COMPENSAÇÃO
CRÉDITO INDEMNIZATÓRIO DEPENDENTE DE DECISÃO JUDICIAL
Sumário

I – É judicialmente exigível, para os efeitos do artigo 847.º, n.º 1, al. a), o crédito que decorra de uma obrigação civil, vencida, incumprida e não extinta, não sendo necessário que esteja reconhecido por sentença ou outro título executivo.
II – Não preenche este requisito de “exigibilidade forte” o crédito cuja existência esteja depende de uma decisão judicial que julgue verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar com fundamento na responsabilidade civil, contratual (por violação de uma cláusula negocial) ou extracontratual (por violação de um direito absoluto), e fixe o respectivo montante indemnizatório.
III – O contrário não resulta do disposto no artigo 853.º, n.º 1, al. a), do CC, que visa apenas evitar que o devedor se aproveite da compensação para remover as consequências de um ilícito doloso por si praticado, mas não impede que os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos sejam usados para extinguir outros créditos, assim beneficiando a vítima desses factos dolosos.

Texto Integral

Processo: 8297/24.4T8PRT-A.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
A..., Lda., com sede na Rua ..., ... – ..., ... ..., intentou contra B... (Belgium) Nv, com sede em ... ..., injunção de pagamento europeia, para cobrança de crédito emergente de um contrato de prestação de serviços, no valor de 23.475,00 €, acrescido de juros legais vencidos desde 28.04.2023 até 29.03.2024, no valor de 1.956,06 €, e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Citada a requerida, esta apresentou oposição, alegando a extinção do crédito, em parte por compensação e na parte restante por pagamento.
Os autos foram remetidos ao tribunal territorialmente competente e aí distribuídos como acção declarativa comum.
Mediante convite do Tribunal, a autora veio exercer o contraditório quanto às excepções peremptórias invocadas pela ré, admitindo o pagamento parcial do seu crédito e reduzindo o pedido em conformidade, mas pugnando pela improcedência da compensação. Mais comunicou que em 12.07.2024 a ré intentou contra si uma acção com processo comum, baseada nos factos que sustentam a compensação que invocou nesta acção, em cuja contestação arguiu a excepção de litispendência. Juntou prova documental.
Veio então a ré solicitar a apensação da referida acção aos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do CPC, alegando que são comuns as questões de facto e de direito invocadas na defesa que a ré apresentou nesta acção e que servem de causa de pedir no aludido processo n.º 1766/24.8T8PRD, que não existe identidade de partes, de causa de pedir e de pedido nas duas acções, não estando assim preenchidos os requisitos da excepção dilatória de litispendência (cfr. ponto 70 do requerimento de 31.10.2024 em análise, embora no ponto 78 do mesmo requerimento afirme exactamente o contrário, aludindo à «identidade das partes dos dois processos, assim como as causas de pedir e os pedidos das partes nos dois processos»), que existe um interesse ponderoso para que as disputas entre as partes nas duas acções sejam decididas de forma definitiva num único processo e por um único Tribunal e que estão reunidos os pressupostos da oposição e da reconvenção no presente processo.
Por despacho proferido em 04.11.2024, considerando que, à luz da actual lei processual civil, a compensação sempre teria de ser suscitada em sede de reconvenção e que, não obstante a ré ter invocado os factos nos quais baseia a alegada excepção de compensação, não deu cumprimento à disposição legal que elenca os requisitos formais da dedução de um pedido reconvencional, omitindo a referência expressa e separada à reconvenção no articulado da sua contestação, o tribunal a quo convidou-a suprir a imprecisão detectada, ao abrigo do disposto nos artigos 590.º, n.ºs 2, al. b), e 4, e 583.º, n.º 1, do CPC.
A ré acedeu a este convite, apresentando nova contestação, onde deduziu separadamente reconvenção, pedindo se reconheça o crédito da B... sobre a A..., no valor de 17,275.30 €, acrescido de juros de mora, se declare que o crédito invocado por esta está extinto pela compensação e pagamento realizados, se condene a A... a pagar à B... o valor dos juros que se venceram sobre a divida de capital de 17.275,30 € entre a data da sub-rogação e a data da compensação, à taxa de 5%, referente à parte que excede o crédito indevido peticionado pela A... nos presentes autos ou, subsidiariamente, se condene a A... a pagar à B... o valor de 17,275.30 €, acrescido dos juros pelo atraso de pagamento, entre a data da sub-rogação e a data de pagamento, à taxa de 5%.
