I - Somente em caso de alegação da essencialidade do requerido meio de prova, para a demonstração deste ou daquele facto, e que no caso concreto o Julgador possa antever tal essencialidade, é que se pode lançar mão do poder inquisitório e ordenar a produção deste ou daquele meio de prova.
II - A consagração desta inquirição oficiosa de testemunha não afasta a auto-responsabilidade das partes quanto à obrigação de indicarem, tempestivamente nos momentos processuais próprios, os meios de prova.
III - Sempre que haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa deve a mesma ser inquirida por iniciativa do Tribunal.
Juízo Local Cível do Porto - Juiz 8
RELAÇÃO N.º 241
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Anabela Andrade Miranda
João Diogo Rodrigues
AS PARTES
A.: AA.
R.: A..., SOCIEDADE DE ADVOGADOS, SP, RL.
“(…) ser a R. condenada a pagar ao A. a quantia de 9.750,00€, acrescida de juros de mora à taxa legal desde 27-09-2021 até efetivo e integral pagamento.“
A)
Alega para tanto o A., a sua qualidade de advogado e a obtenção prévia de dispensa de sigilo profissional, originando-se o crédito na prestação de serviços ocasionais de assessoria jurídica, na área fiscal, do primeiro à segunda.
A R. contestou, defendendo-se por impugnação.
B)
Em resposta à contestação, o A. veio juntar 4 missivas, correio electrónico, trocado entre si e a R., de 14.12.2020 e 22.12.2020.
A R. apresentou requerimento, a arguir a nulidade da prova documental, por não estar o A. autorizado pelo Cons Geral da OA – dispensa de sigilo profissional.
O A. respondeu.
O A. juntou decisão Cons Geral da OA que decide não deferir o pedido de levantamento do sigilo por os documentos já terem sido juntos aos autos. Pede em consequência que sejam os documentos admitidos e juntos aos autos.
A R. respondeu, pugnando pela sua não admissão.
O A. respondeu à resposta.
C)
A 03.03.2023 é proferido despacho quanto à junção dos documentos pelo A, aludidos em B), tendo decidido:
“Assim, se bem entendemos face à oposição da Ré, que expressamente se opõe à apresentação e junção de tal correspondência electrónica havida entre o seu representante legal e uma sua cliente, e considerando-se a validade da escusa invocada ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 3, al. c) do CPC, deverá o Autor, querendo, suscitar a quebra do sigilo junto do Tribunal Superior, cfr. art. 135.º do CPP ex vi do citado art. 417.º, n.º 4 do CPC, para o que se concede o prazo de 10 dias.“
É saneado o processo, admitidos os meios de prova, tendo sido ordenada elaboração de Laudo de honorários pela OA.
D)
O A. veio a 17.03.2023 deduzir incidente de quebra de sigilo profissional, pedindo:
“Termos em que deve ser deferido o presente incidente de quebra do segredo profissional relativo ao doc. 1 junto pelo A. com o seu requerimento de 03-06-2022, admitindo-se, em consequência, a sua junção e manutenção nos autos.
Para tanto, mais se requer que o presente incidente suba imediatamente e nos próprios autos ao Tribunal da Relação do Porto, para melhor compreensão da globalidade dos factos nele em causa, atenta a sua dispersão pelos diferentes articulados e demais peças processuais. “
A 27.03.2023 é proferida decisão quanto ao pedido de quebra de sigilo profissional, ordenando-se a tramitação adequada. “Nestes termos, nos moldes plasmados no art. 135º, nº 3, do CPP, a ponderação sobre a justificação (ou não) da quebra do segredo profissional em causa caberá ao Tribunal Superior, tal como suscitado pela R..”
A 30.03.2023 a R. veio pronunciar-se quanto ao incidente deduzido, terminando pedindo o seu indeferimento.
A 20.04.2023 a R. veio arguir a nulidade do processado posterior a 17.03.2023, por violação do contraditório.
O A. a 04.05.2023, respondeu à pretensão da R., terminando pedindo que a arguida nulidade seja indeferida.
