Sumário:
I. O requerimento do exequente destinado à renovação da execução a que alude o nº 1 do art.º 808º do CPC – prevista quando ocorra falta de pagamento das prestações ajustadas entre exequente e executado - não se pode bastar com a afirmação de que o acordo foi incumprido; terá de identificar as prestações que não foram liquidadas e o montante pelo qual a execução deve prosseguir.
II. Perante a decisão da A.E. de determinar a renovação da execução nestas circunstâncias em que se desconhece o valor da obrigação pelo qual a execução iria prosseguir, pode o executado opor -se à execução por embargos (art.º 728º, nº2 do CPC) pois só com a notificação de tal decisão se lhe abriu a oportunidade de arguir a (actual) iliquidez da obrigação exequenda.
1. AA, executado nos autos à margem identificados, nos quais figura como exequente, Banco BPI, S.A., não se conformando com a decisão que rejeitou liminarmente os embargos de executado por si deduzidos, dela veio interpor recurso, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
“I.
Não pode ser indeferido liminarmente o requerimento da Executado que se opõe à renovação da execução, porquanto o mesmo não é extemporâneo, já que não é uma oposição à execução de 2021, mas uma oposição à execução de Dezembro de 2024, que se consubstancia numa renovação juridicamente inexequível, a isso obriga o n.º 2 do artigo 728.º do CPC e esse tem sido o entendimento da jurisprudência.
II.
Não há previsão no Código de Processo Civil de nenhuma norma que impeça a Executado de exercer o direito à oposição de uma execução que não tem por base um título executivo, cabendo ao tribunal exercer o seu poder de controlo sobre o processo;
III.
Não podem os embargos ser considerados manifestamente improcedentes, pois existem fortes fundamentos que carecem de apreciação judicial que não pode deixar de ter lugar, pois o Exequente requereu a renovação da execução, sem que tenha título executivo que o sustente, ou fundamentos para o efeito, o que fere a certeza, liquidez e exigibilidade do pretenso título, não houve a negociação que se impunha caso tivesse ocorrido incumprimento, decorrente da aplicação do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), nos termos do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, e, finalmente, uma vez que o Embargante tem efetuado o depósito dos valores devidos a que se obrigou no acordo de 19/04/2023 junto do Embargado, tem cumprido o acordo.
IV.
Não pode ser retirada à Executado a oportunidade de se pronunciar sobre a renovação da execução sob pena de o tribunal incorrer na prática de atos limitadores do princípio do contraditório e da igualdade entre as partes.
V.
Uma interpretação que desconsidere este entendimento viola o Princípio jurídico e direito fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, bem como o Princípio da proteção da confiança, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Nestes termos e nos mais de Direito se requer, com os fundamentos constantes das Conclusões formuladas, seja a presente apelação julgada procedente por provada, revogando o Despacho de 28 de Janeiro de 2025 que indeferiu liminarmente a oposição à execução, por extemporaneidade, que deverá ser substituído por outro que, reconhecendo a tempestividade da oposição, dê normal andamento ao processo, assim se fazendo sã, serena e objetiva JUSTIÇA.
2. Não houve contra-alegações.
3. Considerando que a questão a decidir é simples, passa-se a proferir, ao abrigo do disposto art.º 656º do CPC, decisão singular.
4. O recurso foi admitido com o efeito correcto e modo de subida adequado, sendo que o seu objecto, delimitado pelas conclusões insertas no recurso, consiste em saber se havia fundamento para rejeitar liminarmente os embargos.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. É o seguinte o teor da decisão recorrida:
“Por intermédio de embargos de executado supervenientes veio o executado AA alegar assinaladamente o seguinte: “Ordena o n.º 2 do artigo 728.º do CPC que “Quando a matéria da oposição seja superveniente, o prazo conta-se a partir do dia em que ocorra o respetivo facto ou dele tenha conhecimento o Embargante”. 2.º Por decisão de 04/12/2024 (Ref.ª 8447360), notificada a 09/12/2024, a Exma. Senhor Agente de Execução determinou a renovação da instância executiva. 3.º Logo, o Embargante está em tempo.”
Apreciando.
O art.º 728º, n.º 2, do CPC, prevê a instauração de “embargos supervenientes” nos seguintes casos:
a) quando o facto que os fundamenta ocorrer depois da citação do executado (superveniência objetiva);
b) quando este tiver conhecimento do facto depois da sua citação (superveniência subjetiva).
Não foi alegada qual o tipo de factualidade superveniente: se objetiva ou subjetiva.
O executado limita-se a afirmar que a renovação da execução extinta é motivo para a dedução de embargos supervenientes.
Não lhe assiste razão.