A autora reconvinda replicou, reiterando a posição que assumiu na resposta às excepções alegadas na primitiva contestação e pugnando pela improcedência do pedido reconvencional. Para o caso de vir a ser declarada procedente a excepção de litispendência que invocou na acção que a aqui ré moveu contra si, requereu a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros C..., com quem havia celebrado um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, para cobertura dos riscos inerentes à sua atividade, e a intervenção acessória da sociedade D..., Lda., que a reconvinda contratou, em nome e por conta da reconvinte, para realizar o transporte da mercadoria de onde emergem os prejuízos que fundamentam o pedido reconvencional e contra a qual a primeira terá direito de regresso em caso de procedência deste pedido.
Por despacho proferido em 20.01.2025, o Tribunal a quo admitiu a redução do pedido, não admitiu a reconvenção e indeferiu o pedido de apensação das acções.

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Inconformada, a reconvinte apelou desta decisão, concluindo assim a sua alegação:
(…)
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A recorrida respondeu à alegação da recorrente, concluindo assim essa resposta:
(…)
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II. Questão prévia
A recorrente entende que o presente recurso não é admissível à luz do disposto no artigo 644.º, n.º 1, al. b), do CPC. Alega que o despacho recorrido não assume a natureza jurídica de despacho saneador, não põe termo à causa, não é de mérito, nem absolve da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou a alguns dos pedidos, parecendo equipará-lo às decisões que julgam improcedentes excepções dilatórias. Conclui que aquele despacho não é passível de apelação autónoma.
Para o caso de assim não se entender, afirma que ao despacho recorrido sempre seria aplicável o disposto no artigo 644.º, n.º 2, al. d), do CPC, uma vez que a reconvenção não é um pedido, mas sim um articulado, pelo que o prazo de recurso era de 15 e não de 30 dias, sendo extemporânea a apelação deduzida.
Nenhum destes argumentos procede.
Na ausência de apreciação liminar da reconvenção, o despacho em que o tribunal aprecia a sua admissibilidade integra o saneamento do processo, que tem necessariamente lugar depois de finda a fase dos articulados. É, precisamente, essa a natureza jurídica daquele despacho, independentemente do nomen juris que o tribunal ou as partes lhe atribuam, sendo igualmente irrelevante que o Tribunal a quo tenha optado por dispersar o saneamento do processo por diversos despachos. De resto, o próprio artigo 595.º, n.º 1, al. a), do CPC erige como primeira finalidade do despacho saneador o conhecimento das excepções dilatórias, entre as quais se inclui a inadmissibilidade da reconvenção (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2019, p. 305). Assim, ainda que aquele despacho tivesse julgado improcedente esta excepção dilatória – o que, manifestamente, não sucedeu no caso concreto –, o mesmo continuaria a ter a natureza jurídica de despacho saneador.
Questão distinta é a da admissibilidade de apelação autónoma de tal despacho, que o artigo 644.º do CPP cinge aos casos em que o despacho saneador ponha termo à causa (n.º 1, al. a)) e àqueles em que, sem lhe pôr termo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos (n.º 1, al. b)).
No caso concreto, o despacho recorrido rejeitou a reconvenção, por não estar verificado um dos pressupostos da admissibilidade da compensação pedida por aquela via. Embora sem o afirmar de modo explícito, afigura-se claro o tribunal a quo quis julgar inadmissível a reconvenção deduzida. Nestes termos, embora não conheça do mérito da causa nem lhe ponha termo, é inquestionável que o despacho recorrido julga procedente uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito do pedido reconvencional (cfr. artigo 576.º, n.º 2, do CPC) e tem como consequência a absolvição do autor da instância quanto ao pedido reconvencional contra si deduzido.
