CEDÊNCIA DE TRABALHADOR A TERCEIRO
EFEITOS DA ILICITUDE
Sumário

A violação do princípio da não cedência de trabalhador a terceiro determina a formação de uma verdadeira relação de trabalho entre o primeiro e a entidade a quem foi cedido, na medida e desde a data em que se verificou a inserção do trabalhador na estrutura organizativa desta última, aliada a um efetivo poder de direção no que respeita à prestação da atividade desenvolvida.

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Autora (A.) e recorrente: AA
Ré (R.): Mapfre, Asistencia, Compañia Internacional de Seguro y Reaseguros, S.A.
A A. demandou a R., com os fundamentos da p.i,. pedindo que a R. seja condenada a reconhecer:
a) - a existência de cedência ilícita da autora à ré pela “Ibero Assistência, S.A.”;
b) - a relação de trabalho da autora com a ré, conforme opção comunicada pela autora;
c) - a aplicação do Contrato Colectivo de Trabalho – Actividade Seguradora - publicado no BTE, nº 32, de 29/08/2008, BTE, com a Extensão, publicado no BTE (1ª série) nº 28, de 29/07/2009, nas relações de trabalho entre A. e ré.
Notificada, a ré contestou nos termos do articulado de fls. 58 a 65.
Saneados os autos e efetuado o julgamento, o Tribunal julgou ação improcedente e absolveu a Ré do pedido.
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Tendo a A. recorrido, este Tribunal decidiu adiante:
“a) confirmar a resposta dada às alíneas Q) e R.) da matéria de facto;
b) julgar procedente o recurso quanto à matéria de facto contida na alínea S), que se tem por não provada;
c) anular parcialmente a decisão recorrida e determinar a ampliação da matéria de facto para esclarecimento dos três pontos de facto acima referidos, e eventualmente qualquer ponto suplementar que seja tido por conveniente, para o que o Tribunal a quo poderá reabrir o julgamento e produzir prova”.
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Tendo sido efetuado novo julgamento, o Tribunal a quo julgou a ação improcedente e absolveu a ré do pedido.
Inconformada, a autora recorreu, tendo afinal concluído:
I. A sentença sob recurso foi proferida no seguimento de, após recurso interposto pela A., o Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 19/04/2023, ter decidido anular parcialmente a decisão recorrida e determinar a ampliação da matéria de facto.
II. Tendo-se procedido à repetição parcial do julgamento, foram dados como integralmente provados tais factos, como se pode confirmar pelas alíneas n.º 1 a 7 dos factos provados.
III. Não obstante, o Tribunal a quo errou na aplicação do direito sobre a matéria de facto provada, mantendo a sua anterior decisão sob o pretexto de não poder afirmar-se “(...) que a autora ficasse sujeita ao poder de direção da ré – cfr. art.º 288º do CT – para poder afirmar-se a existência de uma cedência, nos termos em que pretende a autora.” Acrescentando-se ainda, na sentença sob recurso que: “(...) não pode afirmar-se que a autora ficasse exclusivamente sujeita ao poder de direção da ré, embora esta também pudesse ocorrer.”
IV. Salvo o devido respeito por diverso entendimento, o Tribunal a quo errou flagrantemente na aplicação do direito aos factos dados como provados.
V. A decisão sobre a matéria de facto nos termos supra referidos impõe, necessa-riamente, a revogação da sentença, que deve ser substituída por decisão que, subsumindo a factualidade dada como provada reformulada às normas legais imperativamente aplica-veis, em consequência condene a R. no reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre a A. e aquela, com efeitos reportados a 21.02.2013 e demais peticionado.
VI. O Tribunal a quo na Sentença sob recurso decidiu, de forma que merece forte censura, que (i) existindo um contrato de trabalho temporário entre a Recorrente e a “Adecco” a situação ilustrada nas alíneas B) a D) dos factos provados não configura qualquer cedência ilícita da Recorrente à R.; (ii) que existindo um contrato de prestação de serviços entre a “Ibero Assistência” e a Recorrida o mesmo é suporte contratual suficiente para a prestação de trabalho pela A. ao serviço da Recorrida e, para mais, não tendo resultado provado que no exercício das suas funções a A. ficasse sujeita ao poder de direcção da Recorrida, não existiu qualquer cedência e, muito menos, ilícita.
VII. Na sentença foi ignorada a aplicação de normas imperativas do Código do Trabalho. Ignorou-se, sobretudo, que resulta inequivocamente da matéria de facto que desde pelo menos o dia 21 de Fevereiro de 2013 até à data a Recorrente realiza exactamente as mesmas funções, em benefício da mesma entidade (a R.), sendo esta que conforma e determina a forma como é desenvolvida a actividade profissional daquela e sendo a beneficiária da mesma, pese embora o recurso formal a vários vínculos contratuais com diversas entidades que não têm outro fito que não evitar o que a Lei impõe, isto é, a existência de um vínculo contratual de natureza laboral entre a Recorrente e a Recorrida.
VIII. Dos factos dados como provados nas alíneas A) a E) resulta que a Recorrente celebrou em 21/02/2013 um contrato de trabalho temporário com a Adecco cujo utilizador era a Recorrente. Nos termos da alínea A) da matéria de facto provada a cópia de tal contrato consta a fls. 7 e segs. dos autos e é dado como integralmente reproduzido.
IX. No contrato de trabalho temporário, de cuja redacção resulta evidente tratar-se de um contrato de adesão, a Adecco inclui o motivo do contrato de utilização de trabalho temporário (daí a referência do artigo 175.º, n.º 1, do CT).
