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INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
PERDA DE INTERESSE NA PRESTAÇÃO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
IMPOSSIBILIDADE CULPOSA DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
Sumário
I – Para que se verifique uma situação de incumprimento definitivo, é necessário que o credor, em consequência da mora, perca o interesse que tinha na prestação ou que esta não seja realizada dentro do prazo que este razoavelmente tenha fixado (cfr. artigo 808.º, n.º 1, do CC). II – A perda de interesse na prestação é apreciada objectivamente (cfr. artigo 808.º, n.º 2, do CC), não se bastando com um juízo valorativo subjectivo e arbitrário do próprio credor, e corresponde ao desaparecimento da necessidade que aquela prestação visava satisfazer, ou seja, ao desaparecimento da sua utilidade. III – A interpelação admonitória referida na segunda parte daquele n.º 1 pressupõe a fixação de um prazo suplementar, que acresce ao prazo inicial para cumprimento da obrigação, quer este tenha sido fixado por acordo das partes, quer decorra da interpelação prevista no artigo 805.º do CC, pois só então a obrigação se considera vencida. IV – Tal interpelação deve conter três elementos: a intimação para o cumprimento; a fixação de um termo peremptório para esse cumprimento; a declaração admonitória de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida se não for cumprida no referido prazo. V - O artigo 801.º, n.º 1, do CC, equipara ao incumprimento culposo a impossibilidade culposa de cumprimento da obrigação, por considerar que o devedor falta culposamente ao cumprimento da obrigação se a prestação se tornou impossível por culpa sua. VI – São ainda equiparadas ao incumprimento definitivo a recusa expressa, por parte do devedor, do cumprimento da obrigação ou a adopção, pelo mesmo, de um comportamento concludente nesse sentido.
Texto Integral
Processo: 7025/24.9T8PRT.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
A..., Lda., com sede na Rua ..., ...., ... ..., ..., AA e BB, residentes na Rua ..., ... ..., intentaram a presente acção declarativa comum contra B..., Lda., com sede na Rua ..., ..., ... ..., pedindo a condenação da ré:
A) A reconhecer a resolução do contrato de prestação de serviços estabelecido com a autora A..., Lda.;
B) A pagar à autora o montante global de 71.282,69€, correspondente à soma do montante de 49.470,58 € relativo ao montante a devolver à autora, acrescido do montante de 1.812,11 € relativo ao montante dos juros de mora vencidos até à presente data e de 20.000,00 € a título de indemnização por danos patrimoniais, presentes danos patrimoniais futuros e lucros cessantes;
C) A pagar aos Autores AA e BB o montante de 5.000,00 € a título de compensação/indemnização pela afectação da sua saúde física e psicológica e necessidade de acompanhamento médico e medicamentoso adequados;
D) Ao pagamento do montante da indemnização, ainda não possível de quantificar e que será liquidado em execução de sentença, em que a Autora A..., Lda., venha a ser condenada em acção que venha a ser intentada pelo dono da obra C..., Lda.;
E) A pagar à Autora o montante dos juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.
A ré apresentou contestação, pugnando pela improcedência da acção.
Foi realizada audiência prévia, na qual, depois de frustrada a tentativa de conciliação, foi facultada aos mandatários das partes a discussão de facto e de direito da causa, tendo em vista o (já anteriormente anunciado) conhecimento do mérito total da acção em sede de despacho saneador.
Veio a ser proferido saneador sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a ré de todos os pedidos.
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Inconformada, a autora apelou desta decisão, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
(…)
Não foi apresentada resposta à alegação do recorrente.
Embora o Sr. Juiz a quo não tenha apreciado a nulidade da decisão alegada pelo recorrente, conforme determinam os artigos 617.º, n.º 1, e 641.º, n.º 1, do CPC, não se considera indispensável mandar baixar o processo para esse efeito (cfr. artigo 617.º, n.º 5, do CPC).
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II. Fundamentação
A. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
No caso concreto, no requerimento em que interpõe o recurso, a recorrente manifesta a sua discordância quando ao saneador-sentença que absolveu a ré de todos os pedidos por si formulados. Contudo, nas conclusões com que termina a sua alegação, restringe o objecto do recurso aos pedidos que formulou na petição inicial sob as alíneas A) e B), aos quais está intimamente ligado o pedido formulado na al. E), deixando de fora do objecto do recurso não apenas o pedido formulado pelos autores não recorrentes na al. C), mas também o pedido formulado pela recorrente na al. D). Tal restrição é feita de modo expresso na conclusão FFF) e está em total consonância com a argumentação desenvolvida ao longo da alegação e sintetizada nas demais conclusões.
Pelo exposto, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, importa decidir se a decisão recorrida padece de alguma das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do CPC, se a matéria de facto julgada provada deve ser ampliada, se o Tribunal a quo errou ao julgar totalmente improcedente a acção e se deve ser determinado o prosseguimento dos autos, com enunciação dos temas da prova e posterior realização de audiência de julgamento, para apreciação dos pontos A), B) e E) do pedido.
