NULIDADE DE ACÓRDÃO
RECLAMAÇÃO
ARGUIÇÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
ERRO DE JULGAMENTO
INDEFERIMENTO
Sumário


A invocação de nulidades previstas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC não é uma forma legalmente adequada de o reclamante expressar a sua discordância face ao sentido decisório de um acórdão do STJ que, por natureza, já não é suscetível de recurso ordinário.

Texto Integral


Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA, ré nos presentes autos, veio apresentar reclamação contra o acórdão proferido por este tribunal em 25.03.2025, que decidiu julgar a revista procedente, revogando o acórdão recorrido, com a baixa dos autos à primeira instância para prossecução do processo, nos termos legais.

2. A reclamante, para além de manifestar a sua discordância com o sentido do acórdão recorrido, vem alegar que o referido acórdão estaria ferido de nulidade, tanto por excesso de pronúncia como por omissão de pronúncia. Sintetizou os seus argumentos nas seguintes conclusões:

«A. O presente recurso de revista excecional não cumpre os requisitos para a sua admissibilidade.

B. No entanto, foi admitido e com base na al. a) do nº 1 do Art° 672° do C.P.C., ou seja, pelas questões levantadas terem relevância jurídica e ser necessária uma melhor aplicação do Direito, o caso julgado formal e o abuso de direito, tal como se refere no douto Acórdão proferido em 26.03.2025, aqui reclamado: “julgamos que o respetivo tratamento,
consideradas as particularidades do caso trazido a Juízo, a convocar a aplicação de princípios estruturantes do nosso ordenamento jurídico, envolvendo a conjugação dos institutos de caso julgado e abuso de direito, aconselha que este Supremo Tribunal de Justiça emita uma pronúncia liderante”.

C. No douto Acórdão agora Reclamado, o Supremo Tribunal vem dizer que afinal a questão não é nem de caso julgado formal, nem de abuso de direito, antes sim a de se saber se se encontravam reunidos os requisitos para a deserção da instância ser declarada, tal como o foi, na douta decisão de 12.01.2024.

D. Os Recorrentes limitaram, em sede conclusiva, o seu recurso á impugnação do douto Despacho de 05.06.2023.

E. O Supremo Tribunal, não se pronuncia sobre tal Despacho e as suas consequências, tal como foi solicitado pelos Recorrentes, e deste ponto de vista cometeu uma nulidade na medida em que há omissão de pronuncia, nos termos da al. d) do n.º 1 do Art° 615° do C.P.C.

F. Outrossim, o Supremo, foi mais além, e pronunciou-se sobre o despacho de 12.01.2024 e as suas consequências, quando tal não lhe foi solicitado pelos Recorrentes, nas suas conclusões de Recurso, pelo que há excesso de pronuncia, o que origina a nulidade prevista na al. d) do n° 1 do Art° 615° do C.P.C.

G. Igualmente, existe nulidade do douto Acórdão, uma vez que a revista excecional foi aceite com fundamento na al. a) do n° 1 do Art° 672° do CPC, e não por estar em causa qualquer questão de particular relevância social (correspondente á al. b) da referida norma legal), pelo que não pode servir de fundamento para se decidir como doutamente se decidiu a fundamentação as “inequívocas repercussões na delimitação de relevantes direitos de natureza económica e social”, e quando refere que a nada ser feito “seria atribuir a uma decisão sobre uma questão meramente processual um alcance que se projetaria inelutavelmente sobre o mérito da causa”, pelo que deste ponto de vista o Acórdão proferido, que agora se reclama, é também nulo por contradição entre os
fundamentos e a decisão, nos termos da al. c) do n° 1 do Art° 615° do Código de Processo Civil.

H. O habilitado que deu causa à deserção da instância, ficou prejudicado com a decisão, na medida em que o acervo hereditário vai ter que ser dividido com a Reclamante, e nada garante que o habilitado que deu causa á deserção receba o que a Reclamante receberá, desde logo porque esta pode fazer o que bem entender dos valores que receber, ou até ter mais herdeiros, a quem seja distribuído os seus bens á data da sua morte.

I. Ao contrário do que refere o douto Acórdão “ad quem”, a deserção da instância opera pelo decurso do prazo, de seis meses e um dia, independentemente de decisão judicial.

