IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
Sumário

I. Não está em causa, com o recurso da matéria de facto, a realização, pelo tribunal de recurso, de um novo julgamento, mas tão-só analisar se o realizado em 1.ª instância cumpriu os critérios legais na respectiva produção de prova e a valorou de forma consentânea com tais critérios, sempre tendo presente o elevado grau de conformação da convicção por força do princípio da livre apreciação da prova (art.º 127.º do Código de Processo Penal).
II. Nenhuma dúvida se colocou ao tribunal a quo (vertente subjectiva), nem esta se mostra justificada por força de elementos probatórios (vertente objectiva), ou da sua ausência, produzidos (ou não) em audiência, pelo que nenhum fundamento se reconhece para, ao contrário do pretendido pelo recorrente, fazer actuar o princípio in dubio pro reo.

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

Processo comum singular n.º 2003/19.2T9ALM
Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Almada – Juiz 3

I – Relatório
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, ao arguido AA (nascido a ........1961, filho de BB e de CC, natural, residente na ...) estava imputada a prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal (doravante “CP”).
A sociedade comercial “DD, S.A.” apresentou pedido de indemnização civil contra o arguido a fls. 175-178, peticionando a sua condenação no pagamento de uma indemnização, no valor global de € 5.182,48, sendo € 3.399,09 correspondente ao valor da energia eléctrica subtraída, € 263,48 aos encargos de potência e € 116,75 aos custos de detecção e eliminação da anomalia, no período de ........2010 a ........1019; e de € 1.245,36, correspondente ao valor da energia eléctrica subtraída, € 116,75 aos encargos de potência e € 80,10, aos custos de detecção e eliminação da anomalia o período de ........2019 a ........2020, tudo acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, contados desde a data da notificação para contestar e até efectivo e integral pagamento.
No decorrer da audiência de discussão e julgamento foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial dos factos, ao abrigo do disposto no art.º 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (cfr. sessão da audiência realizada no dia 3 de Maio de 2024), o que não mereceu qualquer oposição por parte do Ministério Público ou do arguido (que prescindiu de prazo para a defesa).
Realizada a audiência de discussão e julgamento, a decisão proferida foi a seguinte:
“NESTES TERMOS, decide-se:
a. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis Euros), o que perfaz o montante global de € 1.200,00 (mil e duzentos Euros);
b. Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 2 (duas) Unidades de Conta, acrescida dos demais encargos do processo que possam existir (cfr. artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, todos do CPP e artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e respectiva tabela III anexa).
- Do pedido de indemnização civil:
Decide-se julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante “DD” contra o arguido e, em consequência, decide-se condenar o arguido/demandado AA a pagar uma indemnização à demandante, no montante global de € 3.662,57 (três mil, seiscentos e sessenta e dois Euros e cinquenta e sete cêntimos), pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal civil em vigor de 4%, desde a data de notificação para contestar o pedido cível e até efectivo e integral pagamento.
Absolve-se o arguido do demais peticionado.
Custas do pedido cível a cargo da demandante e do demandado/arguido, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 29% para a demandante e 71% para o demandado, nos termos dos artigos 377.º, n.º 3 e 523.º do CPP e artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.”
II- Fundamentação de facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
Discutida a causa e com relevância para a presente decisão, julgam-se como provados os seguintes factos:
Da acusação:
1. A sociedade “DD” exerce, em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica de baixa tensão, no concelho de ....
2. Para tal efeito, procede à ligação à rede de instalações particulares de consumo cujos utilizadores hajam celebrado um contrato de fornecimento de energia eléctrica com um dos comercializadores, legalmente constituídos, e que operam no sector eléctrico.
3. Pelo menos desde 2011 e até ao final do ano de 2016, o arguido AA residiu juntamente com a sua companheira EE e os dois filhos do casal, na residência sita na ....
4. Em data não concretamente apurada no final do ano de 2016, o arguido abandonou aquela residência na sequência da separação com a sua companheira, ficando, no entanto, a residir na referida morada EE e os dois filhos do casal.
5. Para o local referido foi celebrado entre o arguido e a ofendida “DD” contrato de fornecimento de energia eléctrica em baixa tensão, que vigorou entre ........2009 e ........2010.
6. Pelo menos, desde ........2010 e até ........2019 (data da vistoria), não houve qualquer contrato de fornecimento de energia eléctrica celebrado para abastecer a referida residência, no entanto, aquela continuou a usufruir de energia elétrica no seu interior.
7. Em data não concretamente apurada, mas situada em período anterior a ........2019, data da última vistoria efectuada pelos serviços da ofendida “DD”, que o arguido, por si ou por alguém a seu mando, efectuou uma ligação directa à rede pública, colocando um fusível no contador, puxando a electricidade para a residência onde residiu e residem a sua ex-companheira e os seus filhos, tendo assim logrado usufruir e permitir que ele, a sua ex-companheira e filhos usufruíssem no interior da sua residência de energia eléctrica, que fez sua, à revelia da ofendida “DD”.
8. Consequência dessa conduta, o arguido até ........2019 apropriou-se para si e para a sua ex-companheira e filhos de energia eléctrica, propriedade da ofendida “DD”, correspondente a um consumo de 21.831 Kwh de energia, causando à ofendida um prejuízo patrimonial de € 3.399,09.
9. Agiu o com o propósito concretizado de se apropriar de energia eléctrica da rede pública de baixa tensão para si e para a sua ex-companheira e filhos, por forma a usufruírem da mesma no interior da respectiva residência, onde habitou e habitam estes últimos, sem proceder ao correspondente pagamento, o que logrou, bem sabendo que aquela energia não lhe pertencia e que agia sem o conhecimento e contra a vontade da sua legítima proprietária.
10. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei e tinha a necessária capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Do pedido de indemnização civil:
11. Na qualidade de concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica, a “DD” procede à fiscalização das instalações particulares, com o propósito de despistar eventuais ligações abusivas à rede eléctrica.
12. O local de consumo tem o número 663989 que corresponde à instalação sita na ....
13. Para o referido local de consumo, o contrato de fornecimento de energia eléctrica que se vigorou entre ........2009 e ........2010 era titulado pelo arguido.
14. No âmbito da sua actividade de fiscalização, a “DD” gerou uma ordem de serviço de verificação de equipamento de contagem.
15. No local, no dia ........2019, o técnico, ao serviço da “DD”, constatou que existia uma situação de consumo sem contrato e desligou a energia eléctrica.
16. Até ........2019, a ofendida suportou € 263,48 a título de encargos de potência.
E ainda:
17. O arguido não tem condenações averbadas no seu certificado do registo criminal.”
Na decisão recorrida consta como não provado o seguinte facto:
Até ........2019, a ofendida suportou € 77,70 com custos de detecção e eliminação da anomalia.
III- Convicção da matéria de facto
O Tribunal a quo apresentou a seguinte convicção da matéria de facto:
O Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, com base na apreciação de forma livre, crítica e conjugada, de todos os meios de prova disponíveis, tendo presentes as regras da experiência comum, o princípio da livre apreciação da prova e a livre convicção do julgador (cfr. artigo 127.º do Código do Processo Penal – doravante “CPP”).
