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CULPA
LIBERDADE CONDICIONAL
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Sumário
Não são considerações de culpa que interferem na decisão que se tome quanto ao estatuto de liberdade condicional a conceder, ou concedido, mas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no referido instituto da liberdade condicional, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.
Texto Integral
Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
Pelo Tribunal de Execução de Penas de Lisboa – J1 foi proferida Sentença em 20.03.2025 que decidiu do seguinte modo: (…) Pelo exposto, tudo visto e ponderado, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, decide-se: A) Não conceder a liberdade condicional ao recluso AA. (…)
O arguido, não se conformando com a decisão, veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões por sumula: (…) A) O Recorrente encontra-se a cumprir uma pena única de 5 anos e 3 meses de prisão, dos quais, neste momento, estão já cumpridos, 2 anos e 10 meses de prisão. B) Nos presentes autos, está em causa a apreciação da eventual concessão de liberdade condicional, relativamente ao meio da pena. C) O meio da pena foi atingido em 30/01/2025. D) Impugna-se o facto constante do ponto 9, uma vez que, aqui se refere que o Recorrente está inativo. E) Impõe prova diversa da decisão recorrida, o teor do relatório remetido pela DGRSP inserido no CITIUS em 25/01/2025, com a referência 2049208, onde se lê, no ponto 4 que o Recorrente exerce atividade laboral. F) O Recorrente não tem, ainda, a sua situação regularizada, mas é progenitor de um filho menor de nacionalidade portuguesa, sobre o qual exerce responsabilidades parentais e para cujo sustento sempre contribuiu, o que determina que esteja abrangido pelo art.º 122.º, n.º 1, al. k), da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, além de que, pelos mesmos fundamentos, não pode ser expulso de território nacional. G) O Recorrente foi detido em 14/04/2021, libertado em 14/04/2023, por excesso de prisão preventiva e após trânsito da decisão, apresentou-se no EP de ..., para cumprimento do remanescente da pena, como avulta do teor do “Auto de Apresentação Voluntária”, junto aos autos, em 18/06/2024. H) O Recorrente assume um comportamento normativo no EP e assumiu o mesmo comportamento enquanto esteve em liberdade, mais de um ano, a aguardar o trânsito da decisão condenatória. I) Conforme consta da decisão recorrida, “(…) o Conselho Técnico, o qual emitiu, por maioria (com voto contra da equipa do IRS), parecer favorável à concessão da liberdade condicional (…)” J) O Tribunal a quo, relativamente a outro condenado nos mesmos autos, pela prática do mesmo crime, de tráfico de estupefacientes, em pena até superior, de 5 anos e 6 meses e apenas 4 dias depois da data da decisão recorrida, decidiu pela concessão da liberdade condicional, e bem, como avulta da decisão junta como doc.1. K) A “expectativa que a comunidade deposita no funcionamento do sistema penal”, passa também por uma expetativa de equidade das decisões judiciais e compreensão das mesmas. L) O mero chavão de “falta de interiorização suficiente do desvalor da conduta”, não é apto a tornar percetível para a comunidade em geral, porque razão se liberta condicionalmente um condenado numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão e não se liberta o outro condenado, no mesmo processo e pelo mesmo crime, numa pena até menor, de 5 anos e 3 meses de prisão. M) Também não é percetível para a comunidade que, relativamente ao Recorrente, se realce a natureza nefasta do crime de tráfico de estupefacientes, no sentido de merecer uma particular censura, enquanto que, relativamente ao outro condenado, e bem, não se adote o mesmo tipo de raciocínio e fundamentação. N) O Recorrente não tem antecedentes criminais, assume os crimes, bem como, a gravidade e a ilicitude da conduta, demonstra progressiva capacidade autocrítica e arrependimento. O) Em reclusão, o Recorrente tem evidenciado capacidade de estabelecimento de relações interpessoais assertivas, cumprindo com as regras instituídas. P) O Recorrente apresenta reflexão sobre o passado com