Ora, tanto a doutrina como a jurisprudência têm entendido de forma pacífica que a decisão que julga inadmissível a reconvenção se enquadra na previsão do artigo 644.º, n.º 1, do CPC, não sendo afirmado o contrário na obra de Abrantes Geraldes ou nos acórdãos da Relação de Coimbra e da Relação de Évora citados pela recorrida. O que aí se afirma é que não se enquadram naquela previsão legal as decisões que julguem improcedentes excepções dilatórias, dando como exemplo a decisão que declare a admissibilidade da reconvenção, ou seja, que julgue improcedente a excepção de inadmissibilidade da reconvenção, pois tais decisões não põem termo ao processo, não decidem do mérito da causa nem absolvem da instância. O mesmo não sucede com as decisões que julguem procedentes excepções dilatórias, como a decisão recorrida, claramente enquadráveis na previsão do artigo 644.º, n.º 1, al. b), do CPC. Isto mesmo é afirmado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (cit., p. 305), sem qualquer hesitação: «A decisão que absolva o autor da instância reconvencional é suscetível de recurso de apelação, nos termos do artigo 644.º, n.º 1, al. b) (interpretando a alusão ao réu como referida ao autor/reconvindo)».
A solução não será diferente se entendermos que o despacho recorrido quis julgar manifestamente improcedente o pedido reconvencional e absolver a reconvindo desse pedido, por falta de compensabilidade do contra crédito invocado pela reconvinte, ou seja, por não estar verificado um dos pressupostos materiais da compensação em que se funda o pedido reconvencional. Nesse caso, teríamos de concluir que o despacho conheceu do mérito da causa, sem lhe pôr termo, pelo que seria igualmente subsumível na previsão do artigo 644.º, n.º 1, al. b), do CPC.
Do exposto já decorre não ser aqui aplicável o disposto no artigo 644.º, n.º 2, al. d), pois não está em causa a rejeição de um articulado mas, como vimos, a absolvição do autor (da instância ou do pedido, nos termos expostos) quanto ao pedido reconvencional. De resto, nem sequer se vislumbra como se possa negar que a reconvenção corresponde a um pedido deduzido pelo réu contra o autor, naturalmente assente numa causa de pedir, que por força da lei deve ser expressamente identificada e deduzida separadamente no articulado da contestação (cfr. artigo 583.º, n.º 1, do CPC).
Pelas razões expostas, não restam dúvidas sobre a admissibilidade e sobre a tempestividade da apelação, improcedendo a argumentação aduzida pela recorrida em sentido contrário.
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III. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, importa decidir se estão verificados os pressupostos de admissibilidade da reconvenção deduzida pela ré e da apensação de acções requerida pela mesma.
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A reconvenção é comummente descrita como uma “acção cruzada” do réu contra o autor, sujeita a determinados requisitos materiais e formais, regulados no artigo 266.º do CPC. Apesar do seu interesse operativo, este conceito é meramente descritivo não evidencia a natureza da reconvenção, que, na sua essência, é ainda um tipo de defesa, ainda que por contra-ataque. Cremos ser esta concepção da reconvenção como meio de defesa que, verdadeiramente, molda os requisitos materiais e formais da sua admissibilidade.
Assim se compreende que, embora deva ser expressamente identificada e deduzida separadamente, a reconvenção tenha de ser deduzida na contestação, como preceitua o artigo 583.º do CPC, o que está em consonância com o princípio da concentração da defesa na contestação, consagrado no artigo 573.º do CPC relativamente à defesa por impugnação e por excepção. Importa, contudo, deixar claro que existe uma diferença substancial entre a oportunidade da defesa por impugnação e excepção e a oportunidade da reconvenção: no primeiro caso, o princípio da concentração tem como corolário o princípio da preclusão, ao contrário do que sucede com a reconvenção, que, em princípio, é facultativa, podendo o direito em causa ser exercido numa acção autónoma.
Os requisitos materiais de admissibilidade da reconvenção estão enumerados nas diversas alíneas no n.º 2, do artigo 266.º, do CPC, tendo como denominador comum a exigência de determinada conexão com a relação jurídica invocada pelo autor.
Nos termos do disposto na al. c), a reconvenção é admissível quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.
A compensação está regulada nos artigos 847.º e seguintes do Código Civil (CC).
