I. A admissibilidade do presente recurso com fundamento na contradição de julgados encontra-se dependente da verificação dos pressupostos de que depende aquela contradição.
II. Não ocorre contradição jurisprudencial para efeitos de admissibilidade do recurso nos termos do art. 14º, nº 1, do CIRE, se for manifesta a inexistência de identidade entre as questões de direito apreciadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento.
III. A arguição de inconstitucionalidade não fundamenta autonomamente a admissibilidade de um recurso de revista ao qual faltem os pressupostos gerais de recorribilidade.
1. Em 4.07.2017, o Banco de Investimento Imobiliário, SA (BII) (atualmente Banco Comercial Português, SA, por fusão) requereu a declaração de insolvência da sociedade Quinta de Abrigada – Sociedade Agrícola, Lda.
Em 14.04.2024 foi proferida sentença que declarou a insolvência da requerida.
Não se conformando, apelou a requerida, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14.01.2025 (refª ......05), julgado a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
De novo inconformada, a apelante interpôs recurso de revista, formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem, no que ora releva:
I. O presente recurso tem por objeto o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/1/2025, que confirmou a sentença de 1.ª instância que, por sua vez, declarou a insolvência da Recorrente.
II. O fundamento do recurso, à luz do artigo 14.º n.º 1 do CIRE, consiste na oposição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3/12/2009, proferido no processo n.º 3601/08.5TJCBR.C1 (Acórdão-fundamento), cfr. documento n.º 1 (protestando-se junta certidão com certificação de trânsito em julgado).
III. O Acórdão recorrido entendeu que é “inquestionável” que o titular de crédito litigioso tem legitimidade para instaurar um processo de insolvência contra o putativo credor, ao passo que o Acórdão-fundamento entendeu que “[c]arece de legitimidade para requerer a declaração de insolvência o requerente cujo crédito que serve de fundamento ao pedido de declaração de insolvência se mostra litigioso”.
IV. Assim, o Acórdão recorrido, por um lado, e o Acórdão-fundamento, por outro lado, entram em direta oposição quanto à apreciação da mesma questão fundamental de Direito, tendo ambas as decisões sido proferida no domínio da mesma legislação, nomeadamente, os artigos 20.º e 25.º e segs. do CIRE.
V. Pelo que o presente recurso deverá ser admitido, por se encontrarem preenchidos os requisitos previstos no artigo 14.º n.º 1 do CIRE.
VI. Tem sido entendido pela jurisprudência, da qual o Acórdão-fundamento é um perfeito exemplo, que o (putativo) credor titular de um direito litigioso, cuja existência ou exigibilidade é controvertida, carece de legitimidade para intentar um processo de insolvência contra o putativo devedor, nos termos do artigo 20.º do CIRE.
VII. Este entendimento assenta no pressuposto de que o processo de insolvência (fase declarativa inicial) tem um carácter abreviado e permite apenas uma apreciação sumária dos direitos em confronto, implicando limitações substanciais aos direitos de defesa do devedor, em particular, quanto à produção de prova.
VIII. No caso sub judice, a Requerida suscitou, tanto na oposição como, sobretudo, na ação declarativa intentada contra o Requerente, entre outros, sob o processo n.º 4988/18.7... (cfr. facto provado n.º 49), meios de defesa que, a procederem, implicarão a extinção do crédito do Requerente (compensação com contra-crédito) ou um impedimento ao exercício do mesmo (abuso do direito).
IX. O crédito invocado pela Recorrida nestes autos, deve, por isso, considerar-se eminentemente litigioso, em coerência com o disposto no artigo 579.º n.º 3 do Código Civil.
X. Face ao exposto, o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, ao reconhecer a legitimidade do Requerente / Recorrido, devendo ser revogada e substituída por outra que declare o mesmo como parte ilegítima, absolvendo a Recorrente do pedido.
XI. Admitindo por mera hipótese, sem conceder, que se entenda que a qualificação do crédito do Requerente como litigioso, por si só, não constitui obstáculo à subsistência desta ação, sempre haveria que declarar a ilegitimidade substantiva do Requerente, pelas seguintes razões:
XII. Uma parte expressiva da jurisprudência, tem sufragado o entendimento, denominado "tese intermédia", de que o putativo titular de um crédito litigioso carecerá de legitimidade substantiva para requerer a insolvência do devedor quando a controvérsia concretamente suscitada implicar trabalhos de instrução e julgamento que a cognição sumária, típica do processo de insolvência, não seja apta a assegurar.
XIII. In casu, a apreciação das questões que enformam o litígio quanto à existência e exigibilidade do alegado crédito do Requerente / Recorrido depende da produção de prova extensa, nomeadamente testemunhal, envolvendo diversos intervenientes nas relações estabelecidas entre a Requerente e a Requerida desde o ano 2000, e entre a Requerida e terceiros interessados na aquisição da "Quinta de Abrigada", incluindo empresas de mediação, consultoras, etc.
XIV. Essas mesmas questões revestem, tanto no plano factual como jurídico, um grau de complexidade que não se compagina com a apreciação sumária e abreviada que é corolário do regime da fase declarativa do processo de insolvência.
XV. Acresce que a prova produzida nos autos, com as inerentes limitações, em especial quanto à prova testemunhal, constituem, no mínimo, sérios indícios de que essas questões, suscitadas pela Requerida na oposição, têm sustentação probatória e fundamento jurídico.
XVI. A única forma processual apta a garantir a tutela dos direitos e a realização dos meios de defesa que assistem à Requerida é, efetivamente, a ação declarativa comum.
XVII. Do exposto, e da corrente jurisprudencial assinalada, decorre que o Requerente / Recorrido carece de legitimidade substancial para a presente ação de insolvência, ao contrário do que a sentença recorrida pressupôs e erradamente estabeleceu.
XVIII. Por conseguinte, requer a V. Exa. proceda à revogação da sentença recorrida com fundamento em error in judicando, substituindo-a por outra que determine a improcedência dos presentes autos atendendo à ilegitimidade substancial do Requerente / Recorrido, absolvendo a Recorrente do pedido.
XIX. A eventual interpretação conjugada do artigo 20.º do CIRE e do regime da fase inicial declarativa do processo de insolvência (cfr. artigos 25.º e segs. do CIRE) que vão no sentido de admitir a instauração de processo de insolvência por (putativo) credor titular de direito cuja existência ou exigibilidade sejam fundadamente controvertidas e objeto de litígio com o devedor, sempre seria MANIFESTAMENTE INCONSTITUCIONAL, por traduzir uma restrição desnecessária, desadequada e desproporcional às garantias fundamentais da parte devedora à tutela jurisdicional efetiva e ao processo equitativo, nos termos do disposto nos artigos 18.º n.º 2 e 20.º n.º 1 e n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) – o que desde já se argui para todos os efeitos.
Posteriormente, juntou certidão do acórdão-fundamento, com nota de trânsito em julgado, conforme protestara juntar.
O Recorrido sustentou a inadmissibilidade do recurso de revista, por inexistência de oposição de julgados.
Por entender não ser o recurso de revista interposto pela Requerida/apelada admissível (por inexistência de contradição de julgados), a relatora proferiu despacho nos termos do disposto no art. 655º, nº 1, do CPC, tendo-se pronunciado o Requerente/apelado, repristinando o sustentado em sede de contra-alegações.
A Recorrente pronunciou-se no sentido da admissibilidade do recurso.
Em 30.04.2025, a relatora proferiu despacho, no qual entendeu ser extemporâneo o requerimento em que a Recorrente se pronunciou ao abrigo do disposto no art. 655º, nº 1, do CPC, não o tendo tido em consideração, e julgou findo o recurso de revista interposto pela Recorrente, não conhecendo do seu objeto.
A Recorrente reclamou para a conferência, invocando a nulidade do despacho singular, requerendo que seja declarado nulo o despacho da relatora de 30.4.2025, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea d), do CPC; ou, caso assim não se entenda, por aplicação do disposto no artigo 195.º do CPC; e seja determinada a admissão do presente recurso, por ter ficado demonstrado o preenchimento dos requisitos previstos no artigo 14.º n.º 1 do CIRE.
Alegou em síntese:
O dia 17 de Abril de 2025 correspondeu a Quinta-Feira Santa, e foi, por isso, concedida pelo Governo tolerância de ponto para esse dia.
Tendo em conta o disposto no art. 138º, nºs 2 e 3, do CPC, o termo do prazo de resposta ao despacho de 1.4.2025 transferiu-se do dia 17.4.2025 para o dia 21.4.2025, correspondendo o terceiro dia útil, para efeitos de multa, a dia 24.4.2025, pelo que o requerimento de 24.4.2025 foi tempestivo.
Escreveu-se no acórdão recorrido: “Desde já se dirá ser inquestionável (como defendido na sentença em sede de questão prévia) que a insolvência poderia ter sido requerida nos moldes em que o foi, gozando o requerente de legitimidade ativa para tanto, independentemente de ser ou não titular de um crédito litigioso.”
O Tribunal a quo revela aqui com clareza quais os pressupostos da decisão proferida a respeito da questão da (i)legitimidade: em suma, é indiferente, para aferir a legitimidade do requerente da insolvência, que o crédito invocado pelo mesmo seja qualificável como litigioso.
Se assim entendeu o Tribunal a quo, as considerações expendidas, seguidamente, no Acórdão recorrido, acerca da concreta qualificação do crédito do Recorrido como litigioso não podem ser consideradas com um dos fundamentos, ou uma das premissas, da decisão que veio a ser tomada sobre esta questão prévia.
Pois que, fazendo fé no trecho citado, ainda que o Tribunal a quo viesse a concluir que o crédito do Recorrido é litigioso, a sua conclusão sempre seria a mesma: a de que o Recorrido tinha legitimidade para mover o presente processo de insolvência, nos termos dos artigos 20.º e 25.º do CIRE.
Neste conspecto, e para os efeitos do disposto no artigo 14.º n.º 1 do CIRE, a oposição de julgados revela-se, em concreto, nos factos de:
i) o Acórdão recorrido, por um lado, assentar no pressuposto essencial de que o carácter litigioso do crédito do requerente da insolvência é irrelevante para determinar a ilegitimidade do mesmo;
ii) enquanto o Acórdão-fundamento, por outro lado, estabelece como pressuposto decisório essencial que o cariz litigioso do aludido crédito tem como consequência a ilegitimidade do requerente da insolvência, por aplicação dos artigos 20.º e 25.º do CIRE.
O Recorrido não se pronunciou.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Singelamente dir-se-á que assiste razão à reclamante.
No despacho da relatora de 30.04.2025, não se atentou que o último dia do prazo para a Recorrente se pronunciar (17.04.2025) coincidiu com dia em que foi dada tolerância de ponto pelo Governo (Despacho nº 4587-A/2025, publicado no DR de 14 de abril, II Série, Suplemento), pelo que o termo do prazo se transferiu para o 1º dia útil seguinte (dia 21), nos termos do disposto no art. 138º, nºs 2 e 3, do CPC, podendo o ato ser praticado até dia 24.04.2025 (art. 139º, nº 5, do CPC), como foi.
Assim sendo, o requerimento apresentado pela Recorrente foi tempestivo, ao contrário do que entendeu a relatora.
Não está, porém, em causa qualquer nulidade do despacho (art. 615º, nº 1, do CPC) ou nulidade processual, mas erro de julgamento.
Em todo o caso, tendo a Recorrente reclamado para a conferência, cumpre ao coletivo apreciar da admissibilidade do recurso, perdendo efeito o despacho reclamado.
III. A fundamentação da decisão singular para não conhecer do objeto do recurso foi a seguinte:
“…
2. Vejamos, salientando que a decisão do tribunal recorrido que admitiu o recurso não vincula este tribunal (art. 641º, nº 5, do CPC).
A Recorrente tem legitimidade por ter ficado vencida (art. 631º, nº 1, do CPC), o recurso é admissível atento o valor da causa e da sucumbência (art. 629º, nº 1, do CPC), é tempestivo (arts. 9º do CIRE e 638º, nº 1, do CPC), e foi interposto nos termos legais (arts. 637º, nº 1 e 639º, nº 1, do CPC).
O recurso é interposto de acórdão que conheceu do mérito confirmando a declaração de insolvência da requerida, apenas sendo admissível à luz do disposto no art. 14º do CIRE, que dispõe que “No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.”.
A admissibilidade do presente recurso com fundamento na contradição de julgados encontra-se dependente da verificação dos pressupostos de que depende aquela contradição.
Invoca a Recorrente que o acórdão recorrido se encontra em contradição com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3.12.2009, proferido no processo n.º 3601/08.5TJCBR.C1, quanto à questão de saber “se o sujeito titular de um crédito litigioso tem legitimidade para mover uma ação de insolvência contra o devedor”.