E)
A 17.05.2023 é proferida decisão no seguinte sentido:
“Pelo exposto, entendemos que o despacho proferido em 27-3-2023 não padece de qualquer nulidade e/ou irregularidade que cumpra conhecer e/ou reparar, e, em consequência, indefere-se a reclamação de nulidade suscitada pela Ré no requerimento de 20-4-2023, com a ref.ª citius 35435493.”
Desta decisão a R. veio interpor recurso, a 16.06.2025, que foi admitido por despacho de 26.09.2023.
Foi ordenada a tramitação do incidente de quebra de sigilo profissional, por despacho de 26.09.2023.
F)
No recurso da decisão aludida em E), a 19.02.2024 é proferido Acórdão decidindo (apenso B)):
“Pelo exposto, acordam os Juízes deste tribunal da Relação em julgar o recurso procedente, anulando o despacho de 27.3.2023 e todo o processado ulterior que dele dependa. “
G)
No incidente de quebra de sigilo profissional (apenso A)), a 23.02.2024, é proferido Decisão Sumária do seguinte modo:
“Sobre a arguição de nulidade veio a ser proferido despacho, onde se decidiu: (…) Pelo exposto, entendemos que o despacho proferido em 27-3-2023 não padece de qualquer nulidade e/ou irregularidade que cumpra conhecer e/ou reparar, e, em consequência, indefere-se a reclamação de nulidade suscitada pela Ré no requerimento de 20-4-2023, com a ref.ª citius 35435493.”.
Este último despacho foi objeto de recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, como resulta da decisão que antecede, proferida pela 5.ª Secção deste Tribunal, decidiu julgar o recurso procedente, anulando o despacho de 27.3.2023 e todo o processado ulterior que dele dependa.
É o caso do incidente de quebra de sigilo profissional que se encontrava para decisão nestes autos e que, por via da decisão referida, que considerou nulo o despacho que havia decidido mandar extrair certidão integral do processado e remeter o apenso assim autuado ao Tribunal da Relação do Porto, para decisão do incidente suscitado, acabou por ser afetado pela dita declaração de nulidade.
Face ao exposto, jugo extinta a instância nos presentes autos, por inutilidade superveniente da lide“
H)
A 06.05.2024 é proferida decisão sobre a seguinte questão ”é proferido o presente despacho, o qual contende com o incidente de quebra/levantamento de sigilo (profissional) apresentado pelo A. no requerimento de 17.3.2023, concretamente com a apreciação da sua (in)admissibilidade, aqui ponderando a posição contraditória da R. acerca do mesmo, manifestada no requerimento de 30-3-2023, como determinado no citado Acórdão.”
A final é decidido:
“Assim, deduzida escusa com base em violação do segredo profissional – como é o caso dos autos –, deverá ser aplicado o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado (cfr. art. 417º, nº 4, do CPC).
Nestes termos, nos moldes plasmados no art. 135º, nº 3, do CPP, a ponderação sobre a justificação (ou não) da quebra do segredo profissional em causa caberá ao Tribunal Superior.”
Desta decisão é interposto recurso pela R..
Admitido o recurso (11.07.2024), a 21.10.2024 é proferido Acórdão (apenso D)):
“Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, deverá o tribunal a quo, por não estarem verificados os pressupostos para a dedução do incidente da dispensa do sigilo profissional, apreciar se a junção do documento feita pelo Autor/apelado, em 03/06/2022, integra ou não matéria de sigilo profissional, nos termos do EOA decidindo depois em conformidade. “
No incidente (apenso C)) de quebra de sigilo profissional, por decisão 03.01.2025 foi ordenado neste Tribunal da Relação do Porto o seguinte:
“Considerando que o acórdão junto aos presentes autos revogou a decisão que admitiu o incidente da dispensa de sigilo profissional, consequentemente ficou prejudicado o conhecimento do presente incidente de quebra de sigilo, remetido a este Tribunal.