X. Sucede que, seja pela actividade desenvolvida pela Recorrida seja pela duração do contrato de trabalho temporário em causa – de 21/02/2013 a 20/02/2015 – é manifesto que a sazonalidade invocada como estribo da contratação em tais termos, é falsa.
XI. De facto, e como resultou provado, a actividade profissional desenvolvida pela A. centra-se essencialmente no apoio a clientes (segurados) da Recorrida no âmbito da assistência em viagem e ligado a seguros do ramo automóvel. Ora, é facto público e notório, logo não carecendo de alegação ou prova, nos termos do art.º 412.º, n.º 1, do CPC, que a comercialização de apólices de seguro automóvel não é actividade sazonal. As apólices de seguro automóvel tipicamente têm a duração de um ano, prazo idêntico tendo as coberturas acessórias, nomeadamente de assistência em viagem. Os veículos automóveis seguros podem avariar 365 dias por ano, podendo os segurados sofrer acidentes 365 dias por ano, carecendo, consequentemente, de apoio (a actividade desenvolvida pela Recorrente) também durante todo esse período. Não se tratando, consequente e manifestamente, de actividade sazonal.
XII. Acresce que, ainda que assim não fosse, o período de tempo em que esteve em vigor tal contrato de trabalho é, por si só, revelador de que não nos encontramos perante qualquer tipo de actividade sazonal. É que, prevendo o legislador nacional que um contrato de trabalho a termo apenas pode vigorar pelo período de tempo estritamente necessário à satisfação da necessidade temporária que justifica a sua celebração (regra igualmente aplicável ao contrato de utilização de trabalho temporário por via da remissão operada pelo art.º 175.º, n.º 3, do CT), é evidente que nunca tal contrato, quando funda-mentado num alegado carácter sazonal de determinada actividade, pode ter a duração de dois anos.
XIII. O mesmo é dizer que o contrato de utilização celebrado entre a Recorrida e a Adecco é nulo, considerando-se, consequentemente, nos termos do art.º 177.º, n.ºs 5 e 6, do CT, que o trabalho é prestado pela trabalhadora (a Recorrente) ao utilizador (a Recorrida) em regime de contrato de trabalho sem termo.
XIV. Caem, assim, por terra, as considerações tecidas na Sentença sob recurso relativamente ao contrato de trabalho temporário em causa, pelo que, ao contrário do ali decidido, não existia suporte contratual válido para a vinculação da Recorrente à Adecco, devendo, consequentemente e, reitera-se, nos termos do art.º 177.º, n.º 6, do CT, considerar-se que a A. é trabalhadora da R. desde 21.02.2013, com as legais consequências.
XV. A sentença recorrida violou, assim, normas legais imperativas, especifica-mente, o regime previsto nos art.º 175.º, n.º 1, 176.º, n.º 1 a 3 e 177.º, n.ºs 1, 2, 5 e 6, todos do CT.
XVI. É certo que, tal contrato veio a cessar por iniciativa unilateral da R., tendo imediata e sucessivamente a A. celebrado um contrato de trabalho a termo com a Ibero Assistência, S.A., tendo, no entanto, mantido o exercício exactamente das mesmas funções, sob autoridade e direcção da R. e em benefício desta. Em face de tal, poder-se-á argumentar que a nulidade do contrato de utilização de trabalho temporário já não pode-ria ser invocada. Afigura-se-nos manifestamente que não. Tal implicaria fazer prevalecer a mera formalidade sobre a materialidade subjacente à realidade da prestação de trabalho por banda da Recorrente ao serviço e em benefício da R., o que quer as normas substantivas quer as adjectivas aplicáveis visam evitar.
XVII. É que, em consequência de tal nova contratação viu a Recorrente não apenas prejudicadas as suas condições de trabalho (nomeadamente no que respeita aos períodos máximos de trabalho que lhe passaram a ser impostos) quer os seus direitos no que à antiguidade diz respeito.
XVIII. Ora, o legislador é claro no sentido de proibir a cessação de contrato de trabalho e readmitir o trabalhador (o que sucedeu em termos materiais, pese a ficção formal de diversos vínculos contratuais e entidades patronais) com vista a prejudicá-lo em direito ou garantia decorrente da antiguidade.
XIX. Sobretudo quando tal sucessão de vínculos tem, como é evidente que teve no caso dos autos, o objectivo de a Recorrida se furtar à aplicação das normas legais e convencionais aplicáveis à relação laboral mantida com a Recorrente. Acresce que,
XX. Sob a capa de um formal contrato prestação de serviços entre as duas entidades, uma cedência ilícita de trabalhadores, nos quais se inclui a Recorrente, por banda da tal Ibero Assistência, S.A., à Recorrida.
XXI. Para mais, e tal como resultou inequivocamente provado, a Recorrente presta a sua actividade inserida em equipas constituídas por trabalhadores vinculados por contrato de trabalho à Recorrida, executando exactamente as mesmas funções e, para mais, sujeita à direcção e supervisão de trabalhadores também eles vinculados por contrato de trabalho à Recorrida.
XXII. Verificando-se, pelo menos, e em relação à R., as presunções de existência de contrato de trabalho previstas nas alíneas a), b) e c) do art.º 12.º do Código do Trabalho.
XXIII. Para mais, face à sujeição da A. ao poder de direcção da R. e à ausência de enquadramento do caso dos autos em qualquer das situações que, nos termos do art.º 289.º do CT, tornaria lícita a cedência da A. à Recorrida, a outra conclusão não se poderá chegar que não a de que encontra aplicação o regime previsto no art.º 292.º do CT.