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B. Nulidade da decisão
No que concerne às nulidades da decisão invocadas pela recorrente, importa começar por recordar que a jurisprudência e a doutrina nacionais vêm alertando, de modo uniforme e insistente, para a necessidade de distinguir entre as nulidades da decisão, previstas e reguladas no artigo 615.º do CPC, e o erro de julgamento. A este respeito, afirma-se o seguinte no acórdão do STJ de 03.03.2021 (proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da origem): «Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual – nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma – ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma».
No caso concreto, a recorrente afirma que a decisão é nula por omissão de pronúncia, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, alegando que:
- «A suposta falta de interpelação admonitória e a interpretação do Meritíssimo Juiz a quo de que os factos dados como provados não constituíam fundamento para a resolução, com justa causa, do contrato de empreitada por parte da Apelante, - por não corresponderem a uma situação de ultrapassagem efectiva de um prazo essencial fixado que levasse à perda de interesse da Autora na prestação -, que serviram de fundamentação à decisão proferida no saneador-sentença, impediram, objectivamente, a apreciação e decisão sobre matéria de facto que tinha sido alegada o que faz incorrer a sentença proferida na nulidade prevista no nº 1, al. d), do artº 615º, do CPC» (cfr. conclusão VV);
- «O Meritíssimo Juiz a quo não se pronunciou - talvez devido ao erro de julgamento que o fez não dar como provados factos e documentos que o deveriam ter sido - sobre matéria de facto que tinha sido alegada, o que faz incorrer o saneador-sentença proferido na nulidade prevista no nº 1, al. d), do artº 615º, do CPC» (cfr. conclusão CCC).
O que decorre desta alegação da recorrente é, com toda a clareza, a afirmação de erros de julgamento, tanto no que concerne aos factos como ao direito, não se descrevendo ali qualquer vício formal relativo à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão. A própria recorrente o admite, ao afirmar que a falta de pronúncia quanto a determinados factos se ficou a dever a um erro de julgamento.
A recorrente afirma ainda que a decisão é nula ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, pois não refere «qual o raciocínio lógico-dedutivo seguido ou utilizado para formar ou justificar a sua decisão», como impõe o artigo 607.º, n.º 4, do CPC (cfr. conclusão DDD)
Compreende-se mal esta afirmação. Como é pacífico na jurisprudência, a nulidade prevista naquela al. b) apenas diz respeito à ausência absoluta dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito da decisão. Ora, a decisão recorrida discrimina os factos que julga provados, fundamenta este juízo na admissão de tais factos por acordo, após o que expõe os fundamentos de direito da total improcedência da acção. Não padece, assim, deste ou qualquer outro vício formal que afecte a sua estrutura ou a sua inteligibilidade, ainda que se possa discutir o seu acerto.
Pelo exposto, sem necessidade de outros desenvolvimentos ou explicitações, julgam-se improcedentes as alegadas nulidades da decisão recorrida.
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B. Os factos
1. Factos provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo Tribunal a quo:
1 – Em Maio de 2022, a C..., Lda., representada pelo seu sócio gerente, Dr. CC, adjudicou à aqui Autora a empreitada da obra designada Centro Médico ..., para a realização dos trabalhos de remodelação interior do referido centro médico, sito no Edifício ..., da cidade do Funchal.
2 – Em 15/06/2022, a Autora subempreitou na Ré os trabalhos de carpintaria conforme orçamentos juntos à p.i. como doc.s 11 a 15, pelo preço global de € 100.545,80, acrescidos de IVA à taxa legal, no total de € 123.671,33.
3 – O contrato de subempreitada não foi reduzido a escrito.
4 – Para efeito da aceitação da adjudicação da subempreitada, a Ré solicitou à Autora o pagamento antecipado do montante de € 61.835,79 (sessenta e um mil oitocentos e trinta e cinco euros e setenta e nove cêntimos), por meio do envio da respectiva factura nº FT 2021/121, daquele valor e datada de 15/06/2022.
5 – A Autora pagou à Ré o montante de € 61.835,79, relativo à factura nº FT 2021/121, daquele valor e datada de 15/06/2022, em duas prestações:
- Em 20/06/2022, o montante de € 31.835,79, por meio da transferência bancária efectuada pelo Banco 1..., com a Referência 344881137485.
- Em 21/07/2022, o montante de € 30.000,00, por meio da transferência bancária efectuada pelo Banco 1..., com a Referência 344881183075.
6 – Em 20/06/2023, os sócios da Autora (e aqui também Autores) AA e BB, enviaram ao sócio gerente da Ré, Engº. DD, o email junto como Doc. nº 10.
7 – Onde escreveram que, de acordo com a reunião efectuada nesse mesmo dia, a Ré tinha acordado em colocar na obra, até ao dia 15 de Julho de 2023, o primeiro contentor com as peças necessárias para a instalação e montagem dos armários em melamina.
8 – e a conclusão da execução dos trabalhos de carpintaria até ao dia 31 de Setembro de 2023, conforme orçamentos com as referências nºs OR 2021/48, OR 2021/49, OR 2021/52, OR 2021/53 e OR 2021/54
9 – No referido email de 20/06/2023, os sócios da Autora advertiram-na que caso persista o incumprimento dos prazos de execução da obra pela ré, “tal situação impede objectivamente a viabilidade futura dos serviços contratados por motivo alheio a nós e ao nosso cliente. C..., lda, tornando necessária, consequentemente, a devolução do valor da adjudicação. Para evitar tal situação e dar continuidade à execução da obra, pedimos a confirmação da execução desta nos termos e prazos mencionados no presente email”
10 – A Ré respondeu à Autora por email 03/07/2023, (Doc.nº 16 da p.i.), confirmando que “(…) até ao dia 25 de julho todas as melaminas dos mobiliários da clínica ... estarão prontas sendo despachadas de imediato. Os restantes materiais estarão prontos em Setembro para a conclusão dos trabalhos.”