Assim sendo, determina-se a extinção, por inutilidade, do presente incidente.“
I)
Baixaram os autos à primeira instância, e a 19.12.2024 é proferida decisão quanto ao sigilo profissional
“Assim sendo, face ao exposto, por contender com os interesses protegidos pelo sigilo profissional, e na medida que, nos termos do art. 92.º, n.º 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados, “os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”, decido:
- que a junção do documento feita pelo Autor, em 03/06/2022, integra matéria sujeita a sigilo profissional, nos termos do EOA; e
- determino o seu desentranhamento e a sua devolução à parte apresentante (Autor).“
J)
Notificadas as partes, a 13.01.2025, veio o A. veio requerer a audição de duas pessoas, por os mesmos terem conhecimento pessoal e directos dos factos em discussão: “mostra-se agora especialmente relevante que o Tribunal proceda à audição da Senhora Dra. BB, remetente e destinatária da maioria dos emails retratados naquele documento mandado desentranhar, atenta a sua qualidade de Assessora da Administração da Sociedade Comercial B..., S.A. (cliente da R. e sujeita do estudo elaborado pelo A.), e que inegavelmente terá um conhecimento pessoal e direto dos factos sob discussão nos autos.”; “Pelos mesmos motivos, revela-se igualmente essencial a audição em juízo do administrador da Sociedade Comercial B..., S.A., referido naqueles emails: o Senhor CC, arrolado já como testemunha a apresentar pela R.”
Sustenta a sua pretensão no princípio do inquisitório (artigos 411.º e 526.º, n.º 1 do Código de Processo Civil)
A R. por requerimento de 27.01.2025 veio opor-se a tal pretensão.
*
A 13.03.2025, foi proferida DECISÃO, nos seguintes termos:
“Assim, tudo visto e sopesado, e ao abrigo do princípio do inquisitório previsto no art. 411.º do CPC, mais considerando o preceituado no art. 526.º, n.º 1 do mesmo código, admito a inquirição das supra identificadas testemunhas na audiência de discussão e julgamento, nessa mesma qualidade processual, a ser notificadas para a audiência de discussão e julgamento, na data que vier a ser oportunamente designada para o efeito.“.
A R., vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:
(…)
(…)
Apresenta as seguintes conclusões:
(…)
*
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, é a seguinte:
A ordenada inquirição oficiosa de testemunhas viola o dever de segredo profissional, pois que a testemunha indicada iria depor sobre o teor de documentos que estão sob segredo profissional.
O depoimento das testemunhas está inquinado por decorrer de meio de prova proibido.
Ao ordenar a audição oficiosamente das testemunhas o Tribunal substituiu-se às partes, que têm o ónus de apresentação dos meios de prova. O A. tinha conhecimento desde que intentou a acção da existência das testemunhas, e uma delas está arrolada como testemunha, indica apela R..
*
Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório.
*
O cerne da questão diz respeito diz respeito à conjugação do princípio do inquisitório com os demais princípios processuais, designadamente, do dispositivo, da preclusão, da cooperação e da autoresponsabilidade das partes.
Dispõe o artigo 411.º do Código de Processo Civil, o seguinte:
“Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.“.
Já o artigo 526.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, dispõe:
“Quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor.“.
Sobre esta realidade processual podemos respigar o exarado em Acórdão recente deste Tribunal da Relação do Porto, na qual o relator foi segundo adjunto e a aqui primeira adjunta foi primeira adjunta, no processo 9537/21.7T8VNG.P1, de 25.03.2025, relatado pelo Des PINTO DOS SANTOS, o seguinte trecho:
“O princípio do inquisitório está consagrado, em termos gerais, no art. 6º nºs 1 e 2 e, no que em particular concerne à prova, no art. 411º, ambos do CPC. Segundo este último, «[i]ncumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer».
Este princípio do inquisitório tem de ser conjugado/temperado com outros princípios também consagrados no atual CPC, particularmente com os do dispositivo, da cooperação, da autorresponsabilidade das partes e da preclusão, sendo certo que o princípio do dispositivo é ainda o que enforma o nosso regime processual civil, como decorre, desde logo, dos arts. 3º e 5º do mesmo corpo de normas.
No âmbito probatório, que é o que aqui interessa abordar, o princípio do dispositivo significa que as partes devem levar ao processo o material probatório que deverá ser utilizado para o juiz formar a sua convicção probatória [cfr. Carlos Castelo Branco, in A Prova Ilícita – Verdade ou Lealdade?, 2019, Almedina, pg. 35].