XXIV. Nestes termos, tendo feito a A. a comunicação a que se refere o art.º 292.º, n.º 2, do CT, deverá esta ser considerada como trabalhadora sem termo da R., desde 21 de Fevereiro de 2013, com os demais efeitos já peticionados.
XXV. Efetivamente, conforme estatui o art.º 288.º do CT, a cedência ocasional consiste na disponibilização temporária de trabalhador, pelo empregador, para prestar trabalho a outra entidade, a cujo poder de direção aquele fica sujeito, mantendo-se o vínculo contratual inicial.
XXVI. A A. logrou demonstrar, à saciedade, encontrar-se sujeita ao poder de direção e organização da prestação de trabalho por parte da Recorrida.
XXVII. E nem se diga, como, lamentavelmente mal, se afirma na douta sentença recorrida, que a A. não demonstrou que não tivesse sujeita também a tais poderes por par-te da Ibero Assistência. Desde logo, porque tal implicaria a exigência de prova de um facto negativo. A verdade é que, literalmente nada na matéria de facto dada como provada permite concluir que a referida Ibero Assistência exerça qualquer daqueles poderes sobre a A.
XXVIII. Aliás, neste contexto, não é irrelevante a eliminação, da matéria de facto dada como provada, da anterior alínea S) em que se lia: “Cabe, exclusivamente, à “Ibero Assistência”, definir quais os trabalhadores que pretende contratar e alocá-los às suas actividades e necessidades.”
XXIX. Não restam, assim, quaisquer dúvidas, que a Recorrente se encontrava sob a autoridade e poderes de direção da R. e plenamente inserida na organização desta, o que, sem margem para dúvidas, consubstancia uma situação de cedência ilícita de trabalhador, com as legais consequências.
XXX. Resulta, assim, à saciedade, da matéria de facto provada, a sujeição da A. ao poder de direção da Recorrida, pelo que, face à ausência de enquadramento do caso dos autos em qualquer das situações que, nos termos do art.º 289.º do CT, a cedência da Recorrente à Recorrida é ilícita.
XXXI. A outra conclusão não se poderá chegar que não a de que encontra aplicação o regime previsto no art.º 292.º do CT.
XXXII. Nestes termos, tendo feito a Recorrente a comunicação a que se refere o art.º 292.º, n.º 2, do CT, deverá esta ser considerada com trabalhadora sem termo da Recorrida, desde 21 de Fevereiro de 2013, com os demais efeitos já peticionados.
Remata impetrando que seja julgado procedente o recurso, com as consequências legais.
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A R. contra-alegou, pedindo a improcedência do recurso e concluindo:
1. O presente recurso foi interposto pela A. da douta sentença datada de 20 de abril de 2024, que julgou improcedente a ação judicial proposta contra a ora Recorrida e a absolveu dos pedidos formulados.
2. A sentença foi proferida em resultado do recurso interposto pela Recorrente e, relativamente ao qual, o Tribunal da Relação de Lisboa, em 19 de abril de 2023, determinou a anulação parcial da sentença recorrida e a ampliação da matéria de facto mantendo, noutros pontos, a sentença inicial nos exatos termos em que foi emitida
3. A A. impugna a decisão fundando-se no facto de que - em face da factualidade dada como provada – não podia ser emitida uma decisão que absolvesse a R. dos pedidos formulados, acusando novamente o Tribunal a quo de simplicidade na argumentação que é, a final, em quase tudo semelhante à usada no primeiro recurso, algo já não ser, na opinião da Recorrida, sequer possível.
4. Alega a A. que o contrato de contrato de trabalho temporário celebrado entre a A. e a Adecco em 21.2.2013 e cujo utilizador era a R. seria um mero contrato de adesão e que a fundamentação ali alegada é falsa, já que não se pode falar de sazonalidade quando a atividade é a comercialização de seguros de assistência em viagem. Por conseguinte, o referido contrato de utilização de trabalho temporário celebrado entre a Adecco e a Recorrida deve ser considerado nulo devendo considerar-se que a Recorrente presta trabalho à R. em regime de contrato sem termo.
5. A questão do contrato de trabalho temporário não foi objeto de reapreciação de prova na repetição do julgamento, situação que limita o âmbito do presente recurso.
6. Mais, esta questão não foi sequer alegada em sede de articulado inicial, ou seja, em momento muito anterior ao da apresentação do recurso, pelo que não pode ser agora alegada e apreciada, considerando que a finalidade dos recursos é a reapreciação de decisões judiciais já emitidas e não a emissão de novas decisões.
7. Este entendimento resulta, aliás, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de abril de 2023, onde é expressamente referido que não tendo sido a nulidade do contrato de utilização de trabalho temporário alegada em momento próprio (e a consequente contratação da A. pela Recorrida com base nessa premissa) não pode ser analisada por aquele Tribunal (e que será o mesmo que apreciará o presente recurso).
8. Sempre se diga, contudo, que a assistência em viagem conhece períodos de maiores picos de atividade nomeadamente nos períodos de férias de Verão ou de Páscoa, coincidindo com maior circulação automóvel seja de cidadãos portugueses como estrangeiros. Adicionalmente, e como facilmente se entende, o recurso ao trabalho temporário apenas é efetuado quando os recursos próprios da R. se apresentam manifestamente insuficientes para as necessidades registadas e não é necessário – porque são necessidades temporárias – contratar recursos diretos por parte da Recorrida.
9. Sobre a existência de uma pretensa relação com a R. com base no facto de o seu trabalho ser enquadrado na atividade seguradora, entende a R. que o objetivo da A. será desconstruir a sua atividade alegando que por ter prestado trabalho para a atividade seguradora e sendo essa a atividade da R., automaticamente deveria ser considerada sua trabalhadora.