11 – em 10/10/2023, os sócios da Autora, deslocaram-se às instalações da Ré
12 – com intenção de resolver o contrato de subempreitada celebrado e fazer cessar a respectiva prestação de serviços.
13 – Em 13/12/2023, a Autora enviou uma carta registada com AR à Ré, recebida por esta no dia seguinte, onde refere, em suma que:
- em 15/6/2022 adjudicou os trabalhos de carpintaria na Obra Centro Médico ... No Funchal pelo valor global de 123.671,33€;
- pagou metade em 20/6/2022 e 21/7/2022;
- para além do fornecimento de umas calhas, que nem sequer foram colocadas na obra, com medidas incorrectas e que tiveram que ser substituídas, bem como umas melaminas brancas para alguns interiores dos armários e montagem dos mesmos, decorrido um ano e meio da data da adjudicação nada mais V.exas. fizeram na obra.
- acresce que foram emitidas as seguintes facturas:
- FT nº 2022/5, de 23/11/2022, no valor de € 3.437,85;
- FT nº 2023/42, de 18/05/2023, no valor de € 3.126,07;
- FT nº 2023/46, de 19/05/2023, no valor de € 1.875,64;
- FT nº 2023/67, de 19/07/2023, no valor de € 16.832,55
.Tais facturas não correspondem a trabalhos ou materiais para a obra, pelo que aguarda a emissão de nota de crédito relativamente à factura 2022/5 e as restantes foram devolvidas.
Os prazos aceites por V.Exas. para a execução e conclusão da obra estão largamente ultrapassados
Face ao supra exposto, serve a presente comunicação para resolver, com justa causa e com efeitos imediatos, o contrato de subempreitada acordado para os Trabalhpos de Carpintaria na Obra Centro Médico ... no Funchal”.
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2. Ampliação da matéria de facto
Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Esta alteração compreende, naturalmente, a ampliação do acervo factual que serve de fundamento à decisão, caso o tribunal a quo não se tenha pronunciado sobre algum facto relevante para a decisão da causa que deva considerar-se provado – o que, em sede de despacho saneador, apenas poderá suceder relativamente a factos que tenham sido validamente admitidos por acordo das partes ou relativamente aos quais se tenha produzido prova plena.
No presente caso, para além de alusões genéricas e, por isso, inconsequentes à falta de impugnação, expressa ou tácita, de factos e de documentos ou de parte do teor destes (cfr. conclusões G, H e I), a recorrente alegou o seguinte:
- A ré aceitou a resolução do contrato e propôs um acerto de contas que apresentou à autora no documento n.º 17 junto à PI e que não foi impugnado, pelo que a respectiva existência e teor deveriam ter sido dados como provados (cfr. conclusão Z).
- Encontrando-se alegado e não impugnado que a ré demonstrou aceitar, ainda que tacitamente, a resolução do contrato celebrado com a autora, o Meritíssimo Juiz a quo deveria ter dado tal facto como provado e não o fez, erradamente, violando com a respectiva interpretação, o disposto no artº 217º, nº 1 (in fine) e 235º, nº 2, do Código Civil (cfr. conclusão TT).
- Tendo dado como provados os factos “por acordo”, - por aceitação e/ou falta de impugnação por parte da Ré -, o Meritíssimo Juiz a quo deveria ter aplicado o mesmo raciocínio aos outros factos (e documentos que os sustentam) que não foram impugnados pela ré, aqui apelada, designadamente, o alegado nos artigos 35º a 38º da PI, que estavam suportados no Doc. 18 da PI que não foi impugnado (cfr. conclusão ZZ).
Não assiste razão à recorrente, revelando-se totalmente acertada a decisão de não incluir do elenco dos factos provados o acordo das partes de resolução do contrato em discussão nos autos ou o teor dos documentos – ou melhor, a interpretação que a recorrente faz do teor dos documentos – juntos com a petição inicial sob os n.ºs 17 e 18.
Ainda que se aceite que a autora alegou, na petição inicial, a resolução do contrato por acordo das partes – questão a que voltaremos mais adiante – é inquestionável que a ré, na contestação, impugnou expressa e reiteradamente a existência de tal acordo, afirmando que sempre pretendeu executar e concluir a obra, que mantém esse propósito e que não aceitou a pretensão da autora de o revogar (cfr., entre outros, os artigos 21, 22, 24 e 31 da contestação).
Acresce que a existência de tal acordo também não está plenamente provada pelos documentos invocados pela recorrente.
O documento n.º 17 não está assinado nem é da autoria da ré recorrida (cfr. artigos 374.º e 376.º do Código Civil), correspondendo a um email remetido pelos autores BB e AA para um dos sócios gerentes da ré, cujo conteúdo foi expressamente impugnado no artigo 19.º da contestação.