interiorização do carácter erróneo da atuação ilícita, que motivou o cumprimento de pena e assumindo, desde sempre, uma conduta regular e conforme às normas existentes sem adoção de comportamentos indevidos ou desviantes. Q) O Recorrente ostenta ainda outros indicadores positivos em matéria de ressocialização, nomeadamente, uma retaguarda familiar. R) O Recorrente está laboralmente ativo em meio prisional. S) O Recorrente já beneficiou de medidas de flexibilização da pena, com sucesso. T) O Recorrente perspetiva a sua integração laboral, em meio livre, no setor da indústria de transformação alimentar ou na construção civil. U) O Recorrente cumpre todos os pressupostos de natureza formal, para a concessão da liberdade condicional. V) O percurso do Recorrente determina que tem condições para beneficiar de um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro, quando colocado em liberdade, o qual assenta, de forma determinante, numa apreciação sobre a evolução, que é favorável, da sua personalidade durante o tempo de execução da prisão. W) No presente caso, a libertação antecipada do Recorrente, não está noticiada como causadora de perturbação na comunidade de acolhimento, nem viola de algum modo o princípio de defesa dos valores societários que impuseram a fixação e a execução da pena, no fundo, as finais exigências de ordem, tranquilidade e paz públicas. X) Os elementos constantes dos autos determinam a formulação de um juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do Recorrente na sociedade, ou seja, sobre o seu impacto nas exigências de ordem e paz social. Y) Tendo em conta a pena de prisão em causa, certo é que faltam pouco mais de 6 meses para que se atinja o marco de 2/3, onde a valoração das exigências de prevenção geral, deixam de ter relevância, sendo as exigências de prevenção especial que assumem um caráter fundamental. Z) Em face de tudo o que se mostra provado nos autos, forçoso é concluir pela concessão da liberdade condicional ao Recorrente, sujeita a obrigações e regras de conduta a cumprir pelo mesmo, convenientes e adequadas à realização das finalidades específicas da liberdade condicional e ponderadas de acordo com a sua situação pessoal e social. AA) Em suma, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou, por erro de interpretação, o disposto no art.º 61.º, n.ºs 1 e 2, do CP. NESTES TERMOS e nos mais e melhores de direito, que V. Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, com todas as legais consequências. (…)
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou Resposta, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo abreviadamente que: (…) - O ponto 9 da decisão recorrida está correto em face do Conselho Técnico e da ficha biográfica, pese embora e em desconformidade com o relatório da DGRSP, pelo que a valoração dos factos dados como assentes está correcta, nada havendo a corrigir neste particular na decisão recorrida. - O recorrente cumpre a pena de 5 anos e 3 meses à ordem do processo n.º 16/20.0GALLE do Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Central Criminal de Faro - Juiz 1, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelos arts. 14º e 26º do Cod. Penal e 21º, n.º 1 do DL 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I_B anexa. - Está em reclusão desde 18-6-2024. - O 1/2 da pena foi atingido em 30-01-2025, os 2/3 da pena irão ser atingidos em 15-12- 2025 e o termo da pena em 16-09-2027. - O conselho técnico, por maioria, deu parecer favorável à liberdade condicional. - O recluso deu o seu consentimento à aplicação da liberdade condicional. - No caso, tem apoio no exterior, ainda que pouco consolidado ( pretende integrar o agregado familiar de uma prima, que reside na ..., mas pretende ir trabalhar para a cidade de ..., mas não possui qualquer garantia de empregabilidade) e pese adopte um discurso de arrependimento e direccionado para o cumprimento das normas institucionais no futuro, o seu discurso patenteia dificuldade ao nível do pensamento alternativo e consequencial e não aborda eventuais consequências do seu comportamento para as vítimas nem para a sociedade em geral; ainda evidencia défice de consciência crítica sobre os seus