INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
LITISCONSÓRCIO
Sumário

Sumário1:
A intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual se deve associar têm interesse igual na causa, desenhando-se uma situação de litisconsórcio sucessivo, seja necessário, seja voluntário – mas, no caso dos autos, e considerando os pedidos e a causa de pedir apresentados pela Autora, e até pela Ré, que não nega que apenas ela (e não a chamada) celebrou os contratos, não se pode considerar que a sociedade chamada tenha tal interesse na causa - analisada a relação material controvertida, verifica-se que a mesma não respeita a uma pluralidade de sujeitos, mas, apenas e tão só, à própria Autora e à própria Ré.

Texto Integral

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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,


I.RELATÓRIO.


DUNANY FOODS, SA propôs contra JOHNSON CONTROLS CAPITAL SPAIN, SL, ação declarativa de condenação sob a forma comum, pedindo que se:


a) Condene a R. a eliminar os defeitos e desconformidades dos sistemas frigoríficos e equipamentos - falta de capacidade produtiva, falta de capacidade de arrefecimento e bloqueio do arrefecedor- por via da construção de uma terceira linha de produção, incluindo o sistema de arrefecimento, a expensas suas; ou, caso se venha a revelar possível tendo em vista a manutenção do negócio da A., a substituição dos sistemas frigoríficos e túneis de arrefecimento, a suas expensas, no prazo tecnicamente viável;


b) Condene a R., no caso de esta não realizar as referidas obras no prazo que vier a ser indicado, a pagar à A. os custos que esta terá de suportar com a construção de uma terceira linha de produção, que à presente data se estimam em 3.108.000,00€ (IVA não incluído), sem prejuízo de futuras atualizações;


c) Condene a R. no pagamento do valor de 4.407.314,19€, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos e contabilizados até à presente data, acrescido de juros de mora a contar da citação da R.;


d) Condene a R. no pagamento do valor que se vier a apurar em execução de sentença por conta da indemnização pelos danos de perda de oportunidade de negócio da Mercadona e do Lidl.


Alegou para tanto, em síntese, que entre as artes foi celebrado um contrato de empreitada relativo a equipamentos que foram “adquiridos” ela Autora à Ré, visando a Autora a condenação da Ré a ressarcir os danos decorrentes da entrega tardia de tais equipamentos e dos defeitos e/ou desconformidades de tais equipamentos com os “formal e substancialmente contratualizados.”


***


Citada, a Ré veio defender-se por exceção, invocando a caducidade do direito da Autora, invocou que por via de cláusula contratual, a sua responsabilidade de encontra limitada ao valor de €27.292,41, impugnou os factos alegados pela Autora e deduziu incidente de intervenção principal de AGF Freezers Europe, BV.


Para sustentar a requerida intervenção, alegou que a chamada foi a fornecedora escolhida pela Autora para o fornecimento dos túneis por ser a que oferecia um produto que melhor se adequava ao interesse daquela, que foi, pois, com a AGF que a Autora negociou as especificações técnicas e desenhos dos túneis, assim como foi a AGF que procedeu ao seu fabrico, que o contrato de compra e venda foi celebrado entre Autora e Ré no já acima exposto contexto de necessidade de financiamento e que não fora tal necessidade por parte da Autora e os contratos de compra e venda dos túneis haviam sido celebrado directamente entre aquela e o fornecedor por si escolhido.


Referiu que esta factualidade nos leva a concluir estamos perante uma situação de litisconsórcio voluntário, na medida em que a relação material controvertida respeita a várias entidades, entre as quais a AGF, de acordo com o que dispõe o art.º 32.º do CPC e que como tal, justifica-se a intervenção provocada da AGF na qualidade de interveniente principal.


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A Autora deduziu oposição a tal requerimento para intervenção principal, pugnando pela respetiva inadmissibilidade.


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Por despacho de 15.01.2025 foi o requerimento de intervenção principal indeferido.


