ACIDENTE DE TRABALHO
RETRIBUIÇÃO
REPARAÇÃO
Sumário


Havendo uma importância que, com a designação de “ajudas de custo”, é paga ao sinistrado regularmente (11 meses em cada ano) a mesma integra a retribuição para efeitos de reparação do acidente de trabalho, tanto mais que não se tendo provado que as quantias pagas com essa designação o fossem para reembolsar o autor das despesas que efetuava, pelo que o empregador não logrou provar que tais quantias se destinassem a compensar o sinistrado por quaisquer custos, mormente aleatórios (parte final do n.º 2 do artigo 71.º da LAT).

Texto Integral


Processo n.º 2477/21.1T8VRL.P1.S1

1.Relatório

AA intentou ação especial emergente de acidente de trabalho contra Generali Seguros S.A e R.S.J. - Transportes Lda., requerendo a final o seguinte:

“Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis deve a presente ação ser julgada procedente por provada e as R.R., condenadas a pagar ao A.

I - A Ré Generali Seguros S.A.

a) - O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1.470,87 devida desde o dia imediato ao da alta.

b) - A Indemnização de € 6.402,42, relativa ao período de ITA.

c) - A indemnização de € 20,00 relativa a despesas de Transportes

d) - Os juros de mora legais até integral pagamento.

II - A Ré R.S.J. Transportes Lda.

a) - O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1.658,64 devida desde o dia imediata ao da alta

b) - A indemnização de € 7.219,74, relativa ao período de ITA

c) - Os juros de mora legais até integral pagamento.

Subsidiariamente

As mesmas prestações globais repartidas pelas R.R. na proporção correspondente à quota parte de responsabilidade que vier a ser apurada em julgamento.

As Rés contestaram.

Foi elaborado despacho saneador.

Realizou-se audiência final.

Por Sentença de 16.05.2023 foi decidido o seguinte:

Nestes termos, e face ao exposto, condeno as rés no pagamento ao autor AA, sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho) das seguintes quantias:

a) a ré Generali, S.A.:

- No capital de remição correspondente à pensão anual, devida em 12/11/2021, no montante de € 952,51;

- Na quantia de € 1.903,23 a título de diferenças de indemnização por incapacidades temporárias; e

- Na quantia de € 20,00 a título de despesas de transportes.

b) a ré R.S.J. Transportes, Lda.:

- No capital de remição correspondente à pensão anual, devida em 12/11/2021, no montante de € 864,12; e

- Na quantia de € 5.730,40 a título de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidades temporárias.

A Ré R.S.J. - Transportes Lda. interpôs recurso de apelação e o Autor interpôs recurso subordinado.

Por Acórdão de 09.09.2024 foi decidido o seguinte:

Nesta conformidade, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, na procedência do recurso da Ré Entidade empregadora.

Em conformidade:

- Absolve-se a Ré Entidade empregadora do pedido contra si formulado.

- Relativamente à Ré Seguradora, mantendo-se no mais, altera-se parcialmente o decidido na sentença recorrida, a respeito da condenação referente a diferenças de indemnização por incapacidades temporárias, passando a ser condenada, sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho), na quantia de € 1.903,92.

Mais acordam em julgar improcedente o recurso subordinado do Autor.”

Embora tal não seja referido no Dispositivo, o Tribunal da Relação determinou a eliminação do facto não provado “- Que as quantias pagas como ajudas de custo fossem para reembolsar o Autor das despesas que efetuava.”.

O Autor interpôs recurso de revista.

Foi determinada a subida dos autos por despacho de 01.11.2024.

Um dos segmentos do recurso respeitante ao subsídio por trabalho noturno não foi admitido – depois de assegurado o contraditório – por existir quanto a este segmento “dupla conformidade” das decisões das instâncias, não tendo o Autor interposto nem a título subsidiário uma revista excecional.

A Ré R.S.J. - Transportes Lda. contra-alegou.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código do Processo de Trabalho o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.

2. Fundamentação

De Facto

Estão provadas nas instâncias os seguintes factos:

1. A ré empregadora dedica-se ao transporte rodoviário de mercadorias.

2. O autor trabalhava para a ré empregadora como motorista internacional de pesados desde finais de dezembro de 2020.

3. No dia 05/05/2021, em ..., quando trabalhava sob as ordens, direção e instruções da 2ª Ré, “RSJ-Transportes Lda.” sofreu um acidente de viação no trajeto entre o trabalho e a sua casa.

4. À data do acidente o autor auferia anualmente os seguintes valores, num total de:

- € 733,07 x 14 meses de retribuição base;

- € 135,00 x 13 meses de Prémio TIR;

- € 36,65 x 14 meses de Complemento Salarial;

- € 369,47 x 13 meses de Cláusula 61ª e

- € 1.429,60 x 11 meses de ajudas de custo.

5. Do evento descrito em 3. resultou para o autor lesões ao nível da bacia, coluna lombar e braço direito; com fratura de L1 – L2, fratura acetabular bilateral (com avulsão) e TEP segmentar inferior em contexto de trauma.

6. A 2ª Ré tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a 1ª Ré, através da Apólice ...52 por referência à retribuição anual de € 17.334,19.

7. O autor padeceu de incapacidade temporária absoluta de 6/5/2021 a 31/7/2021.

8. A consolidação médico legal das lesões sofridas pelo autor ocorreu a 11/11/2021.

9. A ré seguradora reconheceu ser devido o pagamento ao sinistrado da quantia de € 20,00 a título de reembolso de despesas de transporte.

10. O autor nasceu a 10 de fevereiro de 1973.

11. A ré seguradora pagou ao autor a quantia de € 4.412,37 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporárias.

12. O autor padeceu ainda de ITA de 1/8/2021 a 11/11/2021.

13. Na sequência das lesões sofridas o autor ficou a padecer de lombalgia residual, sem deformação do eixo raquidiano, e dor referida a ambas as ancas (principalmente à direita), sem rigidez articular.

14. Tais sequelas determinam ao autor uma IPP de 7,85%.

15. Eliminado pelo Tribunal da Relação (o teor original era: A quantia paga pela ré ao autor a título de ajudas de custo era para suportar os custos com as deslocações que o autor realizava quando se encontrava ao serviço da ré empregadora).

16. Atendendo às funções de motorista de pesados desempenhadas pelo autor, este efetuava deslocações diárias em território nacional e estrangeiro.

Facto não provado:

Não se provou que as quantias pagas como ajudas de custo fossem para reembolsar o autor das despesas que efetuava.

De Direito

No seu recurso de revista o Autor coloca duas questões que foram admitidas – a terceira respeitante ao subsídio de trabalho noturno não pode, como já se disse, ser conhecida por existir quanto a ela “dupla conformidade” nas decisões das instâncias – a saber a impugnação da decisão do Tribunal da Relação de eliminar o facto 15 e a segunda que respeita ao conceito de retribuição para efeitos de aplicação da LAT (Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro), mais precisamente do seu artigo 71.º n.º 2.

A decisão do Tribunal da Relação fundou-se quer na natureza genérica do que constava do facto 15 – “A quantia paga pela ré ao autor a título de ajudas de custo era para suportar os custos com as deslocações que o autor realizava quando se encontrava ao serviço da ré empregadora” – que apelidou de facto conclusivo, quer na contradição entre o referido facto 15 e a circunstância de que “não se provou que as quantias pagas como ajudas de custo fossem para reembolsar o autor das despesas que efetuava”. Efetivamente o “facto” tem uma natureza muito genérica – embora se possa duvidar que seja conclusiva – e parece estar em contradição com o facto não provado. Seria possível, é certo, pretender que o facto 15 se limitaria a afirmar que o escopo da prestação seria o de ajudas de custo, embora não se tivesse provado que as quantias pagas como ajudas de custo efetivamente reembolsassem despesas realizadas pelo autor. Todavia, como muito bem destaca o douto parecer do Ministério Público junto aos autos neste Tribunal, a verdade é que – como adiante diremos – a solução do caso é exatamente a mesma quer se tenha o facto 15 por eliminado quer se considerasse não haver fundamento legal para o eliminar. Com efeito, não se provou, no fim de contas, que as “chamadas” ajudas de custo o fossem realmente. Em todo o caso, manter-se-á a decisão do Tribunal da Relação quanto à matéria de facto, porquanto há alguma contradição entre o facto 15 e o facto dado como não provado.

Como este Supremo Tribunal de Justiça teve ocasião, recentemente, e em várias decisões, de afirmar, o artigo 71.º n.º 2 da LAT contém um conceito específico de retribuição mensal para efeitos de acidente de trabalho que se distingue do conceito previsto pelo Código do Trabalho por se bastar com a regularidade e não exigir que a quantia regularmente paga seja contrapartida do trabalho prestado. Destaque-se também que esta é matéria – cfr. artigo 3.º n.º 3 alínea l) do Código do Trabalho – em que a convenção coletiva só pode afastar-se da lei em sentido mais favorável para os trabalhadores pelo que o facto de uma convenção coletiva afirmar que uma prestação embora regular não é retribuição não é atendível neste domínio e para efeito de aplicação da norma já mencionada da LAT sobre retribuição mensal para o cálculo das prestações devidas ao sinistrado referidas no artigo 71.º n.º 1 da LAT.