Nos termos do n.º 1, do artigo 847.º, quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor. A compensação é, portanto, um meio de o devedor se livrar de determinada obrigação, por via da extinção simultânea do crédito de que disponha sobre o seu credor. Traduz-se num encontro de contas, que tem por finalidade evitar pagamentos recíprocos, ou seja, dispensar o devedor de pagar ao credor que é, ao mesmo tempo, seu devedor. A compensação é, assim, uma causa de extinção de obrigações, quando o devedor também dispõe de um crédito sobre o seu credor.
Mas para que esta causa de extinção possa operar, a lei exige a verificação cumulativa dos diversos requisitos enunciados nos artigos 847.º e seguintes do CC, a saber: que os créditos sejam recíprocos; que o crédito do autor da compensação seja exigível judicialmente e não proceda contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; que as duas obrigações tenham por objecto prestações fungíveis e homogéneas; que a compensação não seja excluída pela lei; que seja declarada a vontade de compensar.
No caso concreto discute-se apenas o requisito da exigibilidade da obrigação, pelo que não nos ocuparemos aqui dos demais.
Uma corrente jurisprudencial – que cremos ser hoje minoritária – defende que apenas se considera judicialmente exigível o crédito que já esteja reconhecido por decisão judicial e cujo credor esteja em condições de obter a sua realização coactiva, por via da respectiva acção executiva.
Não podemos concordar com esta interpretação da norma do artigo 847.º, n.º 1, al. a), do CC.
Ser exigível judicialmente não é sinónimo de estar judicialmente reconhecido, nem pressupõe a existência de um título executivo que constitua ou ateste a constituição do crédito em causa. Como decorre da conjugação do artigo 847.º com o artigo 817.º, ambos do CC, pressupõe apenas que o crédito decorra de uma obrigação civil, vencida, incumprida e não extinta. Dito de outro modo, pressupõe que seja certo, seguro e não meramente hipotético ou eventual; que não seja uma mera expectativa (cfr. ac. do STJ, de 01.07.2014, proc. n.º 11148/12.9YIPRT-A.L1.S1, rel. Paulo Sá); em suma, que dê direito à ação de cumprimento e à execução do património do devedor.
Neste sentido, Menezes Cordeiro (Da Compensação no Direito Civil e no Direito Bancário, pp. 113-116), citado no ac. do STJ, de 11.07.2019 (proc. n.º 1664/16.9T8OER-A.L1.S1, rel. Bernardo Domingos), afirma que «[a] exigibilidade judicial de que trata a norma em análise significa, pois, que o crédito oposto pelo compensante ao seu credor esteja vencido. (…) No fundo, ela traduz a necessidade de que os créditos em presença possam ser cumpridos. Quanto ao crédito activo, isso implica: - que seja válido e eficaz; que não seja produto de obrigação natural; que não esteja pendente de prazo ou de condição; que não seja detido por nenhuma excepção; que possa ser judicialmente actuado; que se possa extinguir por vontade do próprio […]».
Acrescenta-se no mesmo acórdão, citando-se diversos arestos do mesmo Supremo Tribunal, que apesar de persistirem divergências na jurisprudência sobre esta questão, o STJ vem-se pronunciando maioritariamente no sentido aqui preconizado, ou seja, no sentido de que a exigibilidade judicial do crédito activo consagrada na norma em análise não significa a necessidade de prévio reconhecimento judicial desse crédito, mas apenas que o mesmo esteja em condições de ser judicialmente reconhecido, nos termos do artigo 817.º do CC.
Este reconhecimento judicial será, naturalmente, necessário para que a compensação se torne eficaz, mas nada impede que ocorra na própria acção em que é pedida a compensação.
No mesmo sentido, Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 1995, p. 202) afirma o seguinte: «Diz-se judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à acção de cumprimento e à execução do património do devedor (art. 817.º) – requisito que não se verifica nas obrigações naturais (art. 402.º), por uma razão, nem nas obrigações sob condição ou a termo, quando a condição ainda não se tenha verificado ou o prazo ainda se não tenha vencido, por outra. (…) Tão pouco procederá para o efeito um crédito contra o qual o notificado possa e queira fundadamente invocar qualquer facto que, com base no direito substantivo, conduza à improcedência definitiva da pretensão do compensante (prescrição, nulidade ou anulabilidade, por ex.) ou impeça o tribunal de julgar desde logo a pretensão como procedente (v. gr., excepção de não cumprimento do contrato; benefício da excussão, se o notificado for um simples fiador; etc.)». Assim, quando afirma que, «[p]ara que o devedor possa livrar-se da obrigação por compensação é preciso que ele possa impor nesse momento ao notificado a realização coactiva do crédito (contra-crédito) que se arroga quanto a este», o referido autor não está a cingir-se à possibilidade de executar essa dívida com base num título executivo de que já disponha, mas também à possibilidade de obter esse título numa acção declarativa.
Em suma, como se conclui no ac. do TRL, de 15.11.2012 (proc. n.º 3342/11.6YYLSB-D.L1-6, rel. Vítor Amaral), «a obrigação é judicialmente exigível quando o credor puder exigir o seu cumprimento imediato, através de acção executiva, se já estiver munido de título executivo, ou, no caso contrário, através de acção declarativa para obtenção de sentença que condene o devedor no imediato cumprimento».
Mas, como logo se alerta no mesmo acórdão, a característica da exigibilidade judicial da obrigação não pode ser vista em termos de tal modo amplos que corresponda à simples possibilidade de tal obrigação ser alegada ou pedida em processo judicial. Se assim fosse, qualquer crédito seria bom para compensação porque, exceptuadas as obrigações naturais, qualquer crédito pode ser exigido em tribunal, inclusivamente os créditos inexigíveis, como resulta do disposto no artigo 610.º do CPC.
A respeito da delimitação deste conceito de “crédito exigível judicialmente”, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vil. II, 3.ª ed., Coimbra, 1986, p. 136) afirmavam o seguinte: «A necessidade de a dívida compensatória ser exigível no momento em que a compensação é invocada afasta, por sua vez, a possibilidade de, em acção de condenação pendente, o demandado alegar como compensação o crédito de indemnização que se arrogue contra o demandante, com base em facto ilícito extracontratual a este imputado, enquanto não houver decisão ou declaração que reconheça a responsabilidade civil do arguido. Embora a dívida retroaja neste caso os seus efeitos ao momento da prática do facto, ela não é obviamente exigível enquanto não estiver reconhecida a sua existência».
Em linha com este pensamento, uma parte significativa da jurisprudência vem afirmando que, embora a impugnação do contra crédito e a inexistência do seu reconhecimento judicial não impeçam, por regra, a invocação da compensação, esta só será possível se aquele contra crédito for certo e seguro, não podendo ser meramente hipotético ou eventual, como sucede nas situações em que a própria existência desse contra crédito está dependente de uma prévia decisão judicial que a declare. É o que ocorre com os créditos indemnizatórios emergentes de responsabilidade civil extracontratual a que se referem os autores antes citados. Mas a situação não é distinta quando está em causa a obrigação de indemnizar os danos decorrentes da violação de um contrato, pois nestes casos continua a estar em causa uma obrigação de indemnizar que, não sendo reconhecida, dependente de uma prévia decisão judicial, e não uma obrigação contratual de prestar.
Como se refere no ac. do TRG, de 22.09.2022 (proc. n.º 242/22.8T8VCT-A.G1, rel. Vera Sottomayor), «neste contexto não podemos considerar o contra crédito compensatório de exigível no momento em que a compensação é invocada, já que a obrigação de indemnizar não tem real existência e por isso não é exigível, enquanto não for proferida decisão judicial que reconheça a existência da responsabilidade civil, que no caso é a fonte da obrigação, o que implica a apreciação e análise de diversos factos que constituem o pressuposto dessa responsabilidade. Estamos assim perante um crédito inseguro e incerto, que não pode deixar de ser considerado de mera expectativa ou um crédito hipotético, que não dá direito a quem o invoca de obter a respectiva compensação».
Só não será assim, naturalmente, se o credor do autor da compensação aceitar a existência da referida obrigação de indemnizar, pois nesse caso o contra crédito deixa de ser hipotético, para passar a ser certo e seguro.