É o seguinte o teor de tal despacho:


DA INTERVENÇÃO PRINCIPAL DE AGF FREEZERS EUROPE, BV:

• JOHNSON CONTROLS CAPITAL SPAIN SL., ré nos autos, no âmbito da contestação oferecida, requereu a intervenção principal de AGF FREEZERS EUROPE, BV, dizendo, em síntese estreita, que esta, enquanto fornecedora escolhida pela autora e com quem esta negociou as respetivas especificações técnicas e desenhos, assumiu o papel essencial no fabrico e fornecimento dos túneis objeto dos presentes autos, respeitando, assim, a relação material controvertida a várias entidades, entre as quais a pretendida chamada, de acordo com o que dispõe o art. 32.º do CPC

• DUNANY FOODS, S.A, autora nos autos, convidada a pronunciar-se a respeito, pugnou pelo indeferimento da intervenção pretendida pela ré, dizendo, em síntese estreita, que estando em causa contratos de aquisição e prestação de serviços celebrados unicamente com a ré, as obrigações e direitos neles incluídos vinculam exclusivamente a autora e a ré e nenhuma outra entidade, sendo que a relação material controvertida, tal como definida pela autora, não tem qualquer correspondência com a factualidade alegada pela ré para justificar o chamamento em causa.

Vejamos:

Após a citação do réu, a instância deve manter-se imutável quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, ressalvadas as modificações consagradas na lei - art. 260.º do CPC.

Este normativo consagra o princípio da estabilidade da instância, que visa assegurar o andamento normal da causa, por forma a que o tribunal administre, em tempo oportuno, a justiça que lhe é solicitada.

Na parte ora útil, diremos que tal princípio é suscetível de ser afetado por virtude de uma modificação subjetiva, seja em consequência da substituição de alguma das partes primitivas, seja por via da intervenção de terceiros.

Essa modificação adjetiva-se através de um incidente processual – típico ou inominado – que, como o seu próprio conceito sugere, pressupõe a pendência de uma causa. Genericamente, dir-se-á que o conceito de “terceiros” se contrapõe ao conceito de “parte” e insere a ideia de alguém por quem ou contra quem é solicitada, em nome próprio, uma providência judicial tendente à tutela de um direito2.

Os incidentes de intervenção de terceiros foram estruturados na base dos vários tipos de interesse na intervenção e das várias ligações entre esse interesse, que deve ser invocado como fundamento da legitimidade do interveniente e da relação material controvertida desenvolvida entre as partes primitivas.

No quadro geral dos incidentes de intervenção de terceiros integram-se a intervenção principal, a intervenção acessória e a oposição.

No primeiro tipo, ou seja, na intervenção principal – como importa num primeiro momento ao tema do recurso – ela integra “…os casos em que o terceiro se associa, ou é chamado a associar-se, a uma das partes primitivas, com o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio ou coligação iniciais”3.

Compreende-se a assunção desse estatuto de parte principal, visto que está em causa “…um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu” – art. 312.º do CPC. Essa assunção verifica-se a partir do momento em que é admitida a intervenção do terceiro (se ela for espontânea) ou em que ele intervém efetivamente na causa (se for provocada). A intervenção principal, espontânea ou provocada, não é, naturalmente, admissível se forem contrapostos os interesses substantivos ou processuais do chamado e da parte ao lado de quem se pretende que intervenha. Como não permite que o autor substitua o réu contra quem, por erro, dirigiu a ação.
Sobre o âmbito da intervenção principal provocada, rege o art. 316.º do CPC, do seguinte teor:

1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.

3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;

b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.

Prevê o nº 1 deste artigo o chamamento a juízo do interessado com direito a intervir na causa e estatui que qualquer das partes primitivas pode provocá-lo, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.

Assim, o próprio autor pode chamar a intervir alguém, seja na posição de autor, seja na posição de réu. E este pode chamar a intervir alguém em posição paralela à sua ou à do autor.

Começa este incidente com um requerimento apresentado pela parte que pretenda chamar à causa determinada pessoa que, nos termos do art. 311.º, pudesse intervir espontaneamente.
O requerente da intervenção deve alegar e justificar, sem possibilidade de apresentação de prova, a legitimidade do chamando e que ele está, face à causa principal, em alguma das situações previstas no art. 311º.

Como a intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual pretende associar-se tenham interesse igual na causa, não é de admitir a intervenção apenas destinada a prevenir a hipótese de a parte primitiva não ser titular do interesse invocado.

Por outro lado, a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do accionamento operado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio4.

A ré fundamenta o pedido de intervenção provocada desta sociedade alegando, no essencial, que os problemas verificados pela autora no fornecimento dos bens em causa não foram por si causados, mas pela fornecedora/fabricante dos mesmos, com quem a autora negociou as respetivas especificações técnicas e desenhos.

Sucede que, a legitimidade processual, que se não confunde com a legitimidade substantiva, requisito de procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir tal como são apresentados pelo autor, independentemente da prova dos factos que integram a última.