J. Tal decisão judicial, tem por objetivo o mero reconhecimento do decurso do prazo e o consequente arquivamento dos autos, pelo que qualquer fundamentação para a deserção não ocorre no despacho que a decreta, mas sim na decisão que decreta a suspensão da instância.

K. Quer a decisão de suspensão da instância, quer a decisão de deserção da instância, estão devidamente fundamentadas, percetíveis, claras pelo que não existe qualquer necessidade de verificação factual sobre o comportamento negligente dos sujeitos penalizados pela deserção.

L. Como se referiu, a penalização do habilitado que deu causa á deserção, resulta desde logo dos imperativos legais, no que á sucessão se refere.

M. O vicio de falta de fundamentação só existe se a mesma for absoluta, o que de todo é o caso.

N. A decisão sobre a deserção da instância foi bem tomada, porque ela não depende - nem existe qualquer normativo legal que assim o refira ou imponha - de se saber se a maioria dos coautores foram ou não negligentes na suspensão da instância.

O. O entendimento contrário viola as regras da interpretação das normas, existentes no nosso código Civil, nomeadamente no seu Art° 9º.

P. O douto Acórdão foi objeto de voto de vencido, com os fundamentos que ali melhor se explanam e que se resumem ao facto da omissão de pronuncia quanto ao despacho de 05.06.2023 e as suas consequências.

Q. Tal despacho de 05.06.2023, é fundamental, na medida em que mantém a suspensão dos autos, de acordo com a douta decisão do Acórdão da Relação do Porto.

R. Encontram-se assim violados os Art°s 9° do Código Civil, e Art° 281° e 615° do Código de Processo Civil.

Nestes termos, deve ser revogado o douto Acórdão proferido e mantido o douto Acórdão do Tribunal da Relação na sua plenitude. Só assim se fazendo justiça

3. Os autores habilitados – BB, CC, DD e EE – responderam, sustentando, em síntese, que:

«1. A reclamante invoca erradamente a existência de nulidades no Douto Ac., por entender que este Venerando Tribunal teve, por um lado omissão de pronúncia, e por outro lado excesso de pronúncia.

2. Tal contradição, resulta, apenas, de uma tentativa de eternizar os autos, dada a manifesta falta de razão do entendimento perfilhado pela reclamante.

3. As decisões judiciais suscitam a discordância de alguma, e por vezes até de ambas as partes, mas é sempre reprovável a conduta dirigida a evitar o transito em julgado, como sucede in casu.

4. Este Venerando STJ pronunciou-se sobre aquilo que lhe foi solicitado.

5. Este Venerando STJ apreciou as decisões erradamente proferidas, sendo que aquelas que lhe sucederam se acham irremediavelmente afectadas pela destruição que se fez das que lhe deram origem.

6. A questão de fundo que este Venerando STJ decidiu é que para ser declarada extinta a instância por efeito de deserção, não bastava, assim, o simples decurso do prazo de 6 meses e um dia.

7. Este Venerando STJ decidiu que se torna sempre necessário, e de forma detalhada e prévia, analisar o circunstancialismo próprio e singular de cada situação processualmente concreta.

8. Impunha-se analisar o alcance do despacho de 30-04-2021, para de seguida, analisar em que medida essa decisão condicionada a posterior decisão para a deserção da instância.

9. Foi a dinâmica da conjugação destes elementos processuais, a que se aludiu nas alegações, que este Venerando STJ, decidiu de forma translucida, que o acórdão demostra.

10. Por isso que, apreciado que foi o momento incorretamente decidido, tudo o mais se desmoronou por ausência de alicerce que permitisse a manutenção do decidido.

11. Estando decidido que inexistia fundamento para a deserção, atento o circunstancialismo do caso em concreto, obvio é que os autos conhecerão a sua normal dinâmica para prolação de sentença de divorcio.

12. Dai que, este Venerando STJ não tinha que dizer mais do que disse, nem tampouco deixou de se pronunciar sobre o que lhe foi solicitado.

13. E, atendendo a invocação singela, que a Reclamante faz, sem fundamentação da razão porque invoca a nulidade, certo é que, fica clarividente a sua única pretensão, que é a de obstar, a qualquer preço, ao transito em julgado.