Neste sentido (embora abordando apenas a questão da admissibilidade da invocação da compensação, por via de excepção, em sede de embargos de executado, onde, obviamente, não é admissível a dedução de reconvenção), afirma-se no já citado ac. do TRL de 15.11.2012 que «quer nos casos em que o contra-crédito já foi invocado – e está a ser discutido – noutra acção judicial ainda pendente, quer naqueles em que é a própria existência desse contra-crédito que se mostra dependente de decisão judicial ainda inexistente, do que são exemplos paradigmáticos, nesta segunda vertente, os casos de créditos indemnizatórios por facto ilícito (em sede de responsabilidade civil contratual ou extracontratual), cuja existência, salvo o caso de aceitação da responsabilidade e entendimento quanto ao valor indemnizatório, sempre está dependente de decisão judicial, mediante sentença que reconheça/verifique a existência dos pressupostos da responsabilidade civil e fixe o montante indemnizatório adequado ao dano sofrido/apurado».
No mesmo sentido, escreve-se no ac. do STJ, de 01.07.2014, já antes citado, que não é judicialmente exigível o crédito que «depende de uma condenação, a proferir em processo penal, de pessoas singulares e decorrente atribuição de uma indemnização à ré, a pagar solidariamente pelos seus autores materiais, pela autora e outra pessoa colectiva, pelo deve o mesmo ser tido como incerto, hipotético, não dando direito ainda a acção de cumprimento ou à execução do património do devedor, nem habilitando, quem o invoca, a obter a respectiva compensação».
Para além da jurisprudência já citada e do acórdão do TRL, de 03.11.2010, citado na decisão recorrida e na resposta à alegação, a mesma interpretação já havia sido preconizada no ac. do STJ, de 18.12.2008 (proc. n.º 08B3884, rel. Salvador da Costa), e no ac. do TRL, de 10.12.2009 (proc. n.º 7605/08.0YIPRT.L1-7, rel. Ana Resende).
No primeiro destes arestos, tendo o autor da compensação invocado uma situação de responsabilidade civil contratual derivada da violação de uma obrigação, ou seja, «não uma obrigação de prestar, mas um dever de indemnizar», decidiu-se que «o crédito compensatório deve ser exigível no momento da invocação da compensação, pelo que não pode ser invocado em juízo, a esse título, o direito de crédito indemnizatório decorrente de responsabilidade civil enquanto não estiver judicialmente reconhecido (artigo 847º, nº 1, alínea a), do Código Civil)».
No segundo, numa situação muito semelhante à que aqui nos ocupa (a autora pediu a condenação da ré a pagar-lhe os montantes devidos pelos serviços que lhe prestou no âmbito da sua actividade transitária, tendo esta invocado a compensação com o crédito que lhe adviria de, no âmbito da realização de outro transporte, a autora não ter cumprido as obrigações contratuais a que estava vinculada no que respeitava à entrega das mercadorias, a qual apenas deveria ter sido feita mediante pagamento, pelo que, e em consequência da conduta da autora, contrária ao previamente acordado, deixou de ter assegurado o pagamento da mercadoria, que não veio a ser efectuado pelo cliente), decidiu-se que a verificação do requisito da exigibilidade da obrigação «depende de no momento em que o declarante pretende operar a compensação, esteja em condições de opor ao devedor a realização coactiva do seu crédito. Desta forma, e pese embora a natureza particular da excepção em causa não exija, necessariamente, a conexão com a relação jurídica que constitui o objecto da acção, importa que aquando da sua invocação, se consubstancie num crédito então exigível, o que não se verifica se necessitar de ser reconhecido judicialmente, como será o caso da demonstração da existência de um ilícito obrigacional, derivado da violação de um dever contratual, que importe não uma obrigação de prestar, mas a de indemnizar».
Foi este o entendimento preconizado na decisão recorrida e não vemos razões para dissentirmos de mesmo, desde logo porque não se vislumbra qualquer motivo para distinguir a exigibilidade judicial do crédito indemnizatório fundado na responsabilidade aquiliana e do crédito indemnizatório fundado na responsabilidade contratual.
Em sentido contrário, não se argumente que o artigo 853.º, n.º 1, al. a), do CC apenas excluiu da compensação os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos, mas não afastou a compensabilidade dos créditos indemnizatórios baseados em factos ilícitos negligentes.