Assim, por mais relevante e decisivo, é de destacar o seguinte:
- O arguido desinteressou-se da sua situação processual e não compareceu à audiência. Também não foi possível fazê-lo comparecer mediante a emissão dos competentes mandados de detenção e condução por não ter sido encontrado na morada. Pelo que não contribuiu para a descoberta da verdade material;
- Foram inquiridas as seguintes testemunhas: (i) FF (de 42 anos, ..., trabalhador da empresa “...” à data dos factos); (ii) EE (de 65 anos, ..., ex-companheira do arguido); (iii) GG (de 25 anos, militar, filho do arguido); (iv) HH (de 26 anos, ..., filho do arguido); e (v) II (... a exercer funções na “DD”);
- Consta dos autos a seguinte prova documental: (i) fotografia de fls. 6; (ii) auto de inspecção de ........2019 de fls. 7; (iii) informação sobre o local de consumo de fls. 8; (iv) informação de fls. 40; (v) informação prestada pela “...” de fls. 139; (vi) histórico de leituras até ........2019 de fls. 192; (v) dados de consumo de fls. 193; (vi) CRC de fls. 235.
A convicção do Tribunal a respeito da factualidade dada como provada fundou-se, assim, na análise, crítica e conjugada, de todos os meios de prova supra referidos, considerando-se que a prova produzida foi suficiente para comprovar com rigor todos os factos dados como provados, inclusivamente a autoria dos factos por parte do arguido, tudo o mais ficou por demonstrar por falta ou insuficiência de prova.
Concretizando.
A respeito da factualidade dada como provada:
- O descrito nos pontos 1), 2) e 11) resultou provado, com base na informação que é do conhecimento público e geral, conjugada com o depoimento das testemunhas II, trabalhador da “DD”, e FF, que, à data, prestava serviços para a empresa “...” ao serviço da “DD”, e que confirmaram tal factualidade, com base no seu conhecimento directo decorrente do exercício diário das suas funções.
- O vertido nos pontos 3) e 4) resultou provado, com base na conjugação do depoimento das testemunhas EE, GG e HH que confirmaram tal factualidade de forma consentânea, demonstrando ter conhecimento directo desta factualidade por serem as pessoas envolvidas.
- O mencionado nos pontos 5), 6) e 13) foi dado como provado com base no depoimento da testemunha II que demonstrou ter conhecimento dessa factualidade por força do exercício da sua actividade profissional, mostrando-se ainda o seu depoimento suportado pela prova documental coligida para os autos, nomeadamente de fls. 8.
- O descrito nos pontos 7), 12), 14) e 15) foi dado como provado com base na conjugação do depoimento das testemunhas FF, EE, GG e HH, conjugado com a documentação junta aos autos.
Destarte, a testemunha FF confirmou a sua deslocação à morada em causa na sequência de ordem de serviço emitida para verificação do equipamento por parte da “DD”, o que aconteceu no dia ........2019, conforme se extrai do auto de inspecção de fls. 7 (cópia a fls. 181), por si elaborado, tendo este reconhecido a sua letra em audiência. Mais explicou a testemunha que, no local, confirmou que a energia eléctrica estava ligada na portinhola através de colocação de fusível, conforme se alcança do teor do referido auto, e que procedeu ao seu desligamento, confirmando a situação por confronto com a fotografia de fls. 182 que corresponde à de fls. 6. Confirmou que havia consumo no local por força dessa intervenção, apesar de, à data, não ter registado tal situação mediante reportagem fotográfica, por não fazer parte do procedimento de então. Do depoimento desta testemunha ficou, portanto, clara a existência de uma ligação para a referida morada que permitiu o abastecimento do local com energia eléctrica, sendo que a testemunha II, conforme acima explanado, explicou que, desde ........2010 não havia contrato de abastecimento de energia eléctrica para o local em apreço.
Por sua vez, as testemunhas EE, GG e HH confirmaram ter energia eléctrica na habitação no período em apreço em que lá residiram. Mais explicaram que desconheciam a existência de qualquer ligação directa para o efeito, referindo que sempre acreditaram que havia contrato de fornecimento de energia eléctrica em nome do arguido (ex-companheiro e pai das testemunhas) pois era este quem se ocupava da respectiva facturação quando viviam todos juntos.
Mais explicou a testemunha EE que, após a separação do casal, foi acordado que este continuaria a assumir os encargos com o fornecimento de energia eléctrica, ao passo que a testemunha assumiria os custos do fornecimento de água, pelo que não estranhou não receber facturas de electricidade. Também a testemunha GG confirmou que era o pai quem se ocupava dos pagamentos das despesas da luz, internet, etc., e que, após a sua saída de casa, este comprometeu-se a continuar a fazer tais pagamentos, desconhecendo qualquer ligação directa, o que foi igualmente suportado pela testemunha HH.
As testemunhas EE e HH acrescentaram que sempre que havia algum problema no fornecimento de energia eléctrica era o arguido quem resolvia, mesmo após já não habitar na referida morada, sendo por estes chamado ao local. Disse ainda a testemunha HH que o arguido tem conhecimentos de electricidade, tendo inclusivamente chegado a trabalhar como electricista.
Por conseguinte, conjugados os depoimentos resulta inequívoco que foi o arguido, ou alguém a seu mando, que efectuou uma ligação directa à rede pública, colocando um fusível no contador, puxando a electricidade para a residência onde inicialmente residiu e depois continuaram a residir a sua ex-companheira e os seus filhos, tendo assim logrado usufruir e permitir que a sua ex-companheira e filhos continuassem a usufruir no interior da sua residência de energia eléctrica à revelia da ofendida.
De facto, apesar de não haver prova directa da autoria dos factos pelo arguido, pois nenhuma das testemunhas a eles assistiu, a conclusão não pode ser outra, à qual se chega por prova indirecta, atentos os depoimentos das testemunhas que nos mereceram credibilidade, sendo que o arguido era, pois, para além das testemunhas, a única pessoa com interesse no cometimento dos factos, reunindo condições para o fazer.
- O mencionado nos pontos 8) e 16) deu-se como provado com base na conjugação do depoimento da testemunha II que sustentou essa factualidade, referindo que tais valores não são estimativas, mas sim são os correspondentes ao consumo real registado no contador, o que mostra sustento na prova documental de fls. 192 e 193.
- A factualidade descrita nos pontos 9) e 10) respeitante ao conhecimento, à consciência da ilicitude e à vontade de praticar os factos por do arguido sendo referente a estados psíquicos, respeita essencialmente ao foro interno, psicológico e íntimo do arguido, pelo que a sua verificação não é passível, por norma, de qualquer demonstração directa, sendo, ao invés, apenas revelada por indícios que as regras da experiência e da lógica permitem associar. Ora, considerando a globalidade da factualidade apurada e por tudo o que já foi anteriormente avançado, em conjugação com as regras da normalidade da vida e da experiência comum, a conclusão não pode ser outra senão a da verificação desse conhecimento, consciência, vontade e intenção de actuação, tendo, por isso, essa factualidade ficado devidamente demonstrada, extraindo-se dos elementos objectivos dados como provados.
- Por último, a ausência de antecedentes criminais mostra-se devidamente certificada em face do CRC junto aos autos.
*
No que concerne à factualidade dada como não provada, cumpre referir que ficou por demonstrar por falta de prova, na medida em que não se logrou provar a que respeitam concretamente tais custos.”