O documento n.º 18, embora a ré reconheça a sua autoria, não se encontra assinado por esta, nem contém qualquer declaração de factos contrários aos interesses da mesma, mas apenas referências a diversos valores. Na tese da autora, a ré verteu neste documento o valor dos trabalhos que executou e o valor a devolver à primeira por força do acordo de resolução do contrato (cfr. artigos 36.º e 37.º da petição inicial). A ré impugnou expressamente esta tese (cfr. artigo 23 da contestação), esclarecendo que foram os sócios gerentes da autora que questionaram o sócio gerente da ré sobre os valores que tinha colocado em obra despesas efectuadas (cfr. artigo 20 da contestação), mais impugnando o alegado nos artigos 36 e 37 da petição inicial (cfr. artigo 23 da contestação), que a recorrente afirma estarem suportados naquele documento n.º 18.
Pelas razões expostas, improcede a pretendida ampliação da matéria de facto julgada provada.
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C. O direito
A decisão recorrida julgou ilícita a resolução do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida, por considerar que os factos alegados e os factos provados evidenciam apenas a mora da ré no cumprimento das obrigações contratualmente assumidas perante a autora, mas não demonstram o incumprimento definitivo do contrato, seja por via da interpelação admonitória, seja por via da perda de interesse da autora no cumprimento daquela obrigação.
É contra este entendimento que a recorrente se insurge, por considerar que os factos já julgados provados demonstram a conversão da mora em incumprimento definitivo por via da interpelação admonitória da ré, que a perda de interesse da recorrente no cumprimento do contrato podia e devia ter sido apurada em sede de audiência de julgamento e que foi alegado e está demonstrado que resolução do referido contrato foi aceite pela recorrida, ainda que posteriormente esta tenha negado essa aceitação.
Apreciemos cada uma destas questões. 1. O direito de resolução, regulado nos artigos 432.º e seguintes do Código Civil (CC), é um direito potestativo extintivo, dependente de um fundamento legal ou convencional. Assim, a resolução do contrato nunca é ad nutum, só se considerando legítima se estiver demonstrado o fundamento erigido na lei ou no acordo das partes como causa dessa resolução. Dito de outro modo, tem de ocorrer um facto que crie aquele direito, isto é, um facto ou uma situação a que a lei ou o próprio contrato liguem como consequência a constituição (o surgimento) desse direito potestativo.
Ao contrário do que sucede com as invalidades resultantes dos vícios genéticos ou de formação do acto ou contrato (como a nulidade e a anulabilidade), a resolução (tal como a revogação e a denúncia) deixa incólume a validade deste e aponta directamente para a relação contratual. Não obstante, na falta de disposição especial, o artigo 433.º do CC equipara-a, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do disposto nos artigos 434.º e 435.º do mesmo código. Assim, como escreve Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. II, 6.ª ed., p. 273), a «resolução é a destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato», que goza, por regra, de eficácia retroactiva (cfr. artigo 289.º do CC), salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução (cfr. artigo 434.º, n.º 1, do CC).
Nos termos dos artigos 798.º e 801.º do CC, o incumprimento culposo de uma obrigação emergente de um contrato bilateral confere ao respectivo credor o direito à resolução desse contrato (sem prejuízo do direito à indemnização), sendo certo que a culpa do devedor inadimplente se presume, nos termos do artigo 799.º do CC (cfr. J. Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Estudos em Homenagem ao Prof. J.J. Teixeira Ribeiro, Boletim da Faculdade de Direito, 1979, pp. 348 e 349).
Menezes Leitão (Direito das Obrigações, vol. II, p. 223 e segs.) descreve o incumprimento culposo «como a não realização da prestação devida, por causa imputável ao devedor, sem que se verifique qualquer causa de extinção da obrigação», em contraposição com a definição de cumprimento consagrada no artigo 762.º, n.º 1, do CC: «O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado».
A resolução do contrato com fundamento no seu incumprimento tem, portanto, de ser consequência da violação do programa negocial. Mas não é admitida sem que a mora se converta em incumprimento definitivo, seja pela interpelação admonitória, seja pela perda, objectivamente considerada, do interesse do credor, nos termos previstos no artigo 808.º, nºs 1 e 2, do CC.
Como preceitua o artigo 406.º, n.º 1, do CC, os contratos devem ser cumpridos pontualmente. Nos termos do artigo 804.º, n.º 2, do CC, «o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido». Por sua vez, o artigo 805.º, n.º 1, do mesmo diploma, estabelece que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação, se ocorrer uma das situações previstas no nº 2 da disposição legal em análise: se a obrigação tiver prazo certo, se provier de facto ilícito ou se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
Para que se verifique uma situação de incumprimento definitivo, é necessário que o credor, em consequência da mora, perca o interesse que tinha na prestação ou que esta não seja realizada dentro do prazo que este razoavelmente tenha fixado, nos termos do já citado artigo 808.º do CC, que preceitua sobre a conversão da situação de mora em não cumprimento definitivo. É «como medida complementar de justa e indispensável tutela do credor da obrigação insatisfeita» que aquela norma estabelece que, tendo o credor perdido, em consequência da mora, o interesse que tinha na prestação, ou não sendo esta realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, se considera para todos os efeitos não cumprida a obrigação (cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 118, p. 54).