comportamentos ilícitos, desculpabiliza-se com fatores externos, centra os efeitos negativos da reclusão na sua esfera pessoal, indiferente aos danos causados a terceiros. - primário em reclusão, mantém uma conduta adequada, sem infrações disciplinares, - tendo sofrido ainda prisão preventiva (no âmbito da qual inexiste tratamento penitenciário), ficou em liberdade por haver sido excedido o prazo e após apresentou-se voluntariamente no EP de ..., em 18 de junho de 2024. - Carece de evolução no sentido de interiorizar o sentido da pena e a gravidade das suas condutas, por forma a ser colocado em medidas de flexibilização da pena e aproveitar o tratamento penitenciário. - Por outro lado, as exigências de prevenção geral subsistem na situação em apreço. - A especificidade da situação jurídica do recluso também reforça o entendimento da existência de elevadas exigências de prevenção geral a acautelar. - É certo que no processo 136/21.4TXEVR-C, foi concedida a liberdade condicional, por referência a ½ da pena, a cidadão que praticou o mesmo tipo de ilícito, sucede porém que a evolução e o tratamento penitenciário surtiram neste efeito diverso, já que o recluso nesses autos assumiu a prática ilícita, verbalizando arrependimento, apresentando maior consciência crítica face aos comportamentos praticados, assim como empatia pelas vítimas, demonstrando maior perceção dos danos provocados, apresentando uma evolução ao nível das suas competências pessoais e sociais, designadamente ao nível do pensamento consequencial e alternativo, e resolução de problemas e preso pela primeira vez conseguiu aparentemente alterar o seu percurso de vida, e evidenciando ainda um percurso positivo no E.P. aproveitando a reclusão. - No caso do recorrente, o seu discurso e comportamento prisional ainda não foram suficientemente reflexivos de forma a permitir colocá-lo (à data da apreciação da liberdade condicional) a trabalhar no EP e de revelar abertura ao tratamento penitenciário de tal sorte que o juízo de prognose seja favorável e que as exigências de prevenção geral se atenuem pelo comportamento prisional assumido pelo recorrente em face às exigências de prevenção geral. - O que motivou a existência de decisões diversas, porquanto os reclusos em apreço estão em circunstâncias diversas; tratar-se-ão de formas de estar diversas, perante a prática dos factos ilícitos e o percurso prisional, com o tratamento penitenciário realizado; em termos de exigência de prevenção geral, a sociedade aceitará com maior naturalidade recluso que de forma sincera reconhece o erro, que tomou consciência de que em reclusão estava a perder a sua vida e que, em prisão, assumiu comportamentos conformes ao direito e à sua ressocialização. - O recorrente carece ainda de desenvolver a sua atitude crítica de modo a criar condições internas que potenciem a necessária alteração comportamental, sendo indispensável que continue a ser sujeito a intervenção técnica que permita o desenvolvimento da sua capacidade critica e de descentração, de modo a criar condições internas que potenciem a necessária alteração comportamental, sensibilizando-o de molde a prevenir comportamentos de idêntica natureza e a sentir a gravidade da sua conduta desviante. - Cremos ser patente não estar no caso concreto suficientemente acautelada a “defesa da ordem jurídica”, concluindo que a libertação do condenado não é, nesta fase, compatível com a defesa da ordem jurídica. - Deve manter-se a decisão recorrida. DEVE ASSIM NEGAR-SE PROCEDÊNCIA AO RECURSO E, CONSEQUENTEMENTE, MANTER A DECISÃO RECORRIDA, UMA VEZ QUE SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA (…)
O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido, com subida e efeitos adequados.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
Atento a que renovou os argumentos da resposta em primeira instância e da própria decisão recorrida, prescinde-se do cumprimento do disposto no artº 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal.
Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
As questões fixadas aqui prendem-se com o juízo feito sobre a não verificação dos pressupostos de concessão da liberdade condicional (LC) ao arguido.
