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SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
DESERÇÃO
EXPRESSA ADVERTÊNCIA
Sumário
Resultando directamente da lei a consequência do não cumprimento do ónus de registo da ação por negligência das partes (arts. 269.º, n.º 1, al. d), art. 15º nº 4 do CRC, art. 276.º, n.º 1, al. d) e 281.º do CPC), a parte tinha obrigação de saber, para mais estando devidamente representada por advogado, que tendo sido notificada do despacho de suspensão da instância para que fosse demonstrado o registo da ação, decorrido o prazo previsto no art. 281º CPC sem que tenha demonstrado nos autos tal registo, a instância seria declarada extinta por deserção, não sendo indispensável a expressa advertência da cominação estabelecida no art. 281º do CPC.
Texto Integral
Processo n.º 4358/21.0T8VNG.P1 Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia- Juiz 6
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Sumário (elaborado pela Relatora):
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RELATÓRIO 1.A... instaurou acção declarativa especial de declaração de nulidade de Deliberações Sociais contra B..., S.A, formulando os seguintes pedidos:
a) Declarar-se nula e de nenhum efeito a deliberação tomada em Assembleia geral ordinária do dia 30/7/2020; através da qual se suprime o artigo 15º do Contrato de Sociedade por não ter sido votada e em todo o caso ofensiva dos bons costumes e da boa-fé.
b) Declarar-se nula e de nenhum efeito as deliberações que alteram os artigos 5º, 6º, 7º, por não terem sido aprovadas por unanimidade conforme disposto no artigo 15º do Contrato Social, e como tal contrárias à lei.
b) declarar-se nulo o registo correspondente á Ap.... do 2020/10/09
Subsidiariamente
c) Anularem-se as deliberações tomadas contra o contrato de sociedade nomeadamente as alterações do artigo 5º, 6º, 7º e a eliminação do artigo 15º, com os consequentes efeitos registrais. 2. Em 18.01.2022 foi proferido o seguinte despacho:
“Tendo em consideração os pedidos formulados na petição inicial, a presente ação encontra-se sujeita a registo - cf. artigo 9º, alínea e), do Código de Registo Comercial.
Assim sendo e ao abrigo do disposto nos artigos 15.º, n.º 4, do Código de Registo Comercial, e 269.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, suspende-se a instância até que se demonstre o registo da ação.
Notifique.” 3. Por requerimento de 27.09.2022, a Autora veio requerer que fosse promovido o registo oficioso da ação, nos termos do disposto no artigo 8º B do Código do Registo Predial, aplicável ao caso concreto por força do disposto no artigo 115º do Código do Registo Comercial, cessando desde logo a suspensão ordenada.
4. Por requerimento de 6.10.2022 a Ré veio-se pronunciar, requerendo a deserção da instância.
5- Em 17.10.2022 foi proferido o seguinte despacho:
“Req. Referência 33467246:
Com prolação da decisão a 18.01.2022 aliás, devidamente notificado à requerente e transitado em julgado, ficou imediatamente esgotado o nosso poder jurisdicional sobre a matéria em questão pelo que nada mais cumpre determinar (cfr. artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil).” 6. Por requerimento de 18.10.2022 a Ré veio reiterar o pedido de declaração de deserção da instância.
7. Por requerimento de 4.11.2022 a Autora juntou aos autos certidão comprovativa do registo da acção.
8. Foi proferido despacho em 17.01.2023, Ref. Citius 444088680, com o seguinte teor:
“Nos presentes autos foi declarada a suspensão da instância até que se demonstrasse registada a ação.
Face à ausência de movimentação processual pelo período de 6 meses, veio a Ré requerer que a instância fosse declarada deserta.
Entretanto, a Autora diligenciou pelo registo da ação, justificando o facto de ainda não o ter feito por entender que tais diligências cabiam ao Tribunal, a quem competia, oficiosamente, promover esse registo.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 281.º do Código de Processo Civil que “Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
A deserção configura uma causa de extinção da instância – cf. artigo 277.º, alínea c), do Código de Processo Civil.
A extinção da instância por deserção depende de dois pressupostos, um de natureza objetiva – demora superior a 6 meses no impulso processual legalmente necessário – e outro de natureza subjetiva – inércia imputável a negligência das partes. E, como bem refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/01/2018, disponível em www.dgsi.pt “Essa dita negligência processual não pode presumir-se do simples facto de ter decorrido o aludido prazo de seis meses sem que alguma diligência tenha sido promovida por parte daquele que tem aquele ónus. III - Com efeito, cumpre sempre que o tribunal diligencie, antes de declarar a deserção da instância, pelo apuramento do circunstancialismo factual que permita sustentar a afirmação do comportamento negligente que procura sancionar-se com a cominada deserção”.
Do exposto decorre que se impunha ao Tribunal indagar se o comportamento da Autora consubstancia, ou não, uma atitude negligente.
No entanto, além daqueles pressupostos, a jurisprudência tem entendido que, para a deserção é ainda exigível que tenha havido “A prolação de despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual” sendo que “ tal despacho basta-se com a sinalização da consequência da omissão da parte na promoção da tramitação do processo, a qual se poderá resumir à notificação da parte «para requerer o que tiver por conveniente, sem prejuízo do disposto no artigo 281º, n.º1 do Código de Processo Civil»” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/11/2021, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, nos presentes autos, apesar da ausência de impulso processual pelo período de 6 meses, não é líquida a afirmação de que tal situação se deveu a um comportamento negligente da Autora porquanto a mesma apresentou uma justificação fundada para esse mesmo comportamento, assente na convicção de que seria o Tribunal a diligenciar pelo registo, que não se pode ter por negligente, porquanto é alicerçado num entendimento válido, com suporte jurisprudencial, que citou no seu requerimento de 27/09/2022. Acresce que não se pode olvidar que a Autora procedeu já ao registo da ação (conforme certidão de 4/11/2022).
Além disto, e ainda que assim não se entendesse, a verdade é que não foi proferido nenhum despacho de advertência às partes para a necessidade de impulso processual pelo que, de todo o modo, nunca poderia o Tribunal, nesta fase, declarar deserta a instância.
Em face do exposto, não se considera a instância deserta, devendo os autos prosseguir os seus termos.
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Encontrando-se já registada a ação, declara-se cessada a suspensão decretada – cf. artigo 276.º, n.º1, alínea d), do Código de Processo Civil.
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Notifique a Autora para, querendo, responder à matéria de exceção invocada pela Ré na sua contestação, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º3, do Código de Processo Civil.”
9. Inconformada com aquele despacho, a Ré interpôs recurso de apelação autónoma, pugnando pela declaração de deserção da instância, no âmbito do qual veio a ser proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso interposto pela Recorrente, em conformidade com o disposto nos artigos 641º, n.º 2, al. a) e 652º, n.º 1 al. b), ambos do CPC.
10. Realizado julgamento veio a ser proferida sentença em 15.02.2024, Ref Citius 456522333, com o seguinte dispositivo (transcrição):
“Pelo exposto, julgando procedente ação, declara-se:
- inexistente a “deliberação” que consta da ata da Assembleia Geral ordinária da Ré do dia 30/7/2020, através da qual se suprime o artigo 15.º do Contrato de Sociedade;
- inexistente a “deliberação” que consta da ata da Assembleia Geral ordinária da Ré do dia 30/7/2020, através da qual se alteram os artigos 5.º, 6.º e 7.º;
-nulo, nessa parte, o registo correspondente à Ap.... do 2020/10/09.
Custas a cargo da ré.
Registe e notifique.”
11. Inconformada com a sentença, a Ré interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes CONCLUSÕES
I. RECURSO DO DESPACHO DE 17 DE JANEIRO DE 2023
1.ª Em 12.11.2021, o Tribunal a quo proferiu despacho – que transitou em julgado – em 17.01.2023, com a Ref.ª 432088776, nos termos do qual decidiu que “[t]endo em consideração os pedidos formulados na petição inicial, a presente ação encontra-se sujeita a registo - cf. artigo 9º, alínea e), do Código de Registo Comercial. Assim sendo e ao abrigo do disposto nos artigos 15.º, n.º 4, do Código de Registo Comercial, e 269.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, suspende-se a instância até que se demonstre o registo da ação. Notifique.”