IV- Recurso
O arguido recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
I. “O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos.
II. A sentença recorrida, condenou o Arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal (doravante CP), na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis Euros), o que perfaz o montante global de € 1.200,00 (mil e duzentos Euros), bem como julgou procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante e, em consequência, condenou o Arguido/ Demandado a pagar à mesma a quantia € 3.662,57 (três mil, seiscentos e sessenta e dois Euros e cinquenta e sete cêntimos).
III. Os concretos pontos da matéria de facto que o recorrente considera indevidamente dada como provada e incorretamente julgados (art.º 412º, nº 3, al. a) do CPP: 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 13 e 16.
IV. Na formação da sua convicção o Tribunal, teve em consideração as declarações das testemunhas FF, EE, GG, HH e fotografia de fls. 6; auto de inspeção de ........2019 de fls. 7; informação sobre o local de consumo de fls. 8; informação de fls. 40; informação prestada pela “...” de fls. 139; histórico de leituras até ........2019 de fls. 192; dados de consumo de fls. 193; CRC de fls. 235.
V. O Tribunal a quo considerou provado os factos “3. Pelo menos desde 2011 e até ao final do ano de 2016, o arguido AA residiu juntamente com a sua companheira EE e os dois filhos do casal, na residência sita na  ....” e “4. Em data não concretamente apurada no final do ano de 2016, o arguido abandonou aquela residência na sequência da separação com a sua companheira, ficando, no entanto, a residir na referida morada EE e os dois filhos do casal.”.
VI. Formou a sua convicção considerando a conjugação do depoimento das testemunhas EE, GG e HH, que são por sua vez, a ex-companheira, e os filhos do Arguido, sendo que não existe qualquer outra prova junta aos autos que permita concluir que o Arguido residiu naquele local entre os anos de 2011 até ao final de 2016.
VII. As declarações da testemunha EE não se mostraram isentas, sendo que do depoimento da mesma (ficheiro áudio Diligencia_2003-19.2T9ALM_2024-03-11_11-54-25, 00:03:47 que se dá por integralmente reproduzido), resulta que disse não saber precisar o mês em que o arguido abandonou o local da prática dos factos, quando questionada, o que naturalmente põe em causa que o Tribunal pudesse dar como provado que o Arguido ali residiu até ao final de 2016, pois, ditam as regras da experiência comum, que o processo de separação é um marco na vida de qualquer pessoa pelo que, dificilmente não teria memória da data em que a mesma ocorreu.
VIII. O depoimento da testemunha EE, mostra-se pouco isento e credível, repleto de contradições entre si, o que, por maioria de razão, implica a descredibilização do seu testemunho, e, consequentemente, impede a sua valoração. Não só o Arguido não tem qualquer registo criminal averbado, conforme CRC junto aos autos, como nunca foi alvo de qualquer medida de afastamento, sendo as alegações da testemunha totalmente difamatórias, como, por seu turno, em primeira indica que a decisão de sair de casa foi do Arguido, porque alegadamente teria arranjado outra pessoa, como, de seguida, diz que afinal a separação foi conturbada e o mesmo terá saído porque alegadamente existira uma medida de afastamento num âmbito de processo de violência doméstica (cfr. Veja-se a este propósito ficheiro áudio Diligencia_2003-19.2T9ALM_2024-03-11_11-54-25 - de 00:10:02 a 00:11:05; de 00:17:37 a 00:19:00, que se dá por integralmente reproduzido).
IX. Do excerto da gravação do depoimento da testemunha EE para o qual se remete em VIII supra, resulta ainda que só depois de questionada uma segunda vez, se tal saída teria sido mais par o fim do ano, e, depois de ter deposto que não se recordava do mês em que o Arguido alegadamente teria saído da residência, disse que “achava” ter sido mais para o fim do ano, o que não pode ser suficiente para dar como provados factos que contribuem e fundamentam a condenação do Arguido, no âmbito de um processo que se rege por princípios jurídico constitucionais que impedem tal valoração, como infra melhor se exporá.
X. Remete-se de igual modo para o depoimento das testemunhas GG e HH, que apenas souberam indicar ano de 2016, sem que tivessem concretizado qual o concreto mês ou, sequer, declarado, de que forma se recordavam que teria ocorrido em tal ano.
XI. Dos elementos de prova coligidos nos autos, como se disse, não é possível extrair qualquer ligação do Arguido ao local da prática dos factos no período entre 2011 e final de 2016, inexistindo qualquer documento que demonstre que o Arguido ali residiu, muito pelo contrário.
XII. Veja-se, neste sentido, os ofícios das várias entidades notificadas para indicar a existência de contratos em nome do Arguido para o local da prática dos factos – ... – para os quais se remetem e aqui para os devidos e legais efeitos se dão por integralmente reproduzidos, que vão todos pela inexistência de qualquer contrato, e por conseguinte, inexistência de qualquer ligação do Arguido, durante aquele período, ao referido local – cfr. Ref.ªs Citius 27333860, 28676376, 28716776, 28727495, 28792929, 29059517, 29105761, 29468531, 30196875.
XIII. No caso concreto não existe prova alguma que sustente os factos 3 e 4 dados como provados, que aqui se impugnam, mas antes prova documental, supra indicada, que atesta que não existe qualquer ligação do Arguido ao local da prática dos factos.
XIV. Pelo exposto estamos perante um erro notório na apreciação da prova, tal como prevenido na alínea c) do n." 2 do artigo 410.", do CPP, erro traduz ademais uma contradição insanável entre a prova carreada para os autos e os factos dados como provados.
XV. Nesta conformidade, é evidente que os depoimentos das testemunhas demonstraram total ausência de isenção e credibilidade, bem como não foram concretas a indicar a alegada data em que o Arguido teria deixado de ali residir, pelo que conjugado com o acervo documental junto ao autos do qual não resulta, como se aduziu, nenhuma ligação do Arguido àquele local, durante o período ora aludido, o Tribunal a quo devia ter julgado como não provados os factos 3 e 4, constantes da sentença de ora se recorre, para efeitos do disposto no art.º 412º, nº 3, al. a) do CPP, foram incorretamente julgados
XVI. O Tribunal a quo considerou provado os factos “5. Para o local referido foi celebrado entre o arguido e a ofendida “DD” contrato de fornecimento de energia eléctrica em baixa tensão, que vigorou entre ........2009 e ........2010.”, “6. Pelo menos, desde ........2010 e até ........2019 (data da vistoria), não houve qualquer contrato de fornecimento de energia eléctrica celebrado para abastecer a referida residência, no entanto, aquela continuou a usufruir de energia elétrica no seu interior.” e “13. Para o referido local de consumo, o contrato de fornecimento de energia eléctrica que se vigorou entre ........2009 e ........2010 era titulado pelo arguido.”.
XVII. Na formação da sua convicção, o Tribunal a quo teve em consideração o depoimento da testemunha II e prova documental coligida para os autos, nomeadamente de fls. 8.
XVIII. A testemunha II, nas suas declarações apenas disse, no que concerne às matérias destes factos dados como provados pelo Tribunal a quo que não tinha existido contrato para o local dos factos entre 2010 e ... de 2021 (ficheiro de áudio Diligencia_2003-19.2T9ALM_2024-03-11_12-17-39 – de 00:03:11 a 00:03:35), já o doc. junto a fls. 8, corresponde a um objeto de ligação referente local da prática dos factos.
XIX. Sucede que o Tribunal a quo não valorou, como se lhe impunha, o documento junto aos autos com a Ref.ª CITIUS 27333860, constante do histórico do processo via CITIUS a 08/10/2020 e do qual resulta que não foi junto aos autos, porque inexiste, o contrato de fornecimento que alegadamente teria sido celebrado com o Arguido (o que impede a impugnação se tal contrato teria sido outorgado por este, ou se alguém fazendo-se passar por ele, poderia ter celebrado), pelo que não podia o Tribunal a quo ter dado como provado que foi celebrado um contrato de fornecimento com o Arguido para o local da prática dos factos, com início a ........2009 e término a ........2010.
XX. No caso concreto não existe prova alguma que sustente os factos 5 e 13 dados como provados, que aqui se impugnam, mas antes prova documental, supra indicada, que atesta não existe qualquer contrato outorgado pelo Arguido para o local da prática dos factos.
XXI. Certo é que o documento junto a fls 8 não pode ter valor probatório nem efeito jurídico capazes de demonstrar e provar que o Arguido celebrou o referido contrato, mas antes o documento junto como ref.ª CITIUS 27333860, prova precisamente que inexiste qualquer contrato capaz de demonstrar tal ligação, o que impunha, por isso, decisão diversa por parte do Tribunal a quo.
XXII. Por seu turno, o depoimento vago da testemunha II no que concerne á existência de um contrato celebrado pelo Arguido entre ........2009 e ........2010 entra em contradição com o acervo documental coligido (ausência de junção de contrato por inexistir).
XXIII. Também entendemos que não podia o Tribunal a quo ter dado como provado o facto 6, no que concretamente concerne que o local da prática dos factos continuou a usufruir de energia elétrica entre 2010 e 2019, porquanto, o testemunho de II, entra em contradição com o próprio auto de inspeção junto Doc. nº 3 com o Pedido de indemnização Civil deduzido pela demandante e com o testemunho do técnico que procedeu à vistoria – FF, também inquirido, segundo os quais resulta que em ........2019, foi detetada a existência de energia elétrica no local da prática dos factos, contudo o facto de existir naquele concreto dia em 2019, não permite concluir que existia energia em elétrica em data anterior.
XXIV. Estamos assim, perante um erro notório na apreciação da prova, tal como prevenido na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, erro que traduz ademais uma contradição insanável entre a prova carreada para os autos e os factos dados como provados.
XXV. O Tribunal a quo devia ter julgado como não provados os factos 5, 6 e 13, constantes da sentença de ora se recorre, pelo que para efeitos do disposto no art.º 412º, nº 3, al. a) do CPP, foram incorretamente julgados
XXVI. O Tribunal a quo considerou provado que: “Em data não concretamente apurada, mas situada em período anterior a ........2019, data da última vistoria efectuada pelos serviços da ofendida “DD”, que o arguido, por si ou por alguém a seu mando, efectuou uma ligação directa à rede pública, colocando um fusível no contador, puxando a electricidade para a residência onde residiu e residem a sua ex-companheira e os seus filhos, tendo assim logrado usufruir e permitir que ele, a sua ex-companheira e filhos usufruíssem no interior da sua residência de energia eléctrica, que fez sua, à revelia da ofendida “DD”.
XXVII. Na formação da sua convicção, o Tribunal a quo teve em consideração o depoimento das FF, EE, GG e HH, conjugado com a documentação junta aos autos.
XXVIII. Ora, impõe-se-nos dissertar este facto e respetiva motivação em diferentes elementos contraditórios: em primeiro lugar, cumpre-nos dizer que dar como provado desde data não concretamente apurada, mas anterior a ........2019, não traduz um grau de certeza que permita, determinar que o Arguido usufruiu para si de eletrcidade, quando, em simultâneo, no facto 4 e 5, dá como provado que o arguido saiu da residência no final do ano de 2016.
XXIX. O Tribunal não concretizou desde quando dava como provado que tinha existido consumo de eletricidade por parte do Arguido, apenas podendo indicar que tal terá ocorrido em ........2019, data em que ocorreu uma vistoria por parte da DD.
XXX. Sucede que dos elementos coligidos para os autos, o Tribunal a quo apenas podia dar como provado que no dia ........2019 existia energia elétrica no local da prática dos factos, como resulta do auto de vistoria (doc. 3 do PIC) e do técnico que procedeu à vistoria – testemunha FF.
XXXI. Tanto que assim é, que o Tribunal utiliza a expressão “desde data não concretamente apurada”, então qual é o período da prática dos factos que o Tribunal determina?
XXXII. A ausência de identificação clara, de qual o período a que o Tribunal imputa a prática do alegado ilícito típico compromete o exercício de uma defesa justa, porquanto tal impede a definição da data do início do ilícito típico.
XXXIII. A ser assim, tal exercício implica que apenas pudesse o Tribunal dar como provado que o alegado ilícito típico tivesse sido praticado no dia ........2019, pelo que se questiona, como podia o arguido ter usufruído de energia elétrica se o Tribunal dá, em simultâneo, como provado, que o arguido não residia naquele local desde pelo menos final de 2016?
XXXIV. Tal constitui necessariamente um erro notório na apreciação da prova, mas também uma contradição insanável entre a prova carreada para os autos e os factos, entre si, dados como provados, o que aqui expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos.
XXXV. O Tribunal a quo dá como provado que o Arguido procedeu à puxada de eletricidade para o local da prática dos factos o que fez por recurso a uma ligação direta, com colocação de fusível e com puxada de eletricidade para tal local.
XXXVI. Ao dar como provado que o Arguido efetuou “uma ligação direta” e “colocou um fusível”, está, pois, a dar como provadas duas formas contraditórias porquanto, ou dava como provado que Arguido tinha feito uma ligação direta o que necessariamente impede que exista um registo de leituras, como na fundamentação da motivação da douta sentença entende existir, permitindo assim fundamentar o cálculos dos prejuízos, ou então dava como provado que teria ali sido colocado um fusível, que é distinto de existir uma ligação direta.
XXXVII. Destarte, o Tribunal dá como provados dois factos que são tecnicamente impossíveis de existir entre si, o que necessariamente traduz uma contradição insanável, geradora de nulidade.
XXXVIII. Por seu turno, dá também como provado que foi o Arguido a proceder à puxada de eletricidade, por si, ou por alguém a seu mando, o que faz com base no depoimento das testemunhas, mas em simultâneo na própria motivação reconhece que “De facto, apesar de não haver prova directa da autoria dos factos pelo arguido, pois nenhuma das testemunhas a eles assistiu, a conclusão não pode ser outra, à qual se chega por prova indirecta, atentos os depoimentos das testemunhas que nos mereceram credibilidade, sendo que o arguido era, pois, para além das testemunhas, a única pessoa com interesse no cometimento dos factos, reunindo condições para o fazer.”.
XXXIX. Com o devido respeito, não podia o Tribunal a quo dar como provado que a autoria do crime se imputa ao Arguido quando, por um lado reconhece que ele ali não residia no momento da prática do facto, desconhecendo-se desde quando baliza o seu início, apenas se poderá considerar demonstrado como tal tendo ocorrido a ........2019, data da vistoria do constante do auto e do testemunho de FF.