Fundamentação
Na decisão de que se recorre, foi considerada a seguinte matéria relevante: (…) 1. O recluso encontra-se a cumprir a pena de 5 anos e 3 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes (proc. 16/20.0GALLE). 2. Não tem outras condenações averbadas no CRC. 3. O recluso atingiu o marco de ½ da pena em 30/01/2025, sendo que os 2/3 da pena estão definidos por reporte a 15/12/2025 e o termo encontra-se previsto para 16/09/2027. 4. É a sua primeira reclusão. 5. Até ao presente momento, o recluso beneficiou de uma licença de saída jurisdicional. 6. Em relação ao seu enquadramento familiar, o pretende integrar o agregado familiar de uma prima, que é composto pela própria, pelo companheiro desta e um descendente do casal, ainda que o companheiro da prima se encontra em ... emigrado, por motivos profissionais. 7. O recluso expressa a possibilidade de trabalhar numa … ou na … numa empresa em ... (dando preferência a esta última possibilidade, pese embora a distância entre a casa da prima onde primeiramente expressou que pretende residir – na ... – referindo que a empresa também tem uma casa para trabalhadores onde pode ficar a pernoitar). 8. O recluso não tem a sua situação de permanência no país regularizada, mencionando que tem agendada uma reunião para o efeito no dia 15/04/2025 (sem que, contudo, tenha feito prova do aludido agendamento). 9. Não regista infrações disciplinares no EP estando, no entanto, inativo. 10. Em relação ao crime cometido, o recluso expressa um arrependimento de cariz autocentrado focando nas consequências que a reclusão trouxe para si e para os seus familiares, sem nunca mencionar o impacto do crime para as vítimas/consumidores, justificando a sua conduta por dificuldades financeiras que atravessava na altura. (…)
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto do seguinte modo: (…) A convicção do Tribunal no que respeita à matéria de facto resultou da ponderação de todos os elementos constantes dos autos, mais precisamente decisão condenatória à ordem da qual o recluso se encontra a cumprir pena, ficha biográfica devidamente atualizada e carreada aos autos em momento prévio à realização do conselho técnico, certificado de registo criminal do recluso, relatórios juntos aos autos pelos serviços de tratamento penitenciário e pela equipa de reinserção social da DGRSP (com exclusão das considerações conclusivas), em consonância com os esclarecimentos prestados em conselho técnico e as declarações prestadas pelo recluso. (…)
Concretamente na matéria de direito, fundamentou: (…) A liberdade condicional traduz-se numa fase de transição entre a reclusão e a liberdade, correspondendo, desejavelmente, à última fase de execução da pena. A finalidade subjacente à sua existência prende-se com a necessidade de ressocialização do recluso (cfr. artigo 42.º, n.º 1 do Código Penal) e ocorre num momento do seu percurso penitencial em que se justifica, mediante a verificação dos respetivos pressupostos formais e materiais, o fim da reclusão em estabelecimento prisional. Assim, a liberdade condicional tem como objetivo “criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão” (in O Código Penal, de Leal-Henriques e Simas Santos, Vol. I, págs. 336 e 337). Pelo exposto, o legislador concebeu este instituto jurídico não como uma recompensa por boa conduta prisional, mas sim como um auxílio e incentivo ao condenado que lhe permita uma adaptação gradual à nova realidade e a consequente adequação da sua conduta aos padrões sociais vigentes (vd. nomeadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/02/2018, proc.º 300/11.4TXCBR-J.C1, Rel. Vasques Osório). A liberdade condicional requer um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do recluso em liberdade, sendo esse juízo efetuado com base nos seguintes pressupostos cumulativos. – Pressupostos de natureza formal: i) O consentimento do condenado (cfr. artigo 61.º, n.º 1 do Código Penal); ii) O cumprimento metade da pena com o mínimo absoluto de seis meses; iii) O cumprimento de 1/2, 2/3 ou 5/6 da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas; – Pressupostos de natureza material: i) O juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade, fazendo-se apelo às perspetivas de ressocialização e consciencialização para a não reincidência sob o prisma da prevenção especial de acordo com as circunstâncias do caso em concreto, nomeadamente os antecedentes, percurso evolutivo durante a execução da pena em contexto prisional e a personalidade (cfr. artigo 61.