RECURSO DE REVISÃO
ADMISSIBILIDADE
DOCUMENTO
JUNÇÃO
CASO JULGADO
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
USO ANORMAL DO PROCESSO
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário


I. É jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça a interpretação da exigência de que o documento, apresentado ao abrigo da alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil como fundamento de recurso de revisão, seja, “por si só, suficiente para modificar a decisão” cuja revisão se pretende “em sentido mais favorável à parte vencida”, no sentido de que é necessário que a sua eficácia probatória seja tal que, sem necessidade de conjugação com outros elementos probatórios, permita concluir que a decisão a rever deva ser alterada.
II. Em conformidade com esta exigência, o efeito de se considerar procedente o fundamento da revisão é o de se revogar a decisão a rever e de se proferir “nova decisão, procedendo-se às diligências absolutamente indispensáveis e dando-se a cada uma das partes o prazo de 20 dias para alegar por escrito” (al. a) do artigo 701.º do Código de Processo Civil.
III. A justificação substancial desta exigência encontra-se na protecção do caso julgado da decisão de cuja revisão se trate; sem que se possa desconsiderar o significado de que esta protecção se reveste para a segurança dos direitos e, em ultimo caso, para a paz social, merecendo a protecção constitucional que lhe é conferida.
IV. A interpretação extensiva advogada – e que equivale a entender a só por si significaria ainda que conjugado com outros meios de prova – não é conciliável, nem com a letra, nem com a razão de ser da exigência da eficácia só por si do documento.
V. O fundamento previsto na al. g) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, que corresponde ao recurso extraordinário de oposição de terceiro, que era um recurso extraordinário autónomo até à reforma de 2007, abrange apenas, tal como sucedia com a oposição de terceiro, as hipóteses nas quais o próprio litígio que constituía o objecto da acção na qual veio a ser proferida a decisão a rever era simulado.
VI. Se o juiz tiver elementos para alcançar “a convicção segura” de que o litígio é simulado ou, ainda, de que as partes usam o processo para “conseguir um fim proibido por lei”, o artigo 612.º do Código de Processo Civil confere-lhe os poderes necessários para impedir o objectivo que visavam alcançar.
VII. Não tem fundamento a interpretação segundo a qual a referida al. g) abrange situações de alegação de fraude que uma das partes numa acção atribua à contraparte de uma acção que, entretanto, foi decidida com trânsito em julgado.
VIII. Não é exacto que a lei tolere a fraude, se provier de uma das partes. É sancionada pela lei substantiva e pela lei processual, neste último caso, nos termos da litigância de má fé (cfr. al. d) do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil).
IX. Não se encontram em situações materialmente iguais os terceiros que têm legitimidade para interpor recurso de revisão de decisões proferidas em litígios simulados para os prejudicar e as partes de uma acção, na qual ficaram vencidas, e que consideram que a contraparte recorreu a fraude ou a conluios com terceiros para obter vencimento na acção.
X. A interpretação adoptada para a al. g) do artigo 696.º é adequada (protege terceiros em relação à acção a que são estranhos), necessária (por serem terceiros, será fácil que apenas tenham conhecimento da decisão que os prejudica após o trânsito em julgado) e proporcional em sentido estrito (confere direitos de anulação da decisão a terceiros que não foram partes na acção, em medida que não se considera excessiva por confronto com a situação das partes e, sobretudo, da segurança jurídica.
XI. Esta interpretação não viola, assim, os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.

Texto Integral

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora foi indeferida a reclamação apresentada por AA contra o despacho de rejeição liminar do recurso de revisão que a reclamante interpusera, ao abrigo das als. c) e g) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, do acórdão da mesma Relação de 16 de Outubro de 2023, proferido na acção de revindicação do prédio situado na Rua do ..., n.º 7, em ..., concelho de ..., proposta por BB e mulher, CC, e que confirmara a sentença nela proferida.


A referida sentença julgara totalmente procedente a acção de reivindicação, na qual os então autores haviam pedido que se declarasse que o prédio identificado em 1 da petição inicial (desta forma: “prédio urbano sito na Rua do ... n.º 7, ..., freguesia do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...51 da dita freguesia, a seu favor registado pelo AP ...9 de 2018/11/28 inscrito na matriz sob o artigo ..42”) era “propriedade exclusiva dos AA.” e que os réus fossem condenados a reconhecer “a propriedade dos AA. sobre o identificado prédio e, a restituí-lo no seu estado actual aos seus legítimos proprietários”, “a demolir o portão que impede os AA. de acederem ao seu identificado imóvel”, “a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte dos AA. do dito imóvel” e “a pagar aos AA. uma indemnização de € 50,00 diários, pela impossibilidade de fruição do imóvel, desde a data da citação até à entrega efectiva do mesmo”; e totalmente improcedente a reconvenção, na qual os réus haviam pedido que fossem “reconhecidos (…) como proprietários do prédio URBANO, sito em ..., freguesia do ..., com área coberta de 50,50 m/2 e descoberta de 32 m/2, composto de rés-do-chão com duas divisões, cozinha e anexo com uma divisão para arrumos, inscrito na respectiva matriz sob o Artigo 3.492, descrito na conservatória do registo predial de ... sob o nº ...51, da sobredita freguesia, por aquisição resultante do direito de USUCAPIÃO”.


Para assim decidir, a sentença julgara provado o seguinte:


“1. Por sentença proferida em 15.05.2018., transitada em julgado a 14.06.2018., foi homologado o acordo judicial de partilha dos bens da herança deixada pelos pais do Autor, BB, e da Ré, AA, no processo de Inventário com o número 941/14.8..., que pendeu no Juiz ... deste Juízo de Competência Genérica de ...;


2. Nessa sentença foram adjudicados os seguintes bens:


- A BB:


a) VERBA 2 - ESPINGARDA, com valor de € 250,00,


b) VERBA 12 - Um prédio RÚSTICO sito no lugar dos ..., em ..., freguesia do ..., com área de 5.625 M/2, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo .76, da secção AA, com o valor de €25.300,00,


c) VERBA 13 - 10.000/42.275 Prédio RÚSTICO denominado ..., sito no lugar das ... freguesia do ..., com área de 42.275 M/2, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo 52, da secção X, com o valor de €20.300,00,


d) VERBA 14 - 1/3 Prédio RÚSTICO sito no lugar dos ..., em ..., freguesia do ..., com área de 38.114 M/2, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo 89, da secção J, com o valor global de € 240.000,00, com o valor de € 80.000,00


- Verbas que constituem o legado do interessado BB:


VERBA 3- Um prédio URBANO sito em ..., freguesia do ..., com área coberta de 50,50 M/2 e descoberta de 32 m/2 composto de rés-do-chão com duas divisões, cozinha e anexo com uma divisão para arrumos, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo ...42, com o valor de € 25,000,00,


VERBA 4 - Um prédio URBANO sito em ..., freguesia do ..., com área coberta de 36 M/2 composto de três divisões destinadas a habitação inscrito na respetiva matriz sob o Artigo ..97, com o valor de €12.500,00,


- A AA:


a) VERBA 7 Um prédio RÚSTICO sito no lugar na ... em ..., freguesia do ..., com área de 1.392 M/2, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo 68, da secção J, com o valor de € 30.500,00,


- Verbas que constituem o legado da interessada AA:


3.1.a) VERBA 5 - Um prédio URBANO sito em ..., freguesia do ..., com área coberta de 25,33 M/2 e descoberta de 60 m/2 composto de rés-do-chão com duas assoalhadas e adega, com logradouro, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo ..54, com o valor €12.500,00,


3.2.b) - VERBA 6 - Um lote de Terreno destinado a construção Urbana sito em ..., freguesia do ..., com área de 361,50 M/2, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo ..40, com o valor de € 70.000,00,


3.2.c) - VERBA 15 - Um prédio URBANO sito em ..., freguesia do ..., com área coberta de 96 M/2, composto de rés-do-chão com uma divisão destinada a arrecadação, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo ..09, com o valor de € 33.500,00;