Logo, o incidente de intervenção principal provocada supõe uma contitularidade da relação material controvertida, com participação do chamado à intervenção. Verificado este pressuposto, admitido o chamamento, tal implicará um alargamento do objeto do processo, que passa a reportar-se não só à relação jurídica controvertida, como também ao “direito próprio” do interveniente, e à situação jurídica de que este é titular.

Face ao mencionado é fácil concluir que não está justificada a intervenção da chamada na causa, uma vez que a pretensão da autora é deduzida com base na responsabilidade civil contratual imputada à ré, advinda do alegado incumprimento dos contratos celebrados unicamente com a ré, não sendo, por conseguinte, a chamada interveniente nesses contratos. Caso não se prove a factualidade invocada pela autora a única consequência daí decorrente é a absolvição da ré do pedido, o que esta pretende.

Assim, a causa de pedir apresentada pela autora dirige-se unicamente à ré, à responsabilidade que lhe imputa derivada dos contratos exclusivamente celebrados com ela. Em momento algum da petição inicial a Autora atribui qualquer responsabilidade na verificação dos defeitos invocados à sociedade chamada. Ou seja, a relação material controvertida está perfeitamente definida e não se vê, como e por que forma, a sociedade chamada possa ser qualificada como interessada, ou qual o direito que a mesma tem de intervir na causa, direito e interesse esse que não pode, obviamente, confundir-se com a configuração da ação nos moldes delineados pela ré.

Diante de tudo o exposto, indefere-se a intervenção principal da sociedade AGF FREEZERS EUROPE, BV.

Custas pelo incidente gerado a cargo da ré, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal – art. 527.º, n.º 1 do CPC e art. 7.º, n.º 4 do RCP e tabela ii anexa.

Notifique.(…)”

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Inconformada, recorreu a Ré, alegando e apresentado a seguinte síntese conclusiva:


“1. Vem o presente recurso interposto do despacho que indeferiu a intervenção principal provocada da sociedade AGF Freezers Europe, BV, fabricante e fornecedor dos túneis de arrefecimento em causa nestes autos, por ter o Tribunal recorrido entendendo que tal entidade não integra a relação material controvertida, tal como configurada pela Recorrida na sua petição inicial.


2. Salvo o devido respeito, o despacho recorrido não procede a uma correcta interpretação e aplicação das normas relativas ao incidente de intervenção provocada, nomeadamente dos artigos 316.º, n.º 3, al. a) e 32.º do CPC.


3. A Recorrida sustenta o seu pedido em responsabilidade contratual da Recorrente por alegado incumprimento de dois contratos de financiamento para a aquisição de dois túneis de refrigeração, alegando atrasos na entrega dos equipamentos, bem como defeitos / desconformidades com as especificações técnicas acordadas.


4. A Recorrente, por sua vez, alegou que foi a Recorrida que escolheu o fornecedor e fabricante do equipamento e lhe transmitiu directamente as especificações técnicas do mesmo, aprovando os desenhos por aquele apresentados, justificando, assim, o pedido de intervenção principal provocada desta entidade porquanto, não obstante não ser parte nos contratos celebrados entre a Recorrente e a Recorrida, assumiu o papel essencial no fornecimento dos túneis objecto dos presentes autos, mantendo uma relação directa (ainda que não contratual) com a Recorrida.


5. Se é certo que a intervenção de terceiros na lide, quando requerida pelo réu e com vista chamar alguém como seu associado, pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, já não se pode aceitar que para a definição dos contornos de tal relação apenas se tenha em conta a “latitude do acionamento operado pelo autor”.


6. Para efeitos da aferição do interesse litisconsorcial que o chamado possa ter na relação controvertida, não se pode o Tribunal ater à configuração desta relação trazida aos autos somente pelo autor.


7. Ainda que a Recorrida alegue uma relação contratual estabelecida unicamente com a Recorrente, estamos perante uma relação contratual complexa, fruto da tipologia de contratos em causa, não podendo o Tribunal ignorar a factualidade trazida aos autos pela Recorrente na sua contestação, na medida em que, também ela, integra a relação material controvertida a considerar para a boa decisão da causa.