º, n.º 2, al. a) do Código Penal); ii) O juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade (prevenção geral positiva), dito de outro modo, sobre o seu impacto nas exigências de ordem e paz social (cfr. artigo 61.º, n.º 2, al. b) do Código Penal), sendo este pressuposto apenas aplicável na apreciação da concessão da liberdade condicional a meio da pena (cfr. artigo 61.º, n.º 3 do Código Penal a contrario sensu). Cumpre ainda referir que, nos casos em que a pena de prisão seja superior a seis anos, o condenado é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena (cfr. artigo 61.º, n.º 4 do Código Penal). A liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena (cfr. artigo 61.º, n.º 5 do Código Penal). Feito o devido enquadramento, volvendo ao caso em apreço verifica-se que os requisitos formais estão preenchidos, porquanto o recluso está preso há mais de seis meses e já alcançou o marco do meio da pena, mais tendo declarado que consente na concessão da liberdade condicional. Por sua vez, na aferição dos pressupostos materiais, não é possível, nesta fase, ao tribunal, pese embora o comportamento em contexto prisional adequado do recluso, formular um juízo de prognose favorável no sentido de que o mesmo irá, de futuro, após colocado em situação de liberdade, nortear a sua vida de acordo com o direito. Vejamos. Conforme bem propugna o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 02/07/2024, proc. 591/20.0TXPRT-L.L1-5, Rel. Sandra Oliveira Pinto, “O pressuposto dito substancial ou material, previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal, aplicável por remissão do nº 3 do mesmo preceito legal, assegura uma finalidade de prevenção especial, de socialização. A concessão da liberdade condicional, neste caso, depende, assim, no essencial, da formulação de um juízo de prognose favorável especial-preventivamente orientado, assente na ponderação de razões de prevenção especial”. O tribunal mantém fundadas reservas na assimilação, por parte do recluso, do desvalor da sua conduta (sendo que o mesmo expressa um arrependimento de cariz autocentrado, focalizando em si os impactos negativos decorrentes do crime e o impacto que a reclusão lhe trouxe, não mencionando espontaneamente empatia ou sentimento de culpa para com as vítimas/consumidores da sua atividade criminal) e da sua capacidade de adequação ao direito, mormente quando colocado numa situação de liberdade associada à possibilidade de surgirem novas situações de carência económica (o que causou, segundo referiu o recluso, a sua incursão na prática do crime de tráfico de estupefacientes), carecendo o mesmo de consolidação no seu percurso em contexto de reclusão por forma a interiorizar o mal que o seu comportamento acarreta. Por seu turno, no que tange ao preenchimento do requisito substancial (ou material) da concessão da liberdade condicional de reporte às finalidades de prevenção geral, igualmente este se tem igualmente por inviável in casu. De facto, a prevenção geral – aquela que para o juiz é, também, um exercício de análise e ponderação sobre os fatores, níveis e exteriorizações do pulsar de coração social, do sentir coletivo e do querer comum da sociedade em cada momento, gerando, deste modo, uma necessidade de constante atualização sobre esses expressares bem como uma contínua e sólida visão do sentido de regra de experiência de vida – não está assegurada nas suas exigências no presente momento em termos de neutralização do efeito negativo do crime na comunidade, da dissuasão e do fortalecimento do seu sentimento de justiça e de confiança na validade da norma violada, considerando a natureza e gravidade do crime praticado. O legislador exige, para situações com a dos presentes autos, que a libertação do recluso se revele compatível com a defesa da ordem e paz social. Pretende-se, pois, dar ênfase à prevenção geral, traduzida na proteção dos bens jurídicos e na expectativa que a comunidade deposita no funcionamento do sistema penal. Como muito bem refere o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, pág. 540), "O reingresso do condenado no seu meio social, apenas cumprida metade da pena a que foi condenado, pode