10. Ora tal raciocínio simplista não pode merecer acolhimento uma vez a prestação de trabalho da Recorrente – no âmbito da atividade seguradora e para entidades com o Grupo Mapfre – encontra-se plenamente justificada desde logo pelos próprios documentos que a Recorrente juntou aos autos - o contrato de trabalho temporário - e a relação comercial que a Recorrida mantém com a Ibero Assistência.
11. Por conseguinte, o fundamento do referido contrato afigura-se verdadeiro e válido não devendo, para nenhum efeito legal, ser considerado nulo e manter-se a sentença nos exatos termos em que foi emitida.
12. Sob a denominação “Do alegado contrato de prestação de serviços celebrado entre a R. e a “Ibero Assistência, S.A.”” verifica-se que, na verdade, a Recorrente pretende fazer demonstrar – neste recurso - a existência de uma cedência ilícita da Recorrente por parte da Ibero Assistência, S.A. à Recorrida. Para tal alega a inserção da A. na R. e a existência de um contrato de trabalho, atentas as presunções legalmente previstas e ainda o facto de a própria R. ter efetuado a comunicação prevista no art.º 292.º, n.º 2, CT.
13. Tal como se referiu por diversas vezes, a Recorrida mantém com a “Ibero Assistência” um contrato de prestação de serviços cujo objeto é a prestação de assistência em viagem, realizada telefonicamente (serviços efetuados através de um Contact Center), a segurados da R. ou a segurados de outras empresas do grupo Mapfre a quem a R. se tenha comprometido a prestar assistência em viagem. Estes factos foram dados como provados na sentença nas alíneas (Q), (R), dos Factos Provados.
14. Naturalmente que as funções desempenhadas pela Recorrente não podem deixar de ser analisadas e avaliadas em função da existência desta relação contratual entre as empresas e a sentença assim o refere de forma contundente.
15. Com efeito, é mencionado que as funções prestadas pela Recorrente, e pela forma descrita nas alíneas N.1) a N.7), decorre contrato de prestação de serviços, referido na alínea (Q), não tendo resultado provado que, no exercício das suas funções, a Recorrente ficasse sujeita ao poder de direcção da Recorrida para poder afirmar-se a existência de uma cedência, nos termos em que pretende a Recorrente (e na verdade de uma relação laboral) já que não ficou demonstrado que a Recorrente ficasse sujeita exclusivamente ao poder de direção da Recorrida.
16. As alegações da Recorrente consubstanciam-se, assim, na apresentação de meras afirmações desprovidas de fundamentação.
17. Saliente-se que o instituto da cedência ocasional de trabalhador, regulado nos artigos 288.º e seguintes do Código do Trabalho, “consiste na disponibilização temporária de trabalhador, pelo empregador, para prestar trabalho a outra entidade, a cujo poder de direção aquele fica sujeito, mantendo-se o vínculo contratual inicial”.
18. Ou seja, o que caracteriza a cedência ocasional é a transferência do trabalhador do quadro de pessoal próprio de uma empresa, à qual está ligado por um contrato de trabalho, para uma outra empresa que o utiliza, beneficiando da prestação da sua atividade, para o efeito exercendo sobre ele os poderes de autoridade e direção e fiscalização próprios da empregadora.
19. A Recorrente não logrou demonstrar que a sua prestação de atividade era conformada totalmente pela Recorrida ou que apenas esta exercia os poderes de direção, autoridade e fiscalização, próprios da entidade empregadora.
20. E não existindo subordinação jurídica da A. à R., e resultando o contacto da A. com a atividade da R., única e exclusivamente da execução do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrida e a Ibero Assistência, não se verificou qualquer assunção das características de empregadora na Recorrida nem a afetação da A. a um posto de trabalho inserido, orgânica e funcionalmente, na sua estrutura.
21. Pelo que não faz qualquer sentido a alegação de que a Recorrente foi ilicitamente cedida à Recorrida e, muito menos, que seja reconhecido a existência de qualquer vínculo laboral entre ambas.
22. Com efeito, a cedência ocasional de trabalhadores é o negócio através do qual uma empresa cede, provisoriamente, a uma outra, um ou mais trabalhadores, que passam a desenvolver a sua atividade sob a direção da cessionária conservando, no entanto, o vínculo laboral que com eles mantém.
23. E, se um trabalhador de uma empresa é por esta colocado a trabalhar no âmbito da atividade de outra empresa, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, continuando este a ser seu trabalhador e a estar sujeito à sua autoridade e direção, como aconteceu com a Recorrente, não é possível falar em cedência ocasional.
24. O direito de optar pela integração no quadro de pessoal da empresa “cessionária” que o art.º 292.º do CT consagra, com as inerentes consequências em termos da vinculação contratual do trabalhador a esta empresa, através de um contrato individual de trabalho sem termo, tem como pressupostos fundamentais (i) a verificação de uma cedência ocasional de trabalhadores que abranja o pretenso titular do direito e (ii) a demonstração da ilicitude de tal cedência.
25. Não se tendo verificado a cedência (lícita ou ilícita) da Recorrente, não tinha esta o direito de optar pela sua integração no quadro de pessoal da Recorrida.
26. Por todo o exposto, entende a R. que a douta Sentença recorrida não violou nenhum preceito legal, seja de natureza substantiva ou adjetiva.
27. Sendo, pelo contrário, inteiramente justa e acertada, devendo, por isso, ser confirmada.
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O MºPº teve vista, pronunciando-se pela procedência do recurso.
Não houve resposta ao parecer.
Foram colhidos os vistos legais.