Pode ler-se a este propósito no Acórdão do STJ de 11-09-2024, processo n.º 3533/20.9T8LRS.C1.S1:

“Com efeito enquanto a noção de retribuição constante do Código do Trabalho assenta nas notas características da obrigatoriedade, regularidade, periodicidade e contrapartida do trabalho, a LAT no seu artigo 71.º n.º 2 dispõe que “[e]ntende-se por retribuição mensal todas as prestações recebidas com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios”. Destarte, a noção de retribuição para efeitos de acidentes de trabalho é mais ampla porque apenas exige a regularidade das prestações recebidas e não exige que tais prestações sejam contrapartida do trabalho. E a diferença compreende-se perfeitamente atendendo à diferente teleologia das definições: enquanto no Código do Trabalho está em jogo, em primeira linha, saber quanto é devido ao trabalhador pelo seu trabalho, na lei dos acidentes de trabalho o que importa é apurar o dano sofrido pelo sinistrado por força do acidente de trabalho, sendo tal dano integrado pelas prestações que o trabalhador vinha regularmente recebendo do empregador, mesmo que tais prestações se destinassem a cobrir custos, apenas excetuando a lei a compensação de custos aleatórios.

Na verdade, a lei ao excluir do conceito de retribuição para efeitos de acidente de trabalho apenas as prestações regulares que se destinem a compensar custos aleatórios admite que são retribuição para este efeito, prestações que sejam compensatórias de custos não aleatórios.

Mas não é a letra da lei que aponta claramente nesse sentido, mas também o escopo da norma. Trata-se de determinar o dano sofrido pelo trabalhador.”

E já anteriormente se pode ler no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2023, processo n.º 4286/15.8T8LSB.L1.S1, que “os valores pagos a título de "ajudas de custo operacionais", que o eram regular e periodicamente e independentemente de o trabalhador ter ou não realizado uma qualquer despesa, maior ou menor, de alimentação, desde logo, num restaurante, não lhe sendo exigido qualquer prova da realização da despesa e mesmo do respetivo montante, integram o cálculo das prestações devidas por acidente de trabalho, por não se destinarem a suportar custos aleatórios” e no Acórdão do STJ de 24-01-2024 que “o abono de falhas e o abono de viagem pagos, mensalmente, ao sinistrado integram a retribuição para efeitos do artigo 71. º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro”.

Com efeito, o que temos aqui é uma importância que, com a designação de “ajudas de custo”, era paga ao sinistrado regularmente – facto 4: € 1.429,60 x 11 meses de ajudas de custo – 11 meses em cada ano. Sublinhe-se que para este efeito o que importa é a regularidade e não se tais quantias eram devidas por força da lei, da convenção coletiva, do contrato individual de trabalho ou dos usos ou o seu nome. E não se tendo provado que as quantias pagas como ajudas de custo, ou com essa designação, fossem para reembolsar o autor das despesas que efetuava, então o empregador não logrou provar que tais quantias se destinassem a compensar o sinistrado por quaisquer custos, mormente aleatórios (parte final do n.º 2 do artigo 71.º da LAT). Aliás e como o Recorrente refere no seu recurso de revista, não se vê como é que seriam pagos custos aleatórios com a mesma quantia (€ 1.429,60) todos os meses… E, como já se decidiu no já citado Acórdão de 11-09-2024, “face à noção do art. 71.º, n.º 2, da LAT, não é suficiente para excluir do conceito de retribuição para efeitos de acidente de trabalho invocar apenas que a prestação regular se destina a cobrir custos, havendo que provar igualmente – ónus da prova que cabe ao empregador (ou segurador) – que tais custos são aleatórios”.

Destarte, há que dar razão ao Recorrente quando pretende que seja considerado no cálculo das prestações que lhe são devidas pelo acidente de trabalho de que foi vítima o montante das “ajudas de custo” que lhe era pago mensalmente.

3. Decisão: Concedida a revista, repristinando-se a sentença de 1.ª instância

Custas pela Recorrida R.S.J. - Transportes Lda.

Lisboa, 18 de junho de 2025

Júlio Gomes (Relator)

José Eduardo Sapateiro

Mário Belo Morgado