perturbar gravemente a paz social e pôr assim em causa as expectativas comunitárias na validade da norma violada". Está em causa uma tipologia de crime tipicamente associada a outras correlacionadas quer para quem trafica quer para quem consome, revelando-se um verdadeiro flagelo para a sociedade. Não se olvide que são muito elevadas as necessidades de prevenção geral que neste tipo de infração se impõe, considerando, por um lado, as proporções epidemiológicas que o consumo de estupefacientes assume na nossa sociedade e com tão gravosos efeitos no tecido social quer pela degradação da juventude, bem como da própria célula familiar, envolvendo ainda atentado e risco grave para a saúde pública e para a sociedade, severamente afetadas por esse consumo e, consequentemente, pelo tráfico que o gera, determina e amplia; por fim, os efeitos perversos das drogas, tendo-se presente, neste campo, as numerosas mortes que provoca e lançamento de muitos jovens no mundo da marginalidade, roubo, violência e prostituição. Libertando-se neste momento o recluso, face à natureza do crime, ficariam frustradas as expectativas da comunidade. A libertação antecipada não deixaria de ter reflexos negativos na comunidade, designadamente quanto à confiança na validade das normas da ordem jurídica que pelo recluso foram violadas, além de deixar a proteção dos bens jurídicos a um nível que não é comunitariamente suportável. É importante notar que o tráfico de estupefacientes é dos crimes que maior censura gera na sociedade, a qual reclama que seja combatido de forma eficaz e dissuasora. Portanto, atendendo à fase de execução da pena em que o recluso se encontra, à extensão da pena e à necessidade de validação das normas violadas que determinaram a sua condenação, entendemos que seria prematura a sua libertação neste momento. Por tais motivos, o tribunal entende que deverá o recluso continuar o cumprimento da pena em contexto prisional, por forma a fomentar o seu investimento pessoal, interiorizando o desvalor da sua conduta anterior à reclusão e traçando um plano sólido para o seu futuro pós-reclusão. Destarte, o juízo de prognose efetuado pelo tribunal é, nesta fase, desfavorável, por força das razões de prevenção geral e especial esmiuçadas supra, as quais subsistem, acompanhando-se o entendimento explanado no relatório dos serviços do IRS e o douto parecer emitido pela Digna Magistrada do Ministério Público, no sentido de que não estão reunidas condições para que seja concedida ao recluso, neste momento, a liberdade condicional. (…)
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do arguido recorrente.
Comecemos por atender aos elementos relevantes resultantes do processo1.
O arguido cumpre pena de 5 anos e 3 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes (proc. 16/20.0GALLE), que é a sua única condenação averbada no CRC.
Atingiu o marco de ½ da pena em 30/01/2025, sendo que os 2/3 da pena estão definidos por reporte a 15/12/2025 e o termo encontra-se previsto para 16/09/2027.
O Conselho Técnico, por maioria, deu parecer desfavorável à liberdade condicional, tendo sido negativo o do Ministério Público.
O recluso deu o seu consentimento à aplicação da liberdade condicional.
Dos relatórios instrutórios, bem como da audição do recluso, resulta que o mesmo apresenta atitude positiva ao nível do seu comportamento em meio prisional (sem infracções disciplinares registadas), cumpre pena em regime comum, e beneficiou, entretanto, de licença de saída, gozada sem registo de incidentes.
Como refere o Ministério Público na sua resposta ao recurso, tem apoio no exterior, ainda que pouco consolidado ( pretende integrar o agregado familiar de uma prima, que reside na ..., mas pretende ir trabalhar para a cidade de ..., mas não possui qualquer garantia de empregabilidade) e pese adopte um discurso de arrependimento e direccionado para o cumprimento das normas institucionais no futuro, o seu discurso patenteia dificuldade ao nível do pensamento alternativo e consequencial e não aborda eventuais consequências do seu comportamento para as vítimas nem para a sociedade em geral; ainda evidencia défice de consciência crítica sobre os seus comportamentos ilícitos, desculpabiliza-se com fatores externos, centra os efeitos negativos da reclusão na sua esfera pessoal, indiferente aos danos causados a terceiros.
Veja-se.