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FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre apreciar – considerando que o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 635/4, 608/2 e 663, todos do Código de Processo Civil – se, face aos termos em que autora prestava a atividade, há uma cedência ilícita da autora à ré pela “Ibero Assistência, SA”, se existe um vínculo laboral entre ela e a ré Mapfre Assistência, e eventualmente se é aplicável o contrato coletivo de trabalho da atividade seguradora publicado no BTE, n.º 32.
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Efetuado o julgamento, são estes os factos dados por provados:
A) – Em 21/02/2013 a autora celebrou com a “Adecco Recursos Humanos – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.”, o contrato de trabalho temporário cuja cópia consta de fls. 7 e vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
B) – O contrato de trabalho temporário, referido em A), tinha como Utilizador a Mapfre, Asistencia, Compañia Internacional de Seguro y Reaseguros, S.A., ora ré.
C) – A actividade a desempenhar pela autora à ré era: “Atendimento e realização de contactos telefónicos com o objectivo de prestar assistência a clientes em diferentes idiomas. Tarefas administrativas inerentes aos processos de assistência”.
D) – O local da prestação da actividade da autora era na Avenida da Liberdade, nº 40, 6º 1250-145 Lisboa.
E) – O recurso ao contrato de trabalho temporário era motivado pela sazonalidade na assistência em viagem na actividade da ré.
F) – Em 06/02/2013, a autora celebrou com a “Adecco Recursos Humanos – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.”, o contrato de formação cuja cópia consta de fls. 8 e vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
G) - Em 21/02/2015, a autora celebrou com a “Ibero Assistência, S.A.”, o contrato de trabalho a termo certo cuja cópia consta de fls. 9 a 12 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, pelo período de 6 meses e com início na mesma data.
H) – Em 21/02/2015, a autora celebrou com a “Ibero Assistência, S.A.”, a adenda ao contrato de trabalho, referido em G), cuja cópia consta de fls. 12 vº e 13 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, pelo período de 6 meses e com início na mesma data.
I) – Por carta cuja cópia consta de fls. 13 vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 19/01/2017, a “Ibero Assistência, S.A.” comunicou à autora que esta passava para o quadro efectivo da empresa, com efeitos a partir de 20/02/2017 e antiguidade reportada a 21/02/2015.
J) – Por carta cuja cópia consta de fls. 14 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 13/12/2018, a autora comunicou à “Ibero Assistência, S.A.”, que optava pela relação de trabalho com a ré.
K) – Por carta cuja cópia consta de fls. 15 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 14/12/2018, a autora comunicou à ré que optava pela relação de trabalho com a mesma ré.
L) – Em resposta à carta referida em K), a ré enviou à autora a carta cuja cópia consta de fls. 16 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 07/01/2019, comunicando-lhe a recusa em aceitar a relação de trabalho com a ré.
M) – Em resposta à carta referida em J), a “Ibero Assistência, S.A.” enviou à autora a carta cuja cópia consta de fls. 16 vº dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 07/01/2019, comunicando-lhe a recusa em aceitar a relação de trabalho com a ré.
N) - A autora desenvolve as seguintes tarefas para a ré:
Atende e realiza chamadas telefónicas no âmbito da actividade de assistência em viagem prestadas aos segurados das empresas do grupo MAPFRE;
A assistência é prestada no território nacional e internacional em diferentes línguas;
A autora, para responder às solicitações feitas para a assistência, consulta os contratos de seguros dos clientes, a quem presta apoio, da ré;
A autora, para responder aos pedidos solicitados pelos segurados, consulta os contratos de seguros na base de dados informáticos, com vista a verificar quais os serviços cobertos pela apólice.
N.1) – A autora desenvolve as suas funções enquadrada em equipas integradas por trabalhadores com contrato de trabalho com a ré.
N.2) – Exercendo as mesmas funções.
N.3) – Nos mesmos turnos.
N.4) – A autora desenvolve as suas funções no mesmo local que trabalhadores com contrato de trabalho com a ré.
N.5) – Com recurso aos mesmos instrumentos de trabalho.
N.6) – Os trabalhadores que supervisionam a actividade profissional da autora são, também, trabalhadores da ré com a categoria profissional de supervisor.
N.7) – Os trabalhadores da ré, com categoria profissional de supervisor, supervisionam e dão indistintamente ordens a trabalhadores da ré e da “Ibero Assistência, S.A.”.
O) – A autora é sócia do Sindicato Nacional dos Profissionais de Seguros e Afins, desde 20/11/2017, conforme declaração cuja cópia consta de fls. 93 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
P) – A ré tem por objecto social a “prática das operações de seguros e resseguros dos ramos de "Assistência em Viagem" e outras prestações de serviços, em todas as suas modalidades, bem assim como outras atividades complementares, acessórias ou com aquelas relacionadas, sempre que a legislação de seguros as considere possíveis.”.
Q) – A ré mantém com a “Ibero Assistência” um contrato de prestação de serviços de assistência em viagem aos segurados da ré.
R) – Esta prestação de serviços tem por objecto a prestação de assistência em viagem, realizada telefonicamente (serviços efectuados através de um Contact Center), a segurados da ré, ou a segurados de outras empresas do grupo Mapfre a quem a ré se tenha comprometido a prestar assistência em viagem.
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Entendeu designadamente o acórdão proferido anteriormente nestes mesmos autos que:
“(…) Defende a recorrente que prestava a atividade nos precisos termos dos trabalhadores da ré, e que por isso é preciso concluir pela existência de uma cedência ilícita.
(…) Parece resultar que, no entendimento da A., antes da celebração de quaisquer convénios com a Ibero Assistência já ela era trabalhadora da ré.