A segunda parte do n.º 1 da referida disposição legal tem em vista evitar os danos que poderiam advir ao credor de uma mora perpétua do devedor, possibilitando-lhe tornar a mora em incumprimento definitivo. Assim, nos casos em que o credor ainda tem interesse na prestação (e tal interesse é apreciado objectivamente e, em rigor, significa o desaparecimento objectivo da necessidade que a prestação visava satisfazer) mas não pretende manter os seus interesses subordinados à mora do devedor, a lei põe ao seu dispor a possibilidade de converter a mora em incumprimento definitivo.
A interpelação admonitória a que se refere o segmento da norma em análise (interpelação formal dirigida ao devedor moroso e destinada a permitir ao credor pôr cobro a uma situação de mora perpétua daquele) deve «conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo» (Baptista Machado, cit., pp. 382 e 383).
O artigo 801.º, n.º 1, do CC, equipara ao incumprimento culposo a impossibilidade culposa de cumprimento da obrigação. Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., p. 59), a regra desta norma «constitui uma aplicação do princípio geral contido no artigo 798.º. O devedor falta, na verdade, culposamente ao cumprimento da obrigação, se a prestação se tornou impossível por culpa sua».
No caso vertente, dos factos julgados provados na decisão recorrida e dos próprios factos articulados pelas partes nos seus articulados parece decorrer que a obrigação contratualmente assumida pela ré começou por configurar uma obrigação pura – cuja mora depende da interpelação do devedor para cumprir (cfr. artigos 777.º e 805.º, n.º 1, do CC) – pois não consta daquela factualidade que as partes tenham estipulado, no momento em que celebraram o acordo de que emerge a obrigação em causa, um prazo certo para o seu cumprimento.
De acordo com aquela factualidade – tanto a alegada como a já julgada provada – o referido acordo foi celebrado verbalmente em 15.06.2022, mas apenas em 20.06.2023 terá sido acordado colocar na obra, até ao dia 15 de Julho de 2023, o primeiro contentor com as peças necessárias para a instalação e montagem dos armários em melamina e concluir a execução dos trabalhos de carpintaria até ao dia 31 de Setembro de 2023. Assim sendo, só então a obrigação em causa passou a poder considerar-se uma obrigação com prazo certo, cuja mora passou a dispensar a interpelação do devedor, por força do disposto no artigo 805.º, n.º 2, al. a), do CC, sendo certo que nada obstava à fixação do prazo mediante acordo posterior ao negócio constitutivo da obrigação (neste sentido, Maria Graça Trigo e Mariana Nunes Martins, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP Editora, Lisboa, 2024, p. 1129).
É certo, porém, que no email de 20.06.2023, junto como documento n.º 10 da petição inicial, cujo teor foi dado como integralmente reproduzido no artigo 10.º da petição inicial, se afirma que havia sido «apalavrado que a execução da obra teria o seu início em meados do mês de Maio de 2023» e se acrescenta que no referido dia 20.06.2023 a execução da obra ainda não tinha tido início. Mas, para além dos termos vagos em que é descrito o acordo relativo ao início da obra, não se invoca, no referido documento ou nos factos articulados pelas partes, a estipulação prévia de alguma data para conclusão da obra, ainda que por via da determinação do tempo de execução da mesma.
Em todo o caso, ainda que, em 20.06.2023, se pudesse configurar uma situação de mora quanto ao início do cumprimento da obrigação, o que resulta do documento apresentado pela autora e do alegado nos artigos 10.º a 13.º da petição inicial, é que naquela data as partes contratantes terão acordado prorrogar esse prazo de início da obra até 15 de Julho de 2023, mais acordando, pela primeira vez, um prazo certo para a conclusão da mesma obra, fixando-o em 31 de Setembro de 2023 (que deve ser lido como “30 de Setembro de 2023”, por não existir o dia 31 de Setembro). Assim, o que se infere deste documento é, quando muito, a extinção da mora ocorrida no início da execução da obra, por via da concessão de uma moratória, ou seja, por via da «celebração de um novo acordo, por meio do qual se difere para o futuro o vencimento da obrigação [de dar início à execução da obra], extinguindo a mora» (ob. cit., p. 1127), e a determinação de um prazo certo para a conclusão da mesma obra.
O que a missiva de 20.06.2023 não configura é, seguramente, uma interpelação admonitória para os efeitos do artigo 808.º, n.º 1, do CC. Nessa missiva, a autora não intima a ré a iniciar a obra até 15.07.2023 e a terminá-la até 30.09.2023 sob pena de considerar definitivamente não cumprida a obrigação. A autora limita-se a comunicar que na reunião realizada nesse dia ficou acordado que a ré colocará na obra, até ao dia 15 de Julho de 2023, o primeiro contentor com as peças necessárias para a instalação e montagem dos armários em melamina – assim prorrogando o prazo inicialmente «apalavrado» – e concluirá a execução dos trabalhos de carpintaria até ao dia 3o de Setembro de 2023.
