CONTRATO DE SEGURO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
MORTE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
PRESUNÇÃO JUDICIAL
ILOGICIDADE DA PRESUNÇÃO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO ADJETIVO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
INDEMNIZAÇÃO
SEPARAÇÃO DE FACTO
INFRAÇÃO ESTRADAL
Sumário


I - No exercício dos seus poderes em matéria de facto (art. 662º do CPC), é lícito à Relação recorrer a presunções judiciais para alterar a matéria de facto da sentença;
II – Improcede o pedido de indemnização por alimentos com base no nº3 do art. 495º do CCivil, formulado pela viúva de vítima mortal de acidente de viação, com 36 anos à data do acidente e sem qualquer incapacidade para o trabalho, encontrando-se o casal separado.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, por si e em representação da sua filha menor, intentou a presente ação sob a forma de processo comum contra a “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.”.

Alega que devido ao desrespeito de um sinal de stop de condutor de veículo relativamente ao qual a responsabilidade civil se encontrava transferida para a R. através de contrato de seguro, ocorreu acidente de viação que originou a morte do marido e pai de sua filha.

Pediu a condenação da R. a pagar-lhe e à sua representada:

1 - cento e cinquenta mil euros divididos na proporção dos respetivos quinhões hereditários, ou seja, em duas partes iguais, cada, acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação até pagamento,

2 - à A. trezentos e cinquenta e um mil seiscentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos, acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação até pagamento,

3 - à filha cento e cinquenta mil euros, acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação até pagamento.

O Instituto da Segurança Social deduziu pedido de reembolso relativo a subsídio por morte e pensões de sobrevivência.

Concluiu pela condenação da R. no pagamento do montante já entregue às AA. de € 3 441,01, bem como no montante das pensões que se vencerem e forem pagas na pendência da ação, até ao limite da indemnização a conceder, bem como os respetivos juros de mora legais, desde a citação até pagamento.

A R. contestou, alegando assumir coresponsabilidade pelo sinistro, existindo, porém, também culpa do lesado e suscitando a intervenção acessória provocada do seu segurado, que conduzia sob o efeito do álcool.

Admitida a intervenção acessória principal de BB, este contestou, dizendo que o acidente se ficou a dever em exclusivo à vítima.

O Instituto da Segurança Social ampliou o pedido para € 8.142,27, o que foi admitido.

Na sequência do julgamento foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando a R. “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.” a pagar:

A) à A. AA:

a) a título de danos patrimoniais, a quantia global de € 116 551,60, o que, descontado o montante de € 7 800,00 já entregue, equivale a € 108 751,60, acrescidos de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até pagamento;

b) a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 44 000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da sentença até pagamento.

B) à A. CC:

a) a título de danos patrimoniais, a quantia global de € 25 920,00, o que, descontado o montante de € 7 800,00 já entregue, equivale a € 18 120, 00, acrescidos de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até pagamento;

b) a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 44 000,00 acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da sentença até pagamento.

C) Ao Instituto de Segurança Social, IP:

a quantia global de € 6.513,82, bem como de 80% dos valores que o ISS pague às AA. a título de pensões até ao trânsito em julgado da decisão, tudo acrescido de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da notificação até pagamento.

A Relação do Porto, por acórdão de 24/02/2025, na parcial procedência das apelações, decidiu:

a - condenar a R. Seguradora a pagar a cada uma das AA. a quantia de € 40 000, 00 pelo dano morte de DD ((€ 100 000,00 x 80%) : 2);

b – revogar a sentença na parte em que condena ao pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais à A. AA, absolvendo-se a R. do pedido nesta parte;

c - condenar a R. a pagar à A. CC a quantia de € 24 000,00 (€ 30 000,00 x 80%) a título de danos não patrimoniais.

Ainda inconformados, a Autora e a Ré seguradora interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

A Autora remata a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. Dos factos provados1. 2. e3 do douto acórdão resulta que a Recorrente AA é viúva e a sua representada CC é a única filha de DD vítima de acidente de viação, sendo estas a suas únicas e legais herdeiras, não havendo quem as pretira ou com elas concorra à respetiva sucessão

2. Dos factos provados em 18. e 21. decorre que a A. AA está desempregada e inscrita no Centro de Emprego como candidata a emprego; não têm ( a AA e a filha CC ) bens, nem rendimentos e vivem de favor em casa da mãe e avó, EE, viúva, na morada indicada nos autos, que lhes dá cama e mesa, por ser total a carência económica e financeira das AA., a partir da morte da vítima, apenas mitigada pela reparação provisória resultante da providência cautelar.

3. O facto provado 23. afirma que a A. pagou as despesas de funeral da vítima que ascenderam a € 1.689,50.

4. O acórdão recorrido deu como não provados os factos 24. e 25. dados como provados na sentença de Primeira Instância, ou seja , que face à sua situação de desemprego da A. e às disponibilidades garantidas pelo salário da vítima, a A. tinha a expectativa de viverpor muitos anos do rendimento de trabalho da vítima e que em consequência da morte da vítima, a A. AA ficou privada além de ter ficado igualmente privada da sua convivência.