XL. Por outro lado, reconhece que nenhuma das testemunhas viu o Arguido a fazer ou a mandar fazer a referida ligação, como tal, estamos perante uma contradição insanável entre a decisão e a fundamentação, o que aqui expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos.
XLI. De igual modo, qual seria o interesse do Arguido, conforme decorre do facto dado como provado, em fazer uma ligação direta se o Arguido ali não residia e, por conseguinte, não procedia ao consumo de eletricidade?
XLII. Não se consegue alcançar o raciocínio levado a cabo pelo Tribunal a quo para dar como provada a imputação da autoria do ilícito típico ao Arguido, quando inexistem nos autos quaisquer elementos que liguem o Arguido ao local da prática dos factos, sendo que a existir, o único elemento de ligação, ainda que dali não resulte nenhum valor jurídico, decorre do documento junto a fls 8, que indiciaria que o Arguido poderia alegadamente ter celebrado (o que não se comprovou por ausência de prova) um contrato em 2010... Contudo, e em simultâneo, dá como provado que o Arguido já não residia no local pelo menos há cerca 3 anos, desde a data do ilícito típico...
XLIII. Todos os documentos juntos aos autos demonstram inexistir qualquer ligação de contrato de água, telecomunicações, gás, e outros serviços essenciais, em nome do Arguido para aquela morada...
XLIV. Do acervo documental, designadamente do auto de vistoria de ........2019, junto como Doc. 3 com o PIC, resulta que ninguém estava no local no momento da vistoria, sendo que da conjugação dos depoimentos das testemunhas, bem assim como da confissão da testemunha EE, GG e HH, resulta que eram estes que ali viviam e consumiam, para seu benefício próprio eletricidade...
XLV. Ora, como pode perante a inexistência de qualquer prova, seja ela direta ou indireta, que atire a autoria do ilícito típico em crise para o Arguido, o Tribunal a quo, admitindo inexistir qualquer prova direta, socorrer-se da alegada prova indireta (sendo que não existe nenhum elemento que ligue o Arguido ao local da prática dos factos) permite adquirir ou alcançar a realidade de um facto não diretamente demonstrado?
XLVI. E, sempre se diga, por cautela de patrocínio, que mesmo que pudesse ser valorado o documento junto a fls. 8 para demonstrar que o Arguido de 2009 a 2010 ali teve um contrato de fornecimento, o que não se concede, não pode ser suficiente como indício seguro e inequívoco, capaz de fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade, de que foi ele o autor do furto, que alegadamente terá ocorrido em 2019, única data passível de dar como provada.
XLVII. Se ouvirmos com atenção a gravação do depoimento da testemunha FF (ficheiro de áudio Diligencia_2003-19.2T9ALM_2024-03-11_11-36-54), verifica-se que não só o mesmo não tinha nenhum elemento que ligasse o Arguido ao local da prática dos factos, como, disse também, que não foi feita qualquer registo de leituras, pelo que, não se concebe a contradição entre o técnico que foi ao local e que afirma não ter procedido às leituras, e a testemunha II que alega ter registo de leituras.
XLVIII. Do testemunho de FF (cfr. ficheiro ficheiro áudio Diligencia_2003-19.2T9ALM_2024-03-11_11-36-54 – de 00:10:11 a 00:12:35) resulta que não foi feito o registo de nenhuma medição, sendo que o Doc. 3 junto com o PIC é também omisso relativamente a qualquer medição.
XLIX. O depoimento da testemunha EE (cfr. ficheiro áudio Diligencia_2003-19.2T9ALM_2024-03-11_11-54-25 – de 00:03:1 a 00:07:46, de 00:08:17 a 00:08:23, de 00:10:02 a 00:17:28, de 00:18:13 a 00:20:02), encontra-se cheio de incongruências e afirmações contrárias à prova carreada para os autos, pelo que não merece credibilidade e, por conseguinte, inexiste qualquer prova do facto. A considerar:
- A testemunha tem várias declarações que demonstram que o seu depoimento não é isento, demonstradoras do mau estar que tem para com o Arguido, o que compromete a credibilidade do seu testemunho;
- Afirma que o Arguido a deixou em 2016 para ir viver com outra pessoa, o que motivou a separação e saída da residência e depois afirma, mais à frente, que a separação foi conturbada porque afinal foi no âmbito de um processo de violência doméstica e do decretamento de medidas de afastamento, que impuseram a saída do Arguido;
- Como já se alegou tratam-se de afirmações difamatórias e falsas, porquanto nunca o arguido foi objeto de qualquer medida de afastamento, nem foi condenado por nenhum crime de violência doméstica (cfr. CRC);
- Diz depois que quando o Arguido saiu, a testemunha ficou numa situação económica muito frágil, teve de recorrer ao rendimento de inserção social, sendo que o marido até era empresário.
- Ora, quem é que teria algum interesse em ter eletricidade sem pagar? Seria o arguido?
- Alega a testemunha que procedia ao pagamento das faturas da água, quando se encontra junta aos autos a 17/03/2021, com a Ref.ª CITIUS 28716776, um Ofício de resposta da ... – com o seguinte teor “Em resposta ao pedido de V. Exas que mereceu a nossa melhor atenção e após consulta ao nosso sistema de gestão de clientes, verificámos que não existe qualquer registo de contrato de fornecimento de água, recolha e tratamento de águas residuais para a ....”, sendo o referido ofício datado de 04.03.2021.
- Ora, como poderia a testemunha pagar faturas de água, como alega, se existe nos autos prova documental que atesta não existir qualquer contrato de fornecimento de água para o local da prática dos factos?
- Era a Testemunha que residia no local e quando faltava a luz, em vez de ir ao quadro e proceder à sua ligação ligava ao Ex-companheiro para ir lá, de quem estava separada, alegadamente por ser vítima de violência doméstica? - O Arguido ia à residência tratar dos problemas quando faltava a luz, a pedido da testemunha, mas ao mesmo tempo tinha uma medida coerciva de afastamento?
- Diz que as falhas na luz ocorreram muito poucas vezes, quando a testemunha HH alega que chagaram a ficar 3 dias sem luz.. contradição completa entre os testemunhos...
- A testemunha nunca abria os contadores quando faltava a luz e tratou-se tudo de uma distração, sendo que a mesma reside ali permanentemente, de acordo com as suas declarações, desde 2011 até ao presente?
- Quando lhe ligavam da ..., diga-se, empresa que correspondia anteriormente à única fornecedora de energia elétrica, e que de algum modo, estava ligada à Demandante, diziam-lhe que existia um contrato para aquela morada? Então, se não existia um contrato como é que a ... lhe podia comunicar que estava em vigor um contrato?
- Alega que teve conhecimento da ausência de contrato quando foi informada pela ... por contacto telefónico, sendo que, do contacto telefónico junto aos autos (cfr. .../.../2021 - Ref.ª Citius 30637451), para o qual se remete para os devidos e legais efeitos, não resulta nenhuma menção a tal facto. Sendo que neste ponto, esta testemunha entra em contradição com a testemunha GG que diz terem tido conhecimento quando um senhor da ... foi lá a casa fazer o contrato e com a testemunha HH que diz terem tido conhecimento quando a GNR foi lá a casa...
- A testemunha era vítima de violência doméstica e acordava que o alegado agressor, aqui Arguido, lhe pagasse as contas?
- Não deixa de ser curioso, aliás como a própria testemunha indicou em sede de depoimento que tenha sabido alegadamente da inexistência do contrato com o contacto telefónico da ... em ........2021, e onde procedeu ao pedido de celebração de contrato de fornecimento de energia (cfr. .../.../2021 - Ref.ª Citius 30637451), sendo que a notificação para ser inquirida pela GNR, embora não esteja datada, foi junta aos autos em .../.../2021 - Ref,ª Citius 28421589, e por tanto, será certamente desta data ou de data anterior, – tendo esta sido notificada para ser inquirida em ........2021.
L. Destarte, o testemunha de EE mostra-se em plena contradição com a das testemunhas HH e GG, e mostra-se também contraditório com a prova junta aos autos, para além de ser notório que a mesma não é isenta quando depõe relativamente ao Arguido.
LI. A par disso, resulta do seu próprio depoimento (relembre-se que a testemunha em crise foi também arguida no processo, embora tenha sido arquivado, ainda que o Ministério Público tenha constatado como “estranho” a ausência de conhecimento por parte desta) que a mesma confessou ter procedido à utilização e ao benefício do consumo de eletricidade.
LII. Quanto ao depoimento da testemunha GG (cfr. ficheiro de áudio Diligencia_2003-19.2T9ALM_2024-03-11_12-34-539 – de 0:01:34 a 00:05:39) é também ele muito pouco claro, impreciso e pouco espontâneo, entrando em contradição com o depoimento das testemunhas EE e HH, cuja falta de isenção implica que não lhe seja concedida credibilidade, não podendo assim ser valorado, vejamos:
- Só sabe que a responsabilidade é do pai, aqui Arguido, sem indicar o motivo; - Contrariamente ao depoimento de EE, tiveram conhecimento de que não existia contrato, quando foi lá um senhor a casa fazer um contrato.. como se existissem pessoas, porta a porta a fazer contratos.. e quando a testemunha EE, contrariamente à gravação já indicada, afirma que teve conhecimento num contacto telefónico da ...;
- Afirma que era o pai que fazia o pagamento de todas as contas, luz, internet, contrariamente ao que a testemunha EE indicou;
- Afirma que quando faltava a luz eram eles que iam ligar o disjuntor, contrariando o testemunho de EE que alegava que quando faltava a luz ligavam ao Arguido;
- Afirma que eram eles (testemunha, o irmão e a mãe) que iam ligar a luz quando faltava, mas nunca tinham reparado que existia uma ligação...
LIII. Já no que concerne ao ao depoimento da testemunha HH (ficheiro áudio Diligencia_2003-19.2T9ALM_2024-03-11_12-34-53 – de 00:01:51 a 00:07:01), está também ele repleto de contradições quando confrontado com o depoimento das testemunhas EE e GG, e consequentemente não poderá valorar como prova, veja-se:
- Só tomaram conhecimento da questão da eletricidade quando a GNR foi lá a casa;
- Era a testemunha e o seu irmão e mãe que ligavam o quadro quando a luz ia a baixo;
- Contrariamente ao que disse a testemunha EE, chegaram a ficar dias seguidos em luz;
- Quando havia algum problema que não conseguisse resolver, em vez de ligar para a companhia, ligava ao pai para ir resolver, mas em simultâneo não via o que o pai fazia para poder reproduzir caso voltasse a acontecer (diga-se que o próprio Tribunal estranhou tal alegação, conforme resulta da gravação do depoimento da testemunha).
LIV. Destarte, o Tribunal a quo devia ter julgado como não provado o facto 7 constante da sentença de que ora se recorre, pelo que nos termos do disposto no art.º 412º, nº 3, al. a) do CPP, este facto foi incorretamente julgado.
LV. O Tribunal a quo considerou provado que: “8. Consequência dessa conduta, o arguido até ........2019 apropriou-se para si e para a sua ex-companheira e filhos de energia eléctrica, propriedade da ofendida “DD”, correspondente a um consumo de 21.831 Kwh de energia, causando à ofendida um prejuízo patrimonial de € 3.399,09.” e “16. Até ........2019, a ofendida suportou € 263,48 a título de encargos de potência.”.
LVI. Se o Tribunal no facto 7 não consegue precisar uma data de início para a prática dos factos (veja-se facto 7 “data não concretamente apurada”), por maioria de razão não pode, pois, valorar tais cálculos, com base numa data exata, pois se apenas consegue identificar como data da prática do facto, ........2019, não depois em simultâneo, dar como provado o prejuízo calculando a partir de 21.10.2016 (cfr. fls 192 e 193), o que traduzir uma contradição insanável.
LVII. Diga-se aliás, de que a prova quer testemunhal – FF, técnico que procedeu à visita ao local – quer o próprio auto de vistoria (doc. 3 com o PIC), não contém a menção a qualquer mediação que tenha sido feita, aliás a testemunha FF indicou até que não se tinha acesso ao contador, o que impediria a contagem.
LVIII. E, aduza-se como supra se alegou, para o facto do Tribunal a quo ter dado como provado que se tratou de uma ligação direta e da colocação de um fusível, o que tecnicamente são dois conceitos distintos, e que dependendo de cada um, seria ou não possível apurar se existia um consumo real.
LIX. Certo é que a prova – testemunho FF e auto de vistoria (doc. 3 com o PIC), não permitem aferir que existiu uma medição, e por conseguinte, torna-se também por aqui impossível de calcular o prejuízo.
LX. Destarte, o Tribunal a quo devia ter julgado como não provado os factos 8 e 16 constantes da sentença de que ora se recorre, atenta a contradição insanável de que padece a fundamentação, pelo que nos termos do disposto no art.º 412º, nº 3, al. a) do CPP, este facto foi incorretamente julgado.
LXI. O Tribunal a quo considerou provado que: “9. Agiu o com o propósito concretizado de se apropriar de energia eléctrica da rede pública de baixa tensão para si e para a sua ex-companheira e filhos, por forma a usufruírem da mesma no interior da respectiva residência, onde habitou e habitam estes últimos, sem proceder ao correspondente pagamento, o que logrou, bem sabendo que aquela energia não lhe pertencia e que agia sem o conhecimento e contra a vontade da sua legítima proprietária.” e “10. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei e tinha a necessária capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.”.
LXII. O Tribunal a quo também aqui entra em contradição, porquanto dá como provado que só foi detetado o consumo em ........2019, em simultâneo que o arguido saiu do local da prática dos factos no final de 2016, valorando como credíveis os depoimentos das testemunhas EE, GG e HH, e ignorando todo o acervo documental (ou ausência dele) que demonstram o contrário.
LXIII. Por uma questão de economia processual dá-se aqui por integralmente reproduzido tudo quanto se disse na impugnação do facto 7, por se aplicar, na mesma lógica.
LXIV. Destarte, o Tribunal a quo devia ter julgado como não provado os factos 9 e 10 constantes da sentença de que ora se recorre, atenta a contradição insanável de que padece a fundamentação, pelo que nos termos do disposto no art.º 412º, nº 3, al. a) do CPP, este facto foi incorretamente julgado.