14. Calcorreado o Douto Ac., verifica-se que o mesmo, proferindo decisão nos moldes em que lhe foi solicitada, acaba por clarificar situação com manifesta relevância jurídica, no que tange é correcta aplicação do instituto da deserção da instância.

15. A reclamante, na busca da perturbação dos autos, e à mingua de melhor argumentação, acaba por introduzir matéria que nada tem a ver com nulidades, nomeadamente, o constante das conclusões H) até O).

16. O aí descrito prende-se apenas com factos e não com matéria de direito, visando a reclamante reapreciação de matéria de facto, o que está vedado a este Venerando Tribunal, e nem mesmo esta conferência serve de quarta via de apreciação de recurso.

17. Falha ainda a Reclamante quando vem invocar nulidade por existir voto de vencido sem que os fundamento de tal voto tenham sido incorporados em tal decisão.

18. Nada de mais temerário poderia ser dito.

19. O facto de o Douto Ac. não fazer alusão a tal voto, não significa que não o tivesse tido em conta para efeito de raciocínio que conduziu á presente decisão.

20. Com efeito, o facto de o voto de vencido foi exarado com tem de ser, de forma autónoma, já fora do acórdão, não o integrando nem formal, nem materialmente, não viola qualquer regra da intervenção na formação do colectivo de juízes, em nada violando o princípio da colegialidade das decisões dos tribunais.

21. Mas bastava ter-se o mero conhecimento, ainda que longínquo, das regras que estabelecem a forma procedimental das decisões colegiais do STJ, aconselha-se, por isso, uma incursão pelas regras estabelecidas, a tal propósito no CPC.

22. O Ac. foi alvo de discussão de debate colectivo, onde o Ilustre Conselheiro que votou vencido teve lugar, e daquele debate saiu o entendimento consensual e convergente em que acordaram a maioria dos juízes que compunham o coletivo.

23. O Ilustre Conselheiro que teve voto vencido, discutiu com os demais Conselheiros do colectivo e, o contrário não é dito pela Reclamante, tendo chegado à decisão colegial que a lei impõe.

24. É, assim, o próprio regime instituído que salvaguarda a colegialidade da decisão, quer na vertente da composição do tribunal, quer no iter procedimental que antecede a decisão, quer na tomada de decisão, assegurando a participação activa dos juízes que integram o colectivo.

25. O Ac. é o reflexo da discussão e debate colectivo, e o resultado do entendimento consensual e convergente em que acordam a maioria dos juízes que compõem o coletivo.

26. Mas diga-se, em nada o voto vencido contraria a decisão tomada.

27. Pelo que, também neste particular, decai a pretensão da Reclamante.

28. Aqui chegados, estando declarado que inexistia fundamento para ser declarada a deserção da instância, terão os autos que, obrigatoriamente, baixar à primeira instância, para declarar o divorcio, talqualmente se acha peticionado.

29. E tal decisão só ainda não foi tornada definitiva, uma vez que a primeira instância proferiu sentença de divorcio, porque, erradamente, o tribunal da Relação do Porto, veio a declarar a instância inicialmente suspensa, e posteriormente deserta.

30. Quando a realidade dos factos e o Douto Ac. ora proferido por este Venerando STJ, clarificou que inexistia deserção da instância.

31. Dai que, o único efeito útil que se retira de tal Douto acórdão é o prosseguimento dos autos em primeira instância para decretação do divórcio, peticionado em 2014 e imune às manobras dilatórias da Reclamante e do seu filho.

Pelo exposto e pelo que doutamente for suprido, a Douta decisão proferida deve ser mantida, sendo proferido Douto Acórdão que não conceda provimento a presente Reclamação, ordenando o prosseguimento dos autos, em primeira instância, para decretação do divorcio, para assim, se fazer, inteira e sã justiça

*

Cabe apreciar em Conferência.

4. A reclamante invoca a nulidade do acórdão com base no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, quer por omissão de pronúncia, quer por excesso de pronúncia.

Entende que há omissão de pronúncia, porque o acórdão reclamado não se pronuncia sobre o despacho da primeira instância, de 05.06.2023.