É sabido que não são considerações de culpa que interferem na decisão que se tome quanto ao estatuto de liberdade condicional a conceder, ou concedido, mas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no referido instituto da liberdade condicional, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.
Rege o art.º 61º do Cód. Penal que são pressupostos (formais) de concessão da liberdade condicional: 1 - Que o recluso tenha cumprido metade da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão, ou dois terços da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão, ou ainda 5/6 da pena, para os casos de penas superiores a 6 anos; 2 - Que aceite ser libertado condicionalmente;
E são apontados como requisitos substanciais indispensáveis:
a) Que fundadamente seja de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes;
b) Que a sua libertação se revela compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social (sendo que este requisito não se mostra necessário para os casos de liberdade condicional aquando dos 2/3, conforme resulta expressamente do disposto no n° 3 do preceito em causa).
Daqui resulta que, como se disse, o primeiro destes requisitos se prende com uma finalidade de prevenção especial, visando o segundo satisfazer exigências de prevenção geral.
Tal como se escreveu no nº 9 do Preâmbulo do DL nº 400/82 de 23.09 que aprovou o Cód. Penal de 1982, o instituto da liberdade condicional, cuja ponderação surge em contexto de cumprimento de pena privativa da liberdade, não seve ser entendida como uma «medida de clemência ou de recompensa por boa conduta», tendo antes como objectivo definidor e orientador, «o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão».
Trata-se de, julgando verificados os respectivos pressupostos, responsabilizar o libertado no esforço da sua reintegração em liberdade e, do mesmo passo, responsabilizar a sociedade no sucesso dessa reinserção de que será a sociedade também fortemente beneficiada.
Ora, na avaliação global dos elementos que a realidade fornece para ponderação da verificação dos referidos pressupostos, concluiu o Concelho Técnico que o arguido reúne os necessários predicados e entende o Ministério Público e o Tribunal que os mesmos não se encontram verificados.
Esta é a primeira reclusão do arguido.
Tem tido um percurso de evolução positiva do cumprimento de pena, não tendo relevado nenhuma infracção disciplinar no período considerado, tendo beneficiado de licença de saída jurisdicional sem incidentes que o aproximou da sua comunidade no exterior.
Mas também se ponderou o desinvestimento neste momento em reclusão sem actividade escolar ou laboral, quando se sabe que o estímulo da ocupação é um dos passos essenciais no combate ao recurso, quando em liberdade, a actos marginais, e muito embora tenha trabalhado antes.
E quanto a este ponto, ao contrário do que alega no seu recurso, consta do parecer relativo aos serviços de educação no EP que não tem actividade, o que significa que a entidade que acompanha o recluso no EP atesta essa situação, sobrepondo-se necessariamente essa conclusão à oposta que se desconhece em que dados se baseou.
Por outro lado, a ficha biográfica de recluso regista igual conclusão, tendo inscritos inclusivamente os períodos em que o arguido trabalhou, desde logo na faxina, o que não acontece neste momento.
Tal como o facto de demonstrar pouca consciência crítica face aos factos por cuja prática foi condenado, o que o arguido parece desvalorizar no seu recurso, mas constitui, de facto, o primeiro passo importante para a ressocialização – quando não se reconhece [com convicção séria de isso fazer] o desvalor das acções passadas dificilmente se viverá o futuro em prol dos valores tutelados pelas normas de protecção.
Não é, nesta fase, o umbigo de cada um que releva, o que acha, o que espera, o que avalia dos outros. É ao contrário: o que releva, numa fase em que se devolve um cidadão à comunidade exterior, é o que a comunidade pode esperar dele, porque as normas violadas no passado não servem para proteger o próprio, mas sim a toda a sociedade.
E também não é do foro pessoal e íntimo do agente sentir, ou não, a relevância negativa e o impacto do comportamento anterior na comunidade. Tanto não é do foro pessoal do agente que é a um conjunto de pessoas (desde o Concelho ao juiz e passando pelo Ministério Público, sendo que todos eles representam, no processo de LC, a comunidade) que compete avaliar as potencialidades de uma LC na vida do agente ou arguido.