O princípio do inquisitório surge como contraponto ao princípio do dispositivo e assenta em diversos poderes/deveres oficiosos que o CPC confere ao juiz, designadamente, nos seguintes preceitos:
- art. 436º: requisitar documentos [de diversa natureza] que estejam em poder das partes, de terceiros ou de organismos oficiais;
- art. 452º nº 1: determinar a comparência pessoal das partes para prestação de depoimento, informações ou esclarecimento sobre factos que interessem à decisão da causa;
- arts. 467º nº 1, 477º e 487º nº 2: ordenar a realização de perícias;
- art. 490º: determinar a realização de inspeções;
- e 526º: determinar a inquirição de testemunhas que tenham conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa [idem, pgs. 36-38].
O princípio da cooperação, previsto no art. 7º do CPC, comporta uma dupla vertente: a cooperação das partes com o tribunal; e a cooperação do tribunal com as partes. Nesta última vertente [que é a que aqui interessa considerar e que deve ser articulada com o princípio do inquisitório], cabe ao juiz diligenciar ativamente, com respeito pela autonomia da vontade das partes, fixada nos princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade, que cada processo consiga alcançar o seu fim: a composição do litígio segundo as regras de direito material aplicáveis e após indagação, tanto quanto possível exaustiva, sobre a matéria de facto controvertida [v. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª ed., pág. 36]. No contexto probatório, este princípio concede ao juiz, no nº 4 daquele preceito, o poder/dever de providenciar pela remoção de obstáculos que surjam a alguma das partes relativamente à obtenção de documentos ou informações que condicionem o eficaz exercício do seu direito probatório, desde que a parte interessada invoque justificadamente a dificuldade séria em obtê-los.
O princípio da autorresponsabilidade das partes significa que são estas que conduzem o processo a seu próprio risco, cabendo-lhes deduzir e fazer valer os meios de ataque e de defesa que lhes correspondam, incluindo as provas, suportando uma decisão adversa, caso omitam algum. A negligência ou inércia das partes redunda inevitavelmente em seu prejuízo, por não poder, em princípio, ser suprida pela atividade oficiosa do tribunal. A autorresponsabilidade das partes exprime-se na consequência negativa (desvantagem ou perda de vantagem) decorrente da omissão de atos ou ónus que estavam a cargo das mesmas [cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Almedina, pg. 378 e Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, 1996, Coimbra Editora, pgs. 145-147].
O princípio da preclusão significa que “uma vez ultrapassada uma determinada fase ou ciclo processuais ou excedido um certo prazo (fixado na lei ou determinado pelo juiz), se extingue o direito de praticar esse ato” [cfr. Remédio Marques, in Ação Declarativa à luz do Código Revisto, 3ª ed., Coimbra Editora, 2011, pgs. 208-209], o que, no âmbito probatório, se traduz na impossibilidade das partes apresentarem/indicarem meios de prova logo que se mostrem ultrapassadas as fases legalmente estabelecidas para o efeito: a fase normal dos articulados, já que é nestes que aqueles devem ser apresentados/indicados; e a fase excecional que, no que diz respeito à prova documental, está prevista nos nºs 2 e 3 do art. 423º [possibilidade de apresentação, em princípio mediante sujeição a multa, até 20 dias antes do início da audiência final ou, até no decurso desta, mas, neste caso, apenas nos estritos termos admitidos no nº 3] e, quanto à prova testemunhal, que consta dos nºs 1 e 2 do art. 598º [o primeiro admite a alteração do requerimento probatório na audiência prévia (quanto tiver lugar) e o segundo admite a alteração ou o aditamento do rol de testemunhas até 20 dias antes do início da audiência final].
Ora, sendo embora verdade, como decorre do art. 411º, que o juiz tem o poder/dever de ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, verdade é também que este poder/dever não é ilimitado quanto à determinação de provas. Desde logo porque se fosse este o alcance do princípio do inquisitório em matéria probatória, “então teríamos de admitir que as partes estavam dispensadas de indicar provas, já que o juiz tinha o dever de procurá-las, de diligenciar, por exemplo, quem residia nas imediações onde ocorreram os factos para verificar se alguém os tinha constatado, ou procurar entre familiares e amigos das partes as possíveis provas que poderiam existir e, claro está, as contraprovas” [Acórdão da Relação de Coimbra de 12.03.2019, proc. 141/16.2T8PBL-A.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc].