Com efeito, no âmbito da presente execução, o executado/embargante foi citado pessoalmente para a execução em 29.11.2021 e não deduziu oposição à execução.
Deste modo, os novos embargos deduzidos são manifestamente intempestivos, pois a matéria de defesa alegada deveria ter sido arguida nessa sede inicial e não foi.
Além do mais, não existe matéria factual objectiva ou subjectiva superveniente.
O que aconteceu foi que o acordo de pagamento da quantia exequenda celebrada entre a exequente e os executados foi incumprido por estes últimos o que determinou que a Sra. Agente de Execução determinasse a renovação da execução para a venda do imóvel penhorado.
O que significa que os fundamentos alegados pelo executado/embargante são manifestamente improcedentes, o que, nos termos dos arts. 732.º, n.º 1, al. c), e 551.º, n.º 3, do CPC, determina o indeferimento liminar dos embargos de executado.
E manifestamente não podem ser tidos como supervenientes, encontrando-se totalmente fora de prazo.
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artº. 732, nº. 1, als. a) e c), do CPC, indefere-se liminarmente os presentes embargos de executado.”.
2. Da consulta dos autos no citius emerge igualmente o seguinte:
a. No requerimento executivo apresentado em 11.11.2021 o exequente liquidou a obrigação exequenda em € 74.519,72€, dos quais € 70.487,35 de capital, € 3.877,28 de juros vencidos de 3.9.2020 até 5.11.2021 (juros remuneratórios e juros moratórios) e €155,09€ de imposto de selo;
b. Em 19.4.2023 o exequente fez juntar aos autos o seguinte acordo:
BANCO BPI, como exequente e AA e BB; como executados, vêm, nos termos do n." 1 do artº 806.° do Código Processo Civil, comunicar a V. Ex," que lograram chegar a ACORDO para regularização da dívida exequenda (capital, juros e custas), da seguinte forma:
a) Os executados aceitam pagar ao Banco as prestações que se venceriam de empréstimo hipotecário n." ..., nos mesmos termos e condições contratadas, como se os empréstimos não tivessem sido resolvidos/declarado vencidos por incumprimento, ao dia 2 de cada mês, no valor, atual, total de €539,87para além dos seguros e demais despesas relacionadas com o empréstimo, por isso se mantendo todas as garantias reais e pessoais daquele empréstimo;
b) Os executados entregaram ao Banco o valor de 14.404,24€, valor este correspondente à soma das prestações vencidas, incluindo juros e seguros;
c) Os pagamentos são efetuados por débito da conta DO dos executados com o n,? ..., que deverá manter-se habilitada para o efeito;
d) Este acordo não constitui novação de dívida, mantendo-se as garantias existentes para o mesmo;
e) Em caso de incumprimento no pagamento das prestações o acordo fica sem efeito, com renovação da instância, se, entretanto, extinta, e as entregas efetuadas serão imputadas prioritariamente a despesas, juros vencidos e só depois a capital;
f) O acordo não prejudica o eventual exercício de direitos por parte do Banco relativamente aos bens sobre que detém garantia do seu crédito; g) As custas do processo serão suportadas pelos executados já por eles adiantado ao Banco;
c. Em 21.10.2024, o Tribunal “a quo” proferiu o seguinte despacho: “Consigna-se que as partes chegaram a acordo para pagamento da quantia exequenda em prestações, nos termos do artigo 806.º/1 do Código de Processo Civil, e que o Digno Procurador não se opôs ao segmento do acordo relativo às custas. Tal acordo não está sujeito a homologação judicial, uma vez que o mesmo é dirigido ao Senhor Agente de Execução, nos termos do artigo 806.º/1 do Código de Processo Civil, que deverá extinguir a execução, nos termos do n.º 2 dito artigo.
Assim, notifique o Senhor Agente de Execução para, no prazo de 10 dias, extinguir a execução”.
d. Em 4.11.2024 o exequente Banco BPI, S.A. apresentou nos autos o seguinte requerimento:
“Os executados incumpriram com o plano de pagamento acordado pelas partes, pelo que vem requerer a V. Exa., respeitosamente, se digne ordenar o prosseguimento da presente execução para recuperação da dívida.”.
e. Em 4.12.2024, a A.E. proferiu a seguinte decisão:
“CC, Agente de Execução no supra processo, vêm ao abrigo do disposto no artigo 850º, do Código do Processo Civil, ordenar a RENOVAÇÃO DA INSTÂNCIA.
Os executados incumpriram o acordo celebrado entre as partes, conforme informação da exequente, tendo sido requerido o prosseguimento.
O supra processo encontra-se em condições de prosseguir, pelo seguinte.