5. A predita alteração da decisão da matéria de facto fundou-a o Tribunal recorrido em factos que não constam do respectivo elenco de factos provados,

6. Que simplesmente presumiu dos factos indiciários, não dados também como provados, reitera-se, que seguem : 1. volvidos 19 dias sobre o óbito de DD, AA deu-se como residente em morada diferente daquele à data do seu óbito, 2. O poder paternal da co-autora foi regulado logo após o nascimento da filha de AA nascida e de terceira pessoa , tudo ocorrido em 2020 – 15.12 e 21.10 -,

7. Factos em que justificou a conclusão de ser de todo inverosímil que a Recorrente e a vítima tivessem voltado a viver juntos após isso e a convicção não transcrita factualmente para o acórdão recorrido de que, ao contrário, a Recorrente e a vítima viviam separados, justificou ainda a decisão de dar como não provados os factos mencionados em 4. Supra,

8. E fundou a revogação da sentença de Primeira Instância na parte em que condena a R. ao pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais – sofrimento desgosto, perda de convivência - à A. AA.

9. O artigo 1675º do C.C. prevê o dever de assistência dos cônjuges e neste a obrigação de prestar alimentos e de contribuir para os encargos da vida familiar e estatui que esse dever se mantém durante a separação de facto e o art. 2009º do C.C. prevê que estão vinculados a alimentos entre outros cônjuge ou o ex-cônjuge.

10. Os arts 1º e 2º do C.R.C. preveem que o registo civil é obrigatório e tem por objecto, designadamente, o casamento e ainda que a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de estado e nas acções de registo.

12. A A. alegou e provou o seu casamento com a vítima.

13. Os RR. é que alegam e fizeram-no, de resto, apenas em sede de alegações de recurso, que a A. recorrente estava à data do óbito da vítima separada de facto desta, por considerarem este um facto impeditivo do direito da A. recorrente em causa.

14. Se tal facto fosse impeditivo do direito negado à Recorrente que no nosso entendimento não caberia aos RR. provarem-no, o que manifestamente não lograram.

15. Na verdade, os factos ditos em 6. supra anotados no douto acórdão não indiciam, não podem, mesmo recorrendo-se às regras de experiência comum, que em 2021 e 2022 até à data do acidente a Recorrente e a vítima vivessem separados.

16. Com efeito, os ditos factos não permitem a extração de semelhante presunção.

17. Aliás, os factos referidos em 6. destas de que o Tribunal recorrido manifestamente se socorreu para dar como não provados os factos provados 24 e 25 da sentença apelada não constam de nenhum dos factos provados dessa sentença nem do acórdão Tribunal da Relação.

18. Por isso, a alteração da decisão da matéria de facto pelo Tribunal da Relação não pode sustentar a decisão por este proferida face aos factos provados 1 a 3 da sentença apelada e do acórdão recorrido.

19. O Tribunal recorrido errou assim na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa em manifesta ofensa das regras do ónus da prova e lei do processo – arts. 341 e ss do C.C. e 410º e ss e 607º do C.P.C. - e em ofensa aos arts. 1º e 2º do C.R.C. e, como se verá ainda aos arts. 1675º e 2009º do C.C..

20. Mais, fez com que a decisão da matéria de facto encerre contradições que inviabilizam a decisão jurídica produzida, esta que está por isso em manifesta oposição com os fundamentos, uma vez assente o estado de casada da Recorrente com a vítima à datado óbito e ausentes quaisquer outros factos susceptíveis de pôr em causa os direitos e expectativas dos cônjuges.

21. Violou, pois o Tribunal recorrido a lei substantiva , as invocadas normas de direito civil e direito registral civil, fez incorrecta aplicação da lei do processo, designadamente do art. 410º e ss e 607º do C.P.C. produzindo decisão, além do mais, ferida da nulidade prevista nas alíneas b, c ) e d) do rt. 615º nº 1 do C.P.C. .

22. . Apesar de este Venerando Tribunal não “julgar de facto “ competindo-lhe, como tribunal de revista, somente a aplicação, em definitivo, do regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido,

23. Pode corrigir qualquer "erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa" se houver ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (prova tarifada ou legal), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 682.º n.º 2 e 674.º, n.º 3 ambos do C. P.C.,

24. Pode intervir na decisão sobre a matéria de facto se considerar que ocorrem contradições nessa decisão que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, nos termos do referido nº 3 do artigo 682º do C.P.C.

25. Pode censurar o mau uso que o tribunal da Relação tenha eventualmente feito dos seus poderes sobre a modificação da matéria de facto,

26. Bem como e ainda verificar se foi violada ou feita aplica ção errada da lei de processo (alínea b) do n.º1 do artigo 674º do Código de Processo Civil).

27. Tudo o que se impõe no caso.

28. Acresce que os arts. 495.º e 496.º do CC em sede de danos patrimoniais e não patrimoniais consagram no domínio da responsabilidade civil extracontratual uma excepção ao princípio de que o detentor do direito à indemnização é próprio portador do direito violado, que só depende do facto de elas assumirem a posição de poderem exigir alimentos à vítima da lesão de morte.

29. O nascimento de tal direito na esfera jurídica está, assim, dependente de existir a possibilidade legal do exercício do direito aos alimentos mesmo que não estejam a receber da vítima qualquer prestação alimentar por carência efectiva dela.

30. Não são, pois , a necessidade da prestação alimentar e a sua medida que efectivamente balizam a indemnização do dano previsto no art. 495.º, n.º 3 do CC.

31. Portanto, conjugando aquele dispositivo com o disposto no art. 2009.º do CC não há dúvida de que a A. tem direito a indemnização pelos danos patrimoniais próprios sofridos em consequência do óbito da vítima,

32. O que sucederia ainda que tivesse ficado assente nos factos provados, o que não aconteceu, nem podia por não ser verdade, que Recorrente e vítima viviam separados de facto ou até judicialmente separados de pessoas e bens.

