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INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA
Sumário
1. Nos termos do art.º 410º/2-a) é vício de sentença a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão tomada. 2. No nosso direito processual penal rege o princípio da investigação ou da verdade material, por força do qual o Tribunal tem o dever de indagar e esclarecer todos os factos sujeitos a julgamento, de forma a poder construir, por si mesmo, o suporte da sua decisão. Isto, sem prejuízo dos limites que o referido princípio comporta, determinados pelos princípios da necessidade, da legalidade, da adequação e da obtenebilidade (art.º 340º/1, do CPP). 3. Como decorrência necessária desse princípio base, a lei processual penal caracteriza a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada como vício, de conhecimento oficioso (art.º 410º/2-a), do CPP). 4. O vício ocorre quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a correcta aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação, por não terem sido apurados todos os elementos necessários para se poder fundamentar a aplicação do direito, sendo que, no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o Tribunal poderia e deveria ter procedido a mais profunda averiguação, de modo a alcançar, justificadamente, a solução legal e justa. 5. No que concerne aos rendimentos do arguido, consta do processo contido no citius a atribuição de uma pensão mensal, pela Caixa Geral de Aposentações, no valor mensal de 2.543.33 €. 6. São elementos que estão acessíveis no Citius, ou seja, são factos que têm que se tomados em conta porque revelam para a decisão justa da causa, enquanto critério da determinação da medida da pena (artigo 71º /2-d), do CPP), critério de fixação do montante da indemnização civil (artigos 129º/CPP e 562º e ss do Código civil) e de reparação oficiosa da vítima (artigo 82º/A, do CPP), sob pena de omissão de cumprimento do ónus a que respeita o artigo 340º/CPP e consequente verificação do vício em análise. 7. À cautela foi cumprido o contraditório, não porque se entenda que o arguido não sabe que aufere essa pensão e o seu montante, mas porque não resulta dos autos, com segurança, que o seu Mandatário tenha tido acesso ao documento. 8. A omissão da consideração dessa pensão como facto provado constitui o vício em causa, que se repara aditando um novo ponto ao provado com o conteúdo correspondente. 9. As reparações são previstas no artigo 82º-A, do CPP, são fixadas, necessariamente, segundo critérios de equidade, por aplicação do disposto no artigo 496º do Código Civi,l estando tais critérios sujeitos ao regime definido pelo artigo 494º/CC, ou seja, mediante consideração do «grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem». 10. A ponderação a fazer tem por reporte os factos vistos na sua globalidade as condições da vítima e do agressor. 11. Num justo grau de compensação, o valor a atribuir não deve ser um valor meramente simbólico, o que no caso é difícil atenta a natureza dos actos delituosos praticados e a sua permanência ao longo de mais de quarenta anos. 12. Ponderando a factualidade dada como provada, os factos vistos na globalidade e no seu contexto particular, e as condições económicas do condenado com um rendimento mensal de, pelo menos, 3.343,33, por recurso a regras de equidade, fixa-se reparação devida à ofendida em € 8.800,00, calculando uns simbólicos 200,00€ por cada ano de sujeição ao crime de violência doméstica. 13. Face à perversidade e iniquidade com que o arguido se relacionou com a sua vítima, durante 44 anos, exige-se-lhe, como forma minimamente simbólica de um princípio de ressocialização, um gesto que funcione como reforço da ponderação que carece de fazer sobre a forma de encarar o próximo, pelo que se subordina a suspensão da execução da pena ao pagamento da quantia em causa no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado do acórdão.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, AA, nascido no dia ...-...-1958, foi:
- Absolvido da prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto punido (p. e p.) pelo artigo 86.º n.º 1 alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;
- Condenado na pena de dois anos e dois meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1 al. a) e n.º 2 al. a) do Código Penal (CP), suspensa na sua execução pelo período de dois anos e dois meses, mediante cumprimento de regime de prova, assente em plano individual a elaborar pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, vigiado e apoiado por esta entidade, que inclua, pelo menos, a obrigação de frequência de um programa para agressores de violência doméstica;
- Condenado a pagar uma indemnização a BB, no valor de € 1.000,00, a título de reparação dos danos não patrimoniais por aquela sofridos com as suas condutas;
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II- Fundamentação de facto: Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1. O arguido e BB (doravante designada por BB) iniciaram uma relação análoga à dos cônjuges há cerca de 44 anos e casaram um com o outro no dia ...-...-1986 e encontram-se divorciados desde o dia ...-...-2020.
2. Fruto daquela união nasceram três filhos:
- CC, no dia ...-...-1978;
- DD, no dia ...-...-1981; e
- EE, no dia ...-...-1984.
3. A partir dos últimos 22 anos de relacionamento, o casal residiu na habitação sita na ....
4. Entre os anos de 2008 e 2019, o arguido esteve em comissões de serviço, primeiro em ... e depois no ..., como … da Polícia …, deslocando-se à residência comum de oito em oito dias ou de quinze em quinze dias.
5. Desde o início do relacionamento e até se divorciarem, por várias vezes, no interior da residência comum, o arguido iniciava discussões com BB.
6. Na sequência dessas discussões, o arguido dirigia-se a BB, dizia-lhe: “Burra, Puta, Vaca” e ainda lhe puxou os cabelos em 2 a 3 ocasiões.
7. No ano de 1985, o arguido dirigiu-se a BB e desferiu-lhe um murro na cara, causando-lhe o embate da face na esquina de um tanque ali existente.
8. Como consequência direta e necessária desse comportamento do arguido, BB fraturou o maxilar.
9. Por várias vezes, após o casamento, da parte da noite, no interior da residência comum, o arguido disse a BB que queria que ela mantivesse com ele atos sexuais de natureza oral, proferindo as seguintes expressões: “Mama, chupa e engole”.
10. Porque BB se recusou a fazê-lo, o arguido dirigiu-se a ela e disse-lhe: “Já fodi muitas putas em cima da secretária no trabalho e elas perguntavam se queria que elas engolissem ou cuspissem”.
11. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o ano de 2010 e o ano de 2014, durante o dia, no interior da residência comum, BB encontrava-se deitada na cama após ter sido operada a uma …, encontrando-se em repouso absoluto, ficando, por indicação médica, durante duas semanas, impedida de se alimentar sem ajuda e de se levantar.
12. Nessa ocasião, o arguido entrou no quarto do casal, dirigiu-se a BB e exigiu-lhe que assinasse uns documentos que ele levava com ele.
13. Nessa ocasião, BB disse ao arguido que não assinava nenhum documento por desconhecer do que se tratava.
14. Irritado, o arguido, colocou o braço debaixo do pescoço de BB e, com força, puxou-a para cima, sentando-a, e causando-lhe muitas dores no corpo
15. Cheia de dores, BB disse ao arguido, “olha que eu morro”.
16. Ele, indiferente, respondeu-lhe: “Não morres nada que eu não deixo. Assina-me essa merda”.
17. Então, com medo de continuar a ser agredida, BB assinou toda a documentação que o arguido lhe apresentou.
18. Em data não concretamente apurada, mas posterior, e quando ainda eram casados, no interior da residência comum, o arguido ordenou novamente a BB que assinasse vários documentos que ele tinha com ele.
19. Perante a recusa dela em assinar a referida documentação, o arguido, em tom de voz sério e grave, disse-lhe: “Ou assinas, ou parto-te os dentes todos”.
20. Com medo do que mais o arguido lhe pudesse fazer, BB assinou a documentação que o arguido tinha na posse dela.
21. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o ano de 2010 e o ano de 2014, no interior da residência comum, depois de BB chegar à habitação vinda do médico, e na sequência da mesma ir tomar banho e mudar de roupa interior, o arguido dirigiu-se a ela e disse-lhe “vais dar a cona ao médico?”.
22. Entre os anos de 2014 e 2019, por várias vezes, no interior da residência comum, o arguido dirigiu-se a BB e disse-lhe: “Puta. Vaca.”
23. No dia ...-...-2019, no interior da residência comum, na sequência de BB lhe ter dito que não cozinhava, não passava a ferro e não lhe lavava a roupa, o arguido disse-lhe, em tom de voz sério e grave que a matava antes de ir para tribunal.