(…) Quanto à nulidade, trata-se de matéria trazida aos autos pela primeira vez em sede de recurso e que como tal não pode ser conhecida, porquanto os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais e não há emissão de decisões novas. O que igualmente prejudica a argumentação - em boa verdade também nova - de que se verifica a presunção de existência de contrato de trabalho com a ré, que a A. não suscita no seu articulado e que só pode colher quando está em causa a qualificação de um vínculo através do qual é prestada uma atividade, e não a própria existência do mesmo, como se discute aqui, visto que o que importa apurar primeiro não é a natureza do vínculo mas sim se existe algum convénio entre A. e R. (…)
Resultando dos autos que a autora tem um designado contrato de trabalho por tempo indeterminado com a Ibero Assistência SA, (cfr. fls. 9 a 13 vº), empresa que não é de trabalho temporário, importa verificar se existe alguma forma de trabalho temporário ou pelo menos de cedência mesmo que ocasional de trabalhador.
(…) Também se poderá discutir se existe alguma cedência da trabalhadora pela Ibero à Mapfre (…).
Pode (… ponderar-se), à luz das soluções de direito plausíveis, a importância da eventual existência de ordens dadas à autora pelos supervisores da ré, alegadamente nos mesmos termos em que a ré o faz aos seus trabalhadores.
São, pois, pertinentes os factos que a A. pretende ver aditados com os n.ºs 2 e 3, a começar pelas ordens referidas neste. E se estes dois procederem, é manifesto que a factualidade contida no n.º 1 também é relevante. E mais do que pertinentes, podem ser essenciais para a sorte da sentença, já que permitem aquilatar se a A. recebia ordens da R. e estava inserida na organização da mesma.
Como decidiu o acórdão do STJ de 20/06/2018, no proc. 18067/15.5T8LSB. P1.S1, (…) “a violação do princípio da não cedência de trabalhador a terceiro determina a formação de uma verdadeira relação de trabalho entre o primeiro e a entidade a quem foi cedido, na justa medida em que se provou a inserção do trabalhador na estrutura organizativa desta última, aliada a um efetivo poder de direção no que respeita à prestação da atividade desenvolvida”.
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Ora, efetuado o julgamento, provou-se a factualidade que constituiu o objeto da ampliação.
Ponderando, a sentença ora recorrida considerou:
(…) A situação plasmada nos factos provados enquadra-se na previsão da norma transcrita (art.º 172/a) e c) do CT), relativamente ao contrato de trabalho temporário, referido em A), celebrado entre a autora e a Adecco, no qual a Ré figura como utilizador
E, mantendo-se a autora vinculada à “Adecco” – vd. parte final da al. a) do preceito citado – a situação ilustrada nas alíneas B) a D) dos factos provados, não configura qualquer cedência da autora à ré por parte daquela empresa.
Como não configura qualquer cedência da “Ibero Assistência” à ré o facto de a autora, em execução do contrato referido em G), prestar na ré as funções elencadas em N) dos factos provados, pela forma descrita em N.1) a N.7) dos mesmos factos, já que, tal prestação decorre do contrato de prestação de serviços, referido em Q).
Não tendo resultado provado que, no exercício das suas funções, a autora ficasse sujeita ao poder de direcção da ré – cfr. art.º 288º do CT – para poder afirmar-se a existência de uma cedência, nos termos em que pretende a autora.
E a tal conclusão não obsta, salvo melhor entendimento, o que passou a constar das alíneas N.1) a N.7) do probatório.
Na verdade, em face de tais factos, não pode afirmar-se que a autora ficasse exclusivamente sujeita ao poder de direcção da ré, embora este também pudesse ocorrer.
E não existindo cedência, não pode, necessariamente, a mesma ser qualificada de ilícita, de modo a conferir à autora o direito a exercer a opção prevista no art.º 292º, nº 1, do CT”.
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Vejamos.
Resulta provado que a autora celebrou em 2013 um contrato de trabalho temporário com a empresa Adecco (al. A dos factos provados, fp.), designando-se como utilizador agora ré Mapfre Assistência (al. B, fp).
Em 2015 a autora celebrou um contrato de trabalho a termo certo com a Ibero Assistência, SA (al. G, fp).
Em 2017 esta Ibero comunicou a autora que passaria para o seu – da empresa - quadro efetivo (al. I, fp).
A questão fundamental discutida nos autos consiste em saber quem deve ser tido por empregador da autora, tanto mais que esta declarou optar pela relação de trabalho com a ré Mapfre (al. J e K), tendo a ré e a Ibero Assistência recusado aceitar tal relação.
A autora configurou a ação arguindo a irregularidade da sua cedência pela referida ibero assistência, como resulta claramente os artigos 23 e seguintes da petição inicial.
Não colhem, pois, por se tratar de questões novas como se referiu no anterior acórdão, as pretensas nulidades do contrato celebrado entre a recorrida e a Adecco, e nulidade do termo do contrato de trabalho temporário entre esta Adecco e a A; o mesmo se passando com a alegada existência de elementos indiciários da presunção de existência de contrato de trabalho com a R. Pelo que se disse aí, e acima referiu, não cabe conhecer desta matéria, que implicaria um novo juízo, não se confundindo com a reapreciação da decisão judicial (o que afasta a matéria suscitada nas conclusões 9 e seguintes).
O que cumpre apreciar prende-se com a alegada cedência da A. à Mapfre pela Ibero Assistencia.
Dispõe o art.º 288 do CT que “a cedência ocasional consiste na disponibilização temporária de trabalhador, pelo empregador, para prestar trabalho a outra entidade, a cujo poder de direção aquele fica sujeito, mantendo-se o vínculo contratual inicial”.
Por sua vez o n.º 1 do art.º 289 estipula que “1 - A cedência ocasional de trabalhador é lícita quando se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:
a) O trabalhador esteja vinculado ao empregador cedente por contrato de trabalho sem termo;
b) A cedência ocorra entre sociedades coligadas, em relação societária de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, ou entre empregadores que tenham estruturas organizativas comuns;
c) O trabalhador concorde com a cedência;
d) A duração da cedência não exceda um ano, renovável por iguais períodos até ao máximo de cinco anos”.
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Não estamos no caso perante um contrato de trabalho temporário.
Com efeito, dispõe o art.º 172 do CT, sob a epigrafe “Conceitos específicos do regime de trabalho temporário”, que “Considera-se:
a) Contrato de trabalho temporário o contrato de trabalho a termo celebrado entre uma empresa de trabalho temporário e um trabalhador, pelo qual este se obriga, mediante retribuição daquela, a prestar a sua actividade a utilizadores, mantendo-se vinculado à empresa de trabalho temporário
b) Contrato de trabalho por tempo indeterminado para cedência temporária o contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado entre uma empresa de trabalho temporário e um trabalhador, pelo qual este se obriga, mediante retribuição daquela, a prestar temporariamente a sua actividade a utilizadores, mantendo-se vinculado à empresa de trabalho temporário
c) Contrato de utilização de trabalho temporário o contrato de prestação de serviço a termo resolutivo entre um utilizador e uma empresa de trabalho temporário, pelo qual esta se obriga, mediante retribuição, a ceder àquele um ou mais trabalhadores temporários”.
Ora, nem a Ibero é empresa de trabalho temporário (cfr. art.º 172/a, CT), nem existe a relação tripartida correspondente (como escreve Guilherme Dray, in Código do Trabalho Anotado, 13ª ed., nota 4, pág. 444, “o trabalho temporário assenta numa relação triangular: neste regime, ao contrário do que sucede no contrato de trabalho segundo o regime comum, descortinam se 2 negócios jurídicos bilaterais e 3 sujeitos - por um lado, 2 entidades que partilham entre si os poderes típicos do empregador; no pólo oposto, um único trabalhador, contratado por uma empresa de trabalho temporário (ETT) para ser cedido temporária e onerosamente a um terceiro beneficiário”).
Existirá uma cedência ocasional do trabalhador, não havendo uma disponibilização temporária do trabalhador nos termos previstos no art.º 288 do Código do Trabalho?
Para que haja cedência ocasional de trabalhadores é necessário que se verifiquem três elementos: “em primeiro lugar que o trabalhador seja cedido de um empregador para outra entidade, que sobre aquele exerce o poder de direção; em segundo lugar, que a cedência seja temporária; por fim, que se mantenha o vínculo laboral entre o trabalhador e o empregador cedente” (Guilherme Dray, op. cit., 706)
Face ao exposto, existe o que aparenta ser uma cedência da trabalhadora à R. Mapfre. Com efeito, verifica-se a disponibilização temporária da trabalhadora, pela empregadora Ibero (que é quem mantém um contrato de trabalho formal com ela), para prestar trabalho à R. Mapfre, a cujo poder de direção ficou sujeita, como resulta da factualidade apurada em N1, N6 e N7, a qual mostra que trabalhadores da R. com a categoria de supervisor supervisionavam a atividade da A. e davam ordens designadamente a trabalhadores vinculados à Ibero, como a A.
Ora, isto não se confunde com a mera prestação de atividade para a terceira Ibero (porventura nas instalações da R. - neste sentido escreve Guilherme Dray, op. cit., 797, que “quando o empregador na sequência da celebração de um contrato de prestação de serviço com uma terceira entidade, dá ordens e instruções ao trabalhador para executar uma atividade junto dessa mesma entidade, estamos perante uma figura que não se enquadra no regime da cedência ocasional de trabalhadores, pela simples razão de que o trabalhador não exerce a sua atividade sob as ordens e direção da entidade beneficiária do serviço contratado”): a A. atua inserida na organização da R. e recebe ordens da parte desta, ainda que mantendo-se formalmente o vínculo contratual inicial.
Sendo assim, tem de se discutir o que é que efetivamente se verifica.
Acontece que, apesar das aparências, não se verificam os pressupostos da cedência previstos no art.º 288 do CT. Desde logo inexiste o contrato de trabalho por tempo indeterminado, nem se descortina o acordo da trabalhadora.
Que existe então?
Socorremo-nos do acórdão do STJ de 20/06/2018, no proc. 18067/15.5T8LSB.P1.S1, com a devida vénia:
“A ré/recorrente celebrou contratos de prestação de serviços com a empresa FF, com duração compreendida entre 01/01/2008 e 01/04/2011 e com a empresa EE, com duração compreendida entre 01/04/2011 e 31/12/2012. (…) Por seu turno, o autor celebrou contratos de trabalho (…) com a empresa FF (…), com a empresa EE (…). O A. após ter sido admitido ao serviço das empresas (…) foi selecionado para exercer funções nas instalações da PT (…) sendo certo que sabia que o trabalho seria e tinha de ser executado nas instalações da PT (…). Enquanto exerceu funções nas instalações da PT o autor recebeu ordens e instruções de trabalhadores das empresas PT, nomeadamente da PT Comunicações, SA, quanto ao modo como devia realizar o trabalho. O trabalho do autor era fiscalizado por trabalhadores das empresas PT (…). O A., desde agosto de 2014, na 1ª Ré, (…), integrava uma equipa constituída pelos seguintes trabalhadores desta (…) Todos os trabalhadores identificados tinham o seu local de trabalho em instalações da 1.ª Ré. O cumprimento do horário de trabalho do autor era fiscalizado pelas pessoas a quem reportava (…) No que diz respeito à retribuição mensal (…) era paga pelas empresas FF, EE e II, que também pagavam as despesas realizadas no decurso da prestação do trabalho (…). A inserção do autor na estrutura organizativa da ré/recorrente é bem patente, pois prestava a sua atividade integrando uma equipa técnica constituída por trabalhadores daquela e nas suas instalações. (…) A subordinação jurídica do autor à ré recorrente também não deixa margem para dúvidas pois, enquanto em funções nas instalações da PT, recebeu ordens e instruções de trabalhadores das empresas PT (…). A forma como se processava a prestação da atividade do autor na estrutura organizativa da ré afasta a figura da externalização (outsourcing/contracting out) pois as empresas FF, EE e II limitaram-se a destacar o autor para integrar uma equipa técnica da recorrente, não tendo atuado na verdadeira qualidade de prestadores de serviços em determinada área do negócio. Júlio Gomes (estudo intitulado A fronteira entre o contrato de utilização de trabalho temporário e os – outros – contratos de prestação de serviços, publicado no Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 87, pág. 85 a 114) refletindo sobre o conceito de outsourcing, que considera, na linha de Marcel Fontaine e de Jean-Yves Kerbourch, que não se trata de um conceito propriamente jurídico, mas sim económico, questiona a construção que foi feita numa primeira aproximação jurídica ao fenómeno, na qual se reservava a noção para, citando Marcel Fontaine «operações pelas quais uma empresa confia a um terceiro prestador de serviços, sem qualquer subordinação, a execução de uma das suas atividades internas que considera como não relevantes do seu core business», pois, em seu entender, na realidade, esta delimitação parece hoje muito duvidosa, já que tudo parece poder ser objeto de externalização. A figura da “cedência ocasional de trabalhadores” também está afastada por não se verificarem os requisitos de admissibilidade da mesma tal como se encontram definidas nos artigos 322.º, 324.º e 325.º do Código do Trabalho de 2003 e 288.º, 289.º e 290.º do Código do Trabalho de 2009. Finalmente, a matéria de facto provada não permite que se configure uma situação de trabalho temporário. (…) A inserção do autor na estrutura organizativa da ré/recorrente é bem patente, mas esta inserção, só por si, não seria determinante, se não estivesse interligada, como estava, a um poder de direção da ré, no que respeita à prestação da atividade desenvolvida pelo autor, o que no caso concreto faz toda a diferença.
E, assim, decidiu a final que “a violação do princípio da não cedência de trabalhador a terceiro determina a formação de uma verdadeira relação de trabalho entre o primeiro e a entidade a quem foi cedido, na justa medida em que se provou a inserção do trabalhador na estrutura organizativa desta última, aliada a um efetivo poder de direção no que respeita à prestação da atividade desenvolvida”.
É exatamente o que acontece no presente caso.
A violação do princípio da não cedência de trabalhador a terceiro determinou a formação de uma verdadeira relação da trabalhadora com a Mapfre. Deste modo, o facto de manter um vínculo contratual com a Ibero Assistência não é decisivo, visto que quem orienta a autora e conforma a sua prestação laboral é a R., em cuja organização se encontra inserida, cumprindo horários e utilizando instrumentos de trabalho como os restantes trabalhadores, ao ponto de não serem detectadas diferenças entre a sua situação e a dos prestadores da atividade para a ré, por parte destes e dos supervisores.
Repare-se que não é meramente o facto de a autora prestar atividade nas instalações da ré, em horário a que esta não é alheia e até recebendo algumas orientações que exclui a possibilidade de ter um vínculo com um terceiro. Por exemplo, os trabalhadores de um subempreiteiro que comparecem no local da obra para executarem a parte do serviço que lhes cabe, ou de um repositor que num hipermercado coloca produtos de um determinado fornecedor no âmbito de uma campanha, não deixam de operar nas instalações do credor da atividade, numa determinada janela horária aqui este não será alheio e porventura até acatando algumas orientações, como o local onde os produtos poderão ser expostos no hipermercado. Ainda assim, continuam inseridos na organização do subempreiteiro ou do fornecedor dos produtos em promoção, e em qualquer caso a sua situação não é idêntica à dos demais trabalhadores que laboram para o credor da atividade. Neste caso, porém, a autora passa a agir inserida na organização da ré, que define a sua atividade em termos em tudo semelhantes à dos trabalhadores da própria ré, no exercício de um efectivo poder de direção.
Assim, o recurso tem necessariamente de proceder na parte em que tem por objeto o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre as partes.
Porém tal reconhecimento só pode ter lugar a partir da data em que a autora passou a prestar a atividade através da Ibero Assistência (21.02.2015). O contrato celebrado anteriormente com Adecco era, tanto quanto se vê, de trabalho temporário, com uma empresa de trabalho temporário, não sendo possível concluir quanto a esta - que aliás não foi demandada nos autos - pela existência de uma cedência indevida da trabalhadora.
Também não cabe conhecer a aplicação do IRCT, matéria que não cabe nem pode ser apreciada face aos elementos disponíveis.
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DECISÃO
Pelo exposto, este Tribunal julga o recurso procedente, revoga a sentença recorrida e reconhece a existência de uma relação laboral entre a autora e a ré Mapfre desde 21.02.2015.
Custas do recurso e da ação pela R.

Lisboa 18.06.2025
Sérgio Almeida
Francisca Mendes
Celina Nóbrega