33. Na verdade em qualquer das ditas circunstâncias que, por não constituírem matéria de facto assente não podem relevar para a decisão da causa, a vítima manter-se-ia obrigado a prestar alimentos à Recorrente como decorrência do dever de assistência que, como se sabe, abrange a obrigação dos cônjuges prestarem alimentos e de contribuírem para os encargos normais da vida familiar, enquanto durar, pelo menos, a sociedade conjugal – (cfr. artºs. 1672º, 1675º, 1676º, 2015º, e 2009º, nº. 1 al. a do C.C. -.

34. Demais, para o efeito do artigo 495.º, n.º 3 do C.C. não é de relevar apenas o caso de o alimentando ter já direito a alimentos, e de os receber , mas ainda o do poder vir a tê-lo, porque, a não ser assim, ficaria sem indemnização aquele que, não carecendo de alimentos na data do facto, fosse privado do direito de posteriormente os exigir (por então vir a carecer deles) em consequência de não existir já a pessoa.

35. Donde, para alcançar a indemnização pela privação de alimentos prevista no referido nº 3 do artigo 495º não é exigível a alegação e prova por parte do cônjuge sobrevivo – lesado – de que, na data do acidente de viação (evento danoso) recebia alimentos do falecido ou estava em condições de os receber, designadamente, do requisito da necessidade de alimentos , bastando por isso a prova da qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito a alimentos, não relevando a efectiva necessidade dos mesmos.

36. Os factos provados vão no sentido de que a Recorrente estava casada com a vítima.

37. A ruptura da relação familiar por violação por um dos cônjuges dos deveres conjugais depende da vontade do outro.

38. Não ocorreu no caso o divórcio da Recorrente e da vítima que, a assentar nas considerações do Tribunal recorrido fundamento da decisão tomada, dependia da exclusiva vontade da vítima que nunca a expressou, como se vê.

39. A ruptura dessa relação ocorreu em circunstâncias completamente alheias à vontade de qualquer dos cônjuges, devida à actuação culposa de um terceiro causador do acidente de viação que vitimou o falecido marido da Recorrente e fez cessar, por essa razão, o cumprimento do dever de assistência.

40. Em face disso, não pode deixar de se concluir senão que a obrigação de prestar alimentos da vítima passou para o lesante através da componente indemnizatória prevista no nº 3 do citado artigo 495º do C.C..

41. Caso em que, reitera-se, não é exigível a alegação e prova por parte do cônjuge sobrevivo – lesado – de que, na data do acidente de viação (evento danoso) recebia alimentos do falecido ou estava em condições de os receber, designadamente, do requisito da necessidade de alimentos.

42. No caso, a Recorrente, como comprovado, estava desempregada pelo que a ser exigível, o que não se concede, a demonstração da necessidade de obter alimentos do marido, a mesma está demonstrada.

43. A. recorrente é herdeira da vítima.

44. E entre os danos patrimoniais que o responsável pela produção de um acidente estradal está obrigado a indemnizar, contam-se os chamados danos patrimoniais futuros resultantes da perda de salários, emergentes da perda de capacidade aquisitiva do lesado directo, imediato, e o autónomo, embora com a mesma génese no plano de insuficiência de satisfação de necessidades alimentares, dano da perda de alimentos.

45. Pelo que além do direito próprio a alimentos, os sucessores do lesado têm direito à indemnização correspondente aos danos patrimoniais que o próprio lesado teria sofrido, a qual se transmite com a herança, nos termos do art.2024º do CC, uma vez que a própria vítima, falecida, posteriormente, à lesão que a vitimou, integrou na sua esfera jurídica o direito a indemnização por danos futuros derivados da perda de rendimentos de trabalho.

46. Embora a pensão alimentícia a que a vítima estaria ads -trita por lei, tendo embora os seus limites no rendimento frustrado pela morte e a sua medida orientada segundo o artigo 2004.º do Código Civil, não possa acorrentar-se nem confundir-se com a problemática do lucro cessante,

47. Sendo as pessoas com direito a alimentos em regra os próprios herdeiros da vítima, no caso o próprio cônjuge, não podendo ou devendo a Recorrente ser ressarcida em sede de direito a alimentos pode e deve ser ressarcida nos termos ditos em 45. destas em quantitativo indemnizatório correspondente aos lucros cessantes,

48. Uma vez que o princípio é o de que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituira situação que existiria se não tivesse verificado o evento que obriga à reparação – art. 562.º do C.C. -,49. E os factos alegados e provados são para tanto suficientes.

50.É de concluir, pois, que o douto acórdão recorrido ao revogar a sentença de Primeira Instância na parte aqui em causa, além de nulo pelas razões já apontadas, violou a lei processual e a lei substantiva e respectivos normativos acima invocados.


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Conclusões da Recorrente Fidelidade.

1. Atendendo à matéria de facto dada como provada, torna-se manifesto que a responsabilidade da malograda vítima mortal na eclosão do acidente de viação não se limita a 20%.

2. De acordo com a matéria de facto dada como provada, sempre se dirá que a razão pela qual o condutor do motociclo, a 50 metros do local do embate, não logrou imobilizar o seu veículo, foi devido à influência do álcool na sua condução e pela velocidade excessiva para as condições da via.

3. Apesar de corresponder à verdade que o condutor do “NZ” entrou na via por onde circulava o ..-..-NG, para virar à esquerda e tomar o sentido norte/sul da R. Tenente Valadim, cortando-lhe a trajectória, a distância a que circulava o NZ teria necessariamente de ser suficiente para, em condições normais, ter imobilizado o veículo no espaço livre e disponível à sua frente, sem sequer ser necessário ter realizado qualquer desvio para a esquerda para a via de trânsito adstrita ao sentido contrário.