24. No dia ...-...-2019, cerca das 16h30m, na sua residência, no interior do seu escritório, o arguido detinha na sua posse um cartucho para arma de caça, de calibre 12 mm.
25. Com as condutas acima descritas o arguido quis e conseguiu ofender BB na sua honra e dignidade, na sua integridade física, e na sua liberdade pessoal, para que esta se sentisse lesada na sua dignidade, bem sabendo que praticando tais atos no interior da residência comum do casal, estava a privá-la de qualquer possibilidade de reação, causando-lhe um profundo sentimento de insegurança.
26. O arguido atuou com o propósito alcançado de atingir e lesar o corpo e saúde de BB, sabendo que dessa forma lhe causaria dores e lesões.
27. Sabia o arguido que as expressões dirigidas a BB eram insultuosas e que a ofendiam na sua honra e consideração, o que logrou conseguir.
28. E que as expressões ameaçadoras que lhe dirigiu foram proferidas de forma a provocar-lhe receio e inquietação, o que logrou conseguir.
29. O arguido atuou sempre com intenção de maltratar física e psicologicamente BB, o que de facto veio a conseguir.
30. O arguido detinha a munição descrita em 24. sem ser portador de licença de uso e porte de arma ou de autorização para detenção da mesma no domicílio, ou possuidor de outro documento com força legal equivalente que o habilitasse a deter, conservar e manusear aquele tipo de munição.
31. O arguido sabia que não podia deter tal munição naquelas condições, que era necessário ser possuidor de documento habilitador da sua detenção e emitido pelas entidades oficiais competentes.
32. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
33. O arguido reside sozinho em casa própria e trabalha na área da …, auferindo mensalmente cerca de €800,00.
34. O arguido não possuiu antecedentes criminais.
35. O arguido trabalhou pelo menos durante 30 anos como funcionário da Polícia ..., cargo que ainda exercia em ........2019.
36. O cartuxo calibre 12mm referido em 24. dos factos provados, é uma munição em uso na Polícia ... e que era utilizada diversas vezes pelo arguido no exercício das suas funções. Factos provados retirados do citius, a 9/5/2025 relativamente aos quais foi cumprido o contraditório nos termos dos artigos 4º/CPP e 3º/CPC:
37. O arguido recebe ainda uma pensão de aposentação, desde .../.../2024, fixada, neste momento em 2.543.33 €;
*** Factos não provados:
Não se provou que:
a. As discussões referidas em 5. fossem motivadas por ciúmes do arguido.
b. Na sequência dessas discussões, que o arguido, além dos nomes mencionados em 6., também dissesse: Cabra. Vai para a puta que te pariu. Não prestas. Não consegues nada. Monte de merda. Não vales nada. Eu mato-te. Eu arrebento-te a tromba toda. Dou cabo de ti e que lhe apertava o pescoço e desferia-lhe murros pelo corpo, pontapés nas pernas e pancadas com cintos.
c. Em consequência do facto descrito em 7. e 8. a vítima tenha sido operada no Hospital ... em Lisboa.
d. Na sequência do facto descrito em 23., que o arguido tenha erguido o braço, com a mão fechada, e que o tenha dirigido a BB.
e. O arguido não tenha atingido BB com a mão no corpo, porque a filha comum EE se colocou entre os dois a chorar.
f. Em data não concretamente apurada, mas situada no mês de ... de 2019, no interior da residência comum, na sequência de uma discussão relativa ao divórcio do casal, em que BB lhe disse que ele a andava a roubar para sustentar as “putas”, o Arguido se lhe tenha dirigido e dito que a matava antes de irem para tribunal e que a puta maior era ela.
g. O arguido tenha querido deter a munição nas circunstâncias descritas em 24.
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III- Fundamentação da aquisição probatória:
O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos termos que se transcrevem:
«O Tribunal formou a sua convicção quanto ao resultado probatório na análise crítica, segundo as regras da experiência e racionalidade das provas produzidas, as quais foram livremente valoradas nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal (CPP). O Arguido prestou declarações, negando essencialmente a prática dos factos criminais que lhe são imputados. Não colocou em causa o facto de terem sido casados, nem as datas de início e de cessação da relação amorosa Na sua versão dos factos, a relação entre ambos sempre foi pautada por frequentes desavenças e discussões dentro da habitação, negando, contudo, que alguma vez tenha proferido qualquer das expressões de carácter ofensivo que lhe são imputadas na acusação. O Arguido negou ainda ter alguma vez agredido fisicamente a vítima. O Arguido, confessou na sua generalidade a ocorrência do facto descrito em 23. tendo, no entanto, referido que não levantou a mão para agredir a vítima. Ainda sobre o facto descrito em 23., e consequentemente os factos não provados em d. e e., resultou do depoimento da testemunha presencial, FF, que efetivamente o Arguido ameaçou a vítima de morte, mas que não levantou a mão para lhe bater, razão pela qual o Tribunal acolheu esta versão dos factos. O Arguido confessou ainda que efetivamente detinha a munição descrita em 24., que se encontrava numa gaveta da sua secretária do escritório, mas que não tinha qualquer intenção de deter a referida munição e que aliás não tinha conhecimento de ter guardado a munição na sua secretária. Apesar de ter guardado a referida munição, avançou como única explicação para a detenção da mesma o facto de ter trabalhado durante vários anos para a Polícia ... e, nesse âmbito, ter usado inúmeras vezes armas de fogo com as munições de iguais características, pelo que deverá por engano ter trazido a munição com essas características para sua casa e ficado depois esquecida durante anos no sítio onde foi encontrada. Tendo em conta a versão apresentada pelo o Arguido e o facto de ter sido confirmado nos autos que efetivamente aquele tipo de munição é utilizado pela Polícia ..., o Tribunal deu como não provado o elemento subjetivo relativo à detenção da munição, constante em g. dos factos não provados. A vítima, BB, prestou um depoimento espontâneo, lógico e coerente, apesar de se mostrar visivelmente triste com as situações ocorridas durante o período em que viveu com o Arguido. A vítima relatou alguns dos episódios constantes da acusação com bastante pormenor, descrevendo todas as situações ocorridas e julgadas provadas, pormenorizando algumas das expressões proferidas pelo Arguido, assim como as diferentes formas que foi agredida pelo Arguido (julgadas como provadas em 6. e 7.) e contextualizando os respetivos episódios em que tais agressões sucederam. Acabou mesmo por negar alguns factos constantes da acusação, designadamente por não se recordar se tal havia acontecido ou por não terem mesmo ocorrido como é o caso das agressões físicas descritas em b. dos factos não provados. Por estas razões, este depoimento, mereceu a credibilidade do Tribunal, ao contrário do que sucedeu com o depoimento do Arguido que negou a prática das agressões e das injúrias de modo pouco convincente, o que determinou que o tribunal considerasse provados os factos por ela relatados que constam da lista de factos julgados provados. O Tribunal valorou ainda o depoimento do filho DD, do qual resultou a confirmação da ocorrência da situação descrita em 7., e que a mesma ocorreu quando o mesmo tinha cerca de 5 anos de idade, o que confirma a data dada pela vítima. Resultou ainda do depoimento de DD, a existência de discussões entre os pais, desde que era pequeno, em que o Arguido injuriava constantemente a vítima nomeadamente chamando a mesma de “Burra” e outros nomes que a testemunha não conseguiu precisar. Relativamente ao facto julgado não provado em c., apesar de ter sido referido pela vítima que após a agressão sofrida ter sido levada ao hospital ... e submetida a cirurgia, não foram juntos aos autos quaisquer registos hospitalares dessa mesma intervenção, razão pela qual o Tribunal ficou com dúvidas inultrapassáveis relativamente à verificação deste facto, razão pela qual não o considerou provado. Relativamente à detenção de munição, além da confissão por parte do Arguido, o Tribunal valorou ainda o auto de busca e apreensão, o suporte fotográfico e os depoimentos dos agentes da PSP que procederam à referida busca e apreensão da munição em causa. As condições sociais e pessoais do Arguido foram relatadas pelo próprio tendo logrado convencer o tribunal da sua veracidade. A inexistência de antecedentes criminais do Arguido, resultou diretamente do teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.».