8. Deverá contribuir para a representação e conformação da relação material o alegado pela Recorrente no sentido de que incumprimento que a Recorrida lhe imputa se ficou a dever à actuação de um terceiro, terceiro esse com quem a Recorrida – ainda que o omita na petição inicial, mas o reconheça na resposta à contestação – veio a estabelecer diversos contactos no âmbito da negociação das especificações técnicas dos túneis a adquirir.


9. Os factos trazidos pela Ré, ora Recorrente, aos autos na respectiva contestação para configurar e conformar o objecto da causa são cruciais para a regulação definitiva da situação concreta relativamente ao pedido formulado.


10. E, nesta medida, não é despicienda a distinção entre os conceitos de causa de pedir e de objecto da causa, sendo este último referido no artigo 311.° do CPC, ainda que a propósito da intervenção espontânea.


11. O objecto da causa corresponde a um conceito mais amplo do que o de causa de pedir, de matriz objectiva, apurado em função dos elementos carreados para os autos, quer pelo Autor, quer pelo Réu.


12. No caso em apreço, o Tribunal recorrido negligenciou a figura mais ampla do objecto da causa, que contempla igualmente os factos alegados pela Recorrente que, não se afastando da relação contratual invocada pela Recorrida, apontam para que a responsabilidade pelos danos invocados (e sem conceder quanto à sua falta de prova) recaia sobre a Chamada por ter sido esta que, de acordo com as especificações técnicas transmitidas pela Recorrente, procedeu ao fabrico dos túneis.


13. A Chamada procedeu à construção dos equipamentos, participou activamente nos actos que a Recorrida configura como incumprimento contratual, tendo chegado, inclusive, a reconhecer a sua responsabilidade, pelo que deve ser admitida a sua intervenção principal na acção para responder ao lado da Recorrente.


14. A corroborar o entendimento que se acaba de expor, temos o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.06.2012, proferido no âmbito do processo 2573/10.0TVLSB-A.L1-2 e disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler que “(…) os factos de que resultará a caracterização do direito (interesse) próprio do interveniente, hão-de decorrer, as mais das vezes, dos contributos que da sua defesa advenham para a configuração da relação material controvertida, pois que lhe cabe trazer aos autos factos de que resulte que aquele interesse é “paralelo” ao seu. IV - Não será, pois, exclusiva e necessariamente, à luz da relação material controvertida tal como resulta configurada pelo autor que se deverá aferir desse direito próprio que o interveniente fará valer na acção.”


15. Voltando ao caso concreto, e considerando o contributo de Autora e Ré para a configuração do objecto da causa, temos que a Recorrida invoca a celebração, com a Recorrente, de dois contratos de financiamento para aquisição de dois túneis de refrigeração, e o consequente incumprimento contratual por parte desta decorrente do atraso e da má construção do equipamento, ao passo que a Recorrente alega que a responsabilidade por tal incumprimento recai sobre o fornecedor e fabricante do equipamento, cuja intervenção requereu, a quem a própria Recorrida transmitiu directamente as especificações técnicas do mesmo.


16. A entidade chamada não é um terceiro a que a Recorrente tenha recorrido, por si e sem qualquer intervenção da Recorrida, para lhe fornecer o equipamento objecto dos contratos que com esta celebrou.


17. Não existem duas relações materiais controvertidas, mas sim uma única de natureza complexa, o que deriva do facto de estarmos perante dois contratos de financiamento de equipamento em que este é adquirido pela entidade financiadora, ora Recorrente, ao fornecedor escolhido pelo comprador do bem, ora Recorrida (sendo irrelevante, a este respeito, saber se tal escolha teve, ou não, por base a recomendação da Recorrente).


18. Por este motivo, o fornecedor do bem não está arredado da relação material controvertida estabelecida entre as partes primitivas destes autos e o seu interesse, por se situar na mesma (e única) relação material controvertida, é um interesse próprio e paralelo ao da Ré, ora Recorrente.


19. Tal interessa reside em alegar, e provar, factos com vista a afastar da sua esfera jurídica qualquer responsabilidade (ou pelo menos, parte da responsabilidade) pela má configuração dos equipamentos, nomeadamente por via da imputação à própria Autora de responsabilidade (ou parte) na incorrecta transmissão das especificações técnicas e aprovação de desenhos que, a final, não correspondiam ao por si pretendido.


20. Não estão em causa relações materiais controvertidas diversas e o interesse próprio que assiste à Chamada localiza-se no âmago da relação material controvertida tal como configurada por via dos contributos factuais que Autora e Ré aportaram aos autos.