4. Nesse sentido, em complemento à matéria de facto dada como provada, atente-se ao relatório pericial do Inegi, Centro Pericial de Acidentes - CENPERCA, página 24 e 25 e figura 44, especialmente quanto aos trechos supra transcritos.

5. Assim, o motociclo ao sair da rotunda a cerca de 50 metros vê o veículo automóvel a entrar no entroncamento, faz um desvio para a esquerda, com o qual invade logo a via de trânsito adstrita ao sentido contrário, e só na eminência do embate inicia a sua travagem, ainda na via adstrita ao sentido contrário, marca de travagem essa cravada no asfalto na diagonal e em direção à via de trânsito da direita,

6. Note-se que, apesar desta distância, da manobra de desvio e dos rastos de travagem de 8 metros, no momento do impacto, o veículo circulava a 61km/h, sendo assim inequívoco de que, quando o “NG” avista o “NZ”, circularia a velocidade não concretamente apurada, mas certamente superior a 61 km/h.

7. O condutor do NG com a sua condução não cumpriu, pelo menos, com o disposto nos artigos 24.º, 25.º n.º 1 al. c) e 81 do Código da Estrada, uma vez que circulava a uma velocidade que não permitia o ingresso em segurança dos demais utentes da via, o que não seria constatável pelo condutor do “NZ” e que não permitiu à malograda vítima mortal imobilizar o “NG” no espaço livre e disponível à sua frente.

8. A velocidade excessiva, aliada à falta de atenção, concentração e reflexos provocada pela TAS com que circulava a malograda vítima mortal, levou a que a mesma desse concausa ao acidente sub judice, o que deve ser considerado nos termos do artigo 570.º do Código Civil.

9. Destarte, sempre se dirá que a responsabilidade do condutor do motociclo foi relevante para a eclosão do acidente de viação em causa nos autos e, consequentemente, sempre se dirá que deve o mesmo ser julgado responsável pela produção do acidente de viação em percentagem não inferior a 60%.

10. Não se conforma a Recorrente com a indemnização atribuída a título de perda do direito à vida, tendo em conta a globalidade da matéria de facto apurada nos autos e os critérios comumente seguidos pela jurisprudência dominante.

11. Recorrendo a juízos de equidade e à jurisprudência em casos análogos, deve ser fixada uma indemnização pela perda do direito à vida em valor não superior a Eur. 70.000,00.

A Recorrida Fidelidade respondeu ao recurso da Autora, pugnando pela sua improcedência.


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Delimitação do objecto dos recursos.

O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de conhecimento oficioso. (arts. 635º, nº4 e 639º, nº1, do CPCivil).

Como assim, a revista da Autora suscita a apreciação das seguintes questões:

- Alteração da matéria de facto pela Relação;

- Nulidade do acórdão;

- Indemnização por direito a alimentos.

Revista da Ré Fidelidade:

i) repartição da culpa no acidente; ii) quantum indemnizatório por perda do direito à vida.


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Fundamentação de facto:

1. A A. AA é viúva e a sua representada CC é a única filha de DD, conforme docs. 1 e 2 da PI.

2. que faleceu em .../.../2022, vítima de acidente de viação, conforme doc. 3 da PI.

3. e de quem são as únicas e legais herdeiras, não havendo quem as pretira ou com elas concorra à respetiva sucessão, conforme doc. 4 da PI.

4. Conforme relatório de autópsia médico-legal realizada no âmbito do inquérito n.º 499/22.4..., do DIAP de ..., ... Secção, para averiguação do crime de homicídio por negligência (que originou a acusação constante do doc. junto a 31/05/2024), a morte de DD foi devida às lesões traumáticas crânio-encefálicas e torácicas resultantes de traumatismo de natureza corto-contundente ou como tal atuando, tal como o que pode ter sido devido a acidente de viação, colisão do motociclo (em que a vítima era condutor) com a viatura automóvel, com projeção, conforme documentos 5 e 6 da PI.

5. Acidente ocorrido a .../.../2022, na R. ... em ..., em que foram intervenientes o motociclo da marca YAMAHA, com a matrícula ..-..-NG, tripulado pela vítima e o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Mercedes Benz, com a matrícula AO-..-NZ, conduzido por BB, residente na R. ..., em ..., ..., ambos conduzidos no interesse dos próprios.

6. Dá-se por reproduzido o teor do doc. 7 da PI e doc. junto a 04/06/2024, relativamente ao veículo de matrícula ..-..-NG, pertença e conduzido por DD, sem seguro válido.

7. O AO-..-NZ era propriedade do condutor BB, residente na R. ..., em ..., ..., com registo a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel, conforme doc. 8 da PI.

8. A responsabilidade civil derivada de acidentes de viação causados pelo AO-..-NZ estava transferida para a R. pela apólice n.º ..........00 válida à data do acidente, conforme doc. 1 da contestação.

9. O local do acidente é uma via urbana, com limite de velocidade de 50 km/h, com duas faixas de rodagem, uma no sentido ascendente que permite a circulação de sul para norte, ou seja, E.../P... e outra em sentido descendente, que permite a circulação de norte para sul, ou seja, P.../E..., sendo a distância entre a saída da Rotunda do ... e o local do embate não superior a 80 metros.

10. No momento do acidente a via estava iluminada, o piso estava em bom estado de conservação e limpo e o estado do tempo era bom/seco.