Como a doutrina e a jurisprudência tem reiteradamente afirmado, a falta de pronúncia que conduz à nulidade de uma decisão corresponde à omissão total do seu tratamento, e não a uma pronúncia insuficiente ou deficiente. A omissão de pronúncia não deve, portanto, confundir-se com a não consideração de algum argumento invocado pelo recorrente para alcançar determinado resultado normativo.

No caso concreto, ao revogar o acórdão da Relação, analisando o respetivo percurso decisório, a decisão agora reclamada não deixa de ter em conta o referido despacho de 05.06.2023.

Coisa diferente é o alcance normativo que deve ser atribuído a esse elemento. Assim, o facto de não ter existido unanimidade na apreciação do relevo normativo dos fatores que conduziram à revogação do acórdão da Relação, não significa que tenha existido omissão de pronúncia.

5. E também não existe qualquer nulidade por excesso de pronúncia, pois, como a reclamante bem sabe, o objeto central da revista (no que releva para a apreciação da presente reclamação), emergente das conclusões das alegações dos recorrentes e com o âmbito de admissibilidade traçado pelo acórdão da Formação, era o de saber se as instâncias fizeram a correta aplicação do direito quando decretaram a deserção da instância, apesar da especificidade do caso concreto.

Ora, ao dar resposta a esta questão, julgando a revista procedente, e determinando a consequente baixa dos autos à primeira instância para prossecução do processo, nos termos legais, não foi ultrapassado o âmbito do objeto da revista, pelo que o acórdão recorrido não enferma de nulidade por excesso de pronúncia. Não se verifica, portanto, o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.

6. A reclamante afirma ainda que o acórdão seria nulo com base no artigo 615º, n.º 1, alínea c) do CPC, por existir oposição entre os fundamentos e a decisão.

Afirma a reclamante, no ponto G) das conclusões das suas alegações que:

« Igualmente, existe nulidade do douto Acórdão, uma vez que a revista excecional foi aceite com fundamento na al. a) do n° 1 do Art° 672° do CPC, e não por estar em causa qualquer questão de particular relevância social (correspondente á al. b) da referida norma legal), pelo que não pode servir de fundamento para se decidir como doutamente se decidiu a fundamentação as “inequívocas repercussões na delimitação de relevantes direitos de natureza económica e social”, e quando refere que a nada ser feito “seria atribuir a uma decisão sobre uma questão meramente processual um alcance que se projetaria inelutavelmente sobre o mérito da causa”, pelo que deste ponto de vista o Acórdão proferido, que agora se reclama, é também nulo por contradição entre os
fundamentos e a decisão, nos termos da al. c) do n° 1 do Art° 615° do Código de Processo Civil.

Embora a formulação literal usada pela reclamante não seja enformada por inequívoco recorte técnico, dela parece depreender-se que a apontada contradição residiria numa dissidência entre os fundamentos do acórdão da Formação, que admitiu a revista excecional, e o decidido no acórdão agora reclamado.

Porém, nenhuma razão lhe assiste. Além de o sentido da referida alínea c) do artigo 615.º se reportar à contradição entre os fundamentos e o segmento decisório de um mesmo aresto (e não aos fundamentos de um aresto e à decisão de outro), no caso concreto nenhuma contradição existe, nem entre os fundamentos e a decisão do acórdão reclamado, nem entre este acórdão e os fundamentos do acórdão da Formação.

Uma leitura atenta do âmbito de admissibilidade da revista excecional (sem necessidade de aqui proceder à sua transcrição) levará, certamente, a reclamante a perceber qual o objeto do recurso, sendo irrelevantes para a vida do acórdão reclamado considerações gerais, de natureza dogmática ou teorizante, adotadas no percurso analítico-decisório do acórdão da Formação. Esse aresto tem, obviamente, a sua própria autonomia argumentativa e decisória.

Concluiu-se, portanto, não existir o fundamento de nulidade previsto no artigo 615º, n.º 1, alínea c) do CPC.

Em síntese, conclui-se que o acórdão reclamado não enferma de qualquer uma das nulidades apontadas pela reclamante.

*

DECISÃO: Pelo exposto, indefere-se a reclamação.

Custas: pela reclamante, que se fixam em 3 UCs (artigo 7.º, n.º 4 e Tabela II, penúltima linha, do Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 17.06.2025

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Luís Correia de Mendonça

Graça Amaral