A verificação de uma situação de contradição de acórdãos depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) identidade do quadro factual, (ii) identidade da questão de direito expressamente resolvida, (iii) identidade das normas aplicadas, (iv) carácter determinante da resolução daquela questão para a decisão final, (v) oposição concreta de decisões e (vi) que o acórdão recorrido não tenha acatado a solução adotada em sede de acórdão de uniformização de jurisprudência – neste sentido, cfr. Acs. do STJ de 28.9.2022, P. nº 164/17.4T8BGC-A.G1.S1-B (Ana Paula Boularot), e de 2.2.2023, P. nº 32/22.8T8BRG-A.G1.S1-A (Oliveira Abreu), em www.dgsi.pt.
Como se sumariou no Ac. do STJ de 19.12.2023, P. 2297/22.6T8STR.E1.S1 (Ana Resende), em www.dgsi.pt, “I- A oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis, e em conformidade contraditórias. …”.
No caso em apreço, afigura-se-nos que não se mostra verificada a invocada contradição de julgados, porquanto as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, não são rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial
Afirma a Recorrente que “o Acórdão-fundamento chegou a uma conclusão jurídica diametralmente oposta à do Acórdão recorrido, tomando por base as mesmas disposições de Direito”, os arts. 20º e 25º do CIRE, porquanto o acórdão fundamento extraiu daqueles preceitos a conclusão que “Carece de legitimidade para requerer a declaração de insolvência o requerente cujo crédito que serve de fundamento ao pedido de declaração de insolvência se mostra litigioso”, enquanto o acórdão recorrido, limitando-se a aderir ao “defendido na sentença”, adotou “o entendimento “inquestionável” de que o cariz litigioso do crédito não afasta a legitimidade do respetivo titular para a instauração de ação de insolvência contra o devedor”.
Não sufragamos tal entendimento.
No âmbito do acórdão-fundamento a questão a decidir limitava-se a saber se tem legitimidade para requerer a insolvência de uma sociedade o credor cujo crédito que serve de fundamento ao pedido de insolvência se mostre litigioso, e apreciando a questão, escreveu-se: “Aqui, importa considerar a legitimidade dos credores. A lei atribui a legitimidade a qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do céu crédito. Perante a expressão «qualquer credor», não restam dúvidas de que o legislador escancarou as portas da legitimidade para requerer a declaração de insolvência aos credores em geral. Mas, há que não esquecê-lo, a primeira condição da legitimidade é a de ser «credor». Coloca-se, por isso, a questão de saber se alguém que se diz credor de outrem, mas cujo crédito é litigioso e, como tal, não está reconhecido, tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência daquele que diz ser seu devedor. A questão não é pacífica e tem sido objeto de soluções díspares. … Salvo o devido respeito pelo entendimento contrário, pensamos, tal como a decisão recorrida, que a posição que defende a ilegitimidade para requerer a declaração de insolvência daqueles que se arrogam ser titulares de um crédito que é litigioso é a mais defensável. Desde logo, quem se arroga titular de um crédito sobre alguém e esse crédito ainda não é certo e exigível, não pode ainda considerar-se credor do pretenso devedor. Só após o trânsito em julgado da decisão que ponha termo à ação em que tal se discute é que é possível dizer se o crédito existe efetivamente. Nessas circunstâncias, atribuir legitimidade a alguém que apenas se arroga ser credor, sendo certo que essa qualidade pode vir a não ser-lhe reconhecida, seria permitir que o requerente pudesse fazer uma utilização abusiva do processo de insolvência. E este processo, pela sua forma especial que reveste, também não nos parece ser o local mais apropriado para se decidir sobre a existência ou inexistência do crédito. Basta lembrar um caso como o dos autos em que vem levantada a simulação dos contratos de mútuo, cujo cumprimento as livranças referidas na petição inicial se destinavam a caucionar. No caso presente, as questões suscitadas pela requerida em sede de oposição constituem objeto da ação ordinária que a requerente instaurou contra aquela … Por isso, como bem refere a decisão recorrida, o crédito cuja titularidade a requerente se arroga e que serve de fundamento ao pedido de declaração de insolvência da requerida é litigioso, atento o disposto no n°3 do artigo 597° do Código Civil, segundo o qual: “diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado”. E sendo o crédito litigioso, não pode afirmar-se, desde já, que a requerente é credora da requerida. Daí a ilegitimidade da requerente para formular o pedido de declaração de insolvência da requerida.” (sublinhados nossos).