11. O ..-..-NG circulava no sentido sul/norte e ao aproximar-se do entroncamento na via de uma outra à direita, esta devidamente assinalada com sinal de “stop”, foi surpreendido pelo AO-..-NZ.

12. Que entrou na via por onde circulava o ..-..-NG, para virar à esquerda e tomar o sentido norte/sul da R. ..., cortando-lhe a trajetória e obstruindo por completo a hemifaixa de rodagem que competia ao ..-..-NG, desse modo intercetando a circulação/marcha deste veículo, que por isso foi colidir com a parte da frente na parte lateral esquerda do AO-..-NZ.

13. Após a descrita colisão, o motociclo ficou na hemifaixa direita da via, atento o seu sentido de marcha, o condutor e vítima do acidente prostrado na mesma paralelamente ao eixo com a cabeça virada para sul E...) e, o AO-..-NZ a ocupar essa hemifaixa e parcialmente a hemifaixa de rodagem contrária, esta ocupada com a frente deste veículo direcionada para sul, tendo a estrada no local a largura de cerca de 6,50 m e cada hemifaixa a largura de cerca de 3,25 m. 14. Do descrito acidente resultaram para a vítima, como seu efeito direto e necessário, as lesões referidas em 4., de que causal e adequadamente resultou a sua morte.

15. A vítima nasceu em ...-...-1983, pelo que tinha à data do acidente que o vitimou 38 anos de idade, conforme doc. 15 da PI.

16. Era condutor manobrador, atividade profissional que desempenhava por conta e à ordem da “E..., S.A..”, com sede na Av. ..., em ...; auferia o salário base de € 800,00 x 14 meses, conforme doc. 9 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

17. A A. AA nasceu em ...-...-1986, pelo que à data do acidente tinha 36 anos de idade, conforme doc. 10 da PI.

18. A A. AA está desempregada e inscrita no Centro de Emprego como candidata a emprego, conforme doc. 11 da PI.

19. A sua filha e da vítima nasceu em ...-...-2006, pelo que tinha 16 anos à data do acidente, tendo sido reguladas as responsabilidades parentais a ...-...-2020, conforme doc. 2 da PI.

20. Frequentava em 2022 o curso profissional da A... em ... que dá a equivalência ao 12.º ano, conforme doc. 12 da PI.

21. Não têm bens, nem rendimentos e vivem de favor em casa da mãe e avó, EE, viúva, na morada indicada nos autos, que lhes dá cama e mesa, por ser total a carência económica e financeira das AA., a partir da morte da vítima, apenas mitigada pela reparação provisória resultante da providência cautelar.

22. A vítima era uma pessoa saudável, ágil, alegre, com vontade de viver e empreender.

23. A A. pagou as despesas de funeral da vítima que ascenderam a € 1 689,50, conforme docs. 20 e 21 da PI.

24. eliminado. (julgado não provado pela Relação).

25. eliminado. (julgado não provado pela Relação).

26. Face às disponibilidades garantidas pelo rendimento de trabalho da vítima, tinha a sua filha CC a expectativa de viver desse rendimento de trabalho pelo menos até aos vinte e cinco anos de idade, garantindo com o mesmo a sua formação académica.

27. Em consequência da morte da vítima, a CC, além de ter ficado privada da sua convivência, de que tem saudade, sofreu e sofrerá de desgosto.

28. Foi proposta providência cautelar de arbitramento de reparação provisória com o n.º 3080/ 22.4... do Juízo Local Cível de ..., que terminou por transação, homologada por sentença notificada às partes em 04-11-2022, onde se fixou a quantia anual a pagar pela R. de € 7 800,00 a imputar, primeiro, a título de danos patrimoniais e, o eventual excedente, a título de danos não patrimoniais, com novo adiantamento de € 7800,00 a partir de 03-11-2023, no caso de a ação ainda estar pendente, conforme docs. 18 e 19 da PI.

29. O ISS pagou à viúva e à filha do beneficiário falecido, DD, a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência, o montante global de € 8 142, 27, conforme documentos juntos com o pedido de reembolso de 27-01-2023 e a ampliação do pedido de 27/05/2024.

30. O NG seguia a uma velocidade de cerca de 61 km/h e, ao deparar-se com a entrada na via do AO (que saía de um parque de estacionamento através de uma via que entronca pela direita com a ... e com sinal de Stop), tentou desviar-se e posteriormente travar, originando rastos de travagem de oito metros, mas sem conseguir evitar o embate (a cerca de 51 km/h para o NG no momento da colisão), que ocorreu quando o AO ainda se encontrava na hemifaixa de rodagem do NG, no sentido E.../P....

31. O condutor do AO, BB, circulava com uma taxa de álcool no sangue de 0,55 g/l, o que, com a margem de erro, corresponde a uma taxa de álcool no sangue de 0,504 g/l, o que afetou a sua capacidade de perceção dos demais utentes da via, estando diminuídas as suas capacidades de atenção, concentração, perceção e reflexos.

32. A vítima levava o capacete colocado na cabeça aquando do embate, conforme doc. 6 da PI e doc. 1 junto a 12-07-2023.

33. A amostra de sangue da vítima para exame toxicológico, designadamente quanto ao álcool, foi colhida na autópsia, de sangue periférico, no dia 29-06-2022, a partir das 15H00, ou seja, pelo menos 84 horas após a declaração de óbito da vítima, que ocorreu às 03H25m do dia 26-06-2022.

34 - O NG seguia a uma velocidade de cerca de 61 km/h e, ao deparar-se com a entrada na via do AO (que saía de um parque de estacionamento através de uma via que entronca pela direita com a Rua ... e com sinal de stop), desviou-se primeiro para a esquerda e em seguida para a direita e travou, originando rastos de travagem de oito metros, mas sem conseguir evitar o embate (a cerca de 51 km/h para o NG no momento da colisão), que ocorreu quando o AO ainda se encontrava na hemifaixa de rodagem do NG, no sentido E.../P.... (aditado pela Relação).

35 - A vítima DD conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,66 g/l, o que afetou a sua atenção, concentração, perceção e reflexos. (aditado pela Relação).

Factos julgados não provados.

a) O falecido DD conseguia, mensalmente e em média, um rendimento líquido de mais de mil euros.

b) passou a integrar os factos provados sob o nº 35, por decisão da Relação.

c) O condutor do AO parou no Stop durante segundos e apercebeu-se que não circulava qualquer veículo na Rua ..., a mais de 100 ou 120 metros, a que tivesse de dar prioridade, inexistindo perigo ou embaraço para o trânsito e assim ingressou na hemifaixa da direita no sentido Norte/Sul, P.../E....

d) Não foi possível visionar os faróis do motociclo, que embateu no AO apesar de estarem livres alguns metros na hemifaixa de rodagem do motociclo, o que lhe permitia passar sem embater no AO.

e) O motociclo percorreu a distância da Rotunda do ... ao ponto de embate em menos de dois segundos, o que tornou impossível ao condutor do automóvel, não obstante ter parado, aperceber-se da sua presença.

Fundamentação de direito.

A revista da Autora:

A Recorrente insurge-se contra o acórdão recorrido que na reapreciação da matéria de facto alterou esta, julgando não provados os factos fixados na sentença nos pontos 24 e 25, onde constava o seguinte:

24. Face à sua situação de desemprego e às disponibilidades garantidas pelo salário da vítima, a A. tinha a expectativa de viver por muitos anos do rendimento de trabalho da vítima.

25. Em consequência da morte da vítima, a A. AA, além de ter ficado privada da sua convivência, sofreu e sofrerá de desgosto.

A Relação justificou a alteração da matéria de facto nos seguintes termos:

“… atenta a prova documental iniludivelmente produzida no sentido de que, volvidos 19 dias sobre o óbito de DD, AA se dá como residente em morada diferente daquele à data do seu óbito e que o poder paternal de CC foi regulado logo após o nascimento da filha de AA, ficando claro que DD e AA viveram separados, este tribunal gerou a convicção de que a separação entre ambos se manteve.

De acordo com as regras da experiência, não seria expectável que AA e DD voltassem a viver juntos na sequência do nascimento de filha de AA e de terceira pessoa, e, a ter tal ocorrido, teria que ter sido produzido a atinente prova, o que, manifestamente, não ocorreu. Ao invés, provou-se mesmo que as moradas da A. e da vítima eram diferentes e a prova testemunhal foi inconsistente. Não é verosímil que, datando a homologação do acordo alcançado entre AA e DD de ...-...-2020, estes tivessem voltado a viver juntos após o nascimento de FF em ...-...-2020. Mesmo concedendo que tal pudesse ocorrer, não existiria, então, fundamento para a regulação das responsabilidades parentais.

Neste conspecto, afigura-se-nos não ter sido produzida prova minimamente convincente de que, face à sua situação de desemprego e às disponibilidades garantidas pelo salário da vítima, a A. tivesse a expetativa de viver por muitos anos do rendimento de trabalho daquela. Vivia separada do marido, tinha tido uma filha de outro homem e as responsabilidades parentais da filha que tinha em conjunto com DD tinham sido reguladas, o que não deixa dúvidas de que o pai e a mãe não viviam juntos. Não é, por isso, razoável que tivesse a expetativa de que DD, que auferia um vencimento de € 800, 00 mensais e contribuía para o sustento da filha do casal, providenciasse indefinidamente pelo seu sustento.

Pela mesma ordem de razões, a A. AA não ficou privada do convívio com a vítima.

Quanto ao sofrimento que possa ter tido, a verdade é que a única prova produzida foi a aquiescência de GG à pergunta da mandatária da A. sobre o transtorno psicológico causado pela morte de DD. No contexto de separação que vimos de descrever, não tendo sido produzida prova razoável do que AA possa ter concretamente sentido perante o ocorrido, também a matéria do facto 25 deverá ser dada como não provada.”

Ou seja, a partir de factos provados documentalmente, a saber, entre outros, o nascimento em ........2020 de uma menina registada como filha da Autora e de um terceiro, da homologação em ........2020 do acordo relativo ao exercício do poder paternal da menor CC (então com 14 anos), do facto de a Autora e o falecido terem residências diferentes, Relação concluiu por presunção judicial que embora casados estavam separados, não poder dar-se como provado que a Autora tinha a expectativa de viver por muitos anos do rendimento de trabalho da vítima, e que em consequência da morte da vítima, a A. AA, “além de ter ficado privada da sua convivência, sofreu e sofrerá de desgosto.”

Presunções, nos termos do art. 349º do CCivil, são “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. Trata-se de um método de valoração da prova a que se deita mão em condições particularmente árduas na formação da convicção do julgador quando não há acesso à prova directa de factos, restando o recurso a indícios claros e seguros e regras da experiência e normalidade, livremente apreciados.

O Supremo Tribunal de Justiça tem decidido, de modo constante, que as chamadas presunções naturais, judiciais ou de facto, constituem “meios de prova” mediata, cuja força probatória é apreciada livremente pelas instâncias. E sendo elas retiradas dos factos provados constituem, também elas, matéria de facto, pelo que são insindicáveis por este Supremo, enquanto tribunal de revista (cfr., por todos o Acórdão deste STJ de 15.10.2013, CJ/STJ, 2013, t. 3, pag. 100).

Constitui igualmente jurisprudência pacífica que os poderes do STJ no domínio das presunções judiciais resumem-se ao controlo da observância dos respectivos pressupostos legais – designadamente, a logicidade da ilação de factos essenciais a partir de factos instrumentais dados como provados -, o que não abarca a substância dos juízos probatórios das instâncias (cfr. o Acórdão do STJ de 15.09.2016, P. 207/09, entre outros citados por Abrantes Geraldes, Recursos (….), Almedina, 5ª edição, p. 408).

Significa isto que a decisão da Relação sobre a matéria de facto não pode ser sindicada pelo STJ, cujos poderes em matéria de facto são muito restritos, só podendo dela conhecer quando ela tiver resultado da violação de uma norma jurídica que fixe a força de determinado meio de prova (art. 674º, nº3, do CPC), ou no caso de conclusões retiradas por presunção judicial, em caso de manifesto ilogismo, situações excepcionais que no caso não se verificam.

Em suma, o acórdão recorrido não incorreu em violação da lei de processo (art. 674º, nº1, b) do CPC, e também não sofre das nulidades que a Recorrente lhe imputa (art. 615º, nº1, alíneas b), c) e d)), na medida em que encontra fundamentado de facto e de direito, não ocorre contradição entre os fundamentos e a decisão, nem conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.

Na base da pretensão indemnizatória formulada pelas AA está o acidente de viação ocorrido em .../.../2022, que vitimou o marido e pai das AA, DD, que na altura conduzia o motociclo matrícula ..-..-NG, e o veículo ligeiro matrícula AO-..-NZ, conduzido pelo seu proprietário e segurado na Ré. As instâncias consideraram ambos os condutores culpados no acidente, na proporção de 20% para o condutor do motociclo e 80% para o condutor.

A Recorrente não questiona a decisão quanto à culpa no acidente, mas apenas a parte do acórdão recorrido que revogou a sentença que lhe havia reconhecido o direito a alimentos por período de 40 anos e condenou a Ré a pagar-lhe a este título a quantia de €115.200,00. Sustenta a Recorrente que do facto de ser casada com a vítima e se encontrar desempregada, “tinha a expectativa de viver muitos anos do rendimento do trabalho do marido”, direito que fundamento nas disposições dos arts. 495º, nº3, 1675º e 2009º, todos do Código Civil.

Vejamos.

O art. 495º nº3 do CCivil prevê o direito de indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal, pelo dano de perda de alimentos, estatuindo que “Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.”

Está em causa um direito próprio do terceiro pelo prejuízo (lucro cessante), com a perda de rendimentos que o falecido, no caso o marido da autora, previsivelmente auferiria (art. 564º do CC), uma vez que, como se sabe, os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de assistência e de cooperação (art. 1672º do CCivil).

A jurisprudência não é unânime quanto ao entendimento da prova que é necessária para o exercício deste direito. Para uns, o alimentando tem de provar a necessidade de alimentos, sustentando outros que tal prova é dispensável, bastando a prova de que, à data da verificação do facto danoso, se estava em situação de legalmente exigir os alimentos.

Neste particular, afigura-se-nos correcto o que se expendeu no Acórdão deste STJ de 04.05.2010, P. 111/04 (Salazar Casanova):

“Se os alimentos estavam efectivamente a ser prestados, não se há-de suscitar dúvida alguma quando o terceiro os reclama, sendo suficiente a prova de que ele é titular do direito a alimentos ou a pessoa a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

Nos casos em que o interessado não recebia nenhuma prestação do lesado, então é que naturalmente se justifica que o interessado demonstre, não apenas que detém a qualidade legal que lhe permite exigir alimentos ao lesado como ainda que deles efectivamente carece.”

No caso dos autos, provou-se é certo que à data do acidente que vitimou DD este e a Autora estavam casados um com o outro, mas não se provou que a vítima prestasse algum tipo de alimentos à Autora, o que com toda a probabilidade não acontecia, considerando que estavam separados um do outro, como mostra o facto de terem residências diferentes, a Autora ter sido mãe em ........2020 de uma criança de outro homem, e ter sido regulado em ........2020 o exercício do poder paternal da filha de ambos. E o facto de se ter dado como provado que a Autora se encontrava desempregada e inscrita no Fundo de Desemprego não é suficiente para lhe reconhecer a necessidade de alimentos uma vez que é uma mulher ainda jovem, tinha 36 anos à data da morte do marido, e não provou que tenha qualquer limitação que afecte a sua capacidade de trabalho.

Visto a matéria de facto apurada não merece censura o acórdão recorrido que revogou a condenação da Ré no pagamento de indemnização à Autora por alimentos.

Com o que improcede a revista da Autora.

A Revista da Ré suscita a apreciação de duas questões: a repartição de culpas no acidente; o quantum indemnizatório pelo dano morte.

Abordemos cada uma delas.

Defende a Recorrente, que a culpa da vítima não deve ser inferior a 60%, isto porque a vítima circulava sob influência de álcool e com velocidade excessiva. As instâncias, como vimos, consideraram ambos os condutores culpados no acidente, na proporção de 20% para o condutor do motociclo e 80% para o condutor do ligeiro.