3. Os pais do autor legaram a este o prédio com o artigo matricial 3.492, freguesia do ...; cfr. acórdão da Relação:


4. Os RR., tirando partido do facto de o dito prédio se encontrar no interior de uma propriedade murada que em parte lhes pertence, impedem os AA. de ali aceder;


5. Uma vez que, colocaram no muro que veda toda a propriedade, um portão em chapa metálica com cerca de dois metros de altura, o qual está permanentemente fechado com chave;


6. E assim, só permitem a entrada na propriedade a quem os RR. bem entendem;


7. Vedando o acesso dos autores ao seu imóvel correspondente ao prédio sito na Rua do ..., ..., freguesia do ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...51 da dita freguesia, a seu favor registado pelo AP ..89 de 2018/11/28 e inscrito na matriz sob o artigo ..42;


8. Os RR. através de terceiros, exploram o imóvel como alojamento local exploram o prédio sito na Rua do..., ..., freguesia do ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...51 da dita freguesia, a seu favor registado pelo AP ..89 de 2018/11/28 e inscrito na matriz sob o artigo ..42, publicitando-o na internet no portal airbnb com a designação de “C... .. .........”;


9. Cobrando estadias a turistas e visitantes, quer nacionais quer estrangeiros, por valores que variam entre os € 40,00 e os € 80,00 por noite, em função da época do ano;


10. Sem darem dividendos de tais valores aos autores;


11. Os Réus ponderaram e ponderam vender o imóvel que os Autores reivindicam na presente ação, mas face a esta demanda tem afastado os interessados compradores;


12. Na altura da outorga dos testamentos juntos aos autos, as relações da autora com o sogro eram más (cfr. despacho de rectificação de 09-05-2022);


13. E nessa mesma altura os autores e os réus estavam desamistados;


14. Os réus desde, pelo menos, 2002 que utilizam e detêm, como fossem proprietários e à vista de todos, passando férias e fins-de-semana, recebendo amigos e familiares, e realizaram obras de remodelação, o/no prédio sito na Rua do ..., nº 7, ..., freguesia do ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...51 da dita freguesia, a seu favor registado pelo AP ..89 de 2018/11/28 e inscrito na matriz sob o artigo ..42;


15. Em tais testamentos, os pais do Autor legaram-lhe, além do prédio urbano sito em ..., freguesia do ..., com área coberta de 36 m/2 composto de três divisões destinadas a habitação, inscrito na respetiva sob o artigo ..97, um prédio urbano correspondente ao artigo matricial ...42, da freguesia do ...;


16. Nos testamentos dos pais do Autor e da Ré está escrito que os imóveis legados à Ré, AA, têm o número matricial n.º ..54 e o outro o número matricial n.º ..09;


17. Nos testamentos dos pais do Autor e da Ré está escrito que os imóveis legados ao Autor, BB, têm o número matricial n.º ..92 e no mesmo sítio, contíguo ao anterior, o prédio com o número matricial n.º ..97;


18. Pouco tempo após o óbito dos testadores, o aqui Autor requereu neste Tribunal, no ano de 2002, o referido processo de inventário para partilha de todos os bens deixados em herança pelos seus pais e, da R. mulher;


19. Nesse inventário o Autor entendia e foi homologado por sentença que o mencionado prédio com o n.º ..92 lhe pertencia;


20. O prédio urbano sito em ..., freguesia do ..., com área coberta de 25,33 m/2 e descoberta de 60 m/2, composto de rés-do-chão com duas assoalhadas e adega, com logradouro, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo ..54, foi inscrito com a área total de 625,33 m/2.”


E dera como não provado o seguinte:


Com interesse para a decisão da causa não se provou que:


1. O imóvel dos autores localiza-se fora da propriedade murada;


2. O imóvel que os autores reivindicam na presente é o correspondente ao prédio sito em ..., freguesia do ..., com área coberta de 25,33 m/2 e descoberta de 60 m/2, composto de rés-do-chão com duas assoalhadas e adega, com logradouro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..54;


3. Os autores sabem que os dois imóveis legados ao autor pelos seus pais, são dois prédios urbanos confinantes um com o outro, sitos no outro lado da Rua do “...”;


4. Os dois imóveis legados aos Autores sofreram obras de remodelação e neste momento, interligam-se entre si;


5. Os Autores sabem que os pais do Autor e da Ré pagavam as contribuições autárquicas desses dois imóveis e que durante muito tempo esses imóveis, antes das obras de remodelação eram autónomos;


6. Após interpelação ao competente serviço de finanças para esclarecer um lapso relativo ao prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o Artigo ..54, o mesmo informou que foi efetuado levantamento, em 20-03-2013;


7. Por lapso desse serviço de finanças, a área total do prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o Artigo ..54 constava como sendo de 625,33m2;


8. Os A.A. sabem que o prédio urbano sito em ..., freguesia do ..., com área coberta de 25,33 m/2 e descoberta de 60 m/2, composto de rés-do-chão com duas assoalhadas e adega, com logradouro, inscrito na respetiva matriz sob o Artigo ..54, pela sua tipologia, área inicial (até a atual) nunca poderá ser o bem que agora reivindicam e que esse imóvel é o legado à Ré;


9. A presente demanda atormenta e martiriza os Réus;


10. No testamento dos pais do Autor e da Ré existiu erro na identificação dos imóveis legados aos filhos, sendo que os testadores pretenderam legar à filha, AA, o prédio urbano correspondente ao artigo matricial ...42, da freguesia do ...;


11. Existe erro na identificação matricial do prédio o prédio urbano correspondente ao artigo matricial ..42, da freguesia do ..., sendo que devia estar inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..54;


12. Os réus desde, pelo menos, 2002 que utilizam e detêm de modo pacífico o prédio urbano inscrito sob o nº ..42”.


2. Tendo em conta os fundamentos apresentados para o recurso de revisão que está em causa, é útil recordar a justificação constante da sentença, pese embora a sua extensão; e, ainda, lembrar que, no recurso de apelação, foram impugnados os pontos 7 e 9 dos factos provados e 1, 2, 3, 4, 10 e 12 dos factos não provados e pretendeu-se que se acrescentasse aos factos provados “que o muro da propriedade privada foi construído pelos avós do Autor marido e Ré mulher há quase cem anos”:


“A prova dos factos provados 1., 2. e 3. decorrem da ata da conferência de interessados realizada no mencionado processo de inventário, da sentença nela proferida e respetivo trânsito em julgado, que por ser ação que pendeu neste Juízo de Competência Genérica de ... a signatária teve acesso e consultou. Foi um inventário cuja instância se manteve durante vários anos e onde as Partes, onde se mostravam juntos aos autos os quatro testamentos feito por cada um dos seus pais a cada um dos filhos, os aqui Autor e Ré, pelo que as partes já sabiam, nessa altura, no inventário judicial, que por testamento tinha sido legado ao filho, BB, o prédio urbano com o n.º ..92, como consta escrito em dois dos referidos testamentos. Na certidão permanente, emitida pela conservatória do registo predial, relativa ao prédio n.º ..92 consta registado que a propriedade deste imóvel foi adquirida por partilha pelos Autores, sendo sujeitos passivos os Réus.


Os factos provados 4., 5. e 6. resultaram da inspeção ao local para cujo auto se remete.


Os Autores lograram provar que o imóvel legado ao autor marido pelos seus pais é o inscrito na respetiva matriz sob o n.º ..92, desde logo, porque é este número que consta dos dois testamentos relativos ao filho legatário. O Tribunal deve determinar a vontade real do testador socorrendo-se para o efeito das várias afirmações que possam ser retiradas da letra e do contexto do documento, fazendo uso dos meios de prova disponíveis como auxiliares nessa tarefa de interpretação. Assim, para além do número matricial escrito nos referidos dois testamentos (no que foi testadora a mãe e no em que o testador foi o pai) ser o n.º ..92 o qual corresponde ao prédio sito na Rua do ..., ..., freguesia do ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...51 da dita freguesia; a propriedade do imóvel mostra-se registada a favor dos Autores e foi acordado entre as partes, em partilha judicial homologado por sentença transitada em julgado, pertencer efetivamente a BB e CC.


Por seu turno, os Réus não alegaram nem provaram a existência de lapso das Finanças nas áreas, descoberta e coberta, do prédio urbano inscrito sob o artigo ..92, que é o prédio reivindicado. Foi em relação ao prédio urbano inscrito na matriz sob o n.º ..56 que alegaram a existência de lapso das Finanças quanto às respetivas áreas descoberta e coberta, embora sem terem conseguido provar tal lapso e, consequentemente, não lograram, provar que este imóvel é o que, em simultâneo, lhes pertence e o reivindicado. Da leitura cuidada da informação das Finanças que constitui a resposta ao requerimento subscrito pelos Réus visando a correção do alegado lapso, resulta que foi o pai das partes, DD que indicou, através de modelo n.º 129, entregue a 15.11.1983., a área total do terreno do imóvel inscrito sob o n.º ..54 era 625,33m2. E que, 30 anos mais tarde, em 2013, aquando da avaliação do imóvel no âmbito do Código do IMI – Imposto Municipal sobre Imóveis – houve alteração dessa área para 85,33 m2, tendo a aqui Ré, a qualidade de proprietária, sido notificada desta modificação. Na resposta das Finanças não foi mencionado lapso, nem se adotou esta expressão. O que sucedeu foi uma alteração da área do terreno e, consequentemente, da área coberta do prédio urbano inscrito com o n.º ..54 ocorrida em virtude de uma avaliação realizada para calcular o IMI. Não se faz qualquer menção ao prédio urbano inscrito sob o n.º ..92, reitera-se, ou a lapso de identificação do prédio urbano inscrito sob o n.º ..54. Acresce que a área de terreno (descoberta do imóvel), constante na certidão permanente do registo predial relativa ao mesmo imóvel inscrito sob o n.º ..92, é de 32m2 e não de 85,33 m2 nem de 600,00 m2. Poderia existir apenas um indicador de que a vontade dos testadores foi a de legar à filha, Ré nos presentes autos, o imóvel inscrito sob o n.º ..92: constar dos testamentos em benefício do seu irmão, aqui Autor, que os dois imóveis legados a BB são contíguos.


Todavia face à localização do mesmo imóvel (n.º ..92), que se encontra no interior do terreno vedado com o dito muro com portão fechado, não poderia ter sido vontade dos testadores legar ao seu filho um imóvel localizado fora do mesmo muro, que já existia no local às datas dos testamentos como disseram as testemunhas ouvidas a esta matéria de facto (antiguidade do muro).


Das confrontações dos prédios inscritos na matriz sob os n.ºs ..92 e n.º ..54 não se consegue concluir que os testadores quiseram legar a sua filha, aqui Ré, o imóvel identificado com o n.º ..92 correspondente ao prédio reivindicado nos presentes autos. O prédio sob o n.º ..92 confronta a nascente com BB, o aqui Autor, pelo que a intenção dos testadores legarem ao seu filho dois prédios contíguos, poderá ter sido efetivamente concretizada. A juntar a tal hipotético indicador da vontade dos testadores, ainda poderíamos, temos testemunhas a afirmar que a mulher do Autor não se dava bem com o sogro, nem com a cunhada a aqui Ré, e que por isto os irmãos andavam desamigados em vida dos testadores, pelo que nunca o legado a BB podia incluir uma casa contígua ou ao lado da (s) casa (s) de sua irmã.


No entanto, não pudemos esquecer que os Autores beneficiam do efeito da inversão do ónus da prova resultante da presunção advinda do registo da propriedade sobre o imóvel inscrito sob o n.º ..92 a seu favor, cabendo aos Réus o ónus de ilidir essa presunção.


A referência, pelas testemunhas, à falta de amizade entre os irmãos e mau relacionamento entre a Ré e o sogro, EE, não é o bastante para ilidir a presunção de que a propriedade do imóvel inscrito sob o n.º ..92 pertence aos Autores. Não se trata de prova documental nem pericial, que têm maior força probatória do que a testemunhal. E tal prova, por si só, não pode ser relevante para ilidir uma presunção de propriedade.


Os Réus não indicaram como meio de prova a pericial através de levantamento topográfico ao imóvel inscrito na matriz sob o n.º ..92.


Na inspeção judicial ao prédio reivindicado pelos Autores constatou-se tratar-se de um imóvel para habitação, uma casa térrea ou de um piso térreo, composta por uma cozinha/sala e um quarto, e um anexo para arrumos e não de uma adega, e um logradouro. Esta composição do imóvel tem total correspondência com a composição descrita na certidão permanente do registo predial respeitante ao imóvel inscrito sob o n.º ..92 e descrito sob o n.º ...51.


Assim se conclui estar provado o facto 7. e não provados os factos 1. a 11. da factualidade não provada.


O arrendamento turístico, na plataforma informática airbnb, do prédio urbano inscrito sob o n.º ..92, pelos Réus ficou provado pelo documento junto com o requerimento inicial da providência cautelar que se mostra apensada à presente ação principal e por testemunha que confirmou tal situação (factos provados 8., 9. e 10.).


O facto provado 11. derivou do acordo das partes expresso nos articulados.


Os factos 12. e 13. resultaram provados através dos depoimentos da generalidade das testemunhas que depuseram aos mesmos.


Para além das testemunhas amigos dos Réus e que já passaram e passam fins de semana e férias no “...” confirmaram que réus desde, pelo menos, 2002 que utilizam e detêm, como fossem proprietários e à vista de todos, passando férias e fins-de-semana, recebendo amigos e familiares, e realizaram obras de remodelação, o/no prédio sito na Rua do ..., nº 7, ..., freguesia do ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...51 da dita freguesia, a seu favor registado pelo AP ..89 de 2018/11/28 e inscrito na matriz sob o artigo ..42, o Autor sabe disso porque reside em frente e outras testemunhas vizinhas também o afirmaram (facto provado 14). Só que com a instauração do referido processo de inventário, em 2002, pelo aqui Autor e atento o teor dos testamentos, não se pode dar como provado que a detenção e posse do prédio urbano inscrito com o n.º ..92 pelos Réus é pacífica (factos provados 15. a 19. e facto não provado 12.).


O facto provado 20. decorre da certidão permanente do registo predial respeitante ao prédio urbano inscrito sob o n.º ..54.”


3. A sentença fora confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora, por acórdão que também indeferira a impugnação dos referidos pontos da matéria de facto, não admitira documentos juntos com as alegações porque não tinha “sido invocada a sua superveniência ou a necessidade da sua junção por motivo da prolação da douta sentença agora impugnada no recurso”, não conhecera da impugnação relativa “aos pontos 4 e 5 da matéria provada”, por “nada ter sido levado às conclusões do recurso” e não havia sido objecto de recurso, tendo transitado em julgado em 29 de Novembro de 2023, como se pode verificar em certidão constante do citius.


É certo que o acórdão da Relação confirmou a sentença, por unanimidade e com a mesma fundamentação (cfr. n.º 3 do artigo 671.º e n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil); mas é igualmente certo que o Supremo Tribunal de Justiça tem admitido a revista em casos em que se pretenda o controlo da forma como a 2.ª Instância exerceu os seus poderes de apreciação da decisão de facto, nos termos do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil.


Como se escreveu, por exemplo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2020, www.dgsi.pt, proc. n.º 43907.8T8VIS.C1.S1, “(…) está consolidado na jurisprudência deste Supremo Tribunal o entendimento de que, não obstante a convergência decisória das decisões das instâncias, quanto ao mérito da causa, é admissível recurso para o STJ do acórdão proferido pela Relação em que seja questionada a forma como aquela instância usou (ou não usou) os poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º, nºs 2 e 3, do CPC.


O referido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, aliás, observou mesmo que a “solução jurídica que, de resto, nesta sede de recurso, vinha precisamente impugnada pela via da pretendida alteração dos factos provados e não provados – o que se pretendia mudar eram os factos da acção, que o direito acompanharia naturalmente essa mudança (a própria problemática do desfecho do processo, ao tentar transmutar-se a condenação dos Réus numa sua absolvição, parte justamente da reanálise da factualidade, já que, na perspectiva dos Apelantes, não estariam, afinal, provados os elementos fulcrais que a douta sentença considerou que estavam, para concluir pela sua condenação no reconhecimento do direito de propriedade dos Autores e a restituírem-lhes o prédio ora objecto da contenda).”


4. Quer na decisão singular de indeferimento do recurso de revisão, quer no acórdão que indeferiu a reclamação deduzida contra essa decisão, e que agora se encontra sob recurso, interposto por AA, entendeu-se, em síntese, no que respeita ao fundamento constante da al. c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, que não se verificava a exigência de que o documento, “por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida” e, quanto ao que figura na al. g) do mesmo artigo, que a alegação dos recorrentes não configura a simulação do processo que possibilita a um terceiro instaurar recurso de revisão contra uma decisão que dela resultou.


A ré vem, portanto, interpor recurso do acórdão que confirmou uma decisão (individual) proveniente do mesmo tribunal. Todavia, interpõe recurso de revista excepcional, entendendo ocorrer dupla conforme.


No entanto, só a confirmação por acórdão da Relação (por unanimidade e sem ser por fundamentação essencialmente diferente) de decisão da 1.ª instância é que se qualifica como dupla conforme impeditiva de recurso de revista, que, se assim não sucedesse, seria admissível (cfr. n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil).


A revista excepcional é um recurso de revista excepcionalmente admissível, cabendo a decisão sobre a sua admissibilidade à formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do mesmo Código. Nem será assim necessário recorrer à possibilidade de convolação prevista no n.º 3 do artigo 193.º do Código de Processo Civil para tratar o presente recurso como um recurso de revista; que se considera admissível, por estar em causa uma decisão de indeferimento liminar de uma via processual que, estruturalmente, é semelhante a uma acção, na fase de que agora se trata – a fase rescindente do recurso de revisão . Note-se que a desnecessidade de propositura de uma acção autónoma para anulação do caso julgado não afasta esta semelhança; e não está em causa a questão analisada no acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Outubro de 2021, www.dgsi.pt, pro. n.º 32/14.1T8PVL-A.G1.S, no qual se entendeu que não equivale a um indeferimento liminar uma decisão que, num recurso de revisão, julga improcedente o recurso na fase prevista no n.º 1 do artigo 701.º do Código de Processo Civil – o que não é o caso.


Não podendo estar em causa uma revista excepcional, não se determina o envio do processo à formação prevista no n.º 3 do citado artigo 672.º, nem se consideram as alegações na parte em que se referem às razões pelas quais a revista excepcional deveria ser admitida; o que não significa que se deixem por apreciar as questões de que cumpre conhecer.


5. Nas conclusões das alegações apresentadas, e tendo em conta esta advertência, a recorrente suscita as seguintes questões:


«I) – OS FACTOS:


1ª) – A decisão que originou o presente recurso de revisão de sentença foi proferida com base num erro judiciário grosseiro e assenta nos factos que a seguir se expõem.


2ª) – A recorrente e o recorrido são irmãos entre si, com progenitores comuns a saber: FF e DD.


3ª) – A mãe e o pai de ambos já faleceram respectivamente em 26 de Outubro de 2000 e 10 de Agosto 2001, testados.


4ª) – À data da morte e abertura da sucessão do pai de ambos, e por via de testamento, foram legados dois prédios urbanos à recorrente e dois prédios urbanos ao recorrido já amplamente identificados.


5ª) – As descrições que constavam no testamento do pai de ambos não tinham qualquer referência a números de polícia, mas os prédios legados estavam identificados pelos respectivos artigos matriciais urbanos da freguesia do ..., sitos na povoação de ... e todos na mesma rua – a rua dos ....


6ª) – Esses artigos mantêm-se ainda hoje com os mesmos números e os legados foram atribuídos com referência aos artigos matriciais.


7ª) – No ano de 2016, por iniciativa da Câmara Municipal de ... e com a colaboração dos munícipes, foram colocados números de polícia em toda a povoação de ....


8ª) – A recorrente colocou o número de polícia 7 no acesso aos seus dois imóveis, em Fevereiro de 2016, e o recorrido o número de polícia 14 no acesso aos seus dois imóveis, em Setembro de 2016.


9ª) – O material usado pela recorrente (metal) para os números colocados foi totalmente diferente do usado pelo recorrido (azulejos).


10ª) – Para, todavia, porem termo à herança indivisa que abarcava mais outros imóveis rústicos e urbanos, foi instaurado no ano de 2014 um processo de inventário facultativo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, no Juízo de Competência Genérica de ... – Juiz ..., com o número 941/14.8...


11ª) – Até à data da instauração do presente processo e desde 2002 a recorrente teve a posse do prédio ..54, sem que o recorrido reclamasse o que quer que fosse e o recorrido a posse dos prédios ..42 e 1097, também sem conflitos.


12ª) – Nas descrições destes dois prédios (..42 e 1097) consta que são contíguos, um a poente do outro e “mutatis mutandi” este a nascente daquele.


13ª) – O prédio da recorrente ..54 à data da morte de seu pai e do recorrido tinha uma adega com lagar que constava da respectiva descrição predial.


14ª) – À data da morte do pai da recorrente e recorrido mais nenhum dos restantes prédios legados tinha uma adega de facto e em concreto, e tal referência registral não constava das demais descrições prediais, a não ser da já mencionada.


15ª) – O prédio ..54 único que tinha adega foi legado à recorrente e situa-se no actual número 7 da rua dos..., em ..., e foi adquirido por sucessão de seus pais pela recorrente e que o recorrido reivindicou nesta acção, ludibriando dolosamente o (a) Conservador (a) do registo predial de ... e o próprio e douto tribunal, de 1ª instância.


16ª) – O acto de aquisição do prédio em causa foi a sucessão por morte na forma da figura de legado e não a aposição do número de polícia ou o falso registo predial de localização no número 7 da rua dos ..., do prédio com o artigo da matriz ..42 da freguesia do ....


17ª) – Nas adjudicações no identificado processo de inventário o que consta a favor da recorrente e do recorrido corresponde, rigorosamente, às deixas do pai de ambos, vertidas no alegado testamento.


18ª) – Por comparação entre as descrições prediais que constam do testamento, da relação de bens e das adjudicações conclui-se que coincidem “ipsis verbis”.


19ª) – Na descrição predial da recorrente com o número ...49/20020227 existem dois prédios com artigos matriciais, ambos situados no ... (os artigos ..09 e ..54) e os dois com o acesso pelo número 7 de polícia a rua dos ....


20ª) – Na descrição predial do recorrido com o número ...52/20181128 existem dois artigos matriciais, ambos situados no número 14 de polícia, por onde têm acesso na rua dos ... (os artigos ..42 e ..97).


21ª) – A recorrente registou a seu favor os prédios que herdou no ano de 2002 e o recorrido registou os prédios que herdou no ano 2018.


22ª) – A evolução temporal dos registos efectuados na descrição ...52/20181128, pelo recorrido, mostram que a descrição não tinha qualquer averbamento de número de polícia e que depois passou a ter uma menção em Averbamento de que se situava no número de polícia 7 da rua dos ... e actualmente na localização do prédio aparece Rua dos ... 7, em ....


23ª) – O recorrido logrou esta traficância com uma dolosa actuação junto da Câmara Municipal de Sesimbra, havendo sérias suspeitas que o fez acertado com alguém, que todavia se desconhece.


24ª) – O recorrido, inicialmente, apresentou um requerimento em formulário na Câmara Municipal de Sesimbra acompanhado de uma certidão predial da descrição ...52/20181128, uma caderneta predial do artigo matricial ..42, uma planta de uma construção e uma planta de localização estes dois últimos documentos apócrifos, sem autoria e sem assinatura.


25ª) – O recorrido solicitava que lhe fosse certificado que o prédio inscrito na matriz sob o número ..42, da freguesia do ..., em ..., se situava no número 7, na Rua dos ....


26ª) – A pretensão foi apresentada no processo de licenciamento de obra da referida Câmara Municipal, com o número 23/1952 que estava em nome da recorrente e nunca esteve em nome do recorrido.


27ª) – Apesar deste clamoroso desvio à lei, os funcionários da autarquia em causa não puseram obstáculo à prossecução do procedimento e, sobretudo, nunca ouviram a titular do processo administrativo aqui recorrente.


28ª) – A certidão predial junta pelo recorrido ao processo camarário não tinha qualquer referência a número de polícia.


29ª) – A caderneta predial junta pelo recorrido ao processo camarário também não tinha qualquer referência a número de polícia.


30ª) – A planta da construção não estava identificada e não tinha qualquer referência a número de polícia.


31ª) – A planta de localização não estava identificada e não tinha qualquer referência a número de polícia.


32ª) – Perante esta ausência de elementos era impossível concluir que o prédio inscrito na matriz com o artigo ..42 se situava e situa no número 7 de polícia da rua dos ....


33ª) – O processo de licenciamento de obra 23/1952, que está em nome da recorrente corresponde exactamente ao número 7 da rua dos ..., mas ao prédio ..54 e sempre pertenceu a esse prédio e a mais nenhum.


34ª) – Este modo como o recorrido forneceu elementos documentais ao referido procedimento de licenciamento e a emissão posterior de uma certidão sem que nenhum dado deles tivesse ou fizesse alguma alusão ao número 7 da rua dos ... mostra que houve manifesta simulação da localização do prédio com a matriz ..42, quiçá, com a conivência e terceiros.


35ª) – É que a Câmara Municipal de ..., sem qualquer razão lógica e plausível passou a certidão e o “modus faciende” usado pelo recorrido, no seu devir integral só chegou ao conhecimento da recorrente através do novo e claro DOCUMENTO F, em que ficou, finalmente, esclarecida toda a simulação e trama da autoria do recorrido.


36ª) – Qualquer pessoa percebe o logro e embuste montado pelo recorrido que começou em 2018 quando, finalmente, aquele inscreveu a seu favor o prédio ..92, sob a descrição número ...52/2018 11 28.


37ª) – Depois, nos termos amplamente descritos e documentalmente provados, sem qualquer dúvida, obtida a famigerada, manipulada e falsa certidão, o recorrido tratou de averbar, no registo predial, que o prédio inscrito na matriz sob o artigo ..42 se encontra situado no número 7 da ..., freguesia do ....


38ª) – Com o número 7 averbado na descrição predial, em face da referida certidão, número esse que nem sequer foi aposto pelo recorrido no local próprio, mas antes pela recorrente, o recorrido intentou finalmente a presente acção pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre o mencionado prédio e a respectiva entrega.


39ª) – Na douta petição inicial o recorrido não alegou o domínio, nem a presunção registral e desta feita nem o douto tribunal “quo” aludiu a essa presunção legal, pese embora ilidível.


40ª) – Mas aquele douto tribunal deu como provado que o prédio com a descrição predial ...52/20181128 inscrito na matriz predial urbana, da freguesia do ... sob o artigo ..42, situado na rua dos ..., com o número de polícia 7 é propriedade do recorrido.


41ª) – O douto tribunal decide bem quanto, no plano subjectivo, à titularidade domínio, do prédio, mas decide mal quanto à localização do imóvel, porque neste ramo da discussão não se apercebeu da falsidade da certidão aludida.


42ª) – A recorrente tem legitimidade substantiva para apresentar recurso nos termos do previsto no artigo 696º alíneas a) e g), artigo 697º/2 alínea c) e 3 e do artigo 698º/1, e no caso da referida alínea g) do artigo 696º todos do Código de Processo Civil.


43ª) – A recorrente viu sair do seu património e da sua posse o que era e é seu, porque o seu direito de propriedade, não se extinguiu, o que gera um intenso prejuízo.


44ª) – Assim vai alegado aquele intenso prejuízo sofrido pela recorrente com a simulação levada a cabo pelo recorrido quanto à localização do prédio inscrito na matriz predial urbana ..42.


45ª) – Esse prejuízo não é inferior a € 35 000,00 (trinta e cinco mil euros), mas cuja liquidação mais rigorosa se deixa para execução de sentença.


46ª) – O tribunal “a quo” não se apercebeu da referida simulação e do anormal uso do processo que o recorrido concretizou pela forma descrita no DOCUMENTO F que se agora juntou.


47ª) – E pela razão exposta, o douto tribunal de 1ª instância não de estribou numa análise mais “fina” da documentação junta aos autos.


48ª) – No que concerne à legitimidade da recorrente esta tem também interesse em agir em juízo e o recorrido em contradizer pelo que a recorrente e o recorrido são formalmente partes legítimas.


49ª) – O litígio assentou sobre acto simulado do recorrido e o tribunal de 1ª instância não se apercebeu da “fraude” e foi por isso que não fez uso do disposto no artigo 612º do Código de Processo Civil.


50ª) – É que o comportamento do recorrido e as circunstâncias envolventes produz a inequívoca e segura convicção de que aquele se serviu do processo para praticar um acto simulado e assim conseguir um fim proibido por lei.


51ª) – Há um aspecto final de grande relevância, neste domínio, que põe a nu a má intenção do recorrido, qual seja a de que este não pediu o decretamento e extinção do registo sobre o prédio ..54 a favor da recorrente.


52ª) – Com a douta sentença recorrida gerou-se esta realidade totalmente bizarra, já que sobre o edifício em causa existem agora dois registos, um a favor do recorrido e outro a favor da recorrente.


53ª) – A decisão de 1ª instância devia ter obstado ao objetivo anormal prosseguido pelo recorrido e não o fez.


54ª) – Não o tendo feito o tribunal “a quo” cometeu um erro grave e grosseiro que os tribunais portugueses, de forma marcada e vigorosa, definem como erro crasso, clamoroso, evidente, palmar, intolerável, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente.


“II) – PRESSUPOSTOS DO RECURSO DE REVISÃO DA SENTENÇA:


55ª) – O mencionado DOCUMENTO F com o qual o recorrido logrou um averbamento falso no registo predial competente – a Conservatória do Registo Predial de ...) –, é um documento que por si só faz crer, com grande intensidade de prognose que, da nova discussão da causa resultará, agora com toda a transparência, numa decisão favorável à recorrente e ali ré.


56ª) – Ou, retius, este novo documento é suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, a aqui recorrente, por ser evidente por ele, que a certidão emitida pela Câmara Municipal de ... é obviamente uma certidão falsa.


57ª) – O recorrido não referiu nem reclamou quanto a um qualquer prédio sito no número 7 de polícia na Rua dos ... que fosse de sua propriedade até a propositura da presente acção.


58ª) – Acoitou-se no silêncio enquanto urdia a fraude que só ou mancomunado com alguém levou ao alegado erro.


59ª) – Mas para qualquer pessoa, o normal é que o recorrido levantasse a questão relativa a ter um prédio com o número 7 da Rua ... aquando da aplicação dos números de polícia, mas não o fez porque sabia que não tinha nenhum prédio no aludido número 7.


60ª) – É impossível não concluir que tudo se tratou de uma “maquinação” do recorrido.


61ª) – Perante esta factologia decidiu a recorrente deitar mão do instituo de recurso de revisão de sentença previsto no artigo 696º do Código de Processo Civil, com base na previsão genérica e abstracta nas alíneas c) e g) daquele normativo.


62ª) – Procedendo o recurso de revisão de sentença a decisão primitiva ou é revogada ou anulada e conduz, sempre nas circunstância legais, a uma nova decisão.


63ª) – O novo documento deve ter a virtualidade de, pela sua forma e conteúdo, promover a revisão da sentença inicial no sentido favorável à recorrente, mas não pode, nem deve desperdiçar toda a prova documental junta aos autos que habilita o tribunal a uma decisão fundada na certeza dos factos, afastando a arbitrariedade.


64ª) – Existem pois, não um, mas mais documentos novos, que, devidamente conjugados, com intensa relevância para o DOCUMENTO F, permitem concluir pela: a) revisão e inversão do sentido do decreto decisório da douta sentença revidenda; b) e que não foi possível juntar esses documentos no devir da ritologia processual na fase inicial da acção.


65ª) – Na verdade, esses documentos ora juntos eram desconhecidos e só se vieram, agora, a conhecer, tendo a recorrente ficado com a suspeita de que os serviços da Câmara Municipal de Sesimbra, ou alguém no seu seio, agia de molde a ocultar tais documentos, como acima se relatou.


66ª) – De toda trapaça o resultado da douta sentença revidenda foi que o que existia era quatro prédios com artigos matriciais diferentes, mas agregados dois a dois em duas descrições prediais diferentes.


67ª) – A expressão “por si só” deve ser entendida não na sua “frieza literal”, mas querendo significar que o novo documento é bastante para, em articulação com os demais documentos, permitir a inversão do alcance da decisão inical, agora, de forma favorável à recorrente.


68ª) – De tudo o que se disse conclui-se que está preenchido o pressuposto estabelecido no artigo 696º alínea c) do Código de Processo Civil e nesta conformidade a recorrente deduziu pedido no sentido da admissão do recurso de revisão de sentença cuja rejeição lhe foi negada.


69ª) – Por outro lado, a alínea g) do citado artigo prevê como fundamento do recurso de revisão de sentença a simulação estabelecida entre autor e réu com vista a obter um resultado ilícito, desde que o tribunal de 1ª instância se não tenha apercebido do engano.


70ª) – O recurso foi, também, rejeitado por o Colendo Tribunal da Relação de Évora ter entendido que a fórmula gramatical constante do texto do preceito não prever a simulação unilateral, de uma só das partes processuais.


71ª) – Esta interpretação, embora douta, é manifestamente redutora na medida em que “penaliza” a fraude bilateral, mas deixa incólume a fraude unilateral, quiçá mais gravosa, a tocar as raias de comportamentos a merecerem a censura de desvalor jurídico (e ético) até no plano criminal.


72ª) – A forma de superação desta “falha” legislativa é deitar mão de uma interpretação extensiva, com o preenchimento e aplicação de todas as regras contidas no artigo 9º do Código Civil, entendendo-se que o preceito abrange, outrossim, situações de simulação levadas a cabo somente por uma das partes.


73ª) – De tudo o que se disse conclui-se que está preenchido o pressuposto estabelecido no artigo 696º alínea g) do Código de Processo Civil, mas o recurso foi-lhe negado com base na interpretação literal do Venerando Tribunal da Relação de Évora.


III) – PRESSUPOSTOS E ÓNUS DA REVISTA EXCEPCIONAL:


(…)


. 91ª) – A questão da constitucionalidade suscitada pela recorrente radica no respeito pelo “princípio da igualdade” e o “princípio da proporcionalidade” previstos nos artigos 13º e 18º/2 da Constituição da República Portuguesa.


92ª) – Sempre que uma norma reflicta uma discriminação infundada para realidades semelhantes que afectem interesses privados, desmorona-se a igualdade entre os sujeitos de Direito e implode a “princípio da igualdade” dos cidadãos perante a lei.


93ª) – Na sua aplicação imediata o “princípio da igualdade” encontra-se presente no artigo 13º/1 da Constituição da República Portuguesa ao instituir que todos os cidadãos têm a mesma “dignidade social e são iguais perante alei”.


94ª) – Assim sendo a alínea g) do 672º do Código de Processo Civil deve ser declarada inconstitucional, na vertente interpretativa de que aquele preceito se aplica somente à simulação perpetrada entre autor ou autores e réu ou réus de determinado acto, mostrando uma situação falsa e fraudulenta, mas excluindo a simulação unilateral.


95ª) – Por outro lado, o artigo 18º/2 da Constituição da República Portuguesa, sob o título “Força Jurídica” alberga, diríamos, indirectamente, outro relevantíssimo princípio – o “princípio da proporcionalidade”.


96ª) – O exercício da recorrente sobre a interpretação da alínea g) do artigo 696º do Código Civil advêm da relação lógica entre a interpretação literal e limitadora do preceito, que presidiu à tese do Colendo Tribunal da Relação de Évora, e o objectivo que se pretende conseguir no seu alcance teleológico.


97ª) – Com a interpretação preconizada pela recorrente (extensiva e amplificadora), a norma adquire uma dimensão geral que com o sentido dado visa alcançar como ganho de interesse geral.


98ª) – A regra da sempre mencionada alínea g) do artigo 696º do Código de Processo Civil (meio possível) existe para impedir um comportamento desviante das partes processuais, conduzindo à eliminação do erro e obtendo, pela medida justa e adequada, o objectivo do preceito – repondo a legalidade (fim).


99ª) – Aquele comando é inconstitucional na interpretação de que se não aplica à simulação unilateral, porque dá origem a uma desproporção de meios processuais entre os sujeitos de direito colocados numa situação concreta como a dos autos, em defesa de direitos fundamentais (direito de propriedade).


100ª) – Sendo que a posição e interpretação da recorrente nem sequer peca “por excesso” na materialidade do presente caso.


101ª) – O princípio da igualdade é direito fundamental na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que no artigo 20º consagra também a a igualdade dos cidadãs perante a lei.


SÚMULA: O douto tribunal de 1ª instância violou os artigos 1311º e 1316º do Código Civil e o artigo 612º do Código de Processo Civil e o Venerando Tribunal da Relação de Évora violou os artigos 672º alíneas a) e b) , 696º alíneas c) e g), 697º alínea c), do Código de Processo Civil, bem como os princípios consagrados nos artigos 13º e 18º/2 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 20º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, tendo-se presente que os Senhores Juízes não estão s u j e i t os às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. [ignorar-se-á esta súmula na sua primeira parte, por nada ter a ver com o recurso de revisão].


NESTES TERMOS e os melhores de Direito que V. Exªs, Venerandos Conselheiros suprirão, se requer que julguem as presentes CONCLUSÕES por provadas e fundamentadas, revoguem o douto Acórdão recorrido e a não menos douta sentença de 1ªinstância, admitindo o recurso de revisão de sentença, [ignorar-se-á a referência a sentença da 1.ª instância]


6. Os factos que relevam para o presente recurso constam do relatório.


Interessa, todavia, acrescentar:


– que, com as alegações que deram início ao recurso de revisão, a recorrente requereu a produção de prova adicional (elemento particularmente relevante, uma vez que foi um argumento do indeferimento): “depoimento de parte do recorrido BB” (cujo depoimento já havia sido prestado e valorado na acção principal) “aos factos pessoais descritos de I) a LII do número 14” da “minuta de alegações, por se tratar de factos, que são do conhecimento directo do recorrido, que lhe são desfavoráveis e favoráveis à recorrente [ artigo 352º do Código Civil], nos termos do previsto no artigo 452º e seguintes do Código de Processo Civil”, prova documental, “A que já anteriormente foi junta aos autos, o DOCUMENTO F que faz fundamento do recurso (artigo 696º alínea c) do Código de Processo Civil) e a demais documentação que agora se junta”; requerimento de que se faça, “nos termos do preceituado no artigo 432º e 429º do Código de Processo Civil, a notificação do Município de Sesimbra para vir juntar aos autos: Os documentos arquivados na autarquia, nomeadamente, a cartografia do município com os topónimos oficiais, com vista a provar que esses documentos também não provam que o prédio em causa, com o número ..92 da matriz, se situa no número 7 da rua dos ...”; prova testemunhal, sendo que parte das testemunhas indicadas já tinham deposto no processo principal;


­– a reprodução do documento F junto com as alegações que deram início ao recurso de revisão e que é indicado como o seu fundamento, para efeitos do disposto na al. c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil (“… documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, só por si, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”):











7. Posteriormente à interposição do recurso de revisão, a recorrente apresentou um requerimento, dirigido ao Senhor Desembargador Relator, pretendendo a admissão “dos documentos que seguem, por não ter sido possível juntá-los ao processo durante a pendência da acção até ao encerramento da discussão da causa”.


Como sempre caberia ao relator da revista a sua apreciação, indefere-se a requerida junção. O recurso de revisão não admite a junção de outros documentos como fundamento do recurso já interposto, cuja admissibilidade há-de ser apreciada, no caso, à luz do documento F, como tal identificado com a sua interposição (“Não pode a recorrente, de novo, e fazendo vénia pela insistência, deixar de assinalar que também estes documentos por si só, na interpretação já sustentada, permitem alterar a decisão final na acção em sentido favorável à recorrente, julgando a acção inicial improcedente, por não provada, devendo ser revogada ou declarada nula.”).


8. Está agora em causa, apenas, saber se o recurso de revisão é admissível ou se deve ser confirmado o respectivo indeferimento liminar, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 699.º do Código de Processo Civil – no caso, se é manifesta a ausência de “motivo para revisão”.


Essa apreciação implica também o conhecimento das questões de constitucionalidade normativa que são suscitadas, por referência à al g) do artigo 696.º do Código de Processo Civil. Sempre se diz, todavia, que as inconstitucionalidades podem ser atribuídas a decisões judiciais; o seu conhecimento é que se encontra subtraído à apreciação pelo Tribunal Constitucional, tendo em conta que o sistema português de fiscalização concreta da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional apenas lhe permite o controlo de normas aplicadas ou cuja aplicação foi recusada pelo tribunal recorrido, para referir somente os fundamentos mais frequentes dos recursos de constitucionalidade.


Por razões de delimitação de jurisdições, o conhecimento de inconstitucionalidades que se imputem a decisões judiciais compete, apenas, aos demais tribunais.


Não vem ao caso fazer qualquer apreciação sobre a afirmação de que a decisão cuja revisão a recorrente pretende enferma de erro grosseiro: não se trata do recurso de revisão previsto na al. h) do artigo 696.º do Código de Processo Civil; nem tão pouco, portanto, sobre a necessidade ou desnecessidade de obter a prévia revogação da decisão proferida na acção de reivindicação.


9. O presente recurso extraordinário de revisão foi interposto ao abrigo do disposto nas alíneas c) e g) do artigo 696.º do Código de Processo Civil.


É jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça a interpretação da exigência de que o documento, apresentado ao abrigo da alínea c), seja, “por si só, suficiente para modificar a decisão” cuja revisão se pretende “em sentido mais favorável à parte vencida”, no sentido de que é necessário que a sua eficácia probatória seja tal que, sem necessidade de conjugação com outros elementos probatórios, permita concluir que a decisão a rever deva ser alterada. Assim, nomeadamente, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 8325/17.0T8VNG.P1.S1-A e jurisprudência nele citada.


Não tem essa força probatória um documento que, como se diz nas alegações, “mostra, na medida em que se percebe, que o recorrido promoveu a emissão de certidão falsa, com que logrou um averbamento também falso no registo predial competente – a Conservatória do Registo Predial de ...) –, o que por si só faz crer, com grande intensidade de prognose que, da nova discussão da causa resultará, agora com toda a transparência, numa decisão favorável à recorrente e ali ré, ou, retius, este novo documento é suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida aaqui recorrente.”


Como se escreveu na decisão singular da Relação – e se pode comprovar pela transcrição da fundamentação da decisão de facto proferida em 1.ª Instância na acção de reivindicação –, recordando que o “tema central da discussão, apreciação e reapreciação das provas realizada na acção, nas duas instâncias em que o pleito se desenrolou”, foi “a questão da localização do prédio reivindicado”, “Foram ouvidas um total de dez testemunhas e dois depoentes de parte que se reportaram exaustivamente à problemática da localização e dos n.os de polícia tanto do prédio reivindicado, como dos demais aí localizados na sua vizinhança. Além disso, a Mm.ª Juíza da 1ª instância deslocou-se ao local e fez a inspecção e registo do que ali havia, tudo isso tendo contribuído para a decisão do pleito – pelo que nem é verdade que a tal decisão se tenha baseado apenas num qualquer documento, verdadeiro ou falso, que descrevesse o prédio e a sua localização (nunca poderia depender só dele), muito menos, que agora um novo documento pudesse, por si só, alterar o que ali se decidiu justamente com base em variados meios de prova, incluindo a sua inspecção pela Mm.ª Juíza da 1ª instância. Já o Acórdão recorrido sufragou tal análise multifacetada das provas, tendo formado uma sua convicção autónoma também na audição dos depoimentos prestados na audiência de julgamento.”


Note-se, aliás, que, se viesse a entender que o documento F preenchia os requisitos para se revogar a decisão a rever – ou, dizendo melhor, “se o fundamento da revisão” fosse “julgado procedente” –, revogar-se-ia a decisão (corpo do n.º 1 do artigo 701.º do Código de Processo Civil) e proferir-se-ia “nova decisão, procedendo-se às diligências absolutamente indispensáveis e dando-se a cada uma das partes o prazo de 20 dias para alegar por escrito” (al. a) do mesmo n.º 1) – o que é conforme com a exigência de que o documento, só por si, seja apto à modificação da decisão. Compare-se com os termos previstos para as hipóteses das alíneas b) e d) do artigo 696.º (al. b) do mesmo n.º 1 do artigo 701.º).


A justificação substancial desta exigência encontra-se na protecção do caso julgado da decisão de cuja revisão se trate; sem que se possa desconsiderar o significado de que esta protecção se reveste para a segurança dos direitos e, em ultimo caso, para a paz social, merecendo a protecção constitucional que lhe é conferida. Não sendo um valor absoluto, como a jurisprudência constitucional por diversas vezes recordou, “é um valor constitucionalmente tutelado” (cfr., a título de exemplo. O acórdão n.º 86/04 do Tribunal Constitucional, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.


A interpretação extensiva que a recorrente advoga nas alegações não é conciliável, nem com a letra, nem com a razão de ser da exigência da eficácia do documento “só por si”: entender que a lei deveria ser interpretada no sentido advogado pela recorrente – só por si, afinal, significaria ainda que conjugado com outros meios de prova –, conduziria a um sentido que se considera que nenhuma tradução teria na letra do preceito (cfr. n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil), já que seria contrário ao seu texto.


Aqui chegados, torna-se inútil averiguar se estariam ou não preenchidos os demais requisitos exigidos para a admissão do recurso de revisão com este fundamento.