Conforme resulta da transcrição feita, no acórdão fundamento estava em causa a legitimidade de um credor para requerer a insolvência de uma sociedade, quando a existência do crédito daquele credor ainda não era certo e exigível, porquanto a sua existência ou inexistência ainda estava a ser discutida em ação declarativa intentada pelo credor contra a sociedade. Nessa medida, o crédito do requerente da insolvência era litigioso 1.
No âmbito dos presentes autos, a Recorrente também colocou a questão da legitimidade do Recorrido (credor) para requerer a sua insolvência, mas não pôs em causa a natureza certa, líquida e exigível do crédito, antes sustentou que o mesmo era litigioso por ter intentado ação declarativa contra aquele, com vista a ver reconhecido o seu direito a compensar o crédito daquele com um seu contra crédito.
No acórdão recorrido começa por afirmar-se entendimento distinto do acórdão fundamento, alcançando-se que perfilha a posição contrária quanto à questão em análise, mas o que fundamentou a decisão não foi esse entendimento, mas a conclusão de que o crédito do credor/requerente não era litigioso, sendo certo, líquido e exigível.
Escreveu-se no acórdão recorrido 2 “Desde já se dirá ser inquestionável (como defendido na sentença em sede de questão prévia) que a insolvência poderia ter sido requerida nos moldes em que o foi, gozando o requerente de legitimidade ativa para tanto, independentemente de ser ou não titular de um crédito litigioso. Nesse sentido, veja-se, por todos, o decidido pelo acórdão do STJ de 29/03/2012 (Proc. n.º 1024/10.5TYVNG.P1.S1, relator Fernandes do Vale) [22], disponível in www.dgsi.t, como os demais que forem citados, sem qualquer outra menção. Mas será tal crédito litigioso? Tendo presente o conceito de crédito litigioso que nos é dado pelo n.º 3 do artigo 579.º do CCivil – “Diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado” -, vejamos o que na sentença recorrida se consignou quanto a esta questão: … Subscrevemos o entendimento defendido pela 1.ª instância, desde logo em face do prescrito pelo artigo 847.º, n.º 1 - “1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos: a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material; b) Terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.” – e pelo artigo 334.º -“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” -, ambos do CCivil. Como a jurisprudência tem vindo a entender maioritariamente, apenas será possível invocar a compensação se o contra-crédito estiver em condições de ser realizado coercivamente, ou seja, se for apto a permitir, desde logo, a execução do património do devedor [23] (não sendo esse o caso, sempre este último ter-se-á de ter por incerto e hipotético) – … Como defendido em sede de contra-alegações, o crédito do recorrido é “um crédito vencido e judicialmente exigível, devidamente justificado quanto à respetiva origem, natureza e montante, não tendo carácter litigioso”. Já o mesmo não se poderá afirmar quanto ao putativo contra-crédito de que se arroga a recorrente, o qual, inclusive, como ficou provado, não existe. Foi esse o entendimento do tribunal a quo, o qual concluiu, com acerto, pela inexistência do mesmo, não tendo merecido acolhimento a tese pela recorrente defendida, … A recorrente pretende, aliás, atacar a pretensão do requerente e justificar o seu contra-crédito com fundamento em factualidade cujo aditamento requereu mas que não veio a merecer acolhimento (como decorre da total improcedência da impugnação da matéria de facto) [24]. Refira-se, também, que a jurisprudência citada pela recorrente reporta-se a situações distintas, nas quais o crédito do aí requerente da insolvência não se mostrava vencido, nem era exigível (ou seja, situações nas quais é litigiosa a existência, vencimento e exigibilidade desse crédito). Já no caso em apreço, reafirma-se, o crédito do recorrido está plenamente demonstrado e reconhecido (inclusive pela recorrente, a qual não o impugna, mas tão somente visa compensá-lo com um outro de que a própria se arroga mas que não logrou demonstrar), sendo antes o contra-crédito invocado pela recorrente que assumia natureza controversa/litigiosa (e que foi julgado como não existindo). E, mesmo na ação que pela requerida foi intentada e que se encontra pendente, o crédito do recorrida não é impugnado (sendo que, como a própria afirma, os fundamentos dessa ação correspondem aos invocados na oposição à insolvência), ação essa que, não será despiciendo frisar, foi interposta já depois da instauração dos presentes autos de insolvência [25]. Seja como for, era à recorrente que cumpria alegar e provar os factos constitutivos do invocado contra crédito (crédito de que se arroga sobre o requerente), por forma a operar-se a pretendida compensação e, nessa medida, afetar o crédito ora titulado pelo recorrido (extinguindo-o), o que não logrou fazer.” (sublinhados nossos).