2.ª Decorridos mais de 6 meses desde a notificação às partes deste despacho, a Recorrida, mediante requerimento apresentado em 27.09.2022, com a Ref.ª 43386464, informou os autos de que não dera cumprimento ao despacho, por entender que o registo da ação deveria ter sido promovido oficiosamente pelo Tribunal e, nessa sede, requereu que fosse promovido o registo oficioso da ação.
3.ª A Recorrente apresentou requerimento em 06.10.2022, através do qual requereu ao Tribunal a quo a declaração da deserção da instância, em conformidade com o disposto no artigo 281.º, n.º 1, do CPC.
4.ª A Recorrida apenas procedeu à junção de prova do registo da ação através de requerimento de 04.11.2022.
5.ª O Tribunal a quo proferiu despacho em 17.01.2023, no qual decidiu não declarar deserta a instância – decisão da qual se recorre, considerando que: (i) o despacho proferido em 18 de fevereiro de 2022, que suspendeu a instância, não foi impugnado pela Recorrida e transitou em julgado; (ii) o ónus de registo da ação competia à Recorrida.
6.ª Conforme reconheceu o próprio Tribunal a quo (em despacho de 17.10.2022, com a Ref.ª 440589612), o despacho de 18.02.2022 – que determinou a suspensão da instância até que se demonstrasse o registo da ação – transitou em julgado.
7.ª Do referido despacho não resultava qualquer ordem do Tribunal a quo de registo oficioso da ação, a executar pela secretaria judicial.
8.ª Resulta evidente, para um destinatário comum – não podendo ser ignorado pela Recorrida – que se a intenção do Tribunal a quo fosse a de proceder ao registo oficioso da ação, tê-lo-ia determinado naquela sede, ao invés de decretar a suspensão da instância “até que se demonstre o registo da ação”.
9.ª Um destinatário comum, colocado na posição da Recorrida, que se encontrava munida de patrocínio judiciário devidamente instruído e formado, poderia facilmente compreender que (i) o ónus do registo da ação recai sobre a Autora; (ii) o despacho do Tribunal a quo determinava a suspensão por se aguardar o impulso da Recorrida.
10.ª Não tendo a Recorrida interposto recurso do despacho de 18.02.2022 – que confirmou que o ónus de registo da ação recai sobre a Recorrida, enquanto Autora da Petição Inicial – este formou caso julgado, consolidando-se na ordem jurídica.
11.ª Dispõe o n.º 1 do artigo 28.º do Código de Registo Comercial, sob a epígrafe Princípio da Instância, que o registo se efetua a pedido dos interessados.
12.ª Não estando previsto no CRC para estes casos qualquer oficiosidade do registo, e atento o princípio da instância enformador do registo comercial, ínsito no artigo 28.º do CRC, verifica-se que a opção clara do legislador foi a de determinar que o registo dos autos tivesse de ser feito pelo interessado, ou seja pela Autora/Recorrida, e não oficiosamente pelo tribunal.
13.ª Em particular, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem perfilhado o entendimento de que as ações de anulação de deliberações sociais estão sujeitas a registo obrigatório, nos termos do artigo 9.º, al. e) e 15.º, n.º 5, do CRC, constituindo um ónus do autor, interessado no prosseguimento da ação.
14.ª Recaindo sobre si o ónus de registar a ação, a Autora (aqui Recorrida) deixou, por inércia e negligência sua, deixar passar esse prazo sem que tivesse procedido ao registo ou tomado qualquer diligência nesse sentido.
15.ª Não se mostra atendível a justificação dada pela Autora de que era seu entendimento de que, à revelia da lei e da decisão transitada em julgado do tribunal a quo de 18.01.2022, deveria ter sido a secretaria do tribunal a proceder ao registo oficioso da ação, pois não é isso que decorre da lei, ao que acresce que não era isso que determinava o despacho de 18.01.2022.
16.ª A Autora deixou o tempo passar, nessa absoluta letargia, sem sequer se questionar durante mais de seis meses, quando o interesse da ação é seu, ou questionar o processo ou a secretaria judicial, da razão por que o processo não tinha qualquer impulso, ou até porque não foi feito o dito registo oficioso, se era de facto sua convicção de que assim deveria acontecer, como agora defende.
17.ª Atuou, portanto, com negligência.
18.ª Acresce que, conforme tem sido entendido pela jurisprudência dos tribunais portugueses (em particular, pelo Supremo Tribunal de Justiça), tendo sido notificado às partes o despacho de suspensão da instância para efeitos de o autor proceder ao registo da ação, o tribunal não carece de fazer constar nesse despacho a advertência de que a inércia do autor, por mais de seis meses, implica a deserção da instância, em particular, quando a parte se encontra representada por advogado, que não poderia deixar de ter conhecimento desse facto.
19.ª Por outras palavras, no contexto da deserção da instância, inexiste fundamento legal para a prévia audição das partes com vista a aquilatar da negligência da parte sobre quem recai o ónus do impulso processual.
20.ª Pelo exposto, a inércia da Recorrida, nos termos expostos, espelha uma atitude negligente em relação à tramitação processual, pelo que se impunha que o Tribunal a quo decretasse a deserção da instância, o que não sucedeu.
21.ª Como tal, deverá o despacho de 17.01.2022 ser revogado e substituído por outro que declare a deserção da instância, comas devidas consequências legais.
II. RECURSO DA SENTENÇA DE 15.02.2024
II.1. Causas de nulidade da Sentença
A. Nulidade da Sentença por insuficiência da fundamentação em matéria de facto
22.ª Na Sentença, o Tribunal a quo decidiu no sentido da inexistência das deliberações sociais impugnadas com base num substrato factual que não é, sequer, elencado pelo Tribunal a quo na sua lista de factos provados e não provados.
23.ª Esta circunstância impossibilita o cabal exercício de impugnação da Sentença quanto à matéria de facto provada, obrigando a Recorrente a recorrer a raciocínios hipotéticos e dedutivos para discernir os factos considerados provados pelo Tribunal a quo.
24.ª A Sentença só dá como provados 14 (catorze) factos e não dá nenhum facto por não provado.
25.ª Concretamente no que diz respeito às deliberações sociais, o Tribunal a quo, no elenco da matéria de facto, apenas dá como provado – com relevância para a decisão da causa – o facto de, na sequência dos pontos a deliberar constantes da convocatória, o Presidente da A..., o Engenheiro AA, ter entregado em mão, no início da Assembleia Geral, uma declaração de voto contra a eliminação do artigo 15.º do Contrato de Sociedade.
26.ª Ora, uma vez que o Tribunal a quo não dá nenhum facto como não provado, do elenco dos factos provados e não provados não resulta: (i) se a deliberação foi efetuada; (ii) tendo sido efetuada, com que maioria foi aprovada; (iii) se a respetiva Ata foi enviada ou disponibilizada aos presentes, na sequência da Assembleia Geral.
27.ª Porém, no segmento da Sentença referente à fundamentação de direito, o Tribunal a quo introduz dois factos novos fundamentais, segundo os quais: (i) os Pontos 8 e 9 da Ordem do Dia não foram efetivamente votados pelos sócios presentes na assembleia em causa; (ii)a Recorrida só teve conhecimento da ata no dia 26.05.2021.
28.ª Ora, a existência de votação das deliberações sociais em causa configura matéria alegada pelas partes – que, nos seus articulados, nem sequer discutem a suposta “ausência de votação” –, razão pela qual deveria necessariamente constar do elenco de matéria de facto provada ou não provada.
29.ª Ao invocar “factos” na sua fundamentação de direito que não ficaram vertidos de forma esclarecida na fundamentação de facto, o Tribunal a quo obstaculiza a um escrutínio adequado da sua Sentença.
30.ª Consequentemente, a Sentença é nula, por insuficiência da fundamentação de facto, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), primeira parte, do CPC.
B. Nulidade da Sentença por violação do princípio do dispositivo
31.ª A Recorrida intentou uma ação declarativa com vista à declaração de nulidade das deliberações sociais adotadas na Assembleia Geral ordinária de30dejulho de 2020 ou, subsidiariamente, a sua anulabilidade.
32.ª Os factos alegados pela Recorrida para sustentar o seu pedido são, em particular: os seguintes: (i) “Quando se discutiu o ponto 8 da Ordem de Trabalhos, o representante da acionista A... votou contra declarando e justificando o seu sentido de voto” (artigo 19.º da Petição Inicial); (ii) “Quanto ao ponto 8, foi clara a posição do acionista A..., votando contra a supressão do artigo 15º (artigo 22.º da Petição Inicial).