A previsão daquele artigo 853.º, n.º 1, al. a), tem um âmbito totalmente distinto da previsão do artigo 847.º, n.º 1, al. a). Aquela não visa definir ou contribuir para a definição do conceito de exigibilidade previsto nesta. Visa apenas evitar que o devedor se aproveite da compensação para remover as consequências de um ilícito doloso por si praticado. Mas não impede que os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos sejam usados para extinguir outros créditos, assim beneficiando a vítima desses factos dolosos (cfr. António Menezes Cordeiro, Da Compensação no Direito Civil e no Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 2003, p. 138; Paula Ponces Camanho, Comentário ao Código Civil, UCP Editora, Lisboa, 2024, p. 1227; Pires de Lima e Antunes Varela, cit., p. 145). Por conseguinte, a norma do artigo 853.º, n.º 1, al. a), reporta-se ao crédito exigido ao autor da compensação, ao passo que a norma do artigo 847.º, n.º 1, al. a), se reporta ao contra crédito deste.
Voltando ao caso concreto, de acordo com a jurisprudência que vimos preconizando, não subsistem dúvidas de que o crédito invocado pela ré reconvinte não é judicialmente exigível, pois estamos perante a circunstância em que a própria existência do contra crédito se mostra dependente de prévia decisão judicial que declare essa existência e o seu montante. Com efeito, está em causa a indemnização dos danos alegadamente causados na mercadoria transportada pela autora reconvinda, a pedido da ré reconvinte, em virtude da violação das instruções contratualmente estipuladas entre as partes no âmbito de uma relação negocial distinta da que fundamenta o pedido da autora. Dito de outro modo, está em causa um dever de indemnizar e não uma obrigação de prestar.
Em suma, o que o artigo 847.º, n.º 1, al. a), do CC erige como pressuposto da compensação de créditos não é que este já esteja definido judicialmente, mas que exista na esfera jurídica do compensante e seja exigível em acção de cumprimento, o que não se verifica no caso concreto, pelo que deve subsistir a conclusão da decisão recorrida de que o crédito da reconvinte não é judicialmente exigível para os efeitos daquela norma, ou seja, falta um dos pressupostos de admissibilidade da compensação exigidos pela referida disposição legal, sendo por isso inadmissível no caso vertente, o que determina a rejeição da reconvenção que visa essa compensação.
Sem prejuízo do exposto, sempre se dirá que tendo a autora sido notificada para se pronunciar sobre a reconvenção já depois de ter sido realizada a citação na acção em que a aqui reconvinte pede a condenação da aqui reconvinda a pagar-lhe a mesma indemnização, aquela reconvenção nunca poderia ser admitida, sob pena de gerar uma situação de litispendência (a este respeito, vide o ac. do TRP, de 18.06.2024, proc. n.º 918/23.2T8AMT.P1, rel. Rui Moreira). Por isso, ainda que os pressupostos de admissibilidade da reconvenção estivessem verificados, cabia à aqui ré optar por uma de duas vias: propor a acção e, eventualmente, requerer a sua apensação ou abster-se de propor a acção deduzir reconvenção. O que não pode é, como dissemos, pretender o prosseguimento da acção e da reconvenção.
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Não se verificando os pressupostos da admissibilidade da reconvenção, soçobra igualmente o pedido de apensação formulado pela recorrente.
Nos termos do artigo 267.º do CPC, «[s]e forem propostas separadamente acções que, por se verificarem os pressupostos de admissibilidade do litisconsórcio, da coligação, da oposição ou da reconvenção, pudessem ser reunidas num único processo, é ordenada a junção delas a requerimento de qualquer das partes com interesse atendível na junção, ainda que pendam em tribunais diferentes, a não ser que o estado do processo ou outra razão especial torne inconveniente a apensação».
No presente caso, na alegação de recurso, a recorrente invocou como fundamento da apensação a verificação dos pressupostos de admissibilidade da reconvenção (embora anteriormente tenha igualmente aludido à verificação dos pressupostos de admissibilidade da oposição – regulada nos artigos 333.º e seguintes do CPC –, mas sem esclarecer e sem que se consiga vislumbrar em que termos seria admissível a oposição e quem seria o terceiro interveniente).
Mas, como vimos, a verificação desses pressupostos já foi anteriormente infirmada, pelo que o pedido de apensação carece de fundamento legal.
Pelo exposto, improcede também nesta parte o recurso interposto.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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Porto, 17 de Junho de 2025
Artur Dionísio Oliveira
João Diogo Rodrigues
Alexandra Pelayo