É manifesta a inexistência de identidade entre os quadros factuais considerados nos arestos em confronto, já que a apreciação da legitimidade do credor assenta em pressupostos fácticos distintos.
As disposições legais aplicadas e interpretadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido são as mesmas, mas a decisão (oposta) a que se chegou num e noutro assenta, apenas, na distinta factualidade subjacente.
Da ausência de identidade nos recortes factuais considerados resulta, in casu, a inexistência de identidade entre as questões de direito analisadas.
Assim, se no âmbito do acórdão-fundamento se discutiu a natureza litigiosa do crédito do credor que requereu a insolvência da sociedade atenta a pendência de ação onde se discutia a própria (in)existência do crédito, no acórdão recorrido discutiu-se a natureza litigiosa do crédito face à pendência de ação intentada pela sociedade requerida com vista a obter a compensação de alegado contra crédito sobre o credor (o que foi, também, apreciado na presente ação), não sendo contestada a certeza, liquidez e exigibilidade do crédito.
Afigura-se-nos, assim, manifesta a inexistência de identidade entre as questões de direito apreciadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, pelo que não ocorre contradição jurisprudencial para efeitos de admissibilidade do recurso nos termos do art. 14º, nº 1, do CIRE – cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 17.9.2024, P. 62/23.2T8AMT.P1.S1 (Graça Amaral), de 1.10.2024, P. 1415/21.6T8STR-E.E1.S1 (Leonel Serôdio), e de 12.11.2024, P. nº 16969/23.4T8LSB-C.L1.S1 (Rosário Gonçalves), em www.dgsi.pt.
Em conclusão, o recurso de revista com fundamento na contradição de julgados (entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3.12.2009, proferido no processo nº 3601/08.5TJCBR.C1), não é admissível, nos termos referidos.”.
*
III. Apreciada pelo coletivo a fundamentação constante do despacho singular, subscreve-se a mesma na íntegra.
Não releva o que é que o tribunal recorrido decidiria se “viesse a concluir que o crédito do Recorrido é litigioso,” uma vez que, o que releva, e o que distingue a factualidade base entre as duas decisões é, precisamente, o facto do crédito do Recorrido não ser litigioso.
Ou seja, o fundamento (fáctico) que determinou a decisão do tribunal recorrido é distinto do fundamento que determinou a decisão no acórdão fundamento, nessa factualidade assentando a integração jurídica das disposições legais citadas.
Em conclusão, não merece provimento a reclamação, devendo manter-se o despacho reclamado.
Um último apontamento para referir que a questão de inconstitucionalidade suscitada pela Recorrente nas suas conclusões de recurso (conclusão XIX) não é fundamento autónomo de admissão do recurso de revista.
Como se sumariou no Ac. do STJ de 31.1.2023, P. nº 4183/16.0T8VNG-M.P1.S1 (Luís Espírito Santo), em www.dgsi.pt, “… VII - A arguição de inconstitucionalidade - legítima e subordinada às regras gerais constantes do Lei n.º 28/82, de 15-11 - não fundamenta autonomamente a admissibilidade de um recurso de revista ao qual -como sucede in casu - faltem os pressupostos gerais de recorribilidade.”.
IV. Pelo exposto, acordam em conferência na 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a reclamação apresentada pela Recorrente, mantendo-se o despacho singular que julgou findo o recurso de revista interposto pela Recorrente, por inadmissibilidade do mesmo.
Custas do incidente pela reclamante - art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
Notifique.
*
Lisboa, 2025.06.17
Cristina Coelho (Relatora)
Maria Olinda Garcia
Anabela Luna de Carvalho
SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):
__________________________________
1. Atente-se no elucidativo sumário do acórdão fundamento: “I – O credor só pode requerer a declaração de insolvência do devedor se o montante do seu crédito sobre este se mostrar judicialmente reconhecível, pelo que o crédito deve ser certo, líquido e exigível. II – Carece de legitimidade para requerer a declaração de insolvência o requerente cujo crédito que serve de fundamento ao pedido de declaração de insolvência se mostra litigioso.”↩︎
2. Que não se limita à parte reproduzida pela Recorrente.↩︎