De resto, naquele dia 20.06.2023, não se poderia falar em mora da ré quanto à conclusão da obra, pois só então foi acordado o respectivo prazo, pelo que a ré apenas de se poderia constituir em mora depois de expirado esse prazo sem que tivesse concluído a obra em causa.
Ainda que se entendesse que a missiva que vimos analisando corresponde a uma interpelação da ré para cumprir a sua obrigação nos prazos aí fixados, a mesma não poderia configuraria uma interpelação admonitória. Quando muito, poderia equacionar-se se configura uma interpelação para a constituição em mora do devedor de uma obrigação pura, nos termos previstos no artigo 805.º, n.º 1, do CC, sendo certo que os dois tipos de interpelação não se confundem.
A interpelação admonitória pressupõe a fixação de um prazo suplementar para cumprimento da obrigação, pelo que, em regra, sobrevém à constituição em mora (por alguma das vias previstas no artigo 805.º do CC, onde se inclui a fixação ou a prorrogação do prazo por acordo das partes e a interpelação cumprimento de uma obrigação pura). Tal não significa que a interpelação admonitória tenha de ser necessariamente posterior à constituição em mora. Pelo contrário, admite-se que a fixação do prazo suplementar possa ser estabelecido no próprio momento da constituição do vínculo obrigacional, com a cominação de que, findo esse prazo suplementar, a obrigação se considera definitivamente incumprida. Mas significa que o prazo suplementar deve acrescer ao prazo inicial de cumprimento da obrigação, quer este tenha sido fixado por acordo das partes, quer decorra da interpelação prevista no artigo 805.º do CC, pois só então a obrigação se considera vencida, e deve ser fixado com a cominação antes mencionada.
Ora, na missiva de 20.06.2013, a autora não fixa um prazo suplementar, que devesse acrescer aos prazos iniciais de execução da obra. Para além de prorrogar por acordo o prazo que havia sido «apalavrado» para dar início à sua execução, fixa pela primeira vez, igualmente por acordo das partes, o prazo para a conclusão da obra, ou seja, para cumprimento integral da obrigação.
Pelas razões expostas, concordamos com o tribunal a quo quando conclui que a missiva de 20.06.2023 não configura uma interpelação admonitória, passível de converter a mora da ré em incumprimento definitivo, pois naquele momento nem sequer se verificada uma situação de mora.
Em suma, ainda que os factos alegados e os factos julgados provados possam demonstrar a constituição da ré em mora (o que sempre se deveria considerar controvertido, na medida em que a ré impugnou o acordo de quaisquer prazos de execução ou conclusão da obra – cfr., entre outros, os artigos 7 e 17 da contestação – e alegou que foi a autora quem impediu a execução da obra pela autora - cfr. artigos 29 a 32 do mesmo articulado), tais factos não são passíveis de demonstrar a conversão dessa mora em incumprimento definitivo por via do mecanismo da interpelação admonitória. 2. Importa agora aferir se a autora alegou factos susceptíveis de demonstrar que o incumprimento dos prazos acordados – ou seja, a mora da ré – determinava, por si só, a perda do interesse da autora no cumprimento da respectiva obrigação da ré, assim convertendo aquela mora em incumprimento definitivo, nos termos disposto no artigo 808.º do CC.
No já referido documento n.º 10 da petição inicial, para cujo teor a petição inicial remete, a autora antecipa que a ultrapassagem dos prazos aí referidos inviabilizará o cumprimento do contrato, o que faz nos seguintes termos: «Conforme mencionado, a adjudicação prematura da obra nos dias 20 de junho e 21 de julho de 2022, deveu-se à insistência por parte da sociedade B..., Lda., em assegurar o preço das matérias primas necessárias à obra, tendo em conta as circunstâncias conjunturais que se vive atualmente (matérias primas cuja aquisição nunca nos foi dada a comprovar). Pelo exposto, declara-se desde logo que caso a mencionada situação persista, nomeadamente o incumprimento dos prazos de execução da obra por parte da sociedade B..., Lda., tal situação impede objetivamente a viabilidade futura dos serviços contratados por motivo totalmente alheio a nós e ao nosso Cliente, C..., Lda., tornando necessária, consequentemente, a devolução do valor de adjudicação. Para evitar tal situação e dar continuidade à execução da obra, pedimos a confirmação da execução desta nos termos e prazos mencionados no presente e-mail».
Desta comunicação resulta que a própria ré insistiu na adjudicação da obra com cerca de um ano de antecedência relativamente ao início previsto para o início da sua execção e no pagamento antecipado de 50% do respectivo preço (parte em 20.06.2022 e o restante em 21.07.2022), para poder adquirir as matérias primas necessárias à execução daquela obra aos preços então praticados, deste modo afastando o risco inerente à subida desses preços, que não poderia repercutir no preço a pagar pela autora, uma vez que este foi fixado a forfait.
Mas daquela comunicação não resulta, nem a autora recorrente alega, que deste circunstancialismo se possa inferir que o não cumprimento dos prazos acordados para a execução da obra importava o desaparecimento da necessidade que a prestação da ré visava satisfazer, da utilidade dessa prestação, ou seja, a perda objectiva do interesse da autora nessa prestação.