É certo que a maioria do Concelho Técnico se pronunciou no sentido da concessão da LC ao arguido, apenas com a oposição da DGRSP que terá a função de o acompanhar no exterior e de tutelar a sua liberdade condicional, mas o Ministério Público e o juiz, numa dimensão que alcança maior foco do que o da transitoriedade da reclusão, persistem no entendimento de que aquela falta de interiorização do desvalor das suas condutas constituirá o verdadeiro obstáculo à sua reinserção com sucesso.
A pena que cumpre é por crime de tráfico de estupefacientes, comportamento que teve no local onde estava inserido, com as exactas condições familiares que tem actualmente, no mesmo meio a que regressará. Pergunta-se, então, o que diverge dali agora para que se considere, sem interiorização do desvalor da conduta que o levou à prisão, que o arguido tem todas as condições para que lhe seja concedida a graça de ser colocado em liberdade condicional. E a resposta não consegue esclarecer o sentido de voto da maioria do Conselho, muito embora consiga deixar evidenciadas as preocupações constantes do parecer do Ministério Público e da decisão judicial.
Revelando o seu CRC que não tem outras condenações.
Ora, como se diz na decisão recorrida: (…) O tribunal mantém fundadas reservas na assimilação, por parte do recluso, do desvalor da sua conduta (sendo que o mesmo expressa um arrependimento de cariz autocentrado, focalizando em si os impactos negativos decorrentes do crime e o impacto que a reclusão lhe trouxe, não mencionando espontaneamente empatia ou sentimento de culpa para com as vítimas/consumidores da sua atividade criminal) e da sua capacidade de adequação ao direito, mormente quando colocado numa situação de liberdade associada à possibilidade de surgirem novas situações de carência económica (o que causou, segundo referiu o recluso, a sua incursão na prática do crime de tráfico de estupefacientes), carecendo o mesmo de consolidação no seu percurso em contexto de reclusão por forma a interiorizar o mal que o seu comportamento acarreta. Por seu turno, no que tange ao preenchimento do requisito substancial (ou material) da concessão da liberdade condicional de reporte às finalidades de prevenção geral, igualmente este se tem igualmente por inviável in casu. De facto, a prevenção geral – aquela que para o juiz é, também, um exercício de análise e ponderação sobre os fatores, níveis e exteriorizações do pulsar de coração social, do sentir coletivo e do querer comum da sociedade em cada momento, gerando, deste modo, uma necessidade de constante atualização sobre esses expressares bem como uma contínua e sólida visão do sentido de regra de experiência de vida – não está assegurada nas suas exigências no presente momento em termos de neutralização do efeito negativo do crime na comunidade, da dissuasão e do fortalecimento do seu sentimento de justiça e de confiança na validade da norma violada, considerando a natureza e gravidade do crime praticado. (…)
A prevenção especial, como se sabe, respeita fundamentalmente à capacitação pessoal para viver de acordo com a normatividade.
Quando não se interioriza o desvalor da conduta passada não se determina um futuro dentro da normatividade, porque ela deixou de ser relevante. E esta irrelevância significa que o juízo de auto censura não está feito nem para o passado e nem para o futuro.
O crime pelo qual o arguido cumpre pena está entre os de maior desvalor social, atingindo bens de natureza eminentemente pessoais, sendo inclusivamente o tráfico um flagelo para a humanidade, estando muito longe de ser um simples crime num catálogo, por exemplo.
A desvalorização disto é o sinal evidente da correcção do decidido.
Há, de facto, ainda, um caminho a fazer.
Verifica-se, como tal, a total improcedência do recurso.
Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar não provido o recurso, mantendo-se o decidido pelo juiz a quo.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s e demais encargos legais, sem prejuízo da isenção de pagamento de que possa beneficiar.
Notifique.
Lisboa, 04 de Junho de 2025
Hermengarda do Valle-Frias
Carlos Alexandre
Rosa Vasconcelos
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
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1. Os destaques são nossos.