33.ª A Recorrida em nenhum momento alega que a deliberação do Ponto 8 da Ordem de Trabalhos – a supressão do artigo 15.º do Contrato de Sociedade – não ocorreu.
34.ª Pelo contrário: a Recorrida assenta integralmente a sua pretensão na premissa de que: (i) houve efetivamente uma discussão relativa ao Ponto 8 da Ordem de Trabalhos; (ii) quando essa discussão surgiu, o representante da Recorrida votou contra; (iii) o representante da Recorrida declarou e justificou o seu sentido de voto.
35.ª In casu, os pedidos da Recorrida – declaração de nulidade das deliberações ou, subsidiariamente, a sua anulação – têm como causa de pedir (cf. artigo 5.º, n.º 1, primeira parte, do CPC), i.e., são formulados com base no facto de não terem sido votados favoravelmente por unanimidade, uma vez que um dos acionistas não estava presente e que a Recorrida votou contra.
36.ª Ora, a causa de pedir, a par do pedido, perfaz o objeto do processo (cf. artigo 581.º, n.º 1, do CPC) e fixa os limites da cognição do tribunal, nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
37.ª Neste caso, a causa de pedir subjacente aos pedidos da Recorrida na sua Petição Inicial é constituída, entre o mais (mas principalmente) pelo facto de a Recorrida ter votado contra a deliberação de supressão do artigo 15.º do Contrato de Sociedade.
38.ª Pelo contrário, o facto subjacente à declaração de inexistência decidida pela Sentença recorrida é o de nunca ter, sequer, existido deliberação.
39.ª Daqui resulta uma evidente e inadmissível disrupção entre a causa de pedir estabelecida pela Recorrida na sua Petição Inicial, por um lado, e a factualidade que está na base da Sentença, por outro.
40.ª Destarte, conclui-se que, na Sentença recorrida, o Tribunal a quo substituiu-se materialmente à Autora, ora Recorrida, no seu ónus de alegação de factos essenciais – circunstância que inquina a referida decisão com o vício de nulidade, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
41.ª É inconstitucional, por violação, entre o mais, dos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição, a norma resultante da conjugação dos artigos 5.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, interpretada e aplicada no sentido de que é admissível a prolação da decisão jurisdicional, em ação declarativa comum, com base num facto essencial não alegado pelo autor.
C. Nulidade da Sentença por excesso de pronúncia
42.ª A Recorrida em nenhum momento alegou ou peticionou ao Tribunal a declaração da inexistência das deliberações sociais em questão, mas, tão só, a sua nulidade ou, subsidiariamente, a sua anulabilidade.
43.ª É na Sentença que, pela primeira vez, as partes são confrontadas com a qualificação das referidas deliberações sociais como inexistentes, sendo esse o fundamento para o provimento da ação.
44.ª Ainda que se entenda que a Sentença não consubstancia uma alteração da causa de pedir – o que não se concede –, não deixaria esta de ser nula, por excesso de pronúncia.
45.ª Com efeito, se não se discute que o Tribunal é livre na apreciação do direito, já é discutível e censurável que o faça sem que tenha dado oportunidade às partes – no caso, à Recorrente – de se pronunciar sobre a inovadora solução que se propõe a dar à causa, desde logo, em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC.
46.ª Ora, o Tribunal a quo julgou procedente a ação da Recorrida chamando à colação a figura da inexistência jurídica das deliberações sociais, que nenhuma das partes alegou e, sobretudo, relativamente à qual não tiveram oportunidade de se pronunciar.
47.ª A fundamentação apresentada, introduzida de forma inovadora, inquina irremediavelmente a Sentença recorrida, transformando-o numa verdadeira decisão surpresa sobre a qual a Recorrente não teve oportunidade de se pronunciar previamente.
48.ª A Sentença viola, assim, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 3 do CPC, o princípio do contraditório na vertente proibitiva da decisão surpresa, sendo, por isso, nula, nos termos do disposto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), e 666º, n.º 1 do CPC.
49.ª A interpretação normativa do artigo 3.º, n.º 3, do CPC no sentido de que é dispensável o exercício de contraditório quando o Tribunal decida nova questão de direito não suscitada pelas partes é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 18.º e 20.º, n.os 1 e 4 da CRP - o que desde já se deixa alegado para todos os devidos efeitos.
III.2. Impugnação da Sentença sobre a matéria de facto
50.ª Em bom rigor, compulsada a lista de factos considerados provados pelo Tribunal a quo, a Recorrente não tem qualquer reparo a fazer, porquanto nela apenas constam um número limitado de factos que nem sequer são discutidos nos presentes autos.
51.ª Porém, apesar de elaborar uma lista de factos provados manifestamente insuficiente para a resolução da causa – não discriminando, aliás, nenhum facto como não provado – o Tribunal a quo acaba por referir, na motivação de facto e de direito, outros factos que considerou provados e que se revelaram determinantes para o sentido decisório em causa.
52.ª Ainda que não se entenda que a Sentença é nula, considera a Recorrente que a prova testemunhal foi erradamente valorada pelo Tribunal a quo.
53.ª Em particular, o Tribunal a quo apenas conferiu relevância e conferiu credibilidade aos depoimentos das testemunhas arroladas pela Requerida, tendo considerado que a prova testemunhal produzida pela Recorrente se revelara interessada na causa e, consequentemente, não credível.
54.ª Ignora, porém, o Tribunal a quo que também as testemunhas arroladas pela Recorrida que estiveram presentes na Assembleia Geral de 30.07.2020 e poderiam atestar ao sucedido, revelam interesse num determinado desfecho da causa porquanto colaboram estreitamente ou fazem parte da estrutura orgânica da empresa ou com o Município ... – entidade que, efetivamente, criou a Recorrida.
55.ª Consequentemente, sempre seria necessário, para a boa decisão da causa, proceder ao aditamento dos factos que ora se expõem.
A. Aditamento de factos que não constam da lista de factos provados
56.ª Deve ser aditado o facto “A “Declaração de Voto” elaborada pelo Presidente da A..., Engenheiro AA, foi entregue após a assinatura da lista de presenças”, porquanto resulta do depoimento do legal representante da Recorrente, BB, mormente aos minutos 00:14:28 a 00:14:46 das suas declarações.
57.ª Deve ser aditado o facto “A “Declaração de Voto” foi lida durante a discussão dos Pontos 8 e 9 da Ordem de Trabalhos, pelo que houve votação das referidas deliberações”.
58.ª Este facto (em relação ao qual é admissível confissão) foi alegado nos artigos 15.º e 16.º da Petição Inicial e não foi contestado pela Recorrente, razão pela qual deveria ter sido dado como provado, por assente, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 574.º, n.º 2, primeira parte, do CPC.
59.ª Em todo o caso, também resulta do teor da declaração de voto, a qual foi junta à Petição Inicial como Documento n.º 7, uma vez que na mesma não é feita qualquer referência à ausência de votação das deliberações sociais.
60.ª E resulta, ainda, da prova testemunhal produzida nos autos, em particular: (i) o depoimento de CC, aos minutos 00:19:48 a 00:20:42; (ii) as declarações de BB, aos minutos 00:16:53 a 00:18:35 e 00:02:44 a 00:03:14; (iii) depoimento de AA, ao minuto 00:06:48 e aos minutos 00:17:40 a 00:18:24.
61.ª Deve ser aditado o facto “Foi enviada cópia da “Declaração de Voto” elaborada pelo Presidente da A..., Engenheiro AA, ao Presidente do Conselho da Administração da Ré, BB, em 26.08.2020, para que esta fosse transcrita em ata”.
62.ª Este facto (em relação ao qual é admissível confissão), foi alegado no artigo 16.º da Petição Inicial, não tendo sido impugnado na Contestação – razão pela qual deveria ter sido dado como provado, por assente, nos termos e para efeitos no disposto no artigo 574.º, n.º 2, primeira parte, do CPC.
63.ª Em todo o caso, o referido facto resulta da prova testemunhal produzida na audiência, em particular: (i) do depoimento de CC, aos minutos 00:11:35 a 00:14:16; (ii) das declarações de BB, ao minuto 00:15:11.