LXV. Depois de uma análise rigorosa da prova produzida, constatamos que a a decisão recorrida sustenta a sua convicção, apenas no depoimento, que constitui prova indireta (ainda que não existe qualquer prova, sequer indiciária, que ligue o arguido ao local da prática dos factos e, ainda mais, que comprove a prática do ilícito típico, por este), das testemunhas EE, GG e HH, ainda que nenhuma delas (para além das inúmeras contradições nos depoimentos para os quais se remete supra), tenha conseguido afirmar que o arguido viveu no local da prática dos factos, no momento em que ocorreu o consumo, antes pelo contrário, acabaram por confirmar que tal consumo e benefício foi das próprias testemunhas.
LXVI. Conforme resulta da própria fundamentação invocada pelo Tribunal a quo e da prova coligida nos autos não resulta que o arguido tivesse residido no local da prática dos factos, entre o período temporal em que o Tribunal baliza os alegados factos praticados – ... de 2016 a ... 2019 (exercício que se faz, não porque o Tribunal tenha identificado de forma clara o período dos factos, mas por via dos valores que o mesmo admite como provados, cujo cálculo é efetuado entre estas datas),e, muito menos, que tivesse procedido à ligação direta ao contador para consumo de energia elétrica (como o próprio Tribunal a quo, em contradição na própria fundamentação, acaba por admitir).
LXVII. Sublinhe-se, uma vez mais, que não existe um único meio de prova que coloque ou ligue o arguido ao facto ilícito típico em crime, nem ao local dos factos.
LXVIII. O Tribunal a quo ao dar como provados, designadamente, os factos ora impugnados, constantes da sentença ora objeto de recurso, os quais não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art." 127.", do CPP.
LXIX. Se os factos n" 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 13 e 16, constantes nos factos dados como provados na sentença ora objeto de recurso, tivessem sido dados como não provados, o recorrente teria necessariamente de ser absolvido.
LXX. A convicção do Tribunal, quanto à autoria do ilícito pelo Arguido, assentou essencialmente nos depoimentos das testemunhas EE, GG e HH, ex-companheira e filhos, respetivamente do arguido, cujos testemunhos são contraditórios entre si, bem como com a prova documental junta aos autos, como supra se aduziu.
LXXI. É, assim, evidente a insuficiência probatória para a decisão da matéria de facto provada.
LXXII. Pelo exposto, o Tribunal a quo ao ter condenado o recorrente violou ainda o princípio do in dubio pro reo consagrado no art.º 32º da CRP, o qual deveria ter sido interpretado e aplicado no sentido da sua absolvição.
LXXIII. Assim sendo, a condenação do recorrente é uma violação flagrante do disposto no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e do Princípio in dubio pro reo, pelo que se encontram errada e incorretamente dados como provados os factos constantes dos pontos supra indicados – inconstitucionalidade que aqui se alega para todos os efeitos legais, na medida em que a fundada dúvida instalada, então, deve beneficiar o arguido, para que não prevaleça a condenação de um possível inocente.
LXXIV. Na sequência do supra alegado e não tendo o recorrente praticado o crime em que foi condenado, deve o pedido de indemnização civil ser julgado improcedente, por não provado.
LXXV. O Tribunal a quo valorou negativamente a não comparência do arguido em julgamento, entendendo que tal refletia um desinteresse pela sua situação processual, contudo da análise dos presentes autos, resulta que após a prestação de TIR, designadamente em .../.../2021- REF.ª CITIUS 29734134, foi requerida constituição de arguido e TIR, do ora Recorrente, quando este já o tinha feito em 2020, sendo que todas as notificações quer em fase de inquérito, quer já em fase de julgamento passaram a ser feitas para a ... e depois para a ..., ... (aliás que consta no despacho de acusação), moradas que o Arguido desconhece e que diferem da prestada no TIR.
LXXVI. Ora, o decurso dos anos desde a prestação do TIR, a ausência de notificações, nos anos subsequentes, por conta das notificações efetuadas para moradas distintas das do TIR, e a situação oncológica por que o Arguido passou, o que gerou vários constrangimentos, levaram a que o mesmo não tivesse voltado a ter informações sobre o processo e acabasse por não receber as notificações.
LXXVII. Posto isto, muito lamenta o Arguido pelos infortúnios que impediram o seu exercício de direito de defesa, ao abrigo do princípio do contraditório, nas fases processuais anteriores.
LXXVIII. Com efeito, impõe-se prover o presente recurso, e ser decretada a absolvição do recorrente nos precisos termos supra expostos.”
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, impugnando os seus fundamentos de facto e de direito, concluindo pela sua improcedência.
Nesta instância, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto aderiu aos fundamentos da resposta produzida pelo Ministério Público na 1.ª instância, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
V- Questões a decidir
Resulta do art.º 412.º n.º 1 do Código de Processo Penal (e do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995) que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sequência da respetiva motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido por si formulado, de forma a permitir o conhecimento das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida, sem prejuízo, das questões de conhecimento oficioso, que eventualmente existam.
São os seguintes os temas colocados pelo recorrente:
- impugnação da matéria de facto (factos provados 3 a 10, 13 e 16);
- violação do princípio da livre apreciação da prova;
- violação do princípio in dubio pro reo.
VI- Fundamentos de direito
Move-se o recorrente quanto à impugnação da matéria de facto entre a impugnação ampla da matéria de facto, prevista no art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do Código de Processo Penal (doravante CPP) e a revista alargada, prevista no art.º 410.º, n.º 2 do CPP).1
“Iº A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma;
IIº No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs3 e 4 do art.º 412º do C.P. Penal.”, assim, Acórdão deste Tribunal Superior (Jorge Gonçalves), de 29/3/2011, in www.dgsi.pt2.
“Como vem entendendo, sem discrepância, este Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os "pontos de facto" que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham "decisão diversa" da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art.º 412.º, n.º 3, al. b), do CPP –, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer.”, neste sentido, ver Acórdão do STJ de 31 de maio de 2007 (Simas Santos), in www.dgsi.pt3.
O n.º 4 do referido art.º 412.º acrescenta que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Há, assim, uma dupla exigência formal quando os recorrentes pretendem ver reapreciada a matéria de facto:
1.ª- exige-se a identificação dos concretos factos que devem ser considerados incorrectamente julgados (não é bastante a sua indicação genérica);
2.ª exige-se a indicação das provas (ou a falta delas) que impõem decisão diversa, com a referência concreta das passagens da gravação em que se funda a impugnação, com a identificação do meio de prova ou meio de obtenção de prova respectivos e, caso o meio de prova tenha sido gravado, é exigida a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal).
Com esta dupla exigência formal, o legislador pretende seja feita uma delimitação objectiva do recurso, que assim deve revelar, a par da fundamentação do que é pretendido, o esclarecimento dos objectivos pretendidos com a sua interposição.
Não está em causa, com o recurso da matéria de facto, a realização, pelo tribunal de recurso, de um novo julgamento, mas tão-só analisar se o realizado em 1.ª instância cumpriu os critérios legais na respectiva produção de prova e a valorou de forma consentânea com tais critérios, sempre tendo presente o elevado grau de conformação da convicção por força do princípio da livre apreciação da prova (art.º 127.º do Código de Processo Penal).
«O tribunal superior procede […] à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito»4.