Estando assim, reunidas as condições legais e processuais para prosseguimento da instância, na fase de venda do imóvel penhorado. Pelo que, prosseguem os presentes autos.”.
f. Esta decisão da A.E foi notificada ao mandatário do executado nas mesma data.
g. Em 4.1.2025 foi apresentada a petição de embargos da qual consta, designadamente, o seguinte: “ (…) Face ao requerimento de renovação da execução apresentado pelo Embargado, a obrigação que supostamente se pretende executar é completamente desconhecida, nada tendo de certa, líquida ou exigível” e acrescenta : “O Embargante não consegue contestar o alegado no requerimento de renovação, em virtude da falta de concretização dos factos”; “Sendo certo que o Embargante tem efetuado o depósito dos valores devidos a que se obrigou no acordo de 19/04/2023 junto do Embargado”.
5. Do mérito do recurso. Da (in) tempestividade da oposição por embargos.
Como é consabido, a lei impõe que a obrigação exequenda para além de certa e exigível, seja líquida (art.º713º do CPC).
Quando a liquidação dependa de simples cálculo aritmético, como é o caso, o exequente deve fixar o seu quantitativo no requerimento inicial da execução mediante especificação e cálculo dos respectivos valores (art.º 716º, n.º 1 do CPC).
Não há dúvida que no caso em apreço, logo no requerimento executivo foi deduzido um pedido líquido, i.e. o quantitativo da prestação exigida ao executado está numericamente determinado.
Porém, como se viu, foi subsequentemente feito um acordo entre exequente e executado mediante o qual este pagou aquele o valor de 14.404,24€ correspondente à soma das prestações vencidas, incluindo juros e seguros, mais se comprometendo a pagar-lhe as prestações acordadas no empréstimo nos moldes aí convencionados.
Também, como se viu, mediante requerimento de 4.11.2023, o exequente veio alegar que “os executados incumpriram com o plano de pagamento acordado pelas partes” requerendo o prosseguimento da execução.
Todavia, não liquidou o valor ( remanescente ) da dívida exequenda após os pagamentos entretanto efectuados (pelo menos a dita quantia de € 14.404,24 e eventualmente algumas prestações subsequentes) o que significa que o valor da obrigação exequenda não está actualmente numericamente determinado; é ilíquido.
Compreende-se o agastamento dos embargantes perante a decisão de indeferimento liminar dos embargos por intempestividade.
É que os mesmos são, a nosso ver, manifestamente tempestivos !
Senão vejamos.
Um dos fundamentos de embargos consiste precisamente na iliquidez da obrigação exequenda (art.º 729º, alínea e) do CPC).
No caso, a iliquidez é superveniente pelas razões apontadas: o montante reclamado no requerimento executivo não é seguramente, mercê dos pagamentos efectuados, o montante actualmente devido e para se alcançar qual é afinal o quantitativo em dívida haveria que (re) calculá-lo (aritmeticamente) antes de se poder determinar a renovação da instância.
É certo que a renovação da execução a que alude o nº 1 do art.º 808º do CPC – prevista quando ocorra falta de pagamento das prestações ajustadas - não se configura como uma nova execução, nem confere, só por si, ao executado o direito à dedução da oposição por embargos como decorre do nº4 do artigo 850.º para o qual o aquele normativo remete.
Por via de tal remissão, não se repetem as citações e aproveita-se tudo o que tiver sido processado relativamente aos bens em que prossegue a execução, exigindo apenas que os demais credores e o executado sejam notificados do requerimento de renovação.
Porém, tal requerimento do exequente não se pode bastar, como no caso sucedeu, com a afirmação de que o acordo foi incumprido.
Terá necessariamente de identificar as prestações que não foram liquidadas – i.e. o que afinal justifica o prosseguimento da execução – e o montante pelo qual a execução deve prosseguir.
Ora, no caso é inequívoco que só perante a decisão da A.E. de determinar a renovação da execução nestas circunstâncias em que se desconhece o valor da obrigação pelo qual a execução iria prosseguir se poderia o executado opor à execução por embargos (art.º 728º, nº2 do CPC).
Na verdade, só com a notificação de tal decisão se abriu a oportunidade ao executado de arguir a (actual) iliquidez da obrigação exequenda.
A decisão recorrida não pode, pois, subsistir.
III. DECISÃO
Por todo o exposto, decide-se revogar a decisão recorrida, julgando os embargos tempestivos e determinando que os mesmos prossigam os seus ulteriores termos caso nenhum outro fundamento obste ao seu recebimento.
Sem custas.
Évora, 30.5.2025
Maria João Sousa e Faro ( relatora)