64.ª Este facto é determinante para a solução da causa, pois não é credível nem razoável – num exercício dedutivo que assente nas regras máximas da experiência – que, não tendo havido votação, os representantes da Recorrida enviassem, quase um mês após a referida Assembleia Geral, a referida declaração de voto através de ofício, com as devidas formalidades, para que esta fosse transcrita em ata, com a indicação da votação contra relativamente aos Pontos 8 e 9 da Ordem de Trabalhos.
III.3. Impugnação da Sentença sobre a matéria de direito
A. O vício da “inexistência” das deliberações sociais
65.ª Em primeiro lugar, cumpre sublinhar, desde logo, que o alegado vício da “inexistência” jurídica da deliberação social não se encontra legalmente previsto no CSC – diploma que dispõe sobre os diferentes vícios das deliberações sociais – e, como tal, nunca seria aplicável in casu.
66.ª Este tem sido o entendimento partilhado por uma parte significativa quer da Doutrina, quer da Jurisprudência portuguesas que se debruçam sobre o tema.
67.ª Assim, considerando que imputa às referidas deliberações sociais um fundamento atípico, incorre o Tribunal a quo numa violação do princípio da legalidade, devendo, consequentemente, a Sentença recorrida ser revogada in totum.
B. Os alegados vícios das deliberações sociais
68.ª Em segundo lugar, atenta a impugnação da matéria de facto descrita no capítulo anterior – da qual resulta que, conforme descrito na Contestação, as deliberações decorrentes dos Pontos 8 e 9 da Ordem de Trabalhos foram aprovadas com 80% dos votos representados –, deve este Venerando Tribunal concluir necessariamente que as deliberações sociais em causa não são nulas, nem anuláveis.
69.ª Em primeiro lugar, as causas de nulidade das deliberações sociais encontram-se taxativamente elencadas no artigo 56.º do CSC.
70.ª In casu, estão automaticamente excluídas as alíneas a), b) e c) do referido artigo 56.º do CSC, uma vez que: (i) a regularidade convocatória da Assembleia Geral de 30.07.2020 não é sindicada pela Recorrida; (ii) não está em causa a tomada de deliberações por voto escrito; (iii)o conteúdo está sujeito a deliberação dos sócios.
71.ª Por outro lado, conforme refere o Tribunal a quo, a aprovação das referidas deliberações sociais através da maioria do capital social – quando alegadamente seria exigida unanimidade – não é passível de “se enquadrar no vício de nulidade a que alude a alínea d), do n.º 1, do artigo 56.º do Código das Sociedades Comerciais”, encontrando-se o vício da violação dos bons costumes adstrito às áreas de regras de conduta sexual ou familiar ou a regras deontológicas próprias de cada setor profissional ou do comércio em geral.
72.ª Como tal, nunca estaria em causa a nulidade das deliberações, apenas se podendo equacionar a sua anulabilidade, por alegada violação do contrato de sociedade, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do CSC – vício que também não se verifica, in casu.
73.ª O artigo 15.º do Contrato de Sociedade, que estabelecia a necessidade de aprovação, pela Assembleia Geral, com exclusividade e por unanimidade, de um conjunto de matérias, não elencava nesse conjunto de temas a alteração do pacto social e, nessa medida, a alteração do próprio artigo 15.º.
74.ª Por sua vez, o artigo 85.º do CSC estabelece o princípio da alterabilidade do contrato de sociedade, concedendo aos sócios a possibilidade de modificarem o mesmo, ao abrigo da sua autonomia privada.
75.ª Ora, no nosso ordenamento jurídico, em particular quando estão em causa sociedades anónimas, vigora o princípio da maioria, que determina que as deliberações são tomadas pela maioria dos votos emitidos, seja qual for a percentagem do capital social nela representado (cf. artigo 386.º, n.º 1, do CSC).
76.ª Já para as alterações ao contrato de sociedade, a regra vigente é da maioria qualificada, nos termos do artigo 386.º, n.º 3, disposição que determina que as alterações poderão ser efetuadas por deliberação de dois terços dos votos emitidos.
77.ª In casu, como resulta da prova dos autos, a deliberação de supressão do artigo 15.º foi aprovada por 80% dos votos representados e emitidos, ultrapassando, assim, o crivo estabelecido pelo legislador no artigo 386.º do CSC.
78.ª Já em relação à deliberação que procedeu à alteração dos artigos 5.º, 6.º e 7, na sequência do Ponto 9 da Ordem de Trabalhos, cumpre referir que em causa estão matérias cuja alteração não se encontra sujeita a qualquer regra de unanimidade.
79.ª Os artigos 5.º, 6.º e 7.º dizem respeito, respetivamente, a: (i) capital social; (ii) prestações acessórias; (iii) representação do capital social.
80.ª Em relação à alteração do artigo 5.º, em causa não está a alteração material do capital social (mormente, o seu aumento) pois, como concede a Recorrida na sua Petição Inicial (cf. artigo 29.º), o aumento do capital social já se encontrava salvaguardado pelo disposto no artigo 5.º do Contrato de Sociedade e o mesmo já havia sido deliberado, pelo Conselho de Administração da Recorrente, em data prévia, não tendo o referido aumento de capital sido impugnado nos presentes autos.
81.ª Assim, a alteração da redação do artigo 5.º permitiu atualizar do Contrato de Sociedade em face do recém-aprovado aumento do capital social (sublinhe-se, não contestado pela Recorrida) e, bem assim, adaptá-lo à legislação vigente quanto à obrigação de considerar as ações nominativas, razão pela qual não estava sujeita à regra da unanimidade mas, tão só, da maioria, nos termos gerais previstos no artigo 386.º, n.º 1, do CSC.
82.ª Por seu turno, as alterações efetuadas aos artigos 6.º (prestações acessórias) e 7.º (representação do capital social) não se encontram sequer elencadas no artigo 15.º do Contrato de Sociedade, estando sujeitas à aprovação por maioria, definida nos termos do artigo 386.º, n.º 1, do CSC.
83.ª Como tal, as referidas alterações aos artigos 5.º.º, 6.º e 7.º e a supressão do artigo 15.º não são anuláveis.
C. A caducidade do direito de ação
84.ª Ainda que se entenda que as deliberações sociais aprovadas na Assembleia de 30.07.2020 são anuláveis – o que não se concede – sempre se deverá concluir que o direito da Recorrida de interposição de ação de anulação se encontrava caducado, à data da submissão da presente ação.
85.ª Ao contrário do que afirma o Tribunal a quo, o prazo de 30 (trinta) dias para a ação de anulação não é estabelecido em termos disjuntivos, i.e., ou a contar da data da assembleia, ou a contar da data de conhecimento da deliberação.
86.ª Antes, a regra geral é de caducidade do direito interposição de ação de anulação no prazo de 30 (trinta) dias a contar do dia em que se realizou a Assembleia Geral, a não ser que a convocatória padeça de irregularidade ou o assunto não conste da ordem do dia.
87.ª Nos presentes autos, não está em causa a impugnação da regularidade da convocatória, nem a previsão das referidas deliberações na Ordem do Dia da Assembleia Geral.
88.ª Como tal, aplica-se a regra geral, constante da alínea a) do n.º 2, do artigo 59.º do CSC, que estabelece que o prazo para a propositura de ação de anulação é de 30 (trinta) dias a contar da data em que a assembleia geral foi realizada.
89.ª De resto, a jurisprudência e a doutrina nacionais têm, de modo pacífico, perfilhado o entendimento de que o prazo de 30 (trinta) dias a contar da realização da assembleia geral não resulta prejudicado pelo não conhecimento, por parte do sócio interessado na impugnação, da referida ata.
90.ª Ao adotar a solução vertida no atual artigo 59.º, n.º 2, do CSC, o legislador entendeu, iuris et de iure, que nos casos em que uma determinada deliberação conste da ordem do dia e o sócio interessado se encontre presente, tem, ou poderá ter – se atuar com a diligência devida – conhecimento do teor das deliberações.
91.ª Neste caso, a ação foi intentada em 31 de maio de 2021, cerca de 10 (dez) meses após a aprovação das referidas deliberações.
92.ª Mais a mais, o registo das deliberações foi efetuado no dia 10 de setembro de 2020 – momento a partir da qual a informação sobre a aprovação das deliberações se tornou disponível ao público.
93.ª Como tal, conclui-se que, durante um período de, pelo menos, oito meses, a informação sobre a aprovação das referidas deliberações sociais encontrava-se disponível e era acessível pela Recorrida.
