RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
PLATAFORMA DIGITAL
CONTRATO DE TRABALHO
Sumário


I. Está em causa a natureza da relação jurídica existente entre um prestador de atividade laborativa no âmbito de plataforma digital e a sociedade ré, que detém, gere e explora tal plataforma, bem como as aplicações a ela associadas, assentando o litígio na interpretação e aplicação do art. 12.º-A, do Código do Trabalho.
II. A aplicação deste artigo vem suscitando a maior atenção por parte da doutrina, bem como acentuadas divergências na jurisprudência, mormente ao nível dos Tribunais da Relação, desde logo no plano da interpretação/compreensão dos diferentes índices da presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, previstos no n.º 1 daquele artigo e, conexamente, no tocante aos termos em que aquela presunção pode ser ilidida.
III. Considerando que a densificação dos conceitos envolvidos se revela da maior acuidade e que nos encontramos perante uma situação com indiscutível dimensão paradigmática, é patente que in casu a intervenção do STJ é suscetível de se traduzir numa melhor aplicação do direito, reforçando a segurança, certeza e previsibilidade na sua interpretação e aplicação, dessa forma contribuindo para minimizar – numa matéria da maior relevância prática e jurídica – indesejáveis contradições entre decisões judiciais.

Texto Integral

Processo n.º 729/24.8T8LSB.L1.S2 (revista excecional)

MBM/JG/JES


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.


1. O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho contra UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA., peticionando que fosse declarada a existência de contrato de trabalho entre esta e AA, desde 28 de Junho de 2023.

2. A ação foi julgada improcedente na 1ª Instância.

3. Interposto recurso de apelação pelo A., o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) confirmou o decidido.

4. Novamente inconformado, o A. veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, a), b) e c), do CPC.

5. A R. contra-alegou.

6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista excecional.

Decidindo.


II.

7. Nos termos e para os efeitos do art. 672.º, n.º 1, a), reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:

“Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção).

– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).

– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).

“Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).

– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).

“Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02-02-2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).

8. Nos autos, discute-se a natureza da relação jurídica existente entre um prestador de atividade laborativa no âmbito de uma plataforma digital e a sociedade ré, que detém, gere e explora tal plataforma, bem como as aplicações (App) a ela associadas.

O litígio assenta na interpretação e aplicação do art. 12.º-A, do CT, epigrafado presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, introduzido na nossa ordem jurídica pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, no contexto da agenda do trabalho digno e de toda uma série de desafios suscitados pela chamada economia das plataformas, que é uma das manifestações mais visíveis e significativas das profundas alterações que a digitalização – pondo em crise os parâmetros tradicionais da qualificação do trabalho como subordinado e potenciando falsas situações de autonomia – introduziu no plano da organização e execução do trabalho.

Como se sabe, a aplicação deste artigo vem suscitando a maior atenção por parte da doutrina, bem como acentuadas divergências na jurisprudência, mormente ao nível dos Tribunais da Relação, desde logo no plano da interpretação/compreensão dos diferentes índices daquela presunção de laboralidade, previstos no n.º 1 do sobredito artigo, e, conexamente, no tocante aos termos em que aquela presunção pode ser ilidida.

Está em causa, pois, uma problemática que envolve indiscutível complexidade e relevância jurídica e prática, tanto mais que os tribunais são chamados a pronunciar-se sobre a matéria com grande frequência.

Neste contexto, considerando que a densificação dos conceitos envolvidos se revela da maior acuidade e que nos encontramos perante uma situação com indiscutível dimensão paradigmática, é patente que in casu a intervenção do STJ é suscetível de se traduzir numa melhor aplicação do direito, reforçando a segurança, certeza e previsibilidade na sua interpretação e aplicação, dessa forma contribuindo para minimizar – numa matéria da maior relevância prática e jurídica, como já se referiu – indesejáveis contradições entre decisões judiciais.

Com prejuízo da apreciação dos demais fundamentos invocados pelo recorrente, vale por dizer que no caso em apreço se verifica o condicionalismo previsto no art. 672.º, nº. 1, a), do CPC, justificando- se, por conseguinte, a admissão excecional da revista.


III.

9. Nestes termos, acorda-se em admitir a recurso de revista excecional em apreço.

Custas pela R.

Lisboa, 18.06.2025

Mário Belo Morgado, relator

Julio Manuel Vieira Gomes

José Eduardo Sapateiro