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IV- Recurso:
O Ministério Público recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem: «1.ª - Nos presentes autos, foi proferida sentença a qual, após submissão a julgamento do arguido AA julgou parcialmente procedente a acusação pública contra ele deduzida e, em consequência, decidiu absolvê-lo da prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do disposto pela alínea e), do n.º 1, do artigo 86.º do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro e, bem assim, condenou-o pela prática de um crime de violência doméstico, agravado, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 2, alínea a), n.ºs 4, 5 e 6, do Código Penal, na pena de dois anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova. 2.ª - Não pode o Ministério Público conformar-se com tal decisão, porquanto considera que o Tribunal a quo incorreu no vício de contradição insanável, fez uma incorrecta apreciação da prova produzida e carreada para os autos, no que respeita ao crime de detenção de arma proibida e, bem assim, fixou a pena pelo crime de violência doméstica agravado em medida que se considera injusta e desadequada às circunstâncias apuradas. 3.ª - Os vícios a que se reporta o artigo 410.º, do Código de Processo Penal, têm de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo. 4.ª –Entendemos que a sentença de que ora se recorre padece do invocado vício, porquanto não poderia ter dado como provado a factualidade descrita em 24., 30., 31. e, simultaneamente, dar também como provado o ponto 36. e como não provado o descrito em g., havendo, em consequência, contradição insanável entre aqueles primeiros e o segundo e entre aqueles e o indicado facto não provado. 5.ª – E, bem assim, tais factos são ainda contraditórios com a motivação que da sentença se fez constar para os dar o Tribunal como provados / não provados. 6.ª – Com efeito, não se vislumbra como se pode simultaneamente considerar que o arguido detinha a munição descrita nos autos e nas circunstâncias apuradas, sabendo que a detinha e que não estava autorizado a detê-la, por não ter autorização, licença ou outro documento com força legal que o habilitasse a tal, e, ao mesmo tempo considerar que o arguido não quis deter a referida munição naquelas circunstâncias. 7.ª – Ademais, também não se vislumbra como a circunstância de “efectivamente aquele tipo de munição [ser] utilizado pela ...”, permite concluir pela não verificação do elemento volitivo do ilícito. 8.ª – A apontada contradição é insanável, na medida em que não é ultrapassável com recurso às regras da experiência, nem tão-pouco com recurso à decisão recorrida no seu todo, devendo ser reconhecido tal vício e extraídas as respectivas consequências legais. 9.ª – O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao incluir na matéria de facto provada o ponto 36. e ao incluir na matéria de facto não provada, o facto g. 10.ª – Com efeito, entende-se que terá de dar-se como não provado o que vem descrito no ponto 36. dos factos provados, porquanto o seu contrário resulta expressamente do documento de fls. 240; 11.ª - Ao invés, deverá dar-se como provado o que vem descrito em g., já que tal factualidade resulta da apreciação conjunta das declarações do arguido, do auto de busca e apreensão e respectiva reportagem fotográfica de fls. 68 a 71, em obediência às regras da lógica e da experiência comum. 12.ª – Procedendo, como se espera, a impugnação da matéria de facto nos moldes que expusemos, atento o constante dos pontos 24., 30., 31. e 32. que elencámos supra, forçoso é concluir que se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de detenção de arma proibida que vinha imputado ao arguido. 13.ª - O crime de detenção de arma proibida consuma-se com a mera detenção das armas ou munições previstas no Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por se considerar que tal detenção constitui uma conduta perigosa para vários bens jurídicos, sendo, por via disso, punida, sem se cuidar de saber se dessa conduta resulta ou não perigo concreto. 14.ª – Para a aplicação de uma pena, como consequência do cometimento de um crime, a punição em concreto terá sempre como limite máximo inultrapassável a culpa do agente e como limite mínimo, irrenunciável, a pena que se manifesta, no caso concreto imprescindível para se poder dizer que o bem jurídico violado foi, a final, efectivamente protegido e que as expectativas da comunidade nas normas de protecção estão, enfim, restauradas. 15.ª - Acresce que, de acordo com o disposto no artigo 70.º, do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, dar-se-á preferência à segunda, sempre que realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, que são, como se referiu, os fins elencados no artigo 40.º, do diploma. 16.ª – Por outra via, dentro dos mencionados limites mínimos e máximos, o julgador há-de encontrar no caso concreto, a pena ideal, ponderando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, as elencadas no n.º 2, do artigo 71.º, do Código Penal. 17.ª – No caso dos autos, quanto ao mencionado crime de detenção de arma proibida, há a considerar que as necessidades de prevenção geral se revelam elevadas, considerando sobretudo que se trata de um tipo de criminalidade que gera grande alarme social e sentimentos de insegurança na comunidade, porquanto muitas vezes se mostra associado à prática de outros ilícitos criminais, que atingem bens jurídicos pessoais e patrimoniais; já quanto às exigências de prevenção especial, importa realçar que, pese embora o arguido se mostre inserido social e familiarmente e não tenha quaisquer antecedentes criminais, o mesmo não demonstrou nos autos qualquer juízo de autocensura relativamente à conduta imputada; quanto ao seu grau de culpa, consideramos que o mesmo não se mostra elevado, atentas as concretas circunstâncias em que detinha a referida munição; por fim, há ainda a considerar que a ilicitude se tem por diminuta, considerando que se trata de uma munição, que não estava colocada na arma a que pertencia e encontrava-se em circunstâncias que não permitem concluir que o arguido a iria utilizar, no momento em que foi encontrada e apreendida. 18.ª – Donde, tendo em consideração todos as circunstâncias enunciadas, a favor e a desfavor do arguido, condenando este Venerando Tribunal AA em pena de multa, não inferior a 60 (sessenta) dias, fá-lo-á em medida justa e adequada aos factos que supra se elencaram. 19.ª – Não podemos, também, conformar-nos com a pena aplicada pelo Tribunal quanto ao crime de violência doméstica, porquanto, atendendo ao que supra se deixou dito quanto à determinação da medida da pena, se entende que a mesma se mostra desajustada às circunstâncias apuradas nos autos e, por isso, se revela uma pena injusta. 20.ª – Quanto a tal ilícito, deveria o Tribunal ter considerado que as exigências de prevenção geral são muito elevadas, considerando o número de cometimento de crimes de violência doméstica e as consequências dramáticas, no nosso país, estando a merecer cada vez mais atenção pela sociedade, havendo um sentido generalizado de preocupação, temor e alarme social; por outra via, também quanto a este ilícito as exigências de prevenção especial se mostram acentuadas, pois que, não obstante a inserção do arguido e a ausência de antecedentes criminais, há que levar em conta a sua postura assumida em julgamento, negando a prática dos factos, imputando a pendência do presente processo a uma vontade da ofendida de deles retirar proventos económicos, não demonstrando qualquer juízo de autocensura relativamente aos factos praticados e ao desvalor das suas condutas, que não interioriza; 21.ª – Muito elevada é também a culpa do arguido, tendo agido com dolo directo e intenso, de modo reiterado ao longo de cerca de quarenta anos, com condutas particularmente violentas, quer física, quer verbalmente, especialmente desvaliosas, com o intuito de rebaixar, humilhar e maltratar a ofendida, denegrindo a sua imagem, colocando em causa a sua dignidade enquanto mulher, esposa e mãe, não se coibindo o arguido de agir daquele modo, sabendo que devia à ofendida um especial dever de respeito por a mesma ser a sua companheira de vida e mãe dos seus filhos. 22.ª – Também a ilicitude se tem por elevadíssima, ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, considerando não só o lapso temporal por que perdurou o comportamento do arguido, a elevada censurabilidade dos actos praticados, revelando um claro ascendente físico e psicológico sobre a ofendida, estando em causa condutas especialmente degradantes, humilhantes e de rebaixamento. 23.ª – Não é também despiciendo realçar que as funções exercidas pelo arguido para a Polícia ... apenas aumentam o carácter desvalioso da sua conduta, pois que, neste aspecto, se encontra num patamar mais levado do que o considerado “homem médio”, sendo ainda mais exigível ao arguido, por força das mencionadas funções, que pautasse a sua conduta, mormente na sua vida privada e de intimidade, de acordo com as normas legais e societárias, abstendo-se de praticar factos criminosos. 