94.ª Acresce que, como resulta do Capítulo de impugnação da sentença em matéria de facto, os representantes da Recorrida enviaram à Recorrente, em agosto de 2020, a declaração de voto escrita, com o objetivo de que esta viesse a ser integrada na ata.
95.ª Como tal, caso a Recorrida tivesse atuado com a diligência necessária – e que se lhe era exigida, no caso concreto –, sempre teria tido acesso à ata da Assembleia Geral de 30 de julho de 2020 oportuna e tempestivamente.
96.ª Pelo exposto, à data da apresentação da Petição Inicial, já se encontrava caducado o direito de ação de anulação das referidas deliberações sociais.
Concluiu, pedindo que o presente recurso de apelação seja julgado procedente e, consequentemente:
1. Seja revogado o Despacho de 17 de janeiro de 2023, com a Ref.ª 432088776 e substituído por outro que decrete a deserção da instância, com a subsequente anulação de todo o processado, nos termos do artigo 281.º, n. 1, do CPC;
2. Seja declarada nula a Sentença proferida pelo Tribunal a quo em 15 de fevereiro de 2024, com a Ref.ª 456522333, substituindo-se por outra que elenque, de forma suficiente, a matéria de facto dada como provada, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) e 666.º do CPC;
3.Seja declarada nula a Sentença proferida pelo Tribunal a quo em 15 de fevereiro de 2024, com a Ref.ª 456522333, substituindo-se por outra que se encontre dentro dos limites do dispositivo;
4.Seja declarada nula a Sentença proferida pelo Tribunal a quo em 15 de fevereiro de 2024, com a Ref.ª 456522333, anulando-se a Sentença e ordenando-se a realização de julgamento com cumprimento do princípio do contraditório;
Ainda que assim não se entenda,
5. A Sentença recorrida seja revogada, substituindo-se por outra que negue provimento integral à ação intentada pela Recorrida.
Subsidiariamente,
6. Caso se venha a entender que as deliberações sociais são anuláveis, deve declarar-se caducado o direito de proposição da ação de anulação, nos termos do artigo 59.º, n.º 2, alínea a), do CSC. 10. Foram apresentadas contra-alegações pela Apelada, pugnando pela confirmação do julgado.
11. Foram cumpridos os vistos.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts 635º, nº 3 e 4, 639º, n.ºs 1 e 2 e 608º nº 2 do CPC- devendo o tribunal resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não estando obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, nem estando sujeito às alegações das partes no tocante á indagação, interpretação e aplicação das regras de direito- cfr. art. 5º nº 3 do CPC).
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As questões a decidir, em função das conclusões de recurso, são as seguintes: Recurso do despacho proferido a 17.01.2023 - extinção da instância por deserção; Recurso da sentença - Nulidades da sentença; - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto; - vícios das deliberações sociais; - caducidade do direito ação.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: 1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma empresa municipal, criada pelo Município ..., com vista à exploração e gestão de um complexo termal denominado Termas B..., composto por vários prédios urbanos e rústicos que integram o património privado do Município.
2. Com vista à candidatura a apoios comunitários junto da Secretaria de Estado do Turismo e aproveitando a figura das parcerias público-privadas, a Autora A..., decidiu constituir uma sociedade comercial, com a configuração de Sociedade Anónima, cujo objeto é a Conceção, construção, desenvolvimento, construção, instalação, apetrechamento, conservação de equipamentos e infraestruturas do parque termal B... e requalificação das envolventes urbanas.
3. Optou-se, posteriormente, pela entrada de um novo acionista com experiencia na atividade de termalismo, com um aumento substancial de capital, com subscrição de 230.000 ações nominativas por BB, capital que realizou integralmente em espécie, transmitindo para a sociedade Ré, um prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia ..., sob o artigo ....
4. Por força do referido em 3., a sociedade Ré, passou a ter o capital social de 330.000€ subscrito pelo acionista BB (230.000) A... (49.000,00€) e DD (C..., Lda.).
5. Após o referido em 3. a Ré passou a deter na sua posse o direito de superfície sobre os prédios que integram a Quinta ..., pelo prazo de 100 anos.
6. No artigo 15.º dos Estatutos da Ré consta, além do mais, o seguinte (…) “Para além das matérias que lhe são expressamente atribuídas pela lei e das que não estão compreendidas nas atribuições de outros órgãos, a Assembleia Geral deliberará, com exclusividade e por unanimidade, quer em primeira quer em segunda convocatória, sobre as seguintes matérias: a) alteração do capital, incluindo aumento e redução de capital, criação de classes de ações, designadamente ações preferenciais e quaisquer modificações ao seu regime; b) Alteração de objeto e da actividade efetivamente desenvolvida; c) fusão, cisão, transformação e dissolução, bem como qualquer outra alteração de estatutos; d)consentimento para a transmissão de acções; e) distribuição de dividendos; f) alterações à politica de distribuição de dividendos ou tomada de decisão de que resulte na não distribuição de qualquer parcela do lucro líquido do exercício; g) aumento de capital, sem prejuízo do estipulado no ponto dois do art.° 5.°; h)realização de prestações acessórias onerosas; i) constituição de penhor ou usufruto sobre as acções; j) aprovação do relatório de gestão e das contas de cada exercício;”.
7. Com a cláusula referida em 6 quiseram os acionistas fundadores submeter ao voto por unanimidade, determinadas questões da vida da sociedade, nomeadamente a alteração do objeto social, constituição de garantias reais sobre as ações, fusão, cisão, transformação e dissolução, bem como qualquer outra alteração dos estatutos.
8. No dia 29/06/2020 foi publicado no sítio oficial de publicações do Ministério da Justiça um aviso convocatório para a realização de uma assembleia geral da Ré, a ocorrer em 30/07/2020, pelas 10h30, com a seguinte ordem de trabalhos:
“Ponto um: Deliberar sobre o relatório de gestão, o balanço e as contas do exercício de 2019; Ponto dois: Deliberar sobre a aplicação de resultados; Ponto três: Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade; Ponto quatro: Deliberar aumentar o capital social da empresa B..., S.A., de 330.000,00 € para1.000.000,00 €; Ponto cinco: Deliberar sobre o tipo de ações nominativas; Ponto seis: Deliberar sobre a periodicidade das reuniões do conselho de administração; Ponto sete: Deliberar sobre as prestações acessórias; Ponto oito: Deliberar sobre a supressão do artigo n.º 15º do Contrato de Sociedade; Ponto nove: Deliberar alterar os artigos n.ºs 5º, 6º, 7º e 18º do Contrato de Sociedade; Ponto dez: Deliberar obter empréstimos bancários ou de outras sociedades ou entidades, e requerer ao Estado e/ou a outras instituições, possíveis subsídios com realização, se necessário de hipotecas; Ponto onze: Deliberar sobre outros assuntos de interesse para a sociedade”.
9. No dia 30 de julho de 2020, realizou-se a Assembleia Geral da sociedade R., no edifício dos Paços do Município em ..., presidindo aos trabalhos CC.
10. Na sequência dos Pontos a deliberar referidos em 8) foi elaborado pelo Presidente da A..., Engenheiro AA, uma “Declaração de Voto” contra a eliminação do artigo 15.º que foi entregue em mão no início da assembleia.
11. Da ata da assembleia geral referida em 9), no que ora interessa consta, designadamente, o seguinte: (…) “verificou-se a presença dos seguintes acionistas: BB, contribuinte fiscal ..., titular de acções no valor de Euros 230.000,00€, por si e em representação da sociedade, D..., S.A. contribuinte fiscal ..., titular de acções no valor de 11.000,00€ e E..., S.A, contribuinte fiscal ..., titular de ações no valor de 11.000,00€, CC, contribuinte fiscal ..., em representação da sociedade F... S.A., contribuinte fiscal ... titular de ações no valor de 12.000,00€ e o Senhor AA em representação da Comissão Liquidatária da A... contribuinte fiscal ..., titular de ações no valor de 49.000,00€, assim como também esteve presente na reunião o Senhor Presidente da Câmara Municipal ..., Senhor EE.
O acionista C... Lda., contribuinte fiscal ... titular de ações no valor de 17.000,00€, não esteve presente nem se fez representar. Correspondentemente, foi elaborada a lista de presenças para o efeito e que faz parte integrante da presente ata.
Presidiu aos trabalhos a Sra. Dra. CC, secretariada pela Senhora FF.