E depois, porque embora a atividade que o juiz desenvolve no exercício dos poderes conferidos pelo citado preceito tenha em mira a prevalência da verdade material e a justa composição do litígio, “não pode deixar de ter presente os ónus que a lei especialmente impõe às partes, o que se torna evidente nas situações em que seria uma ofensa a estes imperativos que o juiz oficiosamente determinasse a realização de meios de prova que a parte, a quem incumbia a sua apresentação, não o tivesse feito nas condições em que o deveria ter efetuado” [Acórdão desta Relação do Porto de 23.04.2020, proc. 6775/19.6T8PRT-A.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp].
Acrescenta, ainda, este aresto que “[n]a ação declarativa comum, é dever das partes juntar os documentos, apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova com os respetivos articulados (art.ºs 423º, 552º, nº 2 e 572º, al d), do Código de Processo Civil). Depois dessa fase, poderá haver alteração do requerimento probatório e aditamento ou alteração ao rol de testemunhas (…) nas condições previstas no art.º 598º do mesmo código, entre elas, quanto ao requerimento probatório, na audiência prévia quando a ela haja lugar nos termos do disposto no artigo 591º ou nos termos do disposto no nº 3 do art.º 593º, ambos do Código de Processo Civil. Dos princípios da igualdade, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes resulta que, caso não indiquem os meios de prova nos respetivos articulados quando tal lhes é legalmente imposto, com observância dos prazos perentórios a que estes estão sujeitos, ocorre preclusão desse direito. É incontroverso que fora dos prazos e momentos previstos na lei não podem as partes apresentar os seus requerimentos probatórios”. E conclui que “[o] princípio do inquisitório não impõe ao tribunal o dever de acolher toda e qualquer pretensão instrutória de uma das partes em qualquer momento e condição formulada, e menos ainda que, oficiosamente, sob a invocação da relevância dos meios que aponta, lhe faculte a produção de qualquer prova que tempestivamente podia e devia ter oferecido e deixou de requerer, prejudicando com isso o regime especificamente prescrito para esse efeito e, em igualdade, para ambas as partes”.
Esta Relação tem seguido, maioritariamente, o entendimento de que os poderes conferidos pelo princípio do inquisitório [conjugado com o princípio da cooperação, na vertente atrás referida], atribuídos pelo art. 411º [e também, entre outros, pelos arts. 7º, 436º e 526º], não podem ser usados para suprir ou colmatar as faltas das partes a respeito da apresentação tempestiva dos meios de prova [além do aresto de que se extraíram as transcrições anteriores, cfr, i. a., os Acórdãos desta Relação do Porto de 10.10.2024, proc. 650/22.4T8VNG-B.P1, de 22.04.2024, proc. 12874/22.0T8PRT.P1 e de 23.01.2023, proc. 2518/21.2T8VNG-A.P1, todos disponíveis no indicado sítio da DGSI], orientação que sai, ainda, reforçada por consideração aos princípios da autorresponsabilidade das partes e da preclusão.
É também este o nosso entendimento, pelo que só em casos limitados, necessariamente excecionais, particularmente quando o juiz se convença da essencialidade de algum documento ou da audição de uma nova testemunha para a descoberta da verdade e a parte que os apresenta/indica fora de prazo não tiver outra maneira [outro meio de prova] de provar os factos que um e/ou outro visam demonstrar, ou quando se convença de justificada dificuldade da parte interessada em obter determinado documento ou informação, é que o tribunal poderá, com apelo aos princípios do inquisitório e da cooperação e, suprindo in extremis a falta/omissão da parte, que não os apresentou/indicou no momento processual oportuno, admitir esses meios de prova ou ordenar as diligências necessárias à sua obtenção [conclusão idêntica no Acórdão desta Relação do Porto de 11.02.2025, proc. 2553/09.9TBVCD-C.P1, relatado pelo aqui relator, disponível no mesmo sítio da DGSI].
Mas, em qualquer caso, cabe, em primeiro lugar, à parte interessada [onerada com o respetivo ónus da prova, ou para contraprova de factos a cargo da parte contrária] indicar ao juiz [incluindo na audiência final] a relevância/essencialidade do meio de prova em questão [por ex. documento ou inquirição de nova testemunha] e justificar a dificuldade em obtê-lo por si [neste caso, quanto a documentos], por ex. invocando a sua situação económica e/ou o benefício do apoio judiciário, incumbindo depois ao juiz, num segundo momento, ao abrigo dos poderes/deveres conferidos pelos princípios do inquisitório e da cooperação, desde que se verifique aquela essencialidade e esta dificuldade, determinar a sua realização/produção ou proceder à remoção dos obstáculos que a impedem [a propósito do princípio da cooperação veja-se o que dispõe o nº 4 do art. 7º do CPC].“
Sobre esta questão escreve LUÍS PIRES DE SOUSA, Prova Testemunhal, 2016, págs. 273 e seguintes: “Quer a doutrina quer a jurisprudência têm confluído na asserção de que Artigo 526º comina ao juiz um poder-dever que deve ser posto em prática quando alguém (nas vestes de testemunha ou de parte) em julgamento (ou diligência equiparada), ao ser inquirido, alude a outras pessoas (que não estão no processo) como tendo conhecimento de factos relevantes para a decisão da causa. A fonte do conhecimento da potencial testemunha poderá também provir de outros elementos do processo, sejam outros meios de prova, v.g., documentos, quer até em função das alegações dos articulados.(595 Neste sentido, LEBRE DE FREITAS et al., Código de Processo Civil Anotado, 2ª Vol., 2001, pp. 599-600. No sentido de que a inquirição oficiosa é um poder-dever e não uma faculdade, vejam-se os seguintes arestos: Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 2.10.2006, Machado da Silva, 0613159, de 19.10.2006, Amaral Ferreira, 0633968, de 7.6.2011, Pinto dos Santos, 3056/10, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.11.2006, Azevedo Ramos, 06A3427, Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 28.1.2004, António Gonçalves, 2287/03, de 12.7.2007, Gouveia Barros, 1249/07. Na explicitação clara do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8.3.2004, Sousa Peixoto, 0316725, "Como resulta do confronto das duas redações (a do Decreto-lei nº 329-A/95, de 12.12 e a anterior), são duas as diferenças existentes entre elas. A primeira diz respeito ao poder-dever que atualmente é imposto ao juiz de ordenar a notificação oficiosa das pessoas. Na redação anterior, o artigo dizia: o tribunal pode ordenar que a pessoa seja notificada para depor; na redação atual o artigo diz: o juiz deve ordenar que a pessoa seja notificada para depor. Verifica-se, assim, que a inquirição oficiosa de testemunhas deixou de ser uma faculdade, um poder (embora não discricionário, como diz A. REIS - CPC, IV, pág. 486-) concedido ao juiz e passou a ser um dever, um poder-dever que lhe é imposto, o que se compreende, tendo em conta as preocupações subjacentes ao DL n.º 329-A/95, nomeadamente as relacionadas com o princípio da cooperação, com o princípio dispositivo e com o princípio da verdade material, como claramente se depreende do seguinte excerto do preámbulo do DL n.º 329-A/95: Para além de se reforçarem os poderes de direção do processo pelo juiz, conferindo-se-lhe o poder-dever de adotar uma posição mais interventora no processo e funcionalmente dirigida à plena realização do fim deste, eliminam-se restrições excecionais que certos preceitos do Código em vigor estabelecem, no que se refere à limitação dos meios probatórios, quer pelas partes, quer pelo juiz, a quem, deste modo, incumbe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente e sem restrições, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. A segunda diferença (entre a atual e a anterior redação do n.º I do art. 645.8, diz respeito ao leque de pessoas que o tribunal podia oficiosamente inquirir. Na redação anterior, o tribunal só podia ouvir as pessoas que fossem referidas no decurso da inquirição das outras testemunhas, na redação atual deve ouvir as pessoas que sejam referidas no decurso da causa, desde que, naturalmente, haja razões para presumir que têm conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa. Nada impede, por isso, que sejam indicadas ou sugeridas pelas próprias partes, antes ou durante o julgamento.")
No caso da inquirição ser requerida por uma parte, o juiz não deverá deferir a inquirição da testemunha se (i) entender que a prova já produzida ou requerida é suficientemente esclarecedora ou (ii) não se convencer da especial utilidade da inquirição para o esclarecimento dos factos, (596 Neste sentido, cfr. NUNO LEMOS JORGE, "Os Poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas", in Julgar, Nº 3, 2007, p. 72.“).
No requerimento apresentado pelo A., no qual pede que o Tribunal oficiosamente, ao abrigo do princípio do inquisitório, a inquirição de duas testemunhas, alega, tão somente, que as ditas testemunhas têm conhecimento pessoal e directo dos factos em discussão, sendo que a ditas testemunhas são referidas ou identificadas nos documentos mandados desentranhar. Mais adianta o A., e assim decorre do seu requerimento, que as indicadas testemunhas irão depor sobre factualidade que decorre directamente dos documentos mandados desentranhar, por estarem sujeitos a sigilo profissional.
O A. não argumenta que as mesmas são essenciais para a prova a produzir e relativa a factualidade que não decorre dos citados documentos, antes pelo contrário. O A. limita-se a afirmar genericamente que as testemunhas têm directo e pessoal conhecimentos dos factos que decorrem dos documentos mandados desentranhar, de acordo com a sua alegação.
Nos termos atrás explicitados, cabe às partes o ónus de obtenção da prova de factos que determinem a procedência da sua pretensão/pedido. Esse ónus não recai sobre o Tribunal (estaria descoberta a solução para todas a pretensão que soçobraram por falta de prova, pois que bastava imputar ao Julgador a omissão de poder chamar este ou aquele, requisitar isto ou aquilo, ou ordenar este ou aquele meio de prova, para assim, até à exaustão de todos os meios probatórios possíveis e admissíveis, lograr obter vencimento para a sua pretensão).
Razão pela qual, somente em caso de alegação da essencialidade do requerido meio de prova, para a demonstração deste ou daquele facto, e que no caso concreto o Julgador possa antever tal essencialidade, é que se pode lançar mão do poder inquisitório e ordenar a produção deste ou daquele meio de prova.
“A eventual negligência ou inépcia alegatória/probatória das partes redundará, assim, e inevitavelmente, em seu prejuízo, uma vez que não poderão as mesmas contar (sempre) com uma aturada exercitação, pelo juiz, dos seus poderes/deveres de suprimento e indagação oficiosa. Recai, pois, sobre elas a tarefa de contribuir, de modo diligente e eficiente, para a formação da convicção do julgador, esta naturalmente alicerçada na valoração final de todas as provas trazidas à instrução, discussão e julgamento do pleito. (…)
O inciso em apreço cinge-se, pois, a uma simples "fração" desse ónus; há, que associar o princípio dispositivo considerado o processo na sua vertente dialética e assente no princípio da controvérsia - à responsabilidade (ónus) das partes na recolha do material fáctico relevante e à necessidade da sua correspondente prova (165 Cfr. LEBRE DE FREITAS, Introdução cit., pp. 181 e ss.). A autorresponsabilidade traduz-se, assim, praticamente, em a parte ter de arcar com as consequências adversas de uma sua conduta processual/probatória inconsiderada, omissiva ou inconclusiva, em suma ineficaz, para obter a formação de uma convicção judicial de sentido favorável. Tal como escreve LEBRE DE FREITAS, «a autoresponsabilidade da parte exprime-se na consequência negativa (desvantagem ou perda de vantagem) decorrente da omissão do ato» (166 Cfr. Introdução cit, p. 181 e ss.), FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, Vol I, 2ª ed., pág. 96.
A não ser assim, estar-se-ia a “desconsiderar/desvalorizar gravemente os princípios do dispositivo, da autorresponsabilidade das partes e da preclusão e a sobrevalorizar excessivamente os princípios do inquisitório e da cooperação [este na vertente a cargo do juiz], transformando estes últimos numa espécie de panaceia para todas as falhas/omissões das partes, o que não foi, claramente, o propósito do legislador, nem se coaduna com a estrutura do nosso processo civil que, repete-se, ainda continua a ser predominantemente dispositiva”, Acórdão citado.
No mesmo sentido, LUÍS PIRES DE SOUSA, Prova Testemunhal, 2016, págs. 274 e seguintes, “Todavia, a consagração desta inquirição oficiosa de testemunha não afasta a auto-responsabilidade das partes quanto à obrigação de indicarem, tempestivamente nos momentos processuais próprios, os meios de prova. Citando o ensinamento de LOPES DO REGO,
"O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste -não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes. A inquirição por iniciativa do tribunal constitui um poder--dever complementar de investigação oficiosa dos factos, que pressupõe, no mínimo, que foram indicadas provas cuja produção implica a realização de uma audiência. "598 Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 1999, p. 425. (…)
Caso a parte tenha omitido tais deveres, o juiz só deverá exercitar o poder-dever conferido pelo Artigo 526º quando resulte da produção de outras provas a necessidade de inquirição de outra testemunha, manifestando-se tal necessidade em termos tais que permitam concluir que a inevitabilidade da inquirição ocorreria mesmo que a parte houvesse sido diligente na satisfação do seu ónus probatório. A não ser assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais específicos na medida em que a parte, subsidiariamente, poderia invocar o regime dos Artigos 411º e 526º do Código de Processo Civil (anteriores Artigos 265º, nº3 e 645º),(600 Cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 2.1.2006, Machado da Silva, 0613159, de 22.2.2011, José Carvalho, 476/09, do Supremo Tribunal de Justiça de 28.5.2002, Afonso de Melo, 02A1605.)”
Retornando ao caso, sopesando o que está em discussão nesta instância de recurso, é inequívoco que o A. tinha perfeito conhecimento, desde que apresentou os documentos a 03.06.2022, da existência das testemunhas e também é evidente que sabia desde a apresentação dos meios de prova, por parte da R., da existência da testemunha que havia sido arrolada pela R..
Por inércia unicamente imputável ao A. é que este deixou de indicar tais pessoas no seu rol de testemunhas.
Também, apenas a si é imputável somente aquando do seu requerimento 13.01.2025 é que o A. se apercebe de que tais pessoas têm conhecimento pessoal e directo dos factos – imediatamente após decisão a ordenar o desentranhamento de emails sujeitos a sigilo profissional.
A Lei apenas permite a inquirição oficiosa de pessoa que não tenha sido oferecida como testemunha. Ora, a testemunha CC, faz parte do rol de testemunhas da R., pelo que por esta via não é possível que se proceda à inquirição por iniciativa do Tribunal.
Por fim, de acordo com a Lei não vemos nesta fase processual, antes da produção de prova, como se pode fazer uma prognose da essencialidade de alguém que tem conhecimento “de factos importantes para a boa decisão da causa”. Isto é, sempre que haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa deve a mesma ser inquirida por iniciativa do Tribunal. Com efeito, antes da audição de uma pessoa, designadamente das duas indicadas pelo A., é precoce afirmar qual é o conhecimento dos factos que têm. Contudo, no caso em apreço, é o A. que afirma que as mesmas terão conhecimento dos factos dos “emails”. Não se afigura possível ao A. fazer prova de factualidade de um documento que foi mandado desentranhar e que está sujeito a sigilo profissional.
Assim, tudo visto, terá que proceder a apelação, revogando-se a decisão proferida, tudo sem prejuízo de no decorrer da produção de prova, se poder aferir da essencialidade da inquirição destas ou de outras pessoas e do conhecimento que as mesmas terão de uma precisa e concreta factualidade em discussão nos autos.
*
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão proferida, tudo sem prejuízo de no decorrer da produção de prova, se poder aferir da essencialidade da inquirição destas ou de outras pessoas e do conhecimento que as mesmas terão da factualidade em discussão nos autos.
Custas pelo A./apelante. (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
………………………………………
………………………………………
………………………………………
Alberto Taveira
Anabela Andrade Miranda
João Diogo Rodrigues
_____________________
[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.