de não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto pela aqui recorrente.
2. O mencionado acórdão ainda não transitou em julgado, pelo que é esta instância, enquanto último grau de jurisdição, que deve apreciar da dispensa/ redução da taxa de justiça remanescente devida.
3. A apreciação esta que, nos termos do Acórdão do STJ de 2022.03.29 (Processo 2309/16.2T8PMT.E1-A.S1), abarca, não só a taxa de justiça devida neste órgão, “(…)mas também na dos graus precedentes, abarcando toda a tramitação”.
4. No caso concreto, a taxa remanescente devida, também, na 1ª instância e Relação.
5. O que desde já, expressamente, se requer.
Acresce que,
6. Atendendo a que, conforme supra exposto, que o acórdão em discussão não se encontra, ainda, transitado em julgado, daqui resulta que não se encontra precludido o direito do Recorrente de requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2022.
7. Assim sendo, o presente requerimento com pedido de dispensa do remanescente é tempestivo, devendo o mesmo ser admitido e deferido, o que também se requer.
Isto posto,
8. De acordo como artigo 1.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais (RCP): “Para efeitos do presente Regulamento, considera-se como processo autónomo cada acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria.” — negrito acrescentado.
9. Resulta da citada norma que, não obstante a dependência processual e funcional que se verifique no caso concreto, as acções, execuções, incidentes, procedimentos cautelares e recursos são considerados processos autónomos, para efeitos de sujeição ao pagamento de custas stricto sensu e de taxa de justiça, funcionando entre eles o princípio da autonomia.
10. Ora, estabelece o artigo 6.º do n.º 8 do RCP que, nos processos de valor superior a 275.000.00€, o pagamento do remanescente da taxa de justiça é dispensado nos casos em que o processo termine antes de concluída a fase da instrução.
11. Sobre este ponto já se pronunciou este Tribunal, por via de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 10.04.2024, dizendo “Tendo a acção terminado no saneador-sentença, ou seja, antes de concluída a fase de instrução, o recorrente não terá de pagar o remanescente da taxa de justiça quanto à tramitação do processo no tribunal de 1ª instância, nos termos do número 8 do artigo 6.º do RCP.
12. Nos presentes autos o processo em 1ª instância terminou antes de concluída a fase de instrução, tendo terminado com a prolação de Saneador-sentença que apreciou o mérito da causa no dia 20.03.2024
13. A tal não obstando a interposição de recursos de apelação e de revista, pois estes representam cada um, um outro processo, objecto de tributação diferenciada, autónomo da acção (que findou).
14. Pelo que se requer que V. Exas. se dignem ordenar a aplicação à 1ª instância dos presentes autos do disposto no artigo 6.º, n.º 8, do RCP, determinando que não há lugar ao pagamento do remanescente da taxa de justiça relativamente ao processo em 1.ª instância.
15. Para além do supra exposto, mais requer a dispensa do pagamento do remanescente na Relação e no Supremo Tribunal de Justiça, pelos motivos que de seguida se exporão.
16. O regime das custas processuais determina que, quando o valor da causa supere € 275.000,00, o remanescente da taxa de justiça — calculado nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (doravante «RCP»), e na Tabela I, in fine, anexa ao mesmo Regulamento —, deve ser computado na conta final.
17. E assim sucederá, a menos que «a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o [seu] pagamento» (cf. artigo 6.º, n.º 7 do RCP).
18. Ora, no presente caso, ambos os requisitos se verificam.
19. Por um lado, e no que diz respeito à conduta processual das partes, estas agiram de boa fé, com lealdade e transparência, colaborando com o tribunal, e não realizando quaisquer manobras dilatórias.
20. Com efeito, sempre os actos processuais por estas praticados se revelaram compatíveis com a boa fé, tendo as partes actuado com lealdade e transparência, não recusando nenhuma solicitação, respeitando as normas processuais aplicáveis, colaborando com o tribunal e não realizando quaisquer manobras dilatórias.
21. Mais se encontra reunido o requisito relativo ao grau de complexidade da causa.
22. Na verdade, resulta dos autos que estamos perante um processo cujo valor (1467740,88 €), na realidade, não reflecte a sua complexidade.
23. Sendo que as questões jurídicas em causa se apresentam com uma complexidade certamente não superior à da maioria dos processos que chegam a este douto Tribunal, ao Tribunal da Relação e à 1ª instância.