A Senhora Presidente da Mesa expôs a ordem de trabalhos conforme consta da convocatória publicada no portal da justiça em 29-06-2020 que previamente e nos termos legais foi posta à disposição de todos os acionistas:
Ponto um: Deliberar sobre o relatório de gestão, o balanço e as contas do exercício de 2019;
Ponto dois: Deliberar sobre a aplicação de resultados;
Ponto três: Proceder à apreciação geral da administração, e fiscalização da Sociedade;
Ponto quatro: Deliberar aumentar o capital social da empresa B..., S.A., de 330.000,00€ para 1.000.000,00€;
Ponto cinco: Deliberar sobre o tipo de acções nominativas;
Ponto seis: Deliberar sobre a periocidade das reuniões do conselho de administração;
Ponto sete: Deliberar sobre as prestações acessórias;
Ponto oito: Deliberar sobre a supressão do artigo n.º 15° do Contrato de Sociedade;
Ponto nove: Deliberar alterar os artigos n.ºs 5º, 6º, 7° e 18º do Contrato de Sociedade;
Ponto dez: Deliberar obter empréstimos bancários ou de outras sociedades ou entidades, e requerer ao Estado e/ou a outras instituições, possíveis subsídios com realização, se necessário de hipotecas;
Ponto onze: Deliberar sobre outros assuntos de interesse para a sociedade.
Entrou-se no ponto um da ordem de trabalhos, tendo a Presidente da Mesa dado a palavra ao Presidente do Conselho de Administração, que informou os presentes e fez alguns comentários sobre os negócios da Sociedade, tendo de seguida apresentado o relatório de gestão, o respetivo balanço e demonstração de resultados e anexo. Terminada a apresentação, passou-se à análise das contas da sociedade relativas ao exercício de 2019, previamente colocadas à disposição dos acionistas, nos termos legais. Terminada a apresentação, e não tendo havido outras questões dos acionistas presentes, a Presidente da Mesa colocou o ponto um à votação para aprovação de todos os acionistas.
O Acionista A... contribuinte fiscal ... votou contra, tendo os restantes acionistas votado a favor, tendo sido aprovado o ponto um pela maioria correspondente a 80% da totalidade do capital social da sociedade B... S.A. NIPC ....-
O Acionista C... Lda., contribuinte fiscal ... não esteve presente nem se fez representar na reunião.” (…)
Entrou-se, de seguida, no ponto oito da ordem de trabalhos, tendo a Presidente da mesa dado a palavra ao Presidente do Conselho de Administração, no uso da qual propôs que fosse anulado e retirado o artigo n.°15° do Contrato de Sociedade B... S.A. NIPC .... Posta esta proposta do ponto oito à votação, para aprovação de todos os acionistas presente. O Acionista A..., contribuinte fiscal ... votou contra, tendo os restantes acionistas votado a favor, tendo sido aprovado o ponto oito pela maioria correspondente a 80% da totalidade do capital social da sociedade B... S.A. NIPC ....-
O Acionista C... Lda., contribuinte fiscal ... não esteve presente nem se fez representar.
Passou-se ao ponto nove da ordem de trabalhos, tendo a Presidente da mesa dado a palavra ao Presidente do Conselho de Administração, no uso da qual explicou que face a aprovação do ponto quatro, cinco, seis e sete da ordem de trabalhos, publicada a 29 de Junho de 2020 e às suas respetivas concretizações propõe que os artigos n.ºs 5°, 6°, 7° e 17° do contrato de sociedade passem a ter a seguinte redação:
ARTIGO QUINTO
1 - O capital social, integralmente subscrito e realizado, é de um milhão de euros, dividido em um milhão de acções nominativas, com o valor nominal de um euro cada uma.
2 - O conselho de Administração fica autorizado aumentar o capital social, através de entradas em dinheiro, até ao limite de dois milhões e meio de euros, a realizar por uma ou várias vezes e fixará, nos termos da lei, as condições da subscrição, sendo necessário para o efeito, o parecer favorável do
Presidente do Conselho de Administração.
3 - Nos aumentos de capital a realizar em dinheiro, os acionistas têm direito de preferência na subscrição das novas acções, na proporção das que ao tempo possuírem, cabendo ao Conselho de Administração estabelecer o prazo e demais condições do exercício do direito de subscrição.
ARTIGO SEXTO
PRESTAÇÕES ACESSÓRIAS
Pode ser exigido aos acionistas prestações acessórias de capital gratuitas a realizar em dinheiro e ou prestações suplementares, até ao montante de dois milhões e quinhentos mil euros.
ARTIGO SÉTIMO
REPRESENTAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL
1-As acções são nominativas.
2- As acções poderão ser representadas por títulos de uma, cinco, cinquenta, cem, quinhentas, mil, cinco mil e dez mil ações.
3- Os títulos serão assinados pelo Presidente do conselho de Administração e um vogal da sociedade.
ARTICO DÉCIMO “SÉTIMO”
FUNCIONAMENTO
1 - O conselho de administração reunirá, uma ou duas vezes por ano, se se verificar necessário, no local, hora e data a indicar na respetiva convocatória.
2 – As convocatórias, salvo nos casos urgentes, deverão ser enviadas por correio eletrónico ou carta registada com pelo menos quinze dias de antecedência em relação à data prevista para a reunião.
3 - Os membros do conselho de administração poder-se-ão fazer representar nas reuniões do conselho de administração por outros administradores desde que autorizados e credenciados, pelos próprios, para o efeito.
4- O conselho de administração poderá delegar num só administrador, ou numa comissão executiva, a gestão corrente da sociedade ou encarregar algum ou alguns dos administradores de se ocuparem de certas matérias de administração.
Posta esta proposta do ponto nove à votação, para aprovação de todos os acionistas presentes. O Acionista A..., contribuinte fiscal ... votou contra, tendo os restantes acionistas votado a favor, tendo sido aprovado o ponto nove pela maioria correspondente a 80% da totalidade do capital social da sociedade B... S.A. NIPC ....
O Acionista C... Lda., contribuinte fiscal ... não esteve presente nem se fez representar na reunião.” (…)
12. No dia 17 de Maio de 2021, ao consultar a Certidão Permanente da sociedade Ré, constatou-se a inscrição (7) com Apresentação nº 3 de 2020/10/09, de alterações ao contrato de sociedade, designadamente alteração dos artigos 5º, 6º, 7º e 17º, e eliminação do artigo 15º.
13. Na sequência do referido em 12. e no sentido de confrontar o conteúdo da inscrição registral com a Ata da Assembleia, solicitou a A. uma cópia da mesma que lhe foi remetida a 26 de Maio.
14. Pela Insc. 7, AP. ... mostra-se registada a alteração ao contrato de sociedade, designadamente os artigos 5.º, 6.º, 7.º, 17.º e a eliminação do artigo 15.º.
***
FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA. Recurso do despacho de 17.01.2023 Deserção
Impõe-se uma breve resenha processual para total esclarecimento sobre a oportunidade de apreciação do despacho interlocutório proferido em 17.01.2023 que a Apelante suscita no âmbito do presente recurso de apelação da sentença final.
Em 18.01.2022 foi proferido o seguinte despacho:
“Tendo em consideração os pedidos formulados na petição inicial, a presente ação encontra-se sujeita a registo - cf. artigo 9º, alínea e), do Código de Registo Comercial.
Assim sendo e ao abrigo do disposto nos artigos 15.º, n.º 4, do Código de Registo Comercial, e 269.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, suspende-se a instância até que se demonstre o registo da ação.
Notifique.”
Por requerimento de 27.09.2022, a Autora veio requerer que fosse promovido o registo oficioso da ação, nos termos do disposto no artigo 8º B do Código do Registo Predial, aplicável ao caso concreto por força do disposto no artigo 115º do Código do Registo Comercial, com a consequente cessação da suspensão ordenada.
Por requerimento de 6.10.2022 a Ré veio-se pronunciar, requerendo a deserção da instância.
Em 17.10.2022 foi proferido o seguinte despacho:
“Req. Referência 33467246: Com prolação da decisão a 18.01.2022 aliás, devidamente notificado à requerente e transitado em julgado, ficou imediatamente esgotado o nosso poder jurisdicional sobre a matéria em questão pelo que nada mais cumpre determinar (cfr. artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil).”
Por requerimento de 18.10.2022 a Ré veio reiterar o pedido de declaração de deserção da instância.