24ª – Pelo que, tendo em consideração todas as circunstâncias enunciadas, a favor e a desfavor do arguido, deverá este Venerando Tribunal alterar a medida da pena em que o arguido foi condenado, fixando-a em pena de prisão, nunca inferior a quatro anos, medida que se mostra justa e adequada aos factos que supra se elencaram, não se mostrando ultrapassada a culpa do arguido, mantendo-se a suspensão da execução de tal pena, nos termos definidos na sentença em crise e ainda com a condição de o arguido pagar à ofendida, no período da suspensão, a quantia arbitrada a título de reparação, porquanto tal se mostra essencial para que este reconheça o desvalor da sua conduta e compreenda a condição de vítima da ofendida e os danos que lhe causou. 25.ª – Também quanto a esta se entende que a mesma foi fixada abaixo daquela que é a medida adequada às circunstâncias sub judice. 26.ª – Estando em causa danos não patrimoniais, o montante da sua reparação deve ser fixado equitativamente, tendo em atenção o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, designadamente a sensibilidade do indemnizando e o sofrimento por ele suportado. 27.ª – No caso dos autos, há a considerar a culpa elevada do arguido, o grau de violação do especial de dever de respeito que se lhe impunha face à demandante por ser o seu cônjuge há mais de quarenta anos e mãe do seus filhos, a intensidade dos danos físicos e psíquicos sofridos pela ofendida, que se prolongaram no tempo, a situação económica do arguido, e bem assim aquela que tem sido a nossa melhor jurisprudência na determinação de valores a título de reparação às vitimas do crime de violência doméstica, pelo que entendemos que deverá tal quantia ser fixada em, pelo menos, 3.000,00€ (três mil euros). 28.ª – Do que fica dito resulta que o Tribunal a quo, violou, entre o mais, o disposto nos artigos 127.º, do Código de Processo Penal, 86.º, n.º 1, alínea e), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, 26.º, da Constituição da República Portuguesa, 40.º e 71.º, do Código Penal e 496.º, n.º 1, do Código Civil. 29.ª – Pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que altere a matéria de facto, nos termos sobreditos e que, a final, condene o arguido AA, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 3, alínea e) e p), 3.º, n.º 1, alínea r) e z) e 86.º, n.º 1, alínea e), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 60 dias de multa e, bem assim, pela prática de um crime de violência doméstica, agravado, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 2, alínea a), n.ºs 4, 5 e 6, do Código Penal, em pena não inferior a quatro anos de prisão, ainda que suspensa na sua execução e altere a quantia fixada a título de reparação pelos danos sofridos pela ofendida para 3.000,00€ (três mil euros). 30.ª – Com o que, só assim, farão Vossas Excelências, a habitual e melhor Justiça!».
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Contra-alegou o arguido pugnando pela improcedência do recurso.
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Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta aderiu à contra-motivação.
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V- Questões a decidir:
Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
As questões colocadas pelo recorrente, Ministério Público, são:
- Vício de contradição insanável relativamente ao conteúdo dos pontos 24, 30, 31 e 36 do provado e g) do não provado;
- Impugnação do conteúdo do ponto 36 do provado;
- Verificação do crime de detenção de arma proibida e condenação consequente;
- Desajuste da pena aplicada pelo crime de violência doméstica, por insuficiência para promoção dos fins das penas;
- Desajuste do cúmulo jurídico das penas.
- Insuficiência do montante fixada a título de reparação pelos danos causados;
- Subordinação da suspensão da pena única à condição do pagamento do montante fixada a título de reparação.
Oficiosamente há que suprir um vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
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VI- Fundamentos de direito:
Do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
Visto o provado no ponto 33 é manifestamente inverosímil o que dele consta. Considerar provado que um advogado, em exercício, aufere rendimentos inferiores ao salário mínimo só se pode justificar mediante uma especial argumentação, que torne credível essa asserção, sendo que, no caso, isso não ocorre porque a fundamentação refere radicar unicamente nas declarações do arguido.
Dispõe o artigo 428º/CPP que as Relações conhecem de direito e de facto.
Nos termos do art.º 410º/2-a) é vício de sentença a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão tomada.
O vício em causa, tal como os demais a que se reporta o nº 2 do art.º 410º/CPP, tem que resultar do texto da decisão recorrida, de per se, ou em conjugação com as regras de experiência comum e ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito encontrada porque não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa.
No nosso direito processual penal rege o princípio da investigação ou da verdade material, por força do qual o Tribunal tem o dever de indagar e esclarecer todos os factos sujeitos a julgamento, de forma a poder construir, por si mesmo, o suporte da sua decisão. Isto, sem prejuízo dos limites que o referido princípio comporta, determinados pelos princípios da necessidade, da legalidade, da adequação e da obtenebilidade (art.º 340º/1, do CPP).
Como decorrência necessária desse princípio base, a lei processual penal caracteriza a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada como vício, de conhecimento oficioso (art.º 410º/2-a), do CPP). O vício ocorre quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de factorelevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a correcta aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação, por não terem sido apurados todos os elementos necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição (1).
Por outras palavras, aí, os factos provados são insuficientes para fundamentar a aplicação do direito, sendo que, no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o Tribunal poderia e deveria ter procedido a mais profunda averiguação, de modo a alcançar, justificadamente, a solução legal e justa (2) e (3). «Tal vício ocorre “(…) quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, ou seja, quando: (1) os factos provados não são suficientes para justificar a decisão; (2) o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; (3) no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do artigo 340º do CPP, o tribunal podia e devia ter ido mais longe, e não o tendo feito ficaram por averiguar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa (…)» (4) (sublinhado nosso).
No caso em apreço, e no que concerne aos rendimentos do arguido, consta do processo contido no citius para além de outros elementos relativos ao arguido, as prestações recebidas por este pela Caixa Geral de Aposentações (CGA) e pela Segurança Social. São elementos que estão acessíveis no Citius, ou seja, são factos que têm que se tomados em conta porque revelam para a decisão justa da causa, enquanto critério da determinação da medida da pena (artigo 71º /2-d), do CPP), critério de fixação do montante da indemnização civil (artigos 129º/CPP e 562º e ss do Código civil) e de reparação oficiosa da vítima (artigo 82º/A, do CPP), sob pena de omissão de cumprimento do ónus a que respeita o artigo 340º/CPP e consequente verificação do vício em análise.
Ora verificado os factos contidos nos referidos documentos contidos no citius sobre os proventos do autor, relevantes para a fixação da reparação a arbitrar, encontramos a atribuição de uma pensão mensal, pela Caixa Geral de Aposentações, no valor de 2.543.33 €.
À cautela foi cumprido o contraditório, não porque se entenda que o arguido não sabe que aufere essa pensão e o seu montante, mas porque não resulta dos autos, com segurança, que o seu Mandatário tenha tido acesso ao documento.
A omissão da consideração dessa pensão como facto provado constitui o vício em causa, que se repara aditando um novo ponto ao provado com o conteúdo correspondente.
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2- Do vício de contradição insanável relativamente ao conteúdo dos pontos 24, 30, 31 e 36 do provado e g) do não provado:
Entende o Ministério Público que ocorre o vício de contradição insanável entre os referidos pontos do provado e do não provado porquanto, essencialmente:
- no ponto 31 do provado se estabelece que o arguido sabia que não podia deter a munição referida no ponto 24 do provado e na alínea g) do não provado se refere que não se prova que o arguido tenha querido deter a munição nas circunstâncias descritas em 24,
- e porque do ponto 36 do provado consta que a munição é usada na Polícia ... e era utilizada diversas vezes por ele.
Invoca o teor da fundamentação da aquisição probatória relativa a esta matéria no âmbito do qual se refere «O Arguido confessou ainda que efetivamente detinha a munição descrita em 24., que se encontrava numa gaveta da sua secretária do escritório, mas que não tinha qualquer intenção de deter a referida munição e que aliás não tinha conhecimento de ter guardado a munição na sua secretária. Apesar de ter guardado a referida munição, avançou como única explicação para a detenção da mesma o facto de ter trabalhado durante vários anos para a Polícia ... e, nesse âmbito, ter usado inúmeras vezes armas de fogo com as munições de iguais características, pelo que deverá por engano ter trazido a munição com essas características para sua casa e ficado depois esquecida durante anos no sítio onde foi encontrada. Tendo em conta a versão apresentada pelo Arguido e o facto de ter sido confirmado nos autos que efetivamente aquele tipo de munição é utilizado pela Polícia ..., o Tribunal deu como não provado o elemento subjetivo relativo à detenção da munição, constante em g. dos factos não provados».
O referido vício ocorre sempre que, visto o elemento literal da sentença, a matéria de facto provada implica posições antagónicas e inconciliáveis entre si, nos factos descritos, entre estes e os não provados, ou entre os provados e/ou não provados e a respectiva fundamentação (artigo 410º/2-b), do CPP). Neste sentido o próprio acórdão do STJ citado no recurso, tirado no processo n.º 502/08.0GEALR.E1.S1, de 24.02.2016.
A própria fundamentação para a consideração da ausência do elemento volitivo do dolo, no que concerne à detenção da arma é, manifestamente, contraditória com o que consta provado, aliás como é contraditória a justificação dada pelo arguido para a detenção da munição.
O arguido assume que detinha a munição na gaveta da secretária (foi encontrada na busca, pelo que não havia como negar) e que foi ele quem a guardou, mas esqueceu-se da sua existência.
Ora, se a guardou, fosse pelo motivo que fosse e independentemente do tempo em que a manteve em casa, agiu necessariamente de forma livre, consciente e deliberada, o que acrescido aos elementos subjectivos do crime descritos no demais provado implica o cometimento do crime.
O facto de, na data das ocorrências descritas no provado, o arguido pertencer ao corpo da Polícia ... não interfere rigorosamente na apreciação sobre os elementos subjectivos do crime, porque não decorre desse exercício a necessidade de guardar em casa uma munição, ainda por cima num local normalmente de fácil e livre acesso - na gaveta da secretária.
Aliás, como infra se verá, este tipo de munição não era utilizado pelo arguido no exercício das suas funções, o que determina a invalidade da argumentação.
A munição só por si não constitui grave perigo para o bem jurídico tutelado pelo tipo de crime, de segurança e paz pública, mas por algum motivo ela foi guardada. Ainda que nada se prove sobre a detenção de arma compatível por parte do arguido, o certo é que a sua utilização em arma adequada, constitui um perigo reforçado para o bem jurídico tutelado, sobretudo se atentarmos na gravidade da violência física que se passava naquela habitação e na qualidade do agente, dotado de especiais conhecimentos sobre a proibição em causa.
Em face do exposto, impõe-se a passagem do conteúdo do ponto g) do não provado para o provado, passando a constar com a redacção de que «o arguido quis deter a munição nas circunstâncias descritas em 24».
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3- Da impugnação do conteúdo do ponto 36 do provado:
Ainda que sob a égide de vício de contradição, o Ministério Público impugna o conteúdo do ponto 36 do provado, com fundamento na existência do documento de folhas 240 dos autos, que se reporta a informação prestada pela Polícia ..., na sequência de pedido de informação sobre se, à data de ........2019 (data da realização da busca domiciliária), o arguido estava autorizado a deter as armas e as munições apreendidas nos autos, por força das funções que exercia para aquela Polícia. Da resposta consta expressamente que «Foi apurado, ... que, com exceção do cartucho calibre 12, as restantes munições correspondem ao calibre de armas que foram atribuídas ao Senhor Coordenador de Investigação Criminal AA, pelo que o mesmo estava autorizado a manter tais munições na sua posse».
Em causa não está um vício, na medida em que o documento nem sequer foi considerado no texto da sentença como fonte de prova, mas sim uma impugnação do provado, relativamente à qual se mostram cumpridos os ónus formais e substanciais a que se reporta o artigo 412º/3 e 4 do CPP, impondo-se, na realidade, a passagem do conteúdo do ponto 36 do provado para o não provado, passando a constituir a alínea g) do mesmo, na formulação de que «O cartuxo calibre 12mm referido em 24. dos factos provados, é uma munição em uso na Polícia … e que era utilizada diversas vezes pelo Arguido no exercício das suas funções».
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4- Da verificação do crime de detenção de arma proibida e condenação consequente:
Face ao aditamento ao provado do elemento volitivo do dolo, em decorrência do que acima se explicou, temos por verificados todos os elementos objectivos e subjectivos constitutivos da prática do crime de detenção de arma proibida, pelo qual o arguido foi acusado, p. e p. pelo artigo 86.º n.º 1 alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro
Dispõe o artigo 86.º n.º 1 e) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro que: «1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo: d) e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, (…); e) (…) bem como munições de armas de fogo não constantes na alínea anterior, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.».
Por sua vez o artigo 2.º, n.º 3, alínea e) da mesma Lei define “«cartucho» [como] o recipiente metálico, plástico ou de vários materiais, que se destina a conter o fulminante, a carga propulsora, a bucha e a carga de múltiplos projéteis, ou o projétil único, para utilização em armas de fogo com cano de alma lisa» e a alínea p) que «Munição de arma de fogo» [é] o cartucho ou invólucro ou outro dispositivo contendo o conjunto de componentes que permitem o disparo do projétil ou de múltiplos projéteis, quando introduzidos numa arma de fogo».
O crime de detenção de arma ilegal é um crime de perigo abstrato, porquanto se consuma com a mera detenção das armas ou munições previstas, uma vez que a respectiva simples detenção constitui uma conduta perigosa para os bens jurídicos protegidos, de defesa da ordem e segurança públicas, em particular no que concerne à tutela de crimes contra a vida e a integridade física. É também um crime de realização permanente, considerando-se o início da conduta delituosa com qualquer dos comportamentos descritos e mantendo-se a mesma enquanto estes permanecerem.
Os elementos objectivos constitutivos do tipo de ilícito, são os descritos no provado, exigindo-se o dolo do agente em relação a todos eles, o que também se prova.
A pena aplicável é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Nos termos do art.º 40º/CP, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (nº 1), sendo que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (nº 2).
A partir da revisão do CP de 1995 a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador. É este, aliás, o critério da lei fundamental – art.º 18º/2, da CRP (5).
A função essencial da pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos, pela reeducação para uma inserção social adequada, funcionando a culpa do agente como limite à punição adequada.
Num sistema constitucional em que a dignidade da pessoa humana é pré-condição da legitimação da República, como forma de domínio político, e o direito à liberdade integra o núcleo dos direitos fundamentais, (6), a natureza da pena e o seu limite máximo fixar-se-ão, necessariamente, com respeito da salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que, social e normativamente, se imponham.
A sensação de justiça, essencial para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só a pena correspondente à sua a culpabilidade.
Ao definir a pena, o julgador deve procurar entender a personalidade do arguido, para, adequadamente, determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformidade a medida da censura pessoal do agente, ou seja, a medida correspondente à culpa manifestada.
Há que ter em atenção, porém, que aquilo que é “merecido” não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é também aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral (7).
Na determinação da pena, o Juiz deve procurar a pena menos grave, capaz, nas circunstâncias relevantes e concretas do caso, de se mostrar comunitariamente suportável, sob a perspectiva da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.
Toda esta concepção da pena pressupõe uma avaliação casuística acerca das circunstâncias do crime, pois que só assim pode funcionar a culpa como indicador do tipo de pena.
«A pena concreta deverá corresponder a uma intervenção penal enformada pelos seguintes princípios politico-criminais: i) princípio da prevenção geral positiva ou de integração; ii) princípio da culpa; iii) princípio da prevenção especial positiva ou de socialização; iiii) complexivamente, princípio da humanidade. Prevenção geral de integração significa - na formulação de Gunther Jakobs – “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, na ideia de que primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto”. Tutela não num sentido retrospectivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospectivo, traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada ou do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime. É neste sentido que importa ter em particular consideração que se à justiça compete o “estatuto de primeiro garante da consolidação dos valores fundamentais reconhecidos pela comunidade, com especial destaque para a dignidade da pessoa humana”, incumbe-lhe, então, no momento da iuris dictio, preservar a função de referência que a pena em concreto assume para a mesma comunidade no pressuposto de que, perante esta, “mais do que a moldura penal abstractamente cominada na lei, é a concretização da sanção que traduz a medida da violação dos valores pressupostos na norma”. Exigências de prevenção especial (ou, como parecerá ainda legitimo dizê-lo, prevenção da reincidência): i) positiva ou de socialização, se privilegiado o propósito da reinserção social, a ressocialização e/ou a socialização de um de-socializado; ii) negativa ou de inocuização quando, por pura exigência de defesa social se privilegie e procure a neutralização da perigosidade social do delinquente através da sua separação ou segregação» (8).
No caso concreto temos a detenção de um cartuxo que nada tem que ver com a actividade profissional desenvolvida pelo arguido.
O arguido confessou a materialidade da detenção, suportando a conduta numa versão desmentida oficialmente, o que significa que a confissão foi desacompanhada da demonstração do reconhecimento do mal do crime.
Agiu com dolo directo, demonstrando uma personalidade avessa às normas penais para si mais básicas, na medida em que se prendem com o exercício da sua profissão.
Se bem que este tipo de ilícitos seja alarmante pelo crescimento que se verifica de criminalidade violenta com uso de armas de fogo, no caso está em causa um só cartuxo e o arguido é primário.
Consideradas as necessidades de prevenção geral e especial demonstradas, a personalidade revelada e a forma de execução do crime, entende-se adequada a aplicação de uma pena de multa que se fixa em 60 dias.
Atendendo à sua situação económica, e considerando o que consta do provado a respeito, entende-se adequada a fixação da diária da multa em 8 euros.
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5- Do desajuste da pena aplicada pelo crime de violência doméstica, por insuficiência para promoção dos fins das penas:
Mais entende o Ministério Público que a pena fixada pela prática do crime de violência doméstica se mostra insuficiente para satisfazer os fins de prevenção geral e especial e desfasada da duração, violência e danos provocados na vítima.
A pena aplicável é de dois a cinco anos de prisão.
A pena aplicada foi de dois anos e dois meses de prisão.
Este tipo de crime exige medidas particularmente eficazes na perspectiva das necessidades de prevenção geral, fortíssimas face à frequência com que ocorre e aos danos que produz não só nas vítimas directas como nas demais pessoas que as rodeiam: particularmente filhos, netos e demais família.
É assustador quer o número de mortes associadas à sua prática, quer os efeitos que produz nos filhos, que muito frequentemente repetem, enquanto adultos, aquilo que aprenderam com o (execrável) exemplo do pai, que lhes provoca desequilíbrio (quando não destruição) emocional, que nunca ultrapassarão. Isto mesmo resulta de inúmeros relatórios sociais juntos aos processos, que descrevem infâncias eivadas de violência familiar, que replicam mais tarde, com a noção de que a violentação física e destruição emocional do próximo é uma ocorrência normal da vida.
No que se refere às necessidades de prevenção especial, elas são elevadíssimas no caso concreto.
Na verdade, o arguido não tem antecedentes criminais, não por falta da prática de factos susceptíveis de integrar crimes vários, mas por inacção da vítima.
No caso temos um crime de violência doméstica que se perpetuou durante cerca de 44 anos. Quarenta e quatro anos atravessam a juventude, a idade adulta e chegam à terceira idade: ou seja, são o essencial da vida de felicidade ou infelicidade de alguém – o que se passa com esta vítima.
Nesse crime estão contidos enxovalhos à honra e dignidade pessoal da ofendida, enquanto mulher, a quem o arguido chamava de «burra, puta, vaca», e enquanto sua esposa, a quem a quem imputava relações sexuais com o próprio médico e afirmava que ele próprio tinha sexo com “putas” no local de trabalho; crimes de ameaças de morte e de violência física; crimes de violência psicológica e ofensas e à integridade física, com puxões de cabelos, com murro na face provocando uma queda com fractura de maxilar, e obrigando a ofendida a sentar-se na cama, puxando-a com força por debaixo do pescoço para a obrigar a assinar documentos contra a sua vontade, quando ela estava em recuperação clínica na sequência de cirurgia a uma hérnia discal, com recomendação clínica de repouso absoluto, o que lhe causou dores no corpo; e crimes de coacção sexual - tudo isto praticado na casa comum do casal, onde viviam os três filhos menores de idade.
O arguido agiu sempre com dolo directo, com pleno (e especial) conhecimento da punibilidade das suas condutas e da gravidade dos danos provocados em toda a família próxima.
A negação dos factos provados, mesmo os relativos ao uso da munição em serviço, oficialmente desmentidas, constituem um forte indício da falta de reconhecimento do mal do crime - e deixam mesmo dúvidas sobre a eficácia da pena suspensa que lhe foi aplicada.
A integração familiar é inexistente, na medida em que vive sozinho e a conduta que manteve durante o casamento é claramente anómala, com a reiteração criminosa apresentada, praticada no seio da família, num país monogâmico, em que a lei exige respeito pelos deveres de fidelidade e respeito para com a pessoa do cônjuge, sob pena de permitir o divórcio com tais fundamentos. Tudo isto se mostra afrontado com a actuação do arguido.
Em face do exposto, considerando todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, funcionam como parâmetros para avaliar o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo e os sentimentos manifestados no cometimento do crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta face aos factos e a demonstrada falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no prolongamento da factualidade, entende este Tribunal adequada a fixação de uma pena de quatro anos de prisão, cuja suspensa na sua execução se mantém, mas por igual período de quatro anos, que é o mínimo que se revela adequado à efectiva ressocialização do arguido, face ao 44 anos com que seviciou a sua mulher.
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6- Do cúmulo jurídico das penas:
Estando em causa uma pena de prisão e uma pena de multa, de espécie diferente, portanto, o cúmulo jurídico equivale à junção das duas penas. Nesta situação, o legislador adoptou, no essencial, o regime de "acumulação material" entre a pena de prisão e a pena de multa, o que, no caso, implica que a pena seja de quatro anos de prisão suspensa na sua execução e sessenta dias de multa à taxa diária de oito euros.
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7- Da insuficiência do montante fixada a título de reparação pelos danos causados:
Entende o Ministério Público que o montante fixado a título de reparação pelos danos, ao abrigo do disposto no artigo 82º-A, do CPP, é desadequado ao fim visado de «dar uma proteção adicional às vítimas destes crimes, natural e especialmente fragilizadas por o seu agressor ser alguém muito próximo, dos quais muitas vezes dependem monetária e/ou psicologicamente, o que lhes diminui a capacidade de auto defesa, motivo pelo qual está o Tribunal obrigado a fixar uma indemnização», o que corresponde precisamente com a letra e espírito da norma.
No caso foi fixada uma indemnização de mil euros.
Neste tipo de reparação estão em causa prejuízos não patrimoniais, reportados a valores de ordem espiritual, ideal ou moral, também chamados de ressarcimento tendencial de angústia, da dor física, da doença, ou do abalo psíquico-emocional.
Estas reparações são fixadas, necessariamente, segundo critérios de equidade, por aplicação do disposto no artigo 496º do Código Civil estando tais critérios sujeitos ao regime definido pelo artigo 494º/CC, ou seja, mediante consideração do «grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem».
A ponderação a fazer tem por reporte os factos vistos na sua globalidade as condições da vítima e do agressor.
Sobre as condições da vítima nada consta da sentença e quanto ao agressor considerou-se provado o auferimento de um valor mensal de cerca de € 800,00, por actividade na área da advocacia, ao qual acresce a pensão de reforma que recebe desde .../.../2024, no montante actual de 2.543.33€ (não declarada pelo arguido no julgamento que se efectuou já em 2025). Significa isto que o arguido mentiu também quanto aos seus rendimentos, que, por regras de experiência comum aplicadas à actividade desenvolvida são pouco credíveis. Contudo somado o valor indicado de proventos da advocacia com a pensão da CGA, temos um rendimento mensal de 3.343,33.
Num justo grau de compensação, o valor a atribuir não deve ser um valor meramente simbólico (9), o que no caso é difícil atenta a natureza dos actos delituosos praticados e a sua permanência ao longo de mais de quarenta anos.
Ponderando a factualidade dada como provada, os factos vistos na globalidade e no seu contexto particular, e as condições económicas do condenado, por recurso a regras de equidade, fixa-se reparação devida à ofendida em € 8.800,00, calculando uns simbólicos 200,00€ por cada ano de sujeição ao crime de violência doméstica.
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8- Da subordinação da suspensão da pena única à condição do pagamento do montante fixada a título de reparação:
Tem razão o Ministério Público ao pretender a fixação da condição da suspensão da pena mediante o pagamento da compensação devida à vítima.
Face à perversidade e iniquidade com que o arguido se relacionou com a sua vítima, durante 44 anos, exige-se-lhe, como forma minimamente simbólica de um princípio de ressocialização, um gesto que funcione como reforço da ponderação que carece de fazer sobre a forma de encarar o próximo.
A suspensão da execução da pena será, pois, subordinada ao pagamento da quantia em causa no prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado do acórdão.
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VII- Decisão:
Acorda-se, pois, concedendo total provimento ao recurso, em:
1- Alterar o provado e o não provado nos seguintes termos:
i- Eliminar os pontos 36 do provado e g) do não provado;
ii- Aditar novo ponto 36 ao provado na seguinte redacção: «36. O arguido quis deter a munição nas circunstâncias descritas em 24»;
iii- Aditar um ponto 37 ao provado na seguinte redacção: «37. O arguido recebe ainda uma pensão de aposentação, desde .../.../2024, fixada, neste momento em 2.543.33 €.»;
iv- Aditar novo ponto g) ao não provado, com a redacção de que «O cartuxo calibre 12mm referido em 24. dos factos provados, é uma munição em uso na Polícia ... e que era utilizada diversas vezes pelo Arguido no exercício das suas funções»;
2- Condenar o arguido:
i- Na pena de sessenta dias de multa à taxa diária de oito euros, pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º n.º 1 alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro;
ii- Na pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período de quatro anos, subordinada à condição de o arguido comprovar nos autos o pagamento à ofendida da quantia de oito mil e oitocentos euros, no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado da decisão, a título de reparação por danos não patrimoniais;
iii- No pagamento dos referidos oito mil e oitocentos a título de reparação por danos não patrimoniais.
iv- No pagamento das custas crime, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs.
Lisboa, 4/6/2025
Maria da Graça dos Santos Silva
Mário Pedro M.A. Seixas Meireles
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Voto de vencida: No Acórdão em referência (processo 1287/19), votei vencida, pelas seguintes razões que passo a explicitar:
Como resulta do texto do Acórdão agora proferido pela Relação, o arguido AA, nascido no dia ...-...-1958, foi julgado no Tribunal de 1ª instância e aí:
- Absolvido da prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto punido (p. e p.) pelo artigo 86º nº 1 alínea e), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro;
- Condenado na pena de dois anos e dois meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do Código Penal (CP), suspensa na sua execução pelo período de dois anos e dois meses, mediante cumprimento de regime de prova, assente em plano individual a elaborar pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, vigiado e apoiado por esta entidade, que inclua, pelo menos, a obrigação de frequência de um programa para agressores de violência doméstica;
- Condenado a pagar uma indemnização a BB, no valor de € 1.000,00, a título de reparação dos danos não patrimoniais por aquela sofridos com as suas condutas;
Na sequência de recurso do MP interposto dessa sentença condenatória, veio este Tribunal da Relação a condenar o arguido pela prática do crime de detenção de arma proibida e a decidir também um agravamento do seu regime punitivo, no que respeita ao crime de violência doméstica, quer no que respeita ao quantum da sanção penal determinada, quer na parte respeitante à modalidade da suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
Ou seja, essa suspensão deixou de ser condicionada ao regime de prova, mas passou a depender unicamente ao pagamento à ofendida, no prazo de 6 meses, a contar do trânsito da sentença condenatória, da importância de fixada a título de indemnização, para reparação dos danos não patrimoniais, cfr dispositivo que aqui se reproduz:
“Acorda-se, pois, concedendo total provimento ao recurso, em: (…) 2- Condenar o arguido: i- Na pena de sessenta dias de multa à taxa diária de oito euros, pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º nº 1 alínea e), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro; ii- Na pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período de quatro anos, subordinada à condição de o arguido comprovar nos autos o pagamento à ofendida da quantia de oito mil e oitocentos euros, no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado da decisão, a título de reparação por danos não patrimoniais; iii- No pagamento dos referidos oito mil e oitocentos a título de reparação por danos não patrimoniais. (…)
Concordamos que o recurso do MP deve ser julgado procedente e no que respeita ao crime de violência doméstica agravado cometido pelo arguido, aceitamos como justo, o agravamento do regime punitivo nesta 2ª instância, no que respeita ao quantum da pena e sujeição da suspensão da execução da pena, ao pagamento à ofendida, do montante indemnizatório cível, de montante superior ao fixado na 1ª instância - desde que esse agravamento do montante indemnizatório a fixar pela Relação, seja também ele adequado e proporcional ao pedido do recorrente, à conduta danosa do agente e à sua situação de vida social e económica.
1) Assim, não concordamos de todo, tendo votado vencida, com a alteração da factualidade provada que foi efectuada nos moldes constantes do Acórdão, no que respeita ao montante dos rendimentos auferidos pelo arguido (diferentemente do que havia sido decidido na 1ª instância, considerou a Relação, estar provada, a atribuição de uma pensão mensal atribuída pela Caixa Geral de Aposentações ao arguido no valor de 2.543.33 €. a partir da consulta do citius), por em nosso entender, não existir qualquer fundamento legal, que justifique tal alteração. Desde logo, é certo que foi pelo MP recorrente, pedido um aumento do montante indemnizatório de € 1.000,00, fixado na 1ª instância, a título de reparação dos danos não patrimoniais, sofridos pela ofendida, mas não foi concretamente impugnado pelo MP, o montante de rendimentos auferido pelo arguido, que ficou apurado em julgamento.
Deste modo, o Tribunal da Relação, enquanto Tribunal de recurso, não tem legitimidade para efectuar diligências de investigação probatórias (não podendo socorrer-se do princípio da investigação consagrado no art.º 340º do CPP que se destina a ser aplicado ao julgamento realizado na 1ª instância), com vista neste caso, ao apuramento de uma outra situação socioeconómica do arguido distinta daquela apurada na 1ª instância, pois como é sabido, não assiste à Relação, o papel de efectuar um novo julgamento ou completar por sua livre iniciativa, aquele que foi feito na 1ª instância – está pelo contrário cingido, a apreciar e decidir o objecto do recurso, tal como este lhe é apresentado, sob pena de incorrer em excesso de pronúncia.
2) Por outro lado, temos por certo, que não se verifica no caso em apreço, nenhum vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, previsto no art.º 410º/2 a) do CPP.
Salvo o devido respeito pelo diferente entendimento que foi adoptado pela maioria do Colectivo, entendemos que a sentença recorrida não padece de tal vício, ao contrário do que ficou decidido no Acórdão aqui em referência, onde se invoca a existência do mesmo, para legitimar a alteração da factualidade provada – daí que tenha sido acrescentado no segmento referente às questões a decidir, o seguinte parágrafo: “Oficiosamente há que suprir um vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”.
Na verdade, relembramos (…) como é jurisprudência pacífica do S.T.J. (cfr. por todos o douto Sentença do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 02.03.2016 no Pº 81/12.4GCBNV.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), (…) que os vícios do nº 2 do artigo 410º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto a que se reporta a alínea a) do nº 2 do art.º 410º do C.P.P é pois como se sabe, um vício que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
Segundo Simas Santos e Leal-Henriques (in Recursos em Processo Penal, 7ª Edição, Editora Rei dos Livros, 2008, pág. 72) este vício existirá quando ocorrer uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Importa com efeito, sublinhar que o art.º 410º/2/a) do C.P.P estabelece uma conexão entre a matéria de facto provada e a decisão jurídica que nela assentae não entre a prova produzida e os factos provados e não provados.
Por outras palavras, este vício só ocorrerá, quando da factualidade vertida na decisão, se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada - vde Tribunal da Relação de Évora de 09.01.2018 [Rel. Desembargadora Ana Barata Brito] – www.dgsi.pt\tre.
Tal circunstância não acontece nos presentes autos, uma vez que a decisão recorrida, apurou a matéria de facto suficiente, para aquilatar da situação económica do arguido e assim se poder decidir de Direito – mais concretamente, quanto ao montante indemnizatório a fixar nos termos do art.º 82º-A do C.P.P
Foi, pois, a matéria de facto dada como provada (e não concretamente impugnada como já dissemos), que conduziu à decisão sobre a matéria de Direito e consequentemente à condenação do arguido no pagamento à ofendida de € 1.000,00, a título de reparação dos danos não patrimoniais por aquela sofridos.
Em resumo, resulta claramente da simples leitura da sentença recorrida, que o Tribunal de julgamento na 1ª instância, apurou factos suficientes relativos aos antecedentes criminais e à situação económica do arguido, para poder decidir quanto ao montante indemnizatório a fixar ao abrigo do artigo 82º/A, do CPP - veja-se a factualidade provada descrita sob os pontos 33., 34 e 35 “O arguido reside sozinho em casa própria e trabalha na área da advocacia, auferindo mensalmente cerca de €800,00. O arguido não possuiu antecedentes criminais. O arguido trabalhou pelo menos durante 30 anos como funcionário da Polícia ..., cargo que ainda exercia em ........2019.”.
Nesta medida, não se vê como se pode ter defendido, no Acórdão aqui em apreciação, resultar do texto da sentença recorrida por si só, qualquer insuficiência ou falta de elementos, que permitissem uma decisão sobre esse montante indemnizatório – é notório para nós, que não existe aqui qualquer vício da insuficiência da factualidade provada para a decisão, previsto no art.º 410º/2 a) do CPP.
Esta nossa posição não teve acolhimento, sendo que o Colectivo, no Acórdão em que votamos vencida, foi buscar outros elementos externos à sentença recorrida, para formar outra convicção e alterar por sua própria iniciativa, a factualidade provada ali descrita nessa sentença, o que, a nosso ver não lhe era legítimo fazer (precisamente porque o Tribunal de recurso não é o Tribunal de julgamento da 1ª instância e está limitado a conhecer do recurso e cingido à factualidade que ficou assente na 1ª instância e não foi concretamente impugnada).
3) Por fim, discordamos do montante indemnizatório que foi fixado em 8.800,00 euros e que consideramos claramente exagerado, conforme passamos a explicar.
Tendo sido fixado na 1ª instância, ao abrigo do art.º 82º/A, do CPP, o montante de 1.000,00, a título de reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida, entendemos que o Tribunal de recurso, na apreciação recursiva formulada pelo MP neste ponto, não deve proceder a uma operação matemática como aquela que foi feita no Acórdão da Relação - fixando um valor de 200,00 euros de indemnização a pagar pelo arguido, por cada um dos 40 anos do casamento em que maltratou a mulher, ou seja em que teve lugar a sua actuação ilícita, chegando assim ao valor total de 8.800,00 euros – porque a matemática não é a trave mestra do Direito e porque se afasta em demasia, da ponderação que foi feita na 1ª instância.
Não podemos esquecer que o arbitramento oficioso de indemnização é um meio subsidiário de reparação das perdas e danos causados pelo crime que foi cometido pelo agente, quando não houve dedução do pedido cível pelo ofendido, nem no processo penal, nem no processo civil. Por isso não concordamos que se fixe um valor igual de indemnização por cada ano de casamento, quando na realidade não ficou provado que no caso em apreço, a ofendida sofresse maus tratos ou danos não patrimoniais resultantes de acções ilícitas do arguido, em todos e cada um desses 40 anos de casamento, nem ficou demonstrado que mesmo a terem existido esses danos, os mesmos fossem igualmente intensos em todos os 40 anos de casamento, de modo a merecerem serem reparados por via de uma indemnização de igual valor (não se percebendo ainda, qual o sentido de “200 euros anual constituir um valor simbólico”, conforme surge mencionado no texto do Acórdão onde ficou consignado o seguinte: “calculando uns simbólicos 200,00€ por cada ano de sujeição, ao crime de violência doméstica”).
Deste modo, em nosso entender, o Tribunal da Relação, deveria olhar para o montante indemnizatório de 1.000,00 euros, fixado pelo Tribunal a quo, como ponto de partida (e não ignorar o mesmo, como se não tivesse aí sido efectuada qualquer avaliação dos pressupostos legais e decidido o montante indemnizatório a pagar pelo arguido depois de apreciada e valorada toda a prova produzida em audiência) e recorrendo depois a um juízo de equidade, fixar um justo aumento do mesmo, que fosse adequado a dar satisfação aos danos patrimoniais sofridos pela ofendida, ponderando a intensidade e gravidade da actuação danosa do agente e por outro lado, as suas condições de vida actuais, necessárias para poder dar cumprimento a esse pagamento (veja-se o art.º 494º e 496º/1 e 3 do Código civil)
Nesta sequência, repetimos, estamos em total desacordo, com o valor que foi fixado em 8.800,00 euros no Acórdão aqui em apreço.
Tal quantia é para nós, salvo o devido respeito por entendimento contrário, um montante claramente exorbitante, que com elevada probabilidade nunca conseguirá ser pago pelo arguido, atenta a sua situação socioeconómica e muito menos em 6 meses, a contar do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Deste modo, na prática, a imposição da obrigação de pagamento desse montante monetário, acaba por redundar na aplicação ao arguido de uma pena de prisão efectiva (pois que se condicionou a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, ao cumprimento deste pagamento, dando provimento ao peticionado pelo MP neste ponto) e além do mais viola o preceituado no C.P, pois como sabemos está vedado ao Tribunal aplicar condições cujo cumprimento não seja razoável exigir (art.º 51º/2 do C.P).
Concluindo, tal agravamento do montante indemnizatório a pagar pelo arguido num curto prazo, afigura-se-nos ser excessivo, pois que não obstante a gravidade da sua conduta (que justificou precisamente a decisão deste Tribunal de recurso quanto às outras alterações já anteriormente referidas, que se traduziram num agravamento do seu regime punitivo, na parte penal), o arguido é delinquente primário e está divorciado da ofendida desde 2.3.2020.
Em nosso entender, o montante indemnizatório inicial de 1.000,00 euros, deveria ser agravado por esta Relação e fixado em 3.000,00 euros, a ser pago pelo arguido, no prazo de 1 ano a contar do trânsito em julgado da sentença condenatória, dando assim provimento ao recurso do MP neste ponto e dessa forma, se acautelando de forma mais justa e adequada também os reais interesses da ofendida (que certamente terá mais interesse em receber algum dinheiro, do que nada receber monetariamente e ver o ex marido na cadeia, de quem já está aliás divorciada).
Ana Paula Grandvaux Barbosa
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1. Cf. Ac. STJ de 15.1.98, proc. 1075/97, acessível em www.dgsi.pt.
2. Cf. Acs. do STJ de 20.04.2006, no proc.nº.06P363, e de 16.04.1998, em www.dgsi.pt;
3. Cf. Ac.STJ de 2.6.99, proc. 288/99, acessível em www.dgsi.pt.
4. Cfr acórdão TR Porto, de 09/03/2020, in www.dgsi.pt.
5. Cf. Figueiredo Dias, «Temas Básicos da Doutrina Penal» (2001), 104/111.
6. Cf. artsº 1º, 2º e 27º da CRP.
7. Cf. Claus Roxin, «Culpabilidad Y Prevencion En Derecho Penal» (tradução de Muñoz Conde - 1981), 96/98.
8. Cf. Ac RP, de 03/03/2010, no proc. 119/09.2PBVLG.P1.
9. Veja-se Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20/02/2013, proferido no âmbito do processo n.º 269/09.5GBPNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt .