Quem invoca a aquisição da propriedade de uma parcela de terreno, por usucapião, tem o ónus de especificar esse objeto, descrevendo a respetiva área e confrontações, pois o direito de propriedade não poderá ser constituído sobre coisas indeterminadas. Não tendo a autora demonstrado a concreta individualização da parcela de terreno sobre a qual pretendia ver reconhecido o direito invocado, falha o requisito básico de saber qual o objeto desse direito.
I. RELATÓRIO
1. AA (viúva, por si e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB) instaurou a presente ação declarativa de condenação contra CC (viúva, residente no concelho de Guimarães), pedindo a condenação da ré a ver declarada a aquisição de parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães, sob o nº ...52/... (identificado na petição inicial) a favor da autora (por si e na qualidade de cabeça de casal), por usucapião, correspondente ao terreno onde está implementada a sua habitação.
Pediu a condenação da ré a abster-se de praticar qualquer ato perturbador da posse e propriedade da autora (por si e na qualidade de cabeça de casal) no referido terreno, bem como pediu a condenação da ré no cancelamento de todas as inscrições registadas na Conservatória do Registo Predial que ofendam a sua posse e a propriedade sobre o referido prédio.
A autora alegou ser cabeça de casal da herança aberta por óbito de DD (falecido em ........2000), tendo sido habilitados como herdeiros, além da autora (conjugue sobreviva) também os seus dois filhos (identificados nos autos).
Alegou que o falecido DD era filho da ré, e que em 1993 (já casado com a autora) obteve autorização da sua mãe para construir uma casa numa parte de um terreno, propriedade desta, denominado Campo ..., sito no lugar do Bairro, atual rua ..., nº ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...52/....
A autora e o seu falecido marido construíram a sua habitação nesse terreno, onde passaram a viver e onde nasceram e cresceram os seus filhos.
Após a morte do marido, a ré fez benfeitorias e ampliou aquela habitação.
Entende a autora que, desde 1993, por si e na qualidade de cabeça de casal, tem possuído, pacífica e publicamente, a parte do imóvel onde foi construída a sua habitação, tendo exercido essa posse de modo contínuo, como se proprietária fosse, pelo tempo necessário à respetiva aquisição por usucapião.
A ré contestou a ação, pugnando pela sua improcedência e pela absolvição da ré do pedido.
2. A 1ª instância enunciou o seguinte objeto da ação:
«se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode prevalecer sobre as normas que, sucessivamente, têm vigorado em matéria de ordenamento do território, e se pode ser permitida ou reconhecida a aquisição por usucapião de uma parcela de terreno de um prédio que contrarie disposições legais imperativas respeitantes ao loteamento ou ao destaque e se o Tribunal pode, por esta via, proceder a uma espécie de “operação urbanística” da qual resultem dois lotes, sendo um pertença da autora, que invoca a usucapião e o outro da ré, sem que tivesse sido emitido qualquer alvará de loteamento, nem qualquer tipo de licença, comprometendo-se com uma espécie de “destaque ilegal”, porquanto não foi sequer alegado e muito menos provado que a construção erigida na parcela “destacada” dispunha de projeto aprovado pela Câmara Municipal competente.»
E veio a proferir sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido, por se ter entendido, em síntese, que: «(…) na ausência da demonstração do cumprimento das normas de cariz administrativo a que estava sujeita a operação urbanística que decorre da aquisição originária, por usucapião, da parcela de terreno em causa nos autos, deve esta ação ser julgada totalmente improcedente, absolvendo-se a ré de todos os pedidos contra si formulados.»
3. A autora apelou, tendo o TRG confirmado o sentido decisório da sentença, mas com fundamento substancialmente diverso.
4. Antes de interpor recurso de revista, a autora-apelante reclamou contra esse acórdão, invocando a sua nulidade por entender existir uma decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3º, n.º 3, do CPC.
5. O requerimento apresentado pela autora-apelante foi decidido singularmente, tendo o relator entendido não existir qualquer nulidade.
Contra essa decisão, a reclamante pediu a intervenção da Conferência.
Porém, como, entretanto, a autora-apelante também havia interposto recurso de revista, o relator decidiu remeter os autos ao STJ, sem que a Conferência se houvesse pronunciado sobre o requerimento anteriormente apresentado.
6. Distribuídos os autos no STJ, entendeu a relatora que os autos deviam baixar ao tribunal recorrido para que a Conferência se pronunciasse sobre o requerimento respeitante à invocada violação do princípio do contraditório que não havia sido apreciada (pois dessa decisão poderia resultar a eventual desnecessidade do recurso de revista).
7. A Conferência pronunciou-se mantendo a decisão reclamada, entendendo não existir qualquer nulidade por violação do princípio do contraditório.
8. Nas suas alegações de revista, a recorrente havia formulado as seguintes conclusões:
«1ª – O Acórdão recorrido, por fundamentos diversos, julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida.
2ª – O Acórdão sob revista é nulo porquanto pronunciou-se sobre questões que não devia apreciar.
3ª - Dispõe o art.º 615º, n.º 1, al. d) do CPC que é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
4ª - A questão da ineptidão da petição inicial em momento algum foi suscitada nos autos, nem pelo tribunal a quo nem pelas partes.
5ª - A recepção da decisão em causa pela Recorrente configurou numa decisão surpresa.
6ª- A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa,
7ª - É nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respectivo enquadramento jurídico.
8ª - O acórdão proferido, padece de uma clara violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3º, n.º 3, do CPC, que origina nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia, nulidade que expressamente se invoca.
9ª - Dispõe ainda o artº 615º, nº 1, alínea c) do CPC é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
10ª - O acórdão sob revista ocupou toda a sua decisão sobre a questão da eventual ineptidão da petição inicial.
11ª - Porém, na sua fundamentação, admite que não pode neste momento processual conhecer da mesma, mas acaba por decidir, em consequência da eventual ineptidão que admitiu não poder conhecer, por manter a decisão, absolvendo a ré do pedido.
12ª- Como é evidente, estamos perante uma manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão, que tem por inexorável consequência a nulidade do douto acórdão.
13ª - Nulidade da douta sentença que se argui e que deverá ser conhecida e declarada, com todos os legais efeitos.
14ª – Acresce que, não pode a petição inicial aquando do recurso ser considerada inepta.
15ª - Mesmo que o a petição inicial fosse inepta, essa matéria já há muito foi julgada e transitou em julgado pelo que a mesma encontra-se sanada.
16ª – Sem prescindir, o tribunal a quo considerou que não podia a A. adquirir a parcela de terreno em causa nos autos através do instituto da usucapião pela ausência de demonstração do cumprimento das normas de cariz administrativo.
17ª – No nosso ordenamento jurídico, a usucapião constitui uma forma de aquisição originária do direito de propriedade e, amplius, de outros jura in re usucapíveis.
18ª – A usucapião serve, além do mais, para “legalizar” situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa. Claro que esta “legalização” do “ilegal” produz efeitos estritamente jurídico-civilísticos.
19ª – Não podem ser sobrepostas ao instituto da usucapião normas de natureza administrativa.
20ª – O interesse público é a razão de ser quer da posse quer da usucapião, sendo a usucapião a primeira regra do ordenamento do território!!!
21ª – No confronto entre o interesse público que as leis referentes ao fracionamento, destaque e ao loteamento visam satisfazer e o interesse público que também é a razão de ser da posse e da usucapião, tem de se atender a este ultimo.
22ª – É imputável à Administração o facto de não ter atuado atempada e preventivamente por forma a impedir a consolidação de uma situação prejudicial ao ordenamento do território: “dormientibus non sucurrit jus”.
23ª – Pode Administração, em último ratio, ainda intervir e corrigir estas situações através de planos de urbanização ou de pormenor que abranjam a respectiva área, ou mesmo ordenando a demolição da obra ilegal ou até incitar a sua legalização.
24ª – Entre as normas vigentes à data do início da posse não se vislumbra, entre as normas legais reguladoras do fraccionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objecto de posse mercê de fraccionamento ilegal de prédio rústico.
25ª – O direito à habitação é um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa, Lei Fundamental do país, no seu artigo 65º.
26ª – Existe, in casu, uma colisão de direitos e nos termos da figura prevista no artigo 335º do Código Civil, o direito superior é o da Recorrente.
27ª - Do ponto de vista constitucional, tem de prevalecer a função social, mesmo naquelas hipóteses em que haja vício na aquisição da posse de um determinado bem, como ocorre no caso da clandestinidade.
28ª – A interpretação perfilhada pela sentença recorrida, segundo a qual os artigos 1251º, 1263º e 1287º do Código Civil devem ceder perante a aplicação das normas de natureza administrativa referentes ao destaque, fracionamento e loteamento urbano é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 9º, 25º, 26º e 27º e 65º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão proferida, substituindo-se por outra que julgue a ação totalmente procedente, assim se fazendo justiça.»
9. Após a decisão do TRG em Conferência, a recorrente voltou a pronunciar-se, reiterando, na essência, o que já constava das suas alegações de revista.
Regressados os autos ao STJ, cabe apreciar.
*
II. FUNDAMENTOS
1. Admissibilidade e objeto do recurso.
A segunda instância, confirmou o sentido decisório da sentença, mas com fundamentação essencialmente diferente, pelo que a revista é admissível, nos termos do artigo 671.º, n.º 1 e n.º 3 do CPC.
O objeto da revista, recortado pelas conclusões das alegações do recorrente, é integrado pelas seguintes questões: saber se o acórdão recorrido padece de nulidade; saber se existe fundamento para ser decretada a aquisição da propriedade, por usucapião, de uma parcela de terreno reclamada pela autora; saber se existe algum fundamento de inconstitucionalidade.
2. A factualidade provada
A primeira instância deu como provada a seguinte factualidade:
«1º A A., é Cabeça de Casal da herança aberta por óbito de DD que faleceu em ... de ... de 2000, Cfr. Ponto 1º da P.I.
2º Tendo já sido habilitados como seus herdeiros, além da A., sua conjugue sobreviva AA e os dois filhos EE e FF, conforme flui da escritura publica de habilitação de herdeiros, outorgada em 12 de Maio de 2000, no 1º Cartório Notarial de ..., de fls. 59 a fls. 59 Verso, do Livro de Escrituras Diversas nº 410-D – Cfr. Ponto 2º da P.I.
3º Sucede que o referido DD era filho da Ré CC e de GG, pré falecido, conforme flui da cópia do assento de óbito e de casamento que se juntam e se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais – Cfr. Ponto 3º da P.I.
4º Nessa qualidade de filho e estando a iniciar a sua vida, o referido DD, já casado em 1993, solicitou à Ré, sua mãe, que o deixasse construir uma casa numa parcela de terreno, que fazia parte integrante de um prédio de maiores dimensões, denominado Campo ..., sito no lugar do..., atualmente na rua ..., nº ..., da freguesia de ..., do concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...52/..., inscrito em nome da Ré – Cfr. Ponto 4º da P.I.
5º A Ré nessa data autorizou o falecido DD e a sua esposa ora A., a construir naquela parcela – Cfr. Ponto 5º da P.I.
6º Assim a A. e o seu falecido marido passaram a tratar de tal parcela de terreno, passando a construir a sua habitação onde viriam a nascer e a viver, até há pouco tempo, os seus dois filhos, EE e FF, nascidos respetivamente em ... de ... de 1992 e ... de ... de 1996 – Cfr. Ponto 6º da P.I.
7º Durante vários anos, foi a A. e o seu falecido marido efetuando obras e melhorando quer a casa, quer todo o logradouro à volta do mesmo – Cfr. Ponto 7º da P.I.
8º Que aumentaram após a morte do marido, tendo efetuado melhorias muito significativas no mesmo, para melhor acudir às necessidades da família que entretanto cresceu – Cfr. Ponto 8º da P.I..
9º Posse essa que foi adquirida sem violência, e na convicção de não lesar direitos de outrem, e que sempre foi exercida à vista de toda a gente e dos mais diretamente interessados, com o conhecimento da generalidade das pessoas, nomeadamente dos vizinhos, e sem oposição de ninguém, dia a dia, ano a ano, sem soluções de continuidade – Cfr. ponto 12º da P.I.
10º E sempre foi exercida com ânimo de quem exerce direitos próprios e no seu próprio nome – Cfr. Ponto 13º da P.I.
11º Desde 1993, a Autora e o seu marido passaram a ocupar e usufruir o prédio como sua propriedade, tendo passado a ser ali, na casa por si contruída em tal parcela de terreno, que a A., e desde sempre igualmente os filhos que tomam refeições, confecionam as mesmas, pernoitam e realizam a higiene diária, têm residência e mobílias, efetuam limpezas domésticas, recebem familiares e amigos, estacionam os veículos no logradouro, recebem correspondência, à vista de toda a gente, incluindo os pais, pacificamente, de boa fé, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de exercer tais atos sobre coisa sua, como legítimos e exclusivos proprietários – Cfr. Pontos 14º e 16º da P.I.»
3. O direito aplicável
3.1. Entende a recorrente que o acórdão recorrido enferma de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, por ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento, e também por apresentar fundamentação que estaria em oposição com a decisão, nos termos da alínea c) da referida norma.
Reporta-se a recorrente ao facto de o acórdão recorrido ter afirmado que a petição inicial seria inepta (por não se saber qual a parcela de terreno sobre a qual pretendia ver reconhecido o direito de propriedade por usucapião), apesar de essa matéria não ter sido discutida na primeira instância.
Pode afirmar-se que o acórdão recorrido não apresenta particular recorte técnico na sua fundamentação, todavia não se pode afirmar que incorra em nulidade.
Efetivamente, contrariamente ao afirmado pela recorrente, apesar de essa decisão discorrer sobre a virtual ineptidão da petição inicial, afirma expressamente que, nos termos do artigo 200.º, n.º 2 do CPC, essa matéria já não pode ser conhecida, porque não foi suscitada ou detetada na primeira instância. Assim, em rigor, não se pode afirmar que o acórdão recorrido tenha conhecido de uma questão que lhe estava vedada, porque da abordagem de tal matéria não emerge um direto segmento decisório, dado que a questão já se encontrava precludida. Não existe, portanto, violação do disposto na alínea d) do artigo 615.º, n.º 1 do CPC.
Por outro lado, contrariamente ao alegado pela recorrente, também não se pode concluir que os fundamentos do acórdão estejam em oposição com a decisão de absolvição do pedido. Efetivamente, o que se sustentou nessa decisão (independentemente da sua minguada explanação técnica) foi que a ausência da concreta identificação da área e das confrontações da parcela de terreno em causa não permitiam concluir pela procedência da ação. Não existe, assim, violação do disposto na alínea c) do artigo 615.º, n.º 1 do CPC.
3.2. Quanto ao mérito da causa, o acórdão recorrido julgou o recurso improcedente, confirmando a absolvição da ré dos pedidos, embora por razões diversas das aduzidas na sentença recorrida.
Extrata-se do acórdão recorrido (para além das citações de ordem doutrinal e jurisprudencial) a seguinte fundamentação concreta:
«(…) no caso dos autos (…) a pretensão da autora é que o Tribunal declare que ela adquiriu por usucapião uma determinada parcela de terreno. Mas de concreto apenas sabemos que essa parcela faz parte de um prédio descrito na CRP de Guimarães, sob o nº 00052/Gémeos, inscrito em nome da Ré. Nada mais sabemos: nem a sua área, nem as suas confrontações. Se o Juiz chegasse à sentença e entendesse dar razão à autora, que parcela exacta da superfície terrestre é que iria declarar que tinha sido adquirida por usucapião? Não sabemos, porque ela não está indicada. Quer o pedido, quer a causa de pedir, não contém essa precisão.
Claro que este exercício mental é puramente académico, pois como já vimos, também a causa de pedir sofre do mesmo mal, não estando identificada devidamente (nem sendo passível de identificação) a parcela exacta (com indicação da área e confrontações) que é objecto do pedido. Ainda podemos aceitar que nessa parcela se situa a casa onde a autora reside. Mas, qual a respectiva área? E o logradouro? Quais as suas dimensões? 200 metros quadrados? 2.000 metros quadrados? 20.000 metros quadrados? Nada sabemos, porque nada foi alegado. E quais as confrontações? Também nada sabemos porque nada foi alegado.