Considerou a Relação:

“Releva-se que DD seguia a velocidade excessiva para o local (de cerca de 61 km/h), com uma taxa de álcool no sangue de 1,66 g/l, o que afetou a sua atenção, concentração, perceção e reflexos. Quer a velocidade, quer os efeitos do álcool na perceção da realidade e reflexos constituem contributos para a produção e agravamento dos danos.

Pondera-se, quanto ao condutor do AO, que este infringiu a obrigação que sobre si impendia por força do sinal de stop (sinal B2 - paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento).

O sinal de stop ou sinal de pare é um sinal de trânsito que obriga o condutor a parar o veículo antes de entrar numa interseção rodoviária (cruzamento ou entroncamento), devendo ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar.

Enfatiza-se que o potencial ofensivo do veículo automóvel é substancialmente superior ao do motociclo, encontrando-se o condutor deste último sobremaneira indefeso.

Embora a velocidade excessiva, aliada ao embotamento dos sentidos do condutor do motociclo, tenha concorrido para o agravamento dos danos, não constitui fator determinante do embate em termos de causalidade adequada.

É o facto de o condutor do AO ter intercetado a via quando se lhe deparava o sinal de stop que determina o embate, mesmo tendo detido a marcha ou avançado muito lentamente.

Tudo visto, entende-se que a proporção fixada em 1.ª instância com reflexo na medida da indemnização foi adequadamente ponderada 80% para o interveniente e 20% para DD.”

Concorda-se com este entendimento.

O condutor do AO incorreu numa violação clara da regra do art. 31º do Cód. Estrada que determina dever o condutor que sai de um parque de estacionamento ceder passagem, e desrespeitou um sinal de stop. Como é jurisprudência mais que consolidada, a inobservância de leis e regulamentos, como sejam os que se reportam ao trânsito rodoviário, faz presumir a culpa na produção dos danos, bem como a existência de causalidade (v., por todos o Acórdão do STJ de 01.02.2000, BMJ 494, p. 283).

A comportamento do condutor do AO – desrespeito de um sinal de STOP ao sair de um parque de estacionamento – invadindo a meia faixa de rodagem do motociclo, que apesar de travar não conseguiu evitar embater no ligeiro, foi o facto determinante para a eclosão do acidente, sendo correcto considerá-lo o principal culpado. A vítima também não está isenta de culpas, não só por seguir a velocidade superior à máxima permitida no local, e por conduzir sob o efeito do álcool, de 1,6 g/l, que não pode ter deixado de afectar as suas capacidades essenciais para conduzir em segurança, por serem consequências cientificamente comprovadas da condução sob o efeito do álcool as mencionados pela Relação.

Á vista do que antecede pensamos que o julgamento das instâncias nesta parte é de confirmar, e adequado repartir as culpas em 80% para o condutor do AO e 20% para a vítima.

Resta, como última questão a apreciar, a indemnização pelo dano morte.

Neste particular, as instâncias dissentiram, com a sentença a fixar a indemnização em €70.000,00 e o acórdão a fixar o quantum indemnizatório em €100.000,00.

A Recorrente defende que a indemnização não deve exceder os €70.000,00.

O inconformismo da Recorrente é em parte justificado.

É indiscutível que o dano pela perda da vida é indemnizável – art. 496º, nº2, do CCivil – nem isso é questionado.

A jurisprudência mais recente deste tribunal tem ressarcido este dano em valores na ordem dos €80.000,00. (cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 25.02.2021, P. 4086/18, e de 13.05.2021, P.10157/16).

Isso mesmo foi afirmado no acórdão do STJ de 19.01.2023, P. 347/21.8T8PNF.P1.S1 (João Cura Mariano), em que se escreveu o seguinte: “Na fixação da indemnização do dano da perda da vida, tendo em consideração que não é o lesado que vai beneficiar da quantia indemnizatória, o valor a atribuir deve reflectir uma censura à conduta do lesante e sinalizar a importância do bem jurídico supremo sacrificado, conferindo-lhe uma tutela que satisfaça as exigências de um Estado de direito democrático, necessariamente atento à reparação dos danos injustamente provocados pela conduta de outrem, sendo aconselhável seguir-se uma orientação padronizadora; o valor padrão desta indemnização que nos últimos tempos tem norteados a jurisprudência dos tribunais superiores tem rondado os €80.000,00, avultando como critério diferenciador o grau de culpa do lesante.”

Vale isto por dizer que de acordo com a orientação que tem sido seguida neste tribunal, fixa-se em €80.000,00 o quantum indemnizatório pelo dano morte.

A indemnização por danos não patrimoniais próprios atribuída à Autora CC, no montante de €24.000,00 (€30.000,00 x 80%), não foi impugnada na revista.

Em conclusão: improcede a revista da Autora e procede em parte a da Ré, com alteração do acórdão recorrido por força do quantum indemnizatório pelo dano morte ora fixado, atribuindo-se a cada uma das AA a indemnização de €32.000,00 (€80.000,00 x 80%: 2).

Decisão.

Em face do exposto, decide-se:

- Negar provimento à revista da Autora;

- Conceder em parte a revista da Ré e, em consequência, alterar o acórdão recorrido, condenando a Ré a pagar a cada uma das AA a quantia de €32.000,00 (trinta e dois mil euros) como compensação pelo dano morte, mantendo-se tudo o mais decidido na Relação.

Cada uma das Recorrentes suportará as custas na medida do decaimento.

Lisboa, 17/06/2025

Ferreira Lopes (relator)

António Barateiro Martins

Rui Machado e Moura