24. Acresce que, no que ao Supremo Tribunal de Justiça diz respeito, a questão não chegou a ser admitida para conhecimento por esta instância.
25. Tendo sido, liminarmente, avaliada, sem mais.
26. Factor que, a nosso ver, claramente denota a notória simplicidade da matéria em litígio.
27. De resto, no artigo 530.º, n.º 7 do CPC (que determina o que são acções de especial complexidade para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça) prevê-se que se consideram: “(…) de especial complexidade as ações e os procedimentos cautelares que: a) Contenham articulados ou alegações prolixas; b) Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; ou c) Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova extremamente complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas” — negrito acrescentado.
28. No que a esta norma diz respeito, importa salientar o que, a este propósito, se refere no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 34/2008 (que aditou o citado preceito ao anterior Código de Processo Civil), aí se descortinando o fundamento daquela previsão: “De um modo geral, procurou também adequar-se o valor da taxa de justiça ao tipo de processo em causa e aos custos que, em concreto, cada processo acarreta para o sistema judicial, numa filosofia de justiça distributiva à qual não deve ser imune o sistema de custas processuais, enquanto modelo de financiamento dos tribunais e de repercussão dos custos da justiça nos respectivos utilizadores. De acordo com as novas tabelas, o valor da taxa de justiça não é fixado com base numa mera correspondência face ao valor da acção. Constatou-se que o valor da acção não é um elemento decisivo na ponderação da complexidade do processo e na geração de custos para o sistema judicial (…).” — negrito acrescentado.
29. Ora, no presente caso, verifica-se que os articulados não foram prolixos, ou seja, não excederam a média razoável, considerando o teor e natureza da acção em presença.
30. Por outro lado, as questões julgadas não implicaram (em nenhuma das instâncias) qualquer particular especialização jurídica ou técnica, nem importaram a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso.
31. Com efeito, as questões julgadas não envolveram uma especificidade particularmente intensa no âmbito da ciência jurídica, nem requereram uma exigência atípica no que diz respeito à formação jurídica de quem tem de decidir.
32. Não foram, por outro lado, analisadas questões com enorme complexidade factual ou jurídica.
33. Para além disso, a tramitação observada foi simples, não tendo havido lugar a fase intermédia, nem, assim, a toda a actividade processual que a mesma, em regra, envolve, nem lugar a produção de prova constituenda.
34. Também a actividade da secretaria não requereu investimento anormal de tempo ou esforço.
35. Face às circunstâncias do caso dos autos, resulta clara a verificação dos pressupostos para a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça em todas as instâncias, nos termos do artigo 6.º, n.º 7 do RCP.
36. Sem prejuízo do exposto, caso o Tribunal entenda não dispensar o pagamento da totalidade do remanescente da taxa de justiça — o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio, sem conceder — sempre se justificaria a dispensa de uma parcela ou fracção significativa daquele valor remanescente.
37. Na verdade, em face, por um lado, da possibilidade de graduação casuística e prudencial do montante da taxa de justiça e, por outro lado, em face do contexto processual dos presentes autos, afigura-se elevado o montante do remanescente da taxa de justiça por aplicação do disposto no artigo 6.º e na Tabela I do RCP.
38. Pelo que, subsidiariamente, pelas razões supra expostas, mesmo que este Venerando Tribunal entenda não dispensar totalmente o remanescente da taxa de justiça, requer-se a sua dispensa parcial em todas as instâncias em percentagem nunca inferior a 85%.
Por fim
39. Em sede de contestação, no dia 02.10.2023, com a referência ......46, a Ré M.., S.A. deduziu pedido reconvencional.
40. A esse pedido respondeu a Autora, aqui recorrente, por via de Réplica, no dia 09.10.2023.
41. Para esse efeito liquidou taxa de justiça, no valor de 512,00€, através do DUC .............73.
42. O Tribunal de Primeira Instância conheceu do pedido reconvencional, em sede de Sentença-Saneador, do dia 20.03.2024, referência .......94, pronunciando-se da seguinte forma: “Pelo exposto, não se admite o pedido reconvencional, por não se verificar o elemento de conexão”
43. Em face do exposto requer-se a devolução dos 512,00€ (quinhentos e doze euros) pagos a título de taxa de justiça ou, se assim não se considerar, o que não se concede, requer que este valor seja considerado para efeitos de cálculo de taxa remanescente.