E imagine-se que, tendo obtido ganho de causa, a autora se apresentava no registo predial para registar a aquisição por usucapião. Que parcela ia registar? Com que área? Com que confrontações? O registo seria liminarmente recusado (cfr. art. 82º C. Reg. Predial).
Há uma grave indeterminação do pedido, o mesmo sucedendo com a causa de pedir, tão grave que afecta de modo insanável o objecto do processo.
E logo, por força do art. 186º, 1, 2, a, CPC, estamos perante uma petição inicial inepta, por ininteligibilidade do pedido. O que significa que ocorre uma nulidade de todo o processo.
Tal vício, que é de conhecimento oficioso (art. 196º CPC), deveria levar à absolvição do réu da instância (art. 278º, 1, b CPC).
Porém, dispõe o art. 200º, 2 CPC o seguinte:
As nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º são apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final. (…)
É certo que a ineptidão da petição inicial, além de determinar a nulidade de todo o processo, tem também a natureza de excepção dilatória (arts. 577º, b e 595º, 1, a CPC). Por aplicação do art. 576º,2 CPC, as excepções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância. (…)
No caso concreto sabemos que a ré nada disse na contestação quanto a uma eventual ineptidão da petição, antes defendeu o conhecimento do mérito da causa. Porém, não deixa de ser incontornável que o facto de a ré não ter arguido esse vício, substantivamente não convalida a petição: esta continua a ter um objecto demasiado vago e indefinido para permitir uma correcta apreciação do mérito.
O conhecimento das excepções dilatórias é um dever oficioso do Tribunal, como resulta do art. 578º CPC.
Porém, como já vimos, existe um limite para o conhecimento deste vício resultante da ineptidão da petição inicial, que é a sentença final. Passado esse marco, já nem o Tribunal de recurso pode conhecer do mesmo, para absolver o réu da instância.
Todavia, o vício de que a petição inicial padece mantém-se tão grave agora como no início do processo, e é inultrapassável, não sendo possível que uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido dê origem a uma sentença que julgue esse mesmo pedido procedente.
A sentença recorrida julgou totalmente improcedente a acção e absolveu a Ré dos pedidos contra ela formulados. Esta Relação concorda com essa absolvição dos pedidos, embora com um fundamento diferente.
Assim, resumindo e concluindo, uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido, quando já não é processualmente possível conhecer desse vício, dá lugar não à absolvição da instância mas à absolvição do pedido.
E assim sendo, pelas mesmas razões, resta julgar o recurso também totalmente improcedente, pois, independentemente de saber se assistia razão à recorrente quanto à questão que veio suscitar no recurso, com o pedido ininteligível que formulou nunca poderia a acção ter sido julgada procedente.»
3.3. A primeira instância, no seu percurso decisório, deu prioridade à consideração dos aspetos de direito administrativo e urbanístico que, no seu entender, sempre teriam de estar demonstrados para, depois, se poder ajuizar sobre a viabilidade da constituição de um direito de propriedade, por usucapião, sobre determinada parcela de terreno reclamada pela autora, tendo concluído que esta não havia cumprido o ónus probatório que lhe cabia demonstrar. Afirma-se na sentença que: «(…) na ausência da demonstração do cumprimento das normas de cariz administrativo a que estava sujeita a operação urbanística que decorre da aquisição originária, por usucapião, da parcela de terreno em causa nos autos, deve esta ação ser julgada totalmente improcedente, absolvendo-se a ré de todos os pedidos contra si formulados.»
3.4. Compreende-se o raciocínio desenvolvido pela primeira instância, todavia, existe nele alguma inversão metodológica, na medida em que, estando em causa a constituição de um direito de propriedade sobre coisa determinada (uma parcela de terreno), a concreta individualização do objeto do reclamado direito de propriedade deverá ser prioritária, analisando-se, depois, o cumprimento de regras urbanísticas que condicionam o conteúdo do direito invocado.