21. Esta relação material controvertida respeita não só à Recorrente e Recorrida, mas também ao fornecedor dos bens objecto dos contratos entre estas celebrados – o qual manteve uma relação negocial directa com ambas.


22. Donde, o litisconsórcio voluntário que aqui ocorre é fundamento para a admissão da intervenção principal provocada de tal entidade, ao abrigo o disposto no art.º 316.º, n.º 3, al. a) do CPC.


Face a todo o exposto, requer-se que seja revogado o despacho recorrido, sendo substituído por decisão que admita a intervenção principal provocada da sociedade AGF Freezers Europe, BV.


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Não foram apresentadas contra-alegações.


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Colhidos os vistos, cumpre apreciar.


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II.OBJECTO DO RECURSO.


Como é sabido, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC) - impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.


Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela Recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se deve ser admitida a intervenção principal da sociedade AGF Freezers Europe, BV. *


III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.


São os descritos no relatório introdutório os factos/incidências processuais relevantes ao conhecimento do objeto do recurso.


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IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.


Como é sabido, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei (artigo 260.º do Código de Processo Civil (doravante CPC).


Uma das possibilidades de modificação subjetiva da instância prevista na lei é a decorrente dos incidentes de intervenção de terceiros (alínea b) do artigo 262.º).


Tal intervenção pode ser principal (artigos 311.º a 320.º) ou acessória (321.º a 332.º), ou traduzir-se naquilo que o legislador regula em sede de oposição (artigos 333.º a 350.º).


A intervenção principal pode ser espontânea (artigos 311.º a 315.º) ou provocada (artigos 316.º a 320.º).


Prossegue-se, com a modificação subjetiva da causa decorrente dos incidentes de intervenção de terceiros, o objetivo de alcançar economia de meios, resolvendo-se no mesmo processo um maior número possível de litígios (cf. José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2013, pág. 203).


É o artigo 316º do CPC que delimita as situações em que é processualmente admissível a intervenção provocada - a que foi requerida nos autos – o que faz da seguinte forma:


“1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.


2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.


3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:


a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;


b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.”


Estando em causa pedido de intervenção formulado pelo Réu, este pode, pois, ter a iniciativa do chamamento de terceiro quando mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida, ou quando pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor (cf. n.º 3 do artigo 316.º do CPC), encontrando-se especialmente regulada no artigo 321.º do CPC a possibilidade de intervenção provocada de terceiro em caso de efetivação de ação de regresso para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda.


Decidiu-se no Acórdão desta Relação de 15.06.20235, que aqui seguimos de perto, que a relação material controvertida “é aquela que vem delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor, na petição inicial.


Considerando o pedido e a causa de pedir apresentados na petição inicial define-se o objecto do processo, e definem-se os sujeitos do litígio processual que o tribunal é chamado a dirimir.


A relação material controvertida nos autos é aquela que o autor desenhou na petição inicial, e não outra.


No caso dos autos, a autora demandou a ré dizendo que esta deve ser condenada a indemnizá-la, e a ré contesta impugnando os factos de onde resultaria essa obrigação, defendendo que nada deve à autora.


Consequentemente, logrando a autora demonstrar os pressupostos de facto e de Direito de que depende o seu pedido, poderá alcançar sucesso na lide; e, ao contrário, logrando a ré comprovar os fundamentos da sua defesa poderá conseguir a absolvição almejada. Qualquer destas possibilidades se situa no âmbito do conflito que o tribunal está convocado a resolver, atenta a “relação material controvertida”.


As circunstâncias concretas alegadas pela ré na sua contestação para defender a improcedência dos pedidos contra ela formulados pela autora (isto é, que será outra entidade a estar vinculada na relação contratual ajuizada pela autora e às obrigações dela decorrentes) não têm a virtualidade de integrar a terceira entidade aludida entre os sujeitos da “relação material controvertida”. Esta é, repete-se, a configurada pelo autor na petição inicial.”


A intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual se deve associar têm interesse igual na causa, desenhando-se uma situação de litisconsórcio sucessivo, seja necessário, seja voluntário – mas, no caso dos autos, e considerando os pedidos e a causa de pedir apresentados pela Autora, e até pela Ré, que não nega que apenas ela (e não a chamada) celebrou os contratos, não se pode considerar que a sociedade chamada tenha tal interesse na causa - analisada a relação material controvertida, verifica-se que a mesma não respeita a uma pluralidade de sujeitos, mas, