Não ocorre oposição entre acórdãos para efeitos de admissibilidade da revista ao abrigo do disposto no artigo 14.º, do CIRE, se a divergência do sentido das respetivas decisões assentar em distintos pressupostos fácticos.
1. Em 25.10.2023, CADA LUGAR, S.A., requereu no Juízo de Comércio de Lisboa, a instauração de processo especial de revitalização (PER).
Em 15.4.2024, a AJP juntou aos autos Mapa de resumo de votação do Plano de Recuperação, dando conta da votação favorável, e da aprovação do Plano.
Em 6.06.2024, o Juízo de Comércio de Lisboa proferiu sentença de não homologação do plano de recuperação da devedora CADA LUGAR, S.A.
Inconformada, a Requerente apelou, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido acórdão, em 15.10.2024, que, julgando procedente a apelação, revogou a decisão recorrida, e homologou, nos termos do art. 17º-F, nºs 7 e 11, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, o plano de recuperação da devedora Cada Lugar, SA.
Deste acórdão, interpuseram recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça as credoras Eurodisplay – Gestão de Investimentos, S.A. e AA, com fundamento em contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 10.3.2022, transitado em julgado.
Formulam, no que ora importa, as seguintes conclusões:
1. O presente recurso de revista tem por objeto todos os segmentos decisórios contidos na parte dispositiva do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, a 15 de outubro de 2024, referência n.º ......95, através do qual, em suma, se julgou integralmente procedente o recurso de apelação que havia sido interposto pela devedora e, em consequência, se revogou a Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e se determinou a homologação do plano de recuperação da devedora.
2. Mais, este recurso de revista tem como fundamento específico de admissibilidade a oposição de julgados existente entre o Acórdão recorrido e o Aresto proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 10 de março de 2022, e transitado em julgado no dia 22 de abril de 2022.
3. Com efeito, as decisões aqui colocadas em crise, tomadas pelo Tribunal a quo, assentam no facto de este Tribunal ter concluído não se verificar in casu a violação do princípio da igualdade dos credores, previsto no artigo 194.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, relativamente ao plano de recuperação apresentado pela devedora, nos moldes em que tal violação tinha sido conhecida pelo Tribunal de 1.ª Instância,
4. E, bem assim, no facto de o Tribunal recorrido ter entendido que, não obstante os credores terem invocados nos autos outros motivos que, a verificarem-se, conduziriam à não homologação daquele plano de recuperação (na sua maioria, causas de não homologação oficiosa do plano, consagradas no artigo 215.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), tais motivos não se encontravam abrangidos pelo objeto do recurso de apelação interposto pela devedora.
5. Isto porque, na perspetiva do Tribunal a quo, o Tribunal de 1.ª Instância não se tinha pronunciado concretamente quanto àquelas outras razões suscitadas pelos credores, a fim de se obter a não homologação do plano de recuperação, sendo que estas questões não se estavam, igualmente, delimitadas pelas conclusões do recurso de apelação interposto pela devedora, não tendo, ainda, nenhuma das credoras requerido a ampliação do âmbito desse recurso de apelação.
6. Porém, no Acórdão-fundamento, bem claro havia sido o Tribunal da Relação de Lisboa ao afirmar que o artigo 636.º do Código de Processo Civil não afasta a possibilidade de o Tribunal de recurso conhecer de fundamentos oficiosos, distintos daquelas outras razões que foram utilizadas pelo Tribunal recorrido, para justificar a manutenção da decisão em apreço no recurso,
7. Donde se retira, portanto, que, ao contrário do agora decidido num quadro factual (de cariz processual) idêntico, no que respeita a matérias do conhecimento oficioso, caberá sempre ao Tribunal ad quem apreciá-las, desde que sejam relevantes para a decisão do recurso, e não estejam abrangidas pelo caso julgado, independentemente de o Tribunal a quo se ter pronunciado sobre as mesmas ou as ter utilizado para justificar a decisão por si tomada, e sem necessidade de recurso ao mecanismo processual previsto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 636.º do Código de Processo Civil.
8. Mais, saliente-se, ainda, que, tal como na situação do Acórdão recorrido, também no Acórdão-fundamento, a questão de Direito sobre a qual estes Arestos divergiram foi fundamental para a decisão tomada, na medida em que se acabou por indeferir a nulidade arguida, com base em excesso de pronúncia, por se entender que as matérias do conhecimento oficioso permaneciam oficiosamente cognoscíveis em instância recursiva, e poderiam servir de fundamento à manutenção da decisão recorrida nessa sede, ainda que as mesmas não tivessem sido utilizadas pelo Tribunal recorrido para o efeito e que não se tivesse requerido a ampliação do âmbito do recurso.
9. Assim, atento o exposto supra, constata-se a existência de uma divergência jurisprudencial que caberá ao Douto Tribunal ad quem suprimir e que consiste na contradição que existe, entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento, a respeito da interpretação do disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 636.º do Código de Processo Civil, no sentido de se determinar se assiste ou não ao recorrido o ónus de requerer a ampliação do âmbito do recurso, na eventualidade de existirem matérias do conhecimento oficioso em que o Tribunal não se fundamentou, mas que justificam a manutenção da decisão por este proferida, de forma a que as referidas matérias sejam apreciadas, em sede de recurso,
10. Demonstrando-se, nestes moldes, a admissibilidade da presente revista, nos termos do disposto na parte final, do n.º 1, do artigo 14.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
…
13. E a verdade é que, ao não o fazer, o Tribunal a quo, por ter deixado de se pronunciar relativamente a questões do conhecimento oficioso, omitiu a sua pronúncia, pelo que, em primeiro lugar, o Acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos conjugados do disposto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, e 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
14. Concomitantemente, desde logo, argumentam as aqui recorridas que, em consequência da nulidade, por omissão de pronúncia, do Acórdão recorrido, deverá o Douto Supremo Tribunal de Justiça julgar procedente a arguição de tal nulidade e, em consequência, ordenar a baixa do processo, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, ao abrigo do disposto no artigo 684.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
…
Juntaram cópia do acórdão-fundamento, com nota de trânsito em julgado.
A Requerente/Recorrida contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade do recurso, bem como da arguição de nulidades nesta sede.
O tribunal recorrido proferiu acórdão pronunciando-se pela inexistência da nulidade invocada, e admitiu o recurso de revista.
Por entender não ser o recurso de revista (com fundamento na contradição de julgados) admissível, a relatora proferiu despacho nos termos do disposto no art. 655º, nº 1, do CPC, tendo-se pronunciado os Recorrentes, no sentido da admissibilidade do recurso de revista, remetendo para as suas alegações nesta matéria, e a Recorrida CADA LUGAR, S.A., pugnando pela inadmissibilidade do recurso de revista, remetendo para o teor das suas contra alegações.
Em 20.3.2025, a relatora proferiu despacho a julgar findo o recurso de revista interpostos pelos Recorrentes, não conhecendo do seu objeto.
Os Recorrentes reclamaram para a conferência, “ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 652.º do Código de Processo Civil (aplicável à revista ex vi do disposto no artigo 679.º do referido diploma legal)”, pedindo que seja revogada a decisão singular da relatora de 20.3.2025, substituindo-se esta decisão por outra que determine a admissão do recurso de revista interposto pelas recorrentes, bem como o inerente prosseguimento da presente instância recursiva.
Na reclamação, concluem nos seguintes termos:
1. A presente reclamação para a conferência tem como objeto a decisão contida no Despacho proferido pela Colenda Juíza Conselheira/Relatora, através do qual se julgou findo o recurso de revista interposto pelas recorrentes, não se conhecendo do seu objeto.
2. Com efeito, este Douto Supremo Tribunal de Justiça acabou por não admitir o recurso de revista interposto pelas recorrentes, argumentando que, na situação factual subjacente ao Acórdão recorrido e ao Acórdão-fundamento, não se verificava um quadro factual idêntico, porquanto os referidos Acórdãos respeitam a processos de natureza distinta e foram prolatados em diferentes momentos.
3. Dito isto, no demais, entendeu a Colenda Juíza Conselheira/Relatora que a fundamentação jurídica daqueles Arestos foi feita com apelo aos mesmos preceitos, tendo-se, não obstante isso, adotado soluções jurídicas distintas.
4. Ora, a realidade é que, salvo o devido respeito, esta decisão constante do Despacho aqui em crise tem por base um patente erro de interpretação do artigo 14.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, mais concretamente, dos pressupostos de que depende a admissibilidade da revista extraordinária, fundada em oposição de julgados,
5. É que, no que tange à situação de facto subjacente ao Acórdão recorrido e ao Acórdão-fundamento, a lei não exige um idêntico núcleo fáctico atinente ao objeto do processo, mas sim a existência do mesmo quadro factual subjacente à previsão da norma ou normas sobre as quais incide a divergência jurisprudencial.
6. Dito por outro, os factos relevantes para efeitos de apuramento da divergência sobre a mesma questão de direito, são, única e exclusivamente, àqueles que dizem respeito à previsão da norma ou das normas em causa, e não as diferenças marginais que subsistem na configuração fáctica dos processos em questão.
7. Em resultado, concluindo-se, como concluiu a Colenda Juíza Conselheira/Relatora, que, tanto no Acórdão recorrido como no Acórdão-fundamento, as respetivas fundamentações jurídicas foram feitas de igual modo, por apelo aos mesmos normativos legais, e que, apesar disso, foram alcançadas soluções diferentes,
8. Torna-se patente que o núcleo factual (relevante para efeitos de determinação dos requisitos da revista extraordinária, interposta nos termos do artigo 14.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), em ambos esses casos, é substancialmente idêntico.
9. Posto isto, as recorrentes, por mero dever de patrocínio, não poderão deixar de equacionar a possibilidade de o Douto Supremo Tribunal de Justiça, em sede de Acórdão a proferir em Conferência, entender que, em virtude do facto de o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento terem sido prolatados em processos de natureza distinta e em diferentes momentos, não se mostram reunidos os pressupostos de que dependeria a admissibilidade desta revista, fundada na oposição de julgados,
10. Donde se denotará que tal entendimento tem por base uma interpretação do disposto no n.º 1, do artigo 14.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, segundo a qual apenas se verificará uma oposição de julgados, em face de uma absoluta identidade factual dos Arestos que a suportam, incluindo o mesmo núcleo fáctico do objeto dos respetivos processos.
11. Sucede que, para essa eventualidade subsidiária, afigura-se claro às recorrentes que aquela interpretação normativa (do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) viola o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio do Estado de Direito democrático, na vertente do princípio da confiança dos cidadãos e da segurança jurídica na atuação do Estado,
12. Porquanto, ao limitar-se a admissibilidade da revista extraordinária suportada em oposição de julgados apenas a situações em que se constate uma absoluta identidade factual, entre os respetivos Acórdão recorrido e Acórdão-fundamento, colocar-se-ão obstáculos totalmente irrazoáveis, desproporcionais, arbitrários e opressivos ao acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, em sede de processo especial de revitalização.
13. Mas mais: esta interpretação do artigo 14.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas viola também o direito de acesso ao direito, na sua vertente de acesso ao recurso, e o direito a um processo equitativo, ínsitos nos n.ºs 1 e 4, do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
14. É certo que, nos termos da Lei Fundamental, e sem prejuízo das situações previstas no artigo 32.º do respetivo diploma legal e no caso de decisões que tenha por objeto direitos, liberdades e garantias, o legislador dispõe de ampla margem para conformar os diversos graus de recurso e as hipóteses de recorribilidade das decisões judiciais,
15. Porém, aquilo que não é permitido ao legislador é suprimir em bloco um determinado grau de recurso e o acesso a um determinado Tribunal de Recurso, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça.
16. Pois bem, a admitir-se esta realidade normativa do artigo 14.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no sentido de se exigir uma absoluta identidade factual entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento, estar-se-á a suprimir o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e o direito a interpor recurso de revista, no âmbito do processo de insolvência e do processo especial de revitalização,
17. Na medida em que, nenhuma situação submetida a juízo é totalmente idêntica a outra.
18. Por conseguinte, ainda que se reconheça que a Colenda Juíza Conselheira/Relatora não interpretou incorretamente o disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ao não admitir a presente revista, por o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento respeitarem a processos de natureza distinta e terem sido prolatados em diferentes momentos processuais, em todo o caso, deverá ser declarada inconstitucional esta dimensão normativa do artigo 14.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas,
19. O que aqui, desde já, se requer para os respetivos efeitos legais.
20. Concomitantemente, em face do exposto, impõe-se revogar a decisão contida no Despacho proferido pela Colenda Juíza Conselheira/Relatora, através da qual se julgou findo este recurso de revista, não se conhecendo do seu objeto, substituindo esta decisão por outra que determine a admissão do referido recurso, bem como o inerente prosseguimento da presente instância recursiva.
A Recorrida respondeu, pugnando pela improcedência total da reclamação, e confirmação integral da decisão singular proferida, formulando as seguintes conclusões:
1.ª A reclamação apresentada deve ser rejeitada, por inadmissibilidade do meio legal, uma vez que o meio adequado seria a “Reclamação contra o indeferimento”, prevista no artigo 643.º do CPC. caso assim não se entenda:
2.ª Notificadas do despacho e convidadas a pronunciarem-se sobre o mesmo nos termos do n.º 1 do artigo 655.º do CPC, nada vieram acrescentar, tendo-se limitado a dar como reproduzidas as alegações apresentadas, pelo que, não pode deixar este Coletivo de indeferir a presente reclamação. De todo o modo:
3.ª As considerações sobre definição do requisito de identidade factual, e a sua inaplicabilidade entre os julgados colocados à apreciação deste Supremo Tribunal, foram corretamente fundamentadas pela Mmª. Juiz Relatora, não merecendo a decisão reclamada qualquer reparo.
4.ª Desde logo, o Acórdão fundamento enquadra-se no âmbito processual do Processo Executivo (meio de defesa em processo de cobrança coerciva), ao passo que o Acórdão recorrido se enquadra no Processo Especial de Revitalização (enquadrável no âmbito da recuperação e revitalização de empresas.)
5.ª Por outro lado, no Acórdão recorrido as ora reclamantes invocam a nulidade da decisão por “omissão de pronúncia” e violação do princípio da igualdade dos credores sendo que o objeto do recurso homologação do Plano de Revitalização, ao passo que no Acórdão fundamento foi invocado apenas a nulidade por “excesso de pronúncia”, sem conhecimento do mérito da questão; acrescendo ainda que ambas as decisões não dizem sequer respeito ao mesmo momento processual.
6.ª Quanto à invocada inconstitucionalidade da interpretação conferida ao n.º do artigo 14.º do CIRE, sempre se dirá que, não há qualquer violação dos preceitos constitucionais invocados, uma vez que, não resulta da Lei Fundamental que o legislador tenha de garantir sempre a recorribilidade até ao último grau das decisões judiciais (à exceção das decisões em matéria criminal), o que sempre colocaria em causa a eficácia do próprio sistema jurídiário português, e no caso concreto as próprias finalidades do PER e a própria natureza urgente do processo; pelo que também por aqui deve ser indeferida a reclamação. Em suma:
7.ª A decisão reclamada não viola nenhum preceito legal aplicável à instância recursiva no âmbito do Processo Especial de Revitalização, devendo ser mantida a decisão reclamada nos precisos termos em que foi proferida.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Ao contrário do sustentado pela Recorrida, a reclamação para a conferência é o meio correto para pôr em causa a decisão singular da relatora.
O art. 679º do CPC manda aplicar ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação, aplicação que terá de ser feita com as devidas adaptações, ou como refere Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualizada, pág. 493, aplicada na parte em que encontre no recurso de revista “um quadro justificativo”.
O Supremo Tribunal de Justiça é o último tribunal de recurso, pelo não tem aplicação a salvaguarda inicial do art. 652º, nº 3, do CPC, sendo ao coletivo de juízes que cumpre apreciar da reclamação da parte contra despacho do relator que não admita o recurso de revista.
Por outro lado, ainda que a parte se tenha pronunciado, de forma expressa ou meramente remissa para a sua alegação, no âmbito do art. 655º do CPC, pode sempre requerer que sobre a decisão singular do relator recaia acórdão do coletivo.
Nada obsta, pois, à apreciação da presente reclamação.
*
III. A fundamentação da decisão singular para não conhecer do objeto do recurso foi a seguinte:
“…
2. Vejamos, salientando que a decisão do tribunal recorrido que admitiu o recurso não vincula este tribunal (art. 641º, nº 5, do CPC).
Com o presente recurso de revista pretendem as Recorrentes a reapreciação do acórdão recorrido, que revogou a decisão de primeira instância, e, julgando procedente a apelação, homologou o plano de recuperação da devedora CADA LUGAR, S.A., nos termos do art. 17.º-F, n.ºs 7 a 11, do CIRE.
Dispõe o art. 17º-A, nº 3, do CIRE, na versão dada pelo Decreto Lei nº 79/2017, de 30.06, que “O processo especial de revitalização tem caráter urgente, aplicando-se-lhe todas as regras previstas no presente código que não sejam incompatíveis com a sua natureza.”.
Nesta conformidade, ao Processo Especial de Revitalização (PER) é aplicável, em sede de recursos, o disposto no art. 14º, nº 1, do CIRE 1, que dispõe que “No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.”.
Conforme resulta do preceito transcrito, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos mencionados processos apenas é de admitir quando seja invocada e demonstrada uma contradição entre o acórdão recorrido e outro das Relações ou do Supremo Tribunal de Justiça que tenha resolvido a questão essencial de direito de modo diverso, e sem que tal corresponda a jurisprudência uniformizada do Supremo, cabendo ao recorrente o ónus de demonstrar tal oposição, e desde que se mostrem reunidos os pressupostos gerais de recorribilidade 2.
A admissibilidade do presente recurso com fundamento na contradição de julgados encontra-se dependente da verificação dos pressupostos de que depende aquela contradição.
Relativamente aos critérios de verificação da contradição jurisprudencial têm aplicação os mesmos critérios que são utilizados para aferição da contradição jurisprudencial na revista excecional (art. 672º, nº 2, al. c), do CPC), nos recursos de uniformização de jurisprudência (art. 688.º, n.º 1, do CPC), ou nos casos previstos na al. d) do nº 2 do art. 629º do CPC.
A saber:
a) O acórdão fundamento tem de ser anterior ao acórdão recorrido e tem de ter transitado em julgado;
b) Não pode ter sido proferido acórdão uniformizador de jurisprudência sobre o mesmo tema;
c) Tem de haver contradição fundamental entre os acórdãos, nas questões essenciais a decidir, não sendo a questão tratada como um mero obiter dictum;
d) É necessário que haja coincidência no quadro normativo aplicável, na situação fáctica em litígio e na questão fundamental de direito a decidir.
Ou seja, a verificação de uma situação de contradição de acórdãos depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) identidade do quadro factual, (ii) identidade da questão de direito expressamente resolvida, (iii) identidade das normas aplicadas, (iv) carácter determinante da resolução daquela questão para a decisão final, (v) oposição concreta de decisões e (vi) que o acórdão recorrido não tenha acatado a solução adotada em sede de acórdão de uniformização de jurisprudência – neste sentido, cfr. Acs. do STJ de 28.9.2022, P. nº 164/17.4T8BGC-A.G1.S1-B (Ana Paula Boularot), de 2.2.2023, P. nº 32/22.8T8BRG-A.G1.S1-A (Oliveira Abreu), em www.dgsi.pt.
Como se sumariou no citado Ac. do STJ de 05-07-2022, P. nº 1975/21.1T8STB.E1.S1, “I - A admissibilidade do recurso de revista, restrita e atípica, previsto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, aplicável aos processos pré-insolvência como o previsto nos arts. 17.º-A e ss. do CIRE (PER), implica que o recorrente tem o ónus de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários. II - As decisões dos acórdãos em confronto entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo - tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito - são análogas ou equiparáveis, pressupondo a oposição jurisprudencial (frontal e expressa, por regra) uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental de direito (ou questões fundamentais) em que assenta(m) a alegada divergência sobre a aplicação de determinada solução legal assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.”.
Ou como se sumariou no Ac. do STJ de 19.12.2023, P. 2297/22.6T8STR.E1.S1 (Ana Resende), em www.dgsi.pt, “I- A oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis, e em conformidade contraditórias. …”.
Em anotação à al. d) do nº 2 do art. 629º do CPC, Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, págs. 76/77, concretiza que a “contradição” “pressupõe-se que exista uma efetiva contradição de acórdãos, oposição que deve ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta; não bastando para o efeito uma qualquer divergência relativamente a questões laterais ou secundárias, a questão de direito deve apresentar-se com natureza essencial para o resultado que foi alcançado em ambos os acórdãos (ratio decidendi), sendo irrelevante a divergência que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo ou em torno de meros obiter dicta;”, a “identidade” “deve-se verificar uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão da Relação que é objeto de recurso e no outro aresto (acórdão da Relação ou do Supremo que sirva de contraponto), não bastando que neles se tenha abordado o mesmo instituto jurídico; tal pressupõe que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes, isto é, que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória;”, e quanto ao “quadro normativo”, “a divergência deve verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico”.
Cumpre, por outro lado, salientar que o art. 14º, nº 1, do CIRE, é uma forma de admissibilidade da revista especialíssima, que, conforme é jurisprudência habitual na 6ª secção deste Supremo Tribunal de Justiça (secção especializada de comércio), se tem pautado por critérios de especial exigência, conforme se constata pelo teor dos seguintes acórdãos, que não se ocupam de situações semelhantes à presente, mas que, ainda analisando confronto de acórdãos respeitantes a formas processuais iguais ou similares, espelham a excecionalidade da revista nos termos deste normativo - Acs. de 15.03.2022, P. nº 112/21.7T8STB.E1.S1 (Maria Olinda Garcia), de 19.12.2023, P. nº 2297/22.6T8STR.E1.S1 (Ana Resende), e de 17.12.2024, P. nº 3123/22.1T8STS.P2.S1 (Luís Espírito Santo), em www.dgsi.pt.
Tendo em conta as conclusões das Recorrentes a questão fundamental de direito julgada em sentido contrário nos acórdãos em confronto prende-se com o facto de o “(…) Tribunal recorrido ter entendido que, não obstante os credores terem invocado nos autos outros motivos que, a verificarem-se, conduziriam à não homologação daquele plano de recuperação (na sua maioria, causas de não homologação oficiosa do plano, consagradas no artigo 215.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), tais motivos não se encontravam abrangidos pelo objeto do recurso de apelação interposto pela devedora (…)”, quer porque “(…) o Tribunal de 1.ª Instância não se tinha pronunciado concretamente quanto àquelas outras razões suscitadas pelos credores, a fim de se obter a não homologação do plano de recuperação, (…)” quer porque “(…) estas questões não (…) estavam, igualmente, delimitadas pelas conclusões do recurso de apelação interposto pela devedora, não tendo, ainda, nenhuma das credoras requerido a ampliação do âmbito desse recurso de apelação”.
Conforme já referido, o acórdão recorrido respeita a um processo especial de revitalização (PER) e quanto a esta matéria, após elencar os fundamentos invocados pelos vários credores para a não homologação do plano em sede de 1ª instância, escreveu o seguinte: “O tribunal a quo não apreciou ou sequer mencionou as demais causas de não homologação invocadas nos autos pelos interessados, tendo-se limitado a referir: “No caso dos autos, os credores ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA, BB, CC, EURODISPLAY – GESTÃO DE INVESTIMENTOS, S.A., e AA apresentaram requerimentos, pugnando nomeadamente pela não homologação do plano, em síntese, por entenderem que o plano apresentado viola o princípio da igualdade entre credores. A revitalizanda respondeu nomeadamente pugnando pela não violação do princípio da igualdade de credores.”
E conhecendo, o tribunal a quo decidiu não homologar o plano exclusivamente com fundamento na violação do princípio da igualdade, enquanto violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo do plano e não referiu, em qualquer momento, qualquer dos demais fundamentos invocados, não tendo, nomeadamente, declarado prejudicado o respetivo conhecimento pela apreciação efetuada.
Ou seja, de entre a panóplia de fundamentos invocados pelos credores o tribunal apenas conheceu – e parcialmente em relação ao que havia sido invocado – da violação do princípio da igualdade, sem apreciar sequer a aptidão dos demais enquanto causas de não homologação.
Apenas a devedora apelou e, de mérito, apenas colocando em causa a violação do princípio da igualdade conhecida pelo tribunal a quo, pelo que o conhecimento deste tribunal de recurso está delimitado nestes termos.
Dois dos credores que haviam solicitado a não homologação do Plano com base em fundamentos diversos da violação do princípio da igualdade responderam ao recurso, mas sem lançar mão do disposto no art. 636º do CPC.
Estabelece o art. 636º nº1 do CPC que «No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.»
E o nº2 prevê ainda que o recorrido, ou seja, o vencedor, a título subsidiário argua a nulidade da sentença ou impugne a decisão sobre a matéria de facto que o recorrente não tenha impugnado, igualmente prevenindo a hipótese da procedência das questões por este suscitadas.
As nulidades da sentença incluem a omissão de pronúncia (615º nº1, al. d) do CPC). (…)
Num caso como o presente, em que um pedido que cumpria conhecer, de não homologação de plano de recuperação aprovado em PER, foi formulado com vários fundamentos, alguns dos quais de conhecimento oficioso, o não conhecimento daqueles outros fundamentos, sem qualquer declaração de prejudicialidade, seria suscetível de ser invocado como omissão de pronúncia, mediante a arguição da nulidade a que já aludimos.
Ora, precisamente, as nulidades da sentença previstas no art. 615º do CPC, “não são de conhecimento oficioso, pelo que se não forem arguidas pela parte, sanam-se com o decurso do prazo para a sua arguição, pelo que o tribunal superior não pode conhecer delas.”[14]
O facto de alguns dos fundamentos cujo conhecimento foi omitido serem de conhecimento oficioso não altera a impossibilidade do conhecimento oficioso da nulidade correspondente ao seu não conhecimento, caso a situação viesse a ser enquadrada como tal. (…)
Aqui chegados, e verificando-se que a enquadrável nulidade por omissão de pronúncia, que, a proceder, implicaria o conhecimento subsidiário dos motivos de não homologação invocados e não conhecidos na 1ª instância, por este tribunal, caso constassem dos autos os elementos suficientes para tal, não foi arguida por qualquer dos intervenientes no recurso, nomeadamente pelos recorridos, nos termos previstos no nº2 do art. 636º do CPC, conclui-se que qualquer dos demais fundamentos de não homologação arguidos nos autos que não a violação do princípio da igualdade tal como foi conhecida pelo tribunal a quo está fora do objeto deste recurso.
O disposto no art. 665º do CPC – regra da substituição pelo tribunal recorrido – não se aplica no caso concreto pelas seguintes ordens de razões:
O disposto no art. 665º do CPC aplica-se em caso de declaração de nulidade da sentença (665º nº1 do CPC) ou quando o tribunal recorrido tenha deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio (665º nº2).
Ora como vimos, não há qualquer possibilidade de declaração de nulidade por omissão de pronúncia, dado que não foi arguida, não tendo o tribunal considerado prejudicado qualquer ponto.
Como refere Abrantes Geraldes, em anotação ao art. 665º do CPC[16] “[há] que distinguir os casos a que se aplica a ampliação do objeto do recurso, nos termos do artigo 636.º (decaimento em algum fundamento de facto ou de direito ou verificação de nulidade da sentença), daqueles em que, em face da matéria de facto que está provada e das questões jurídicas que a mesma suscita, se exige que se extraiam da decisão respetiva as consequências que o estado do processo impuser.”
Feito este enquadramento prévio há que passar ao conhecimento do objeto de mérito do recurso tal como fica circunscrito.”
Por seu lado, o acórdão fundamento apresentado (do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.3.2022, proferido no âmbito do processo nº 20572/19.5...) diz respeito a um acórdão proferido em conferência, que se pronunciou acerca das nulidades do acórdão do Tribunal da Relação, no âmbito de um processo de embargos de executado, no qual, acerca de uma invocada nulidade por excesso de pronúncia, se escreveu o seguinte: “O recorrente incorre num erro fundamental: as conclusões de um recurso não definem o seu objeto. As conclusões de um recurso apenas servem para, nesta parte, dizer quais, das eventuais decisões proferidas, são o objeto do recurso. E é só neste sentido que se pode dizer que elas delimitam – não definem - o objeto do recurso.
Sendo o objeto do recurso uma decisão proferida, daquilo que se trata é de saber se esta decisão foi bem ou mal decidida. Ao fazê-lo, o tribunal de recurso não se tem de limitar, para confirmar a decisão recorrida, ao fundamento de que esta se serviu para justificar o decidido.
Não se trata, pois, apenas de saber se o fundamento invocado não justifica a decisão, mas saber se não há outros fundamentos que justifiquem a decisão recorrida (desde que estes não estejam dependentes da vontade das partes).
E, acrescente-se desde já, se houver outros fundamentos, e eles já estiverem suficientemente debatidos, não há nenhum obstáculo a que se confirme a decisão objeto do recurso, sem que se possa invocar, contra isso, o obstáculo da decisão-surpresa ou a violação do princípio do contraditório (artigo 3/3 do CPC). (…)
E não se diga que da parte do recorrido teria de haver um requerimento de ampliação do âmbito do recurso (art. 636 do CPC), para que pudesse ser como Castro Mendes diz.
Primeiro porque, como explicam Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anotado, vol. 3.º, tomo I, 2.ª edição Coimbra Editora, 2008, pág.44:
“[O] preceito [agora artigo 636 do CPC] só se aplica quando o tribunal recorrido tenha efetivamente conhecido o fundamento em causa, julgando-o improcedente: a parte vencedora há de ter nele decaído. Se, ao invés, tal fundamento, invocado pela parte em 1.ª instância, não tiver chegado a ser apreciado (designadamente por ser subsidiário e proceder o pedido principal, ou por proceder um dos fundamentos em alternativa), o tribunal de recurso não deixará de o conhecer, sem necessidade de requerimento de ampliação, se julgar improcedente o pedido tido por procedente pelo tribunal recorrido: esse fundamento constitui já objeto do recurso.”
Por outro lado, o art. 636 do CPC não afasta a possibilidade de o juiz conhecer de fundamentos oficiosos. Defender o contrário, seria o mesmo que dizer que o tribunal de recurso afinal não poderia, se tal não constasse das conclusões (ou contra-alegações) de um recurso, declarar a nulidade de um contrato ou a falta de título executivo, de conhecimento oficioso (quanto a este último, por força dos arts. 726/2-a e 734/1, ambos do CPC). (…)
No caso dos autos, a decisão recorrida foi a procedência dos embargos, com a consequente extinção da execução, com base na “exceção da autoridade do caso julgado”.
Ou seja, “a exceção da autoridade do caso julgado” – expressão que, como se explicou no acórdão, é contraditória, o que agora se repete/refere com o fim de esclarecer, de novo, que a decisão recorrida, ao contrário do que pode parecer, não decidiu os embargos com base numa exceção -, foi apenas um fundamento da procedência dos embargos. A decisão foi a procedência destes.
Pelo que o objeto do recurso era a decisão da procedência dos embargos, não o fundamento aduzido para o efeito.
Assim, ao decidir por essa procedência com outro fundamento, este tribunal de recurso não incorreu em nulidade por excesso de pronúncia.”.
No caso em apreço, afigura-se-nos que não se mostra verificada a invocada contradição de julgados.
O quadro fáctico é completamente díspar, uma vez que no acórdão recorrido nos encontramos no âmbito de um processo especial de revitalização, no qual, em sede de 1.ª instância, foram invocados vários fundamentos, sejam ou não oficiosos, para a não homologação de plano de revitalização e que, no acórdão recorrido, não foram conhecidos, porquanto não foram apreciados na sentença, nem foi declarado prejudicado o seu conhecimento na sentença, bem como, em sede de apelação, não foi suscitada a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, por não conhecimento daqueloutros fundamentos ainda que de conhecimento oficioso.
De outra banda, no acórdão fundamento, é declarada não verificada uma nulidade por excesso de pronúncia, por referência a outro acórdão, porquanto naquele outro acórdão, que não o fundamento, terá sido julgada a procedência dos embargos de executado com base no conhecimento da autoridade do caso julgado, considerando que “(…) o objeto do recurso era a decisão da procedência dos embargos, não o fundamento aduzido para o efeito”.
Ainda que para a decisão da questão em análise no acórdão fundamento - o excesso de pronúncia - tenham sido convocadas as normas referentes aos arts. 636º e 655º do CPC, o quadro factual que as enformou e a questão que aí foi decidida é completamente distinta daquela de que se ocupou o acórdão recorrido.
Na verdade, o acórdão recorrido tem como questão principal decindenda a homologação do plano de revitalização da devedora, o que faz apreciando a questão da violação do princípio da igualdade dos credores, nos termos do art. 215º do CIRE.
Mas, previamente ao conhecimento desta questão principal, procede à delimitação do conhecimento da mesma, explicitando os motivos pelos quais não irá proceder à apreciação de todos os fundamentos de não homologação do plano apresentados pelos credores, convocando, desta forma, os citados normativos previstos nos arts. 636.º e 655.º do CPC.
Assim, temos que, apesar de terem sido interpretadas as mesmas normas jurídicas nos dois arestos em confronto, a questão de direito que foi apreciada em cada um dos acórdãos é distinta, por estarmos perante quadros factuais completamente diferentes.
No acórdão recorrido procedeu-se à delimitação do conhecimento dos fundamentos para a não homologação do plano de revitalização, apreciando os referidos normativos, ao passo que no acórdão fundamento se conheceu de uma nulidade por excesso de pronúncia, apoiando-se nas citadas normas legais, arts. 636º e 655º do CPC.
Ainda que o quadro jurídico-normativo para a apreciação destas questões tenha sido semelhante, estamos perante modalidades processuais completamente distintas (de um lado, um PER, do outro, embargos de executado) e prolatados em momentos processuais igualmente distintos (de um lado, em acórdão de apreciação do mérito da causa, e, do outro, em acórdão proferido em reclamação para a conferência com vista à apreciação de nulidades de um outro acórdão).
Estamos perante um quadro factual plenamente distinto em cada um dos acórdãos – no acórdão recorrido o conhecimento de fundamentos (oficiosos e não oficiosos) de não homologação do plano de revitalização no âmbito de um processo especial de revitalização, no acórdão fundamento o conhecimento de uma nulidade por excesso de pronúncia (não verificação), pelo conhecimento da exceção da autoridade do caso julgado (e de outras questões que não resultam do acórdão fundamento) no âmbito de processo de embargos de executado.
Ainda que a fundamentação jurídica tenha sido feita, de igual modo, por apelo aos normativos previstos nos arts. 636º e 655º do CPC, e com soluções jurídicas, aparentemente, distintas, este quadro factual completamente díspar não permite que se afirme a verificação de uma oposição de acórdãos, nos termos do art. 14º, nº 1, do CIRE.
Conforme bem se refere no Ac. do STJ de 24.01.2017, Revista n.º 8786/15.1T8STB.E1.S1 (Ana Paula Boularot) 3, proferido também no âmbito de um PER, mas com um quadro factual distinto, “I - Para efeitos de admissão de recurso de revista ao abrigo do disposto no art. 14º, nº 1, do CIRE, a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito ocorre quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.”.
Ademais, o acórdão fundamento não é um acórdão que tenha conhecido do mérito da questão – a procedência dos embargos com fundamento na autoridade do caso julgado –, mas antes das nulidades arguidas perante o acórdão de mérito proferido naquele processo.
Em conclusão, não se verifica, como condição prévia para a admissibilidade do recurso, a oposição de julgados invocada, nos termos do art. 14º, nº 1, do CIRE, não sendo de conhecer do objeto do recurso.” (negritos nossos).
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IV. Apreciada pelo coletivo a fundamentação constante do despacho singular, subscreve-se a mesma na íntegra.
Fazendo uma leitura parcelar da decisão singular, os Reclamantes deturpam o sentido da mesma.
Na decisão singular não se refere que tem de haver uma absoluta identidade factual subjacente às decisões, o que se refere, na esteira da vasta jurisprudência deste tribunal que se citou, é que a interpretação diferente da norma tem de assentar num núcleo factual essencialmente semelhante.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 15.3.2022, P. nº 112/21.7T8STB.E1.S1 (Maria Olinda Garcia), em www.dgsi.pt, “O que releva para efeitos de admissibilidade do recurso de revista previsto no art.14º do CIRE não é existência de decisões concretas em sentido diferente, quando tais diferenças decorram da diversidade de circunstâncias de cada caso concreto. A única divergência relevante, para efeitos do art. 14º, n.1, do CIRE, é aquela que expõe diferentes modos de interpretar determinada norma perante factualidades tipicamente equiparáveis.”.
Ou como se sumariou no Ac. do STJ de 17.9.2024, P. 62/23.2T8AMT.P1.S1 (Graça Amaral), em www.dgsi.pt, “Não ocorre oposição entre acórdãos para efeitos de admissibilidade da revista ao abrigo do disposto no artigo 14.º, do CIRE, se a divergência do sentido das respetivas decisões assentar em distintos pressupostos fácticos.”.
Não basta estar em causa uma mesma norma processual, sendo necessário que se verifiquem factualidades tipicamente equiparáveis que levaram a um modo diferente de interpretar a norma, e que a divergência das decisões não assente nas particularidades factuais de cada um dos casos.
Não se acolhem, pois, os fundamentos invocados pelos Recorrentes, subscrevendo-se a fundamentação expressa na decisão singular.
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V. Os Recorrentes vêm invocar que a interpretação do artigo 14.º, do CIRE, no sentido determinado ao concluir pela inexistência de oposição de acórdãos mostra-se inconstitucional por violar o art. 2º da Constituição da República Portuguesa, que consagra o princípio do Estado de Direito democrático, na vertente do princípio da confiança dos cidadãos e da segurança jurídica na atuação do Estado, “porquanto, ao limitar-se a admissibilidade da revista extraordinária suportada em oposição de julgados apenas a situações em que se constate uma absoluta identidade factual, entre os respetivos Acórdão recorrido e Acórdão-fundamento, colocar-se-ão obstáculos totalmente irrazoáveis, desproporcionais, arbitrários e opressivos ao acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, em sede de processo especial de revitalização”.
Bem como sustentam que a mencionada interpretação do art. 14º, nº 1, do CIRE, viola, também, o direito de acesso ao direito, na sua vertente de acesso ao recurso, e o direito a um processo equitativo, ínsitos nos n.ºs 1 e 4, do art. 20º da Constituição da República Portuguesa, porquanto “a admitir-se esta realidade normativa do artigo 14.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no sentido de se exigir uma absoluta identidade factual entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento, estar-se-á a suprimir o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e o direito a interpor recurso de revista, no âmbito do processo de insolvência e do processo especial de revitalização”.
Nenhuma das aludidas inconstitucionalidades se verificam, uma vez que não é esse o sentido da decisão reclamada, nem a interpretação que se faz do art. 14º do CIRE, como supra se expôs.
VI. Pelo exposto, acorda-se em conferência na 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a reclamação apresentada pelas Recorrentes, mantendo-se o despacho singular que julgou findo o recurso de revista interpostos pelas Recorrentes.
Custas do incidente pelas reclamantes - art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
Notifique.
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Lisboa, 2025.06.17
Cristina Coelho (Relatora)
Anabela Luna de Carvalho
Rosário Gonçalves
SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):
_______________________________________
1. Neste sentido, cfr. os Acs. do STJ de 9.4.2019, P. nº 118/18.3T8STS.P1.S1 (Ana Paula Boularot), de 22.2.2022, P. nº 19874/21.5T8LSB-A.L1.S1 (Maria Olinda Garcia), de 5.7.2022, P. 1975/21.1T8STB.E1.S1 (Ricardo Costa), e de 28.1.2025, P. 2091/23.7T8CBR.C2-A.S1 (Cristina Coelho), em www.dgsi.pt.↩︎
2. Quanto ao valor da causa e sucumbência (art. 629º, nº 1, do CPC), legitimidade (art. 631º), tempestividade (arts. 638º do CPC, 9º e 17º do CIRE), e modo de interposição do recurso (arts. 17º do CIRE e 637º do CPC), que no caso se mostram preenchidos.↩︎
3. Texto integral não publicado, mas com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/06/sumarios-civel-2017.pdf.↩︎