10. No que toca ao fundamento previsto na al. g) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, cumpre começar por dizer que não equivale a qualquer interpretação subjectivista, ou indevidamente apegada à letra da lei, ou reveladora de uma recusa injustificada de uma interpretação extensiva ou actualista:


­– Recordar que a al. g) em questão corresponde ao recurso extraordinário de oposição de terceiro, que era um recurso extraordinário autónomo até à reforma de 2007 (operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto);


­– Considerar que abrange apenas, tal como sucedia com a oposição de terceiro, as hipóteses nas quais o próprio litígio que constituía o objecto da acção na qual veio a ser proferida a decisão a rever era simulado, ou seja, não era um litígio real, mas assente num conluio entre as partes da acção para, através da obtenção de uma decisão judicial, prejudicarem um terceiro – a quem, por isso mesmo, é conferida legitimidade para o interpor, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 631.º do Código de Processo Civil. Dir-se-á que terceiros efectivamente prejudicados por uma decisão proferida numa acção de que não são partes têm legitimidade para dela recorrer (n.º 2 do mesmo artigo 631.º); todavia, se a decisão tiver transitado em julgado, só o poderão fazer interpondo um recurso extraordinário, hoje, um recurso de revisão. E, porque não foram partes na causa, dispõem de um prazo superior ao da generalidade dos casos de recurso de revisão, cfr. n.º 3 do artigo 697.º do Código Civil;


­– Claro que, se o juiz tiver elementos para alcançar “a convicção segura” de que o litígio é simulado ou, ainda, de que as partes usam o processo para “conseguir um fim proibido por lei”, o artigo 612.º do Código de Processo Civil confere-lhe os poderes necessários para impedir o objectivo que visavam alcançar;


­– A interpretação extensiva defendida pelo recorrente não se pode assim considerar, uma vez que não se vê qualquer relação mais abrangente entre a letra da lei e a inclusão, na al. g) agora em causa, de fraude que uma das partes numa acção atribua à contraparte de uma acção que, entretanto, foi decidida com trânsito em julgado. Alega a recorrente que interpretar a al. g) no sentido de que se aplica apenas à simulação das partes ­– rectius, à simulação do litígio pelas partes: o que está aqui previsto é a simulação processual, não uma acção na qual se discuta um acto simulado – não é um argumento válido, “porque abre a porta a uma ilogicidade insustentável, qual seja a de que a lei permitirá o recurso de revisão de sentença, se existir simulação e fraude de ambas partes processuais, mas tolera a simulação e fraude se for de uma só parte e a parte defraudada não pode sindicar a questão num tribunal Superior. A tese contrária é o brocardo de “quem pode o mais pode o menos”. Mas é mais que isso; é a necessidade de se fazer uma interpretação extensiva da norma, considerando que o legislador pensou e disse menos do que devia ter dito, partindo do princípio presuntivo que consagrou a solução mais acertada. Neste caso o sentido e alcance da norma tem de exceder a mera expressão literal, devendo o intérprete e este douto tribunal conceder um alcance material mais extenso e amplo do que advém do texto legal, com o objectivo de alargar a aplicação do normativo, de forma coerente com o pensamento e objectivo do legislador e a equidade. É o já analisado número 1 do artigo 9º do Código Civil, o que implica que se conclua que o legislador disse menos do que pretendia dizer.”


Não é exacto que a lei tolere a fraude, se provier de uma das partes, antes de mais (e só à fraude nos referimos porque, sem prejuízo de se conseguir aplicar o instituto da simulação a certos actos unilaterais, a simulação envolve um conluio). É sancionada pela lei substantiva e pela lei processual, neste último caso, nos termos da litigância de má fé (cfr. al. d) do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil).


Mas, seja como for, a letra e a razão de ser do preceito que confere a um terceiro o direito de anular (n.º 2 do artigo 701.º do Código de Processo Civil) uma decisão judicial que o prejudicou, mesmo após o seu trânsito, não são susceptíveis de justificar a sua extensão de forma a conferir o mesmo direito à parte de uma causa que se considera prejudicada por um acto fraudulento da contraparte, conluiada ou não com terceiros.


­ ­A recorrente suscita uma inconstitucionalidade de que cumpre conhecer: “(…) a alínea g) do 672º do Código de Processo Civil deve ser declarada inconstitucional, na vertente interpretativa de que aquele preceito se aplica somente à simulação perpetrada entre autor ou autores e réu ou réus de determinado acto mostrando uma situação falsa e fraudulenta, mas excluindo a simulação unilateral.”:


– Por violação do princípio da igualdade: “A questão da constitucionalidade suscitada pela recorrente radica no respeito pelo “princípio da igualdade” e o “princípio da proporcionalidade” previstos nos artigos 13º e 18º/2 da Constituição da República Portuguesa.”; “Sempre que uma norma reflicta uma discriminação infundada para realidades diferentes que afectem interesses privados, desmorona-se a igualdade dos sujeitos de Direito e implode a “princípio da igualdade” dos cidadãos perante a lei. Na sua aplicação imediata o “princípio da igualdade” encontra-se presente no artigo 13º/1 da Constituição da República Portuguesa ao instituir que todos os cidadãos têm a mesma “dignidade social e são iguais perante a lei”;


Refere ainda a recorrente instrumentos internacionais que consagram o princípio da igualdade, como se pode ver nas conclusões.


Não tem discussão possível que o princípio da igualdade, no sentido de não discriminação, é um dos princípio fundamentais da Constituição e que, sinteticamente referido, não permite que o legislador trate de forma desigual (discrimine) o que é materialmente igual, ou seja, implica a proibição do arbítrio: «Estavelmente firmado na jurisprudência constitucional encontra-se, pois, o entendimento segundo o qual o princípio da igualdade, operando essencialmente enquanto proibição do arbítrio, enseja um controle externo das opções do legislador ordinário baseado num escrutínio de baixa intensidade. Partindo do reconhecimento de que é ao legislador democraticamente legitimado que cabe ponderar, dentro da ampla margem de valoração e conformação de que dispõe, «os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica» (Acórdão n.º 231/94) — definindo ou qualificando «as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigual​mente» (Acórdão n.º 369/97) —, assinala-se ao princípio da igualdade a função de invalidar as escolhas do poder legislativo quando a desigualdade de tratamento que nelas se contém for, quanto ao seu fundamento ou quanto à medida, extensão ou grau em que surge concretizada, à evidência irrazoável» (acórdão n.º 157/2018 do Tribunal Consrtitucional, disponível em www.tribunalconsitucional.pt/tc/acordaos.


Resulta, todavia, do que se disse já sobre a interpretação da al. g) do artigo 696.º do Código de Processo Civil que não se encontram em situações materialmente iguais os terceiros que têm legitimidade para interpor recurso de revisão de decisões proferidas em litígios simulados para os prejudicar (não é possível alcançar o significado deste fundamento de recurso sem ter presente que se dirige a terceiros) e as partes de uma acção, na qual ficaram vencidas, e que consideram que a contraparte recorreu a fraude ou a conluios com terceiros para obter vencimento na acção (assim se interpreta a referência do autor a simulação unilateral). Basta ter presentes os princípios que informam a estrutura do processo – salientam-se agora o da igualdade e do contraditório, o direito a produzir prova e a contraditar a que a parte contrária produziu – e a situação dos terceiros.


Esta explicação vale para os instrumentos internacionais invocados pela recorrente.


Não se compreende a invocação do princípio da proporcionalidade; o fundamento para a violação descrita parece ser ainda um problema de igualdade de meios para a defesa do direito de propriedade.


Colocando-nos, todavia, na perspectiva da recorrente e não discutindo os termos da aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição ao direito de propriedade – pelo menos, no que ao seu núcleo essencial respeita – questão profudamente tratada na doutrina e na jurisprudência e que não vem agora ao caso desenvolver, sempre se dirá que a interpretação adoptada para a al. g) do artigo 696.º é adequada (protege terceiros em relação à acção a que são estranhos), necessária (por serem terceiros, será fácil que apenas tenham conhecimento da decisão que os prejudica após o trânsito em julgado) e proporcional em sentido estrito (confere direitos de anulação da decisão a terceiros que não foram partes na acção, em medida que não se considera excessiva por confronto com a situação das partes e, sobretudo, da segurança jurídica, Repare-se que os dois anos de que dispõem para instaurar o recurso têm de se situar nos cinco anos que, em geral, permitem o recurso – cfr. n.º 3 do artigo 697.º do Código Civil).


De qualquer forma, do que se disse quanto ao princípio da igualdade e da proporcionalidade resulta a improcedência da arguição de inconstitucionalidade da norma retirada da al. g) do artigo 696.º do Código de Processo Civil.


11. Nada mais havendo a apreciar, resta negar provimento ao recurso.


Assim, nega-se provimento ao recurso.


Custas pela recorrente


Lisboa, 17 de Junho de 2025


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora)


Arlindo Oliveira


Nuno Pinto de Oliveira