Se o preço a pagar pela autora à ré estivesse dependente da flutuação do preço das matérias primas necessárias à execução da obra, isto é, se a sua fixação tivesse em conta o preço das matérias primas à data da execução da obra, poder-se-ia equacionar se a ultrapassagem dos prazos de execução importava a perda de interesse da autora no cumprimento do contrato. Na verdade, esta perda de interesse do credor pode resultar de diversas circunstâncias, inclusivamente do prejuízo que a sua realização fora de tempo lhe poderá causar. Mas nada disto foi alegado. Como vimos, resulta dos factos alegados e provados que o preço a pagar pela autora à ré foi fixado a forfait, não dependendo da variação dos preços das matérias primas ou de quaisquer outros factores. Assim, quer a ré tenha adquirido as matérias primas antecipadamente, beneficiando dos preços praticados à data da adjudicação da obra e do adiantamento pela autora de metade do preço, quer as tenha adquirido mais tarde, mesmo que por preços superiores, quer não as tenha adquirido ainda, o preço a pagar pela autora pela execução da obra sempre seria o mesmo. Por conseguinte, a mora da ré não é passível de gerar o aumento do preço da obra a pagar pela autora, pelo que a perda do interesse desta no cumprimento da obrigação da ré não pode basear-se nesse aumento.
Pelo exposto, a afirmação, constante da missiva em análise, de que a mora da ré impede objetivamente a viabilidade futura dos serviços contratados por motivo totalmente alheio à autora e à sua cliente, dona da obra, tornando necessária a devolução do valor de adjudicação, não está aí sustentada em qualquer facto objectivo, sendo certo que o apuramento da perda de interesse na prestação não se basta com a sua afirmação em termos puramente conclusivos, ou melhor, não se basta com um juízo valorativo subjectivo e arbitrário do próprio credor, exigindo-se que decorra de factos concretos, que, no caso concreto, não foram alegados.
Resta, assim, saber se aquela a perda de interesse na prestação da ré e a consequente conversão da mora desta em incumprimento definitivo do contrato está sustentada em factos alegados no próprio articulado em que a autora expõe os fundamentos de facto e de direito do seu pedido.
A resposta é, a nosso ver, afirmativa.
Como a própria recorrente afirma na alegação de recurso, nos artigos 59.º e 60.º da petição inicial, a autora manifesta a sua indisponibilidade para receber as madeiras que não chegaram a ser colocadas na obra e que se mantêm na posse da ré, alegando que as mesmas já não têm, para si, qualquer aplicação ou utilidade. Apesar de vaga ou, mesmo, ambígua, esta afirmação pode ser interpretada num sentido que dê consistência ao que a autora havia afirmado na missiva de 20.06.2023: que o atraso na execução da obra inviabiliza a execução dos serviços acordados.
Mas a autora vai mais longe na sua alegação – embora o faça de forma algo deslocada, quando está a descrever os danos que alegadamente sofreu e irá sofrer no futuro –, afirmando nos artigos 88.º a 90.º da petição inicial que o contrato de empreitada que celebrou com a sua cliente C..., Lda. foi revogado, em virtude do atraso da execução da obra por parte da subempreiteira, aqui ré.
Para melhor esclarecimento, passamos a transcrever essa alegação (tendo sido acrescentados por nós os itálicos que sublinham algumas passagens):
«88º Atenta a culposa actuação da Ré e de que a Autora (por ser completamente alheia a tal actuação) é vítima, a Autora vê-se, neste momento e por efeito da resolução do contrato de empreitada celebrado com a sua cliente C..., Lda, na iminência ou plausível previsibilidade de vir a ser demandada por este em processo judicial, intentado para efeito da sua condenação no pagamento de uma indemnização destinada a ressarcir o C..., Lda dos prejuízos que tenha suportado, ou venha a suportar, decorrentes do atraso na execução e entrega da obra.
89º Ainda decorrente da culposa actuação da Ré (e de que a Autora é vítima) e da resolução do contrato de empreitada celebrado com a sua cliente C..., Lda, a Autora deixará de vir a beneficiar, (perdendo-as), das margens de comercialização relativas à parte da obra que está por concluir, e que neste momento também não lhe é possível determinar e quantificar.
90º Ainda como consequência da perda da C..., Lda como cliente, (que decorrerá da resolução do contrato de empreitada celebrado entre ambos), advirão à Autora futuros e previsíveis prejuízos decorrentes:
- da sua perda de credibilidade perante o C..., Lda e, consequentemente, qualquer hipótese de poder vir a reestabelecer e retomar qualquer relação comercial com ele
- ou com quaisquer parceiros do C..., Lda e/ou do Centro Médico ..., noutros projectos;
- e da negativa afectação do bom nome e imagem da Autora no mercado em que labora;
que, seguramente, se repercutirão no número de possíveis clientes e das obras que lhe pudessem vir a ser entregues e na perda das receitas e lucros que de tal actividade lhe adviriam e que, neste momento, também não lhe é possível determinar e quantificar».
Admite-se que também esta alegação possa suscitar a dúvida se a resolução do contrato de empreitada já ocorreu ou se traduz apenas um receio da autora.