A ré não suscitou a questão da ineptidão da petição inicial, nem qualquer questão sobre a falta de individualização identificadora do terreno reclamado pela autora, provavelmente, porque as partes, entre si, sabiam perfeitamente qual a parcela de terreno que estava em disputa.
Todavia, tratando-se da constituição de um direito real (direito de propriedade) sobre um imóvel que, pela sua própria natureza, produz efeitos erga omnes, a concreta identificação desse objeto é o pressuposto essencial e inultrapassável para que se possa constituir esse direito absoluto.
Nos termos do artigo 342.º do CC, a autora tinha o ónus de demonstrar qual o concreto objeto do direito que pretendia ver judicialmente reconhecido.
Porém, não alegou nem demonstrou qual a configuração fáctica do terreno em causa, não se sabendo quantos metros quadrados tem, nem quais as suas confrontações.
O único imóvel que se encontra descrito nos autos é o imóvel (de maior dimensão), propriedade da ré, do qual a autora pretende adquirir uma parcela. Mas tal parcela não se encontra concretamente individualizada.
Efetivamente, dos factos provados 4, 5, 6, 7 e 11 resulta que a autora e o seu falecido marido foram autorizados pela ré a construir uma habitação numa parte do terreno da ré, tal como resulta que aí passaram a habitar e a usar um logradouro dessa habitação, mas não existe a mínima descrição das áreas quer da habitação quer do correspondente logradouro, nem são referidas as suas confrontações.
Assim, tratando-se de um objeto indeterminado, sobre tal parcela não podem ser constituídos direitos reais.
Entre os princípios fundamentais ou retores que estruturam a constituição dos direitos reais (maxime dos direitos reais de gozo) a doutrina tem identificado o princípio da especialidade ou da individualização, que se extrai da regra consagrada no artigo 408.º, n.º 2 do CC, nos termos da qual só se transferem direitos reais sobre coisas determinadas (e não enquanto mantiverem a natureza de coisa indeterminada).
Neste sentido, afirmava Orlando de Carvalho: «(…) não há direitos reais sobre coisas genéricas (ou só definidas qualitate et quantitate), sendo necessária a especificação dessas coisas, que elas se tornem certas e determinadas, para que nelas incida um ius in re (…)», Direito das Coisas, Coimbra, 1977, páginas 220 e 221.
3.5. Não tendo a autora demonstrado qual a concreta parcela de terreno sobre a qual pretendia que lhe fosse judicialmente reconhecido o direito de propriedade, torna-se normativamente irrelevante o facto de estarem, ou não, preenchidos os requisitos da figura da usucapião.
Por outro lado, também a inobservância das regras de natureza urbanística que condicionariam a autonomização do terreno, referida como decisiva pela primeira instância para a improcedência da ação, pressuporia a prévia e concreta identificação do terreno a que tais normas deveriam reportar-se.
Conclui-se, assim, que, independentemente do maior ou menor rigor técnico e independentemente da maior ou menor completude argumentativa do acórdão recorrido bem como da sentença, as instâncias encontraram o sentido decisório correto ao julgarem a ação improcedente.
3.6. Alega, ainda, a recorrente que a sentença, ao não reconhecer o seu direito de propriedade por usucapião, estaria a fazer uma interpretação inconstitucional das normas civilísticas que regem esta figura, incorrendo em violação do direito à habitação, previsto no artigo 65º da CRP.
É manifesto que não lhe assiste razão, pois a improcedência da ação não resulta de ter sido interpretada qualquer norma em sentido contrário à Constituição da República Portuguesa, mas sim da insuficiência da factualidade trazida aos autos pela autora, que não permitiu a concreta identificação do objeto sobre o qual pretendia que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade por usucapião. Tal insuficiência é exclusivamente imputável à autora recorrente, pois, como já referido, cabia-lhe o ónus de demonstrar os pressupostos fácticos necessários à constituição do direito alegado.
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DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, confirmando a decisão recorrida, com fundamentação diversa.
Custas: pela recorrente.
Lisboa, 17.06.2025
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Luís Correia de Mendonça
Luís Espírito Santo