Por requerimento de 4.11.2022a Autora juntou aos autos certidão comprovativa do registo da ação.
Foi então proferido despacho em 17.01.2023, Ref. Citius 444088680, com o seguinte teor:
“Nos presentes autos foi declarada a suspensão da instância até que se demonstrasse registada a ação.
Face à ausência de movimentação processual pelo período de 6 meses, veio a Ré requerer que a instância fosse declarada deserta.
Entretanto, a Autora diligenciou pelo registo da ação, justificando o facto de ainda não o ter feito por entender que tais diligências cabiam ao Tribunal, a quem competia, oficiosamente, promover esse registo.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 281.º do Código de Processo Civil que “Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
A deserção configura uma causa de extinção da instância – cf. artigo 277.º, alínea c), do Código de Processo Civil.
A extinção da instância por deserção depende de dois pressupostos, um de natureza objetiva – demora superior a 6 meses no impulso processual legalmente necessário – e outro de natureza subjetiva – inércia imputável a negligência das partes. E, como bem refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/01/2018, disponível em www.dgsi.pt “Essa dita negligência processual não pode presumir-se do simples facto de ter decorrido o aludido prazo de seis meses sem que alguma diligência tenha sido promovida por parte daquele que tem aquele ónus. III - Com efeito, cumpre sempre que o tribunal diligencie, antes de declarar a deserção da instância, pelo apuramento do circunstancialismo factual que permita sustentar a afirmação do comportamento negligente que procura sancionar-se com a cominada deserção”. Do exposto decorre que se impunha ao Tribunal indagar se o comportamento da Autora consubstancia, ou não, uma atitude negligente.
No entanto, além daqueles pressupostos, a jurisprudência tem entendido que, para a deserção é ainda exigível que tenha havido “A prolação de despacho prévio de advertência à parte para a necessidade de exercício do seu impulso processual” sendo que “ tal despacho basta-se com a sinalização da consequência da omissão da parte na promoção da tramitação do processo, a qual se poderá resumir à notificação da parte «para requerer o que tiver por conveniente, sem prejuízo do disposto no artigo 281º, n.º1 do Código de Processo Civil»” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/11/2021, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, nos presentes autos, apesar da ausência de impulso processual pelo período de 6 meses,não é líquida a afirmação de que tal situação se deveu a um comportamento negligente da Autora porquanto a mesma apresentou uma justificação fundada para esse mesmo comportamento, assente na convicção de que seria o Tribunal a diligenciar pelo registo, que não se pode ter por negligente, porquanto é alicerçado num entendimento válido, com suporte jurisprudencial, que citou no seu requerimento de 27/09/2022. Acresce que não se pode olvidar que a Autora procedeu já ao registo da ação (conforme certidão de 4/11/2022).
Além disto, e ainda que assim não se entendesse, a verdade é que não foi proferido nenhum despacho de advertência às partes para a necessidade de impulso processual pelo que, de todo o modo, nunca poderia o Tribunal, nesta fase, declarar deserta a instância.
Em face do exposto, não se considera a instância deserta, devendo os autos prosseguir os seus termos.
*
Encontrando-se já registada a ação, declara-se cessada a suspensão decretada – cf. artigo 276.º, n.º1, alínea d), do Código de Processo Civil.”
Desse despacho foi interposto recurso de apelação autónoma pela Autora, que foi admitido pelo Tribunal de 1ª Instância, tendo sido nesta Instância proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso interposto pela Recorrente, em conformidade com o disposto nos artigos 641º, n.º 2, al. a) e 652º, n.º 1 al. b), ambos do CPC, por a decisão recorrida não admitir recurso de apelação autónoma, só podendo vir a ser impugnada a final, com a eventual interposição de recurso da sentença final.
Deste modo, inconformada a Autora com a sentença final de improcedência, dela interpôs recurso e neste impugnou aquele despacho interlocutório que havia desatendido a pretendida extinção da instância por deserção, sendo esta a sede própria para o seu conhecimento (art. 644º nº 3 do CPC).
Como questão prejudicial ao conhecimento das demais questões suscitadas pela Apelante e que contendem com o mérito da sentença final, iniciaremos a apreciação do recurso por esse segmento recursivo.
Dispõe o artigo 281º nº 1, do CPC, que “sem prejuízo do disposto no nº 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Afigura-se-nos consensual que, tal como consta do despacho recorrido, a deserção da instância exige, para além da paragem do processo por mais de 6 meses consecutivos, que a falta de impulso processual decorra da negligência das partes e que a avaliação dessa negligência deva ser aferida casuisticamente dos elementos extraídos dos autos.
Conforme decorre dos presentes autos a Apelada/Autora foi devidamente notificada do despacho proferido em 18.01.2022, com o seguinte teor: “Tendo em consideração os pedidos formulados na petição inicial, a presente ação encontra-se sujeita a registo- cf. artigo 9º, alínea e), do Código de Registo Comercial.
Assim sendo e ao abrigo do disposto nos artigos 15.º, n.º 4, do Código de Registo Comercial, e 269.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, suspende-se a instância até que se demonstre o registo da ação.”
Desde esse momento ficou a Apelada ciente que a instância ficaria suspensa até que demonstrasse nos autos o registo da ação.
A Autora tinha obrigação de saber, estando inclusivamente representada por advogado, que o processo não fica indefinidamente a aguardar aquele registo da ação, de cujo prosseguimento depende, pois que se considera deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
Isto é, de acordo com o regime legal instituído nos arts. 269º nº 1 al. d) e 281º do CPC, notificada do despacho proferido em 18.01.2022 a Apelada/Autora tinha 6 meses e um dia para demonstrar nos autos o registo da ação, ou para dar conta dos obstáculos que eventualmente a impedissem de dar cumprimento ao determinado naquele despacho, sob pena de ser declarada extinta a instância por deserção.
Não obstante a Autora apenas veio a demonstrar nos autos que havia procedido ao registo da ação muito para além dos 6 meses- em 4.11.2022 –e embora a aqui Apelante tenha requerido a extinção da instância por deserção, o Tribunal a quo, a nosso ver mal, indeferiu tal requerimento, determinando o prosseguimento do processo.
Apesar de o Tribunal a quo ter admitido no despacho sob apreciação, a ausência de impulso processual pelo período de 6 meses, não julgou deserta a instância essencialmente por duas razões:
i. “não ser líquida a afirmação de que tal situação se deveu a um comportamento negligente da Autora porquanto a mesma apresentou uma justificação fundada para esse mesmo comportamento, assente na convicção de que seria o Tribunal a diligenciar pelo registo, que não se pode ter por negligente, porquanto é alicerçado num entendimento válido, com suporte jurisprudencial;”
Este argumento não colhe, desde logo porque se a Apelada/Autora discordava do despacho proferido a 18.01.2022 dele devia ter reagido interpondo recurso (art. 644º nº 2 al. c) do CPC), pois que, caso o tribunal entendesse que o registo devesse ser promovido oficiosamente não teria determinado a suspensão da instância, como foi determinada, mas teria proferido despacho a ordenar o registo pela secretaria, o que não aconteceu.
Não tendo sido interposto recurso daquele despacho, a Apelada devia ter dado estrito cumprimento ao mesmo, sendo perfeitamente inócuo que decorridos mais de 8 meses tenha vindo requerer que o registo fosse promovido oficiosamente pelo tribunal, pois que, como bem lhe foi dito “com prolação da decisão a 18.01.2022 aliás, devidamente notificado à requerente e transitado em julgado, ficou imediatamente esgotado o nosso poder jurisdicional sobre a matéria em questão”
ii. “não foi proferido nenhum despacho de advertência às partes para a necessidade de impulso processual.”
Afigura-se-nos que também não colhe este argumento, pois que a necessidade de impulso processual está suficientemente vertida no despacho que determinou a suspensão da instância para registo da ação, resultando do regime jurídico aplicável ao caso, e nele mencionado, que o processo aguardaria que a Autora demonstrasse o registo da ação (parte que tinha interesse no prosseguimento da ação).
Resultando directamente da lei a consequência do não cumprimento do ónus de registo da ação por negligência das partes (arts. 269.º, n.º 1, al. d), art. 15º nº 4 do CRC, art. 276.º, n.º 1, al. d) e 281.º do CPC), a Apelada sabia claramente, ou pelo menos tinha obrigação de saber (sendo que a ignorância da lei não lhe aproveita), estando devidamente representada por advogado, que decorrido o prazo previsto no art. 281º CPC sem que demonstrasse nos autos o registo da ação, a instância seria extinta por deserção, não sendo indispensável a expressa advertência da cominação estabelecida no art. 281º do CPC.
No recente AUJ nº 2/2025, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do Proc. Nº 4368/22.0T8LRA.C1.S1, cremos que clarificado ficou o regime a aplicar em caso de inércia das partes em promover o andamento regular do processo após o despacho a declarar a suspensão dos autos, quando estes ficam a aguardar o impulso processual das partes.
Nesse aresto ficou uniformizada a seguinte jurisprudência:
“I - A decisão judicial que declara a deserção da instância nos termos do artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil pressupõe a inércia no impulso processual, com a paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos, exclusivamente imputável à parte a quem compete esse ónus, não se integrando o acto em falta no âmbito dos poderes/deveres oficiosos do tribunal.
II – Quando o juiz decida julgar deserta a instância haverá lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia da parte, a menos que fosse, ou devesse ser, seguramente do seu conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de adequada notificação, que o processo aguardaria o impulso processual que lhe competia sob a cominação prevista no artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil.”
Parece-nos despiciendo tecer mais considerandos que aqueles que ficaram exemplarmente exarados no referido AUJ e, como tal, pela clareza da argumentação, tomamos a liberdade de a reproduzir, no que para aqui importa decidir:
“(…) a deserção da instância na acção declarativa implicará necessariamente a apreciação e valoração jurisdicional, caso a caso, do comportamento omissivo das partes, sendo mister concluir-se que foi devido a tal postura negativa que o processo se manteve sem andamento algum durante o lapso temporal legalmente exigido (seis meses e um dia).
(…)A decisão judicial que declara a instância deserta e, nessa medida, extinta nos termos dos artigos 281º, nº 1, e 277º, alínea c), do Código de Processo Civil, tem como pressuposto essencial a negligência em promover o impulso processual por parte daquele sobre quem impende esse ónus, conjugada com o decurso do período temporal consignado na lei e conducente a tal desfecho.
Não é, portanto, suficiente para a produção deste efeito processual - extinção da instância por efeito de deserção - a simples paragem do processo pelo tempo legalmente previsto (mais de seis meses consecutivos).
Exige-se ainda, como conditio sine qua non, que esse imobilismo seja devido à injustificada inércia da parte a quem cabe o ónus de promover o prosseguimento dos autos, que dele estava ou deveria estar seguramente ciente, e que não o satisfez.
Ou seja, é absolutamente essencial para a declaração de deserção da instância que, em virtude da existência de disposição legal donde resulta o ónus de impulso processual e pela forma como o tribunal lhe comunica, de forma clara, directa e inequívoca, essa necessidade processual de agir, a parte tivesse ou devesse ter o necessário conhecimento, nesse particular circunstancialismo, de que o processo só poderia prosseguir sob o seu impulso e que, se nada fizesse, a instância caminharia inexoravelmente, em morte lenta, para o seu fim.
Este instituto jurídico assenta, portanto, no demonstrado desinteresse, incúria ou indesculpável desleixo da parte (que sabia ou devia saber que sobre ela recaía o impulso processual) em promover os termos da causa, concretizando-se, portanto, na falta do empenho e cooperação (cfr. artigos 7º, nº 1, e 8º do Código de Processo Civil) que lhe eram em concreto exigíveis, não sendo admissível que a instância subsista indefinidamente à espera da prática do acto processual que lhe competia diligentemente realizar e que durante tanto tempo inexplicavelmente omitiu.
Assim sendo, o tribunal apenas pode declarar a extinção da instância por deserção quando dispuser dos elementos que lhe permitam concluir, com inteira segurança, que deve fundar-se na rigorosa e atenta análise dos autos, que existiu de facto negligência em promover o seu impulso, exclusivamente imputável à parte interessada, a qual estava sujeita aos efeitos decorrentes dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade que vigoram no direito processual civil.”
(…) Com efeito, a negligência processual relevante para a deserção da instância pode e deve estar necessariamente espelhada, em termos claros e inequívocos, na própria tramitação processual e na sua singular conformidade com quadro legal aplicável, cuja análise permitirá, com a necessária segurança, concluir que a parte tinha (ou devia ter) naquele caso concreto a consciência de que os autos se encontravam parados à espera da prática do acto processual que lhe competia, tendo ainda a mesma a noção segura e efectiva dos efeitos processuais associados à sua eventual e futura inércia.
Ou seja, constitui pressuposto essencial deste instituto o juízo extraído pelo tribunal no sentido de que, com base no que é concretamente revelado pela análise detalhada da tramitação processual e pela atenta e rigorosa tomada em consideração do regime jurídico aplicável ao caso concreto, a parte estava (ou deveria estar naquelas circunstâncias específicas e peculiares) perfeitamente ciente da sua obrigação de agir (não o fazendo), num domínio em que imperam os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade.”
Neste mesmo aresto é inclusivamente feita menção expressa à hipótese em que a instância fica suspensa a aguardar que o autor promova o registo da ação e nada faz no processo durante 6 meses e um dia, caso em que o juiz deverá desde logo julgar deserta a instância.
A esse propósito nele estão convocados os argumentos vertidos no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.03.2018[1], os quais acompanhamos, e que afastam as objeções colocadas pela Apelada quanto à necessidade de prévia advertência das consequências da sua inércia, nele se decidindo que, “Mas a verdade, é que, no caso dos autos, não se descortina a necessidade de a referida notificação ser acompanhada da advertência de que a inércia do autor na realização do registo da ação e respetiva comprovação por mais de 6 meses determinaria a deserção da instância.
Desde logo porque, tendo sido notificado às partes, designadamente ao mandatário do autor, o despacho de suspensão da instância para efeitos de o autor proceder ao registo da presente ação, não só se tornou bem claro ser, exclusivo, ónus do autor providenciar pela feitura desse registo como o mesmo não podia deixar de saber, até porque está representado por advogado, que, em face da decretada suspensão da instância com o dito fundamento, teria que demonstrar a realização do referido registo dentro do prazo de seis meses estabelecido no art. 281.º, n.º 1 do CPC, a fim de impulsionar o andamento dos autos antes de decorrido este mesmo prazo, sem prejuízo de, justificadamente alegar e provar que, não foi possível fazê-lo sem culpa/ negligência.”
Se é certo que a declaração de extinção da instância por deserção não prescinde de uma análise casuística dos elementos que objectivamente se extraiam dos autos quanto à negligência da parte em termos processuais, e por princípio a parte deva ser advertida das consequências associadas à sua eventual e futura inércia, ressalvam-se os casos em que o regime jurídico aplicável prescinde dessa advertência prévia, como se entende ser o caso da suspensão da instância por falecimento de uma das partes para ser promovida a necessária habilitação de herdeiros da parte falecida, e da suspensão da instância para registo da ação, sendo este último o caso sob apreciação.
A Apelada omitiu a prática de um acto que a ela incumbia, e dele dependia em absoluto o prosseguimento dos autos, tendo-se remetido ao silêncio porque nenhum obstáculo comunicou ao tribunal que a tivesse impedido de proceder ao registo da ação, e à mais pura inércia processual apesar de ter obrigação de estar ciente das consequências legais que dessa inércia decorrem, expressamente previstas no art. 281º do CPC.
Perante a verificação dos pressupostos da deserção, conforme sustentava a Apelante, não pode manter-se o despacho interlocutório proferido em 17.01.2023, o qual se revoga e se substitui por despacho de extinção da instância por deserção, ao abrigo do art. 281º do CPC.
Declarada extinta a instância com efeitos reportados àquela data, não pode subsistir o processado subsequente ao despacho revogado, nele se incluindo a sentença recorrida e, consequentemente fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas neste recurso (art.608º nº 2 ex vi do art. 663º nº 2 do CPC).
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DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente o presente recurso de apelação, revogando-se a sentença recorrida e o despacho proferido em 17.01.2023, o qual se substitui pela declaração de extinção da instância por deserção.
Custas a cargo da Apelada, que ficou vencida.
Notifique.
Porto, 17 de Junho de 2025
Maria da Luz Seabra
João Diogo Rodrigues
Rui Moreira
(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
_______________ [1] Proc nº 225/15.4/8VNG-A.P1.S1, www.dgsi.pt