Em qualquer dos casos, dada a relevância dos factos anteriormente analisados para o desfecho da acção, entendemos que o tribunal a quo estava obrigado pronunciar-se sobre eles, convidando a autora a suprir as insuficiências ou imprecisões da sua alegação, ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC, se considerasse necessário tal aperfeiçoamento, ou, julgando tal diligência dispensável, incluindo essa factualidade nos temas da prova, visto estar em oposição com a defesa, como decorre desde logo do artigo 30.º da contestação, onde a ré afirma que a autora acabou por concluir a obra.
O que ficou exposto deixa claro, a nosso ver, que o processo não permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação dos pedidos objecto deste recurso, ao abrigo do disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo. 3. Não obstante o exposto, entendemos que não fica prejudicado o conhecimento da última das questões suscitadas neste recurso, visto que a sua procedência poderá prejudicar o prosseguimento da acção para apuramento dos pressupostos legais da resolução do contrato.
Resta assim verificar se, como afirma a recorrente, foi oportunamente alegada a resolução do contrato por acordo das parte ou, melhor dizendo, a revogação do contrato por mútuo acordo, o que naturalmente dispensaria a recorrente de demonstrar o fundamento da resolução, maxime o incumprimento definitivo.
Mas a verdade é que tal acordo revogatório não foi alegado. Percorrida a alegação articulada na petição inicial, verifica-se que a autora descreve os esforços que desenvolveu no sentido de chegar a um acordo de revogação do contrato com a ré, mas descreve igualmente o insucesso dessas tentativas, que a levaram a resolver unilateralmente o contrato, por carta que remeteu à ré em 13.12.2023, onde invocou apenas a ultrapassagem dos prazos acordados.
Na verdade, a autora alega que, na sequência do atraso na execução da obra e da falta de resposta da ré às suas tentativas de contacto, os seus sócios se deslocaram às instalações da demandada com a intenção de resolver o contrato de subempreitada celebrado (cfr. artigos 30.º e 31.º), tendo aí tentado chegar a um acordo no sentido de o sócio gerente da ré apresentar o valor de todos os trabalhos executados e do material neles empregue até à data e proceder à devolução do remanescente do valor entregue com a adjudicação (cfr. artigo 34.º), e que, em nova reunião realizada no dia 16.10.2023, o referido gerente da ré apresentou aos sócios da autora o manuscrito junto como documento n.º 18, onde fixa em 25.754,99 € o montante dos trabalhos executados pela ré e em 36.080.80 € o montante a devolver à autora, mais propondo que a autora procedesse a tal devolução em quatro prestações mensais (cfr. artigos 35.º a 38.º). Mais alega que, por email de 17.10.2023, os sócios da autora apresentaram uma contraproposta, nos termos da qual o valor dos trabalhos executados pela ré ascendia a 21.590,22 €, pelo que teria de lhe ser devolvido o valor de 40.245,57 €, proposta que a ré não aceitou (cfr. artigos 39.º a 42.º). Alega ainda que tentou contactar o gerente da ré no sentido de negociar e acertar os valores propostos e contrapropostos por ambas as partes, que este não respondeu a esses contactos e que em 03.11.2023 enviou à ré uma minuta de um “contrato de revogação do contrato de subempreitada da obra Centro Médico ... no Funchal e confissão de dívida e acordo de pagamento”, mas as negociações mantiveram-se num impasse (cfr. artigos 43.º a 51.º), pelo que em 13.12.2023 a autora enviou à ré uma carta registada com AR, que esta recebeu, onde expunha os factos ocorridos desde a data da adjudicação da subempreitada, o incumprimento da ré e declarava resolvido o contrato celebrado entre ambas, tendo a ré respondido por carta de 18.12.2023, não aceitando a revogação do contrato e propondo o respectivo cumprimento em prazo a estabelecer entre ambas (cfr. artigos 52.º a 54.º).
Da alegação acabada de resumir decorre, com toda a clareza, não ter havido acordo das partes no sentido de revogar o contrato celebrado entre ambas. Deste modo, ainda que o acordo revogatório ou mútuo dissenso constitua uma forma de extinção dos contratos, prevista no artigo 406.º do CC enquanto corolário do princípio da autonomia privada, que se aproxima da resolução quando tem efeitos retroactivos, os pedidos em apreciação não se podem basear num acordo revogatório que não foi alegado.
Do que fica exposto também já decorre que os factos alegados pela autora não revelam ter havido por parte da ré uma declaração expressa de que não iria cumprir o contrato ou um comportamento concludente da vontade de não o cumprir, situações que, pacificamente, são equiparadas ao incumprimento definitivo do contrato e, por isso, são passíveis de fundamentar a resolução do contrato. Pelo contrário, o que resulta da alegação da autora (e é corroborado pela alegação da ré) é que esta sempre manifestou o seu interesse em cumprir o contrato celebrado entre as partes. 4. Pelas razões antes expostas, o estado do processo não permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação dos pedidos objecto deste recurso, pelo que se impõe revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos, nos termos previstos nos artigos 596.º e seguintes do CPC, sem prejuízo do recurso ao mecanismo previsto no artigo 590.º, n.º 2, al. b), e n.º 4, do CPC, se tal for julgado pertinente.
Na procedência da apelação, as respectivas custas são suportadas pela recorrida, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, os juízes do Tribunal da Relação do Porto revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos, nos termos previstos nos artigos 596.º e seguintes do CPC.