O recurso interposto, no que diz respeito à impugnação da matéria de facto não tem a menor viabilidade, considerando que não cumpriu, minimamente, o ónus de impugnação especificada que é imposto pelo art.º 412.º do CPP; o que o recorrente faz é apresentar a sua versão factos, “pegando” em excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas ou fazendo alusão a prova documental, mas sem que tais elementos de prova sejam suficientes para pôr em crise a convicção do tribunal a quo para concluir pela factualidade provada por si posta em causa.
Afirma o recorrente que não há prova bastante sequer para afirmar que viveu na casa (a qual, diga-se, conforme foi bem explicado pela testemunha EE, até era da mãe do recorrente, já falecida, e, portanto, é propriedade do arguido, muito embora não se saibam quaisquer pormenores relativos à herança de que tal habitação fará parte), mas essa é matéria que, de forma unânime, ainda que com uma definição temporal não totalmente precisa, decorre dos depoimentos da ex-companheira do arguido e dos seus filhos (imprecisão esse, aliás, com reflexo nos factos provados, maxime, nos que foram objecto da alteração não substancial comunicada no decorrer da audiência e que não mereceu do arguido qualquer oposição, sequer prazo para a sua defesa).
O recorrente põe em causa a isenção dos depoimentos prestados pela ex-companheira e seus filhos, mas essa é a sua convicção (respeitável, mas interessada), mas não a do tribunal que sobre os mesmos teceu as considerações necessárias a permitir compreender por que motivo lhes pareceram credíveis (tudo conforme supra se deixou transcrito), no exercício essencial de transparência e objectividade que deve caracterizar a convicção do tribunal.
Como bem se esclarece na decisão recorrida, a conclusão pela autoria da prática dos factos por parte do recorrente é fruto da conjugação de elementos objectivos conhecidos (a presença do recorrente na habitação no período que resulta provado com relevância para a prática dos factos, mas que já ocorria antes, o encargo, após a separação da companheira, com a conta da eletricidade, o facto de ter conhecimentos de eletricidade, conforme foi explicado pela testemunha HH, que concretizou, a instância da defesa, ter o seu pai trabalhado para o ... como eletricista – cfr. minuto 8 e 15 segundos ao minuto 9 do seu depoimento), dos quais retirou a ilação seguinte, perfeitamente legítima e de acordo assim com um juízo de normalidade e de experiência comum, recordemos: “De facto, apesar de não haver prova directa da autoria dos factos pelo arguido, pois nenhuma das testemunhas a eles assistiu, a conclusão não pode ser outra, à qual se chega por prova indirecta, atentos os depoimentos das testemunhas que nos mereceram credibilidade, sendo que o arguido era, pois, para além das testemunhas, a única pessoa com interesse no cometimento dos factos, reunindo condições para o fazer.
E esta ilação mostra-se legítima e mais não é do que fazer actuar uma presunção judicial dentro dos limites permitidos pelo princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do Código de Processo Penal. Com efeito, “[…] na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.” (assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015, de 12/08, relatado por Cura Mariano5).
Entre os depoimentos de HH e a sua mãe, EE, não há qualquer contradição, o que se constata, da sua conjugação, é que não há uma mimetização do seu teor, antes complementaridade; por exemplo, EE explicou que o arguido ficou com o encargo do pagamento da eletricidade e a ela ficou, em contrapartida, o encargo pelo pagamento da água, fazendo a este respeito referência a uma dívida acumulada superior a três mil euros, que teve que pagar a prestações, juntamente com as contas mensais (não tendo explicado como tal dívida surgiu, porque, diga-se, também não lhe foi perguntado por qualquer dos intervenientes processuais); já o seu filho HH (na mesma sessão da audiência, portanto, sem ter podido coordenar “versões” com a mãe, o que se poderia presumir caso tivesse prestado o seu depoimento numa da sessões seguintes), afirmou que a dívida acumulada da conta da água decorreu da circunstância de o arguido não ter feito os pagamentos enquanto viviam ainda todos juntos, o que levou a mãe, quando o arguido saiu de casa, a ter que suportar tal pagamento em dívida, mais as suas contas mensais, pelo que, quando se dá a sua saída, o arguido ficou com o encargo pelo pagamento da eletricidade (o que se mostra perfeitamente razoável e não traduz qualquer contradição com a versão da sua mãe).
Por outro lado, analisada a matéria de facto provada, em conjugação com a respectiva convicção, não vislumbramos qualquer dos vícios descritos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, portanto, não detectamos a partir do texto da decisão recorrida qualquer erro notório na apreciação da prova (damos aqui por reproduzidas, por exemplo, as considerações tecidas a propósito da presença do arguido na residência entre os anos de 2011 e 2016, sendo que o recorrente afirma, noutro momento uma contradição insanável entre as expressões “uma ligação directa” e “colocou um fusível” por traduzirem duas formas contraditórias entre si, tecnicamente impossíveis de existir entre si, mas que não fundamenta para além da sua própria afirmação, como se tal pertencesse ao domínio dos factos notórios, o que não é manifestamente o caso), pelo que mais não resta do que concluir pela sua imodificabilidade. Noutra perspectiva, esclareça-se que a prova da residência de alguém em certo local não depende de qualquer documento, bastando o depoimento a tal respeito prestado pelas testemunhas que de tal circunstância têm conhecimento directo, o que foi precisamente o caso.
Nenhuma dúvida se colocou ao tribunal a quo (vertente subjectiva), nem esta se mostra justificada por força de elementos probatórios (vertente objectiva), ou da sua ausência, produzidos (ou não) em audiência, pelo que nenhum fundamento se reconhece para, ao contrário do pretendido pelo recorrente, fazer actuar o princípio in dubio pro reo.
Quanto à afirmação do recorrente segundo o qual o tribunal a quo valorou negativamente a não comparência do arguido no julgamento (em momento algum no decorrer da tramitação processual o arguido arguiu qualquer nulidade relativamente à sua incorrecta notificação dos actos processuais praticados, quer na fase de inquérito, quer na fase de julgamento, pelo que não se compreende, por exemplo, o sentido da sua conclusão LXXV) não cremos que corresponda exactamente à realidade. Com efeito, o tribunal a quo retira da ausência do arguido à audiência o seu desinteresse pelo seu decorrer, o que nos parece legítimo e não traduz qualquer posição de princípio contra o arguido, mas sobretudo revela alguma frustração por não ter podido contar com a sua versão dos factos (o que, aliás, é coerente com a tentativa de o fazer comparecer com a emissão, infrutífera, de mandados de detenção).
Termos em que se considera inexistir qualquer fundamento para o recurso interposto.
VII. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, que se fixam em 4 UCs.
Notifique.

Lisboa, 4 de Junho de 2025
Texto processado e revisto integralmente pelo relator – art.º 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Mário Pedro M.A.S. Meireles
Cristina Almeida e Sousa
Rui Teixeira
_______________________________________________________
1. O recorrente não suscita a renovação da prova, que se mostra prevista na al. c) do n.º 3 do art. 412.º do CPP.
2. https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8128b9801996b3c18025788d003ad395?OpenDocument
3. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/146214f92ef6444b802572ed0033ca37?OpenDocument
4. Cf. Ac. TC. n.º 59/2006, de 18 de Janeiro de 2006, processo n.º 199/05, da 2.ª secção, publicado no DR - II Série, de 13-04-2006.
5. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150391.html.