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem:
a) ordenar a aplicação à l» instância dos presentes autos do disposto no artigo 6.º, n.º 8, do RCP, não havendo lugar ao pagamento do remanescente, e, subsidiariamente, que se determine que o Recorrente seja dispensado de pagar o remanescente da taxa de justiça na sua totalidade, ou, se assim não se entender, determine a redução do remanescente em montante não inferior a 85%, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do art.º 6.º do RCP e Acórdão do STJ Uniformizador de jurisprudência, de 10.04.2024;
b) determinar que o Recorrente seja dispensado de pagar o remanescente da taxa de justiça na sua totalidade na Relação e no Supremo Tribunal de Justiça, ou, se assim não se entender, determinar a redução do remanescente em montante não inferior a 85%, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do art.º 6.º do RCP»
c) determinar a devolução à Recorrente do valor de 512,00€ pagos através do DUC .............73, devidos pela Réplica à Reconvenção da Ré M.., S.A., não admitida por via de Sentença-Saneador.
II. — FUNDAMENTAÇÃO
8. A competência do Supremo Tribunal de Justiça para decidir da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça pela actividade processual desenvolvida no Tribunal de 1.ª instância e no Tribunal da Relação é controvertida 1.
9. Em todo o caso, ainda que a competência do Supremo Tribunal de Justiça não fosse controvertida, sempre deverá reservar-se para os casos em que o Supremo Tribunal de Justiça conheça do objecto do recurso 2.
10. Ora, na situação sub judice, o Supremo Tribunal de Justiça não conheceu do objecto do recurso e, por consequência, não proferiu decisão final 3 — logo, o requerimento de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça pela actividade processual desenvolvida nas instâncias deverá ser remetido ao Tribunal da Relação.
11. Excluída a actividade processual desenvolvida nas instâncias, o Supremo Tribunal de Justiça só deverá pronunciar-se sobre a tramitação do recurso de revista.
12. Os critérios para a decisão sobre a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça encontram-se no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais.
13. Face ao artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, nas causas com valor superior a € 275.000 o juiz pode dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça sempre que, atendendo às circunstâncias do caso, designadamente, à complexidade da causa e à conduta processual das partes, entenda que tal dispensa é adequada.
14. Ora, ainda que as alegações da Recorrente, agora Recorrente, fossem extensas, a conduta das partes foi, de um modo geral, correcta, contendo-se dentro dos limites da boa-fé, da lealdade e da cooperação processual, e as questões suscitadas no recurso de revista não eram de complexidade extraordinária.
III. — DECISÃO
Face ao exposto,
I. — defere-se o requerimento de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça na parte relativa à actividade processual desenvolvida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
II. — determina-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para apreciação do requerimento de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça na parte relativa à actividade processual desenvolvida pelas instâncias.
Sem custas.
Lisboa, 17 de Junho de 2025
Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)
Arlindo Oliveira
José Maria Ferreira Lopes
______
1. Sobre o tema, vide por exemplo Salvador da Costa, “A apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da dispensa (ou redução) do remanescente da taxa de justiça (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de maio de 2023 - Proc. n.º 903/13.2TBSCR.L2.S1)” (10 de Julho de 2023), in: WWW: <https://blogippc.blogspot.com/2023/07/a-apreciacao-pelo-stj-da-dispensa-ou.html e https://drive.google.com/file/d/14NcuC7n0Y_ayBiWZPMSFwhT48y2qSFeH/view > e “Apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da dispensa ou redução do remanescente da taxa de justiça Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de setembro de 2023 (Processo n.º 752/20)” (30 de Outubro de 2023), in: WWW: < https://blogippc.blogspot.com/2023/10/apreciacao-pelo-supremo-tribunal-de.html ou https://drive.google.com/file/d/1R__fK13Lrvw5vTV_mhtkedE5x0Hi0Cw6/view >
2. Sobre o tema, vide por último o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2025 — processo n.º 10979/19.3T8LSB.L1.S1-
3. Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Abril de 2023 — processo n.º 18932/16.2T8LSB.L3.S1 —, de 12 de Março de 2024 — processo n.º 8585/20.9T8PRT.P1.S1 — ou de 13 de Fevereiro de 2025 — processo n.º 9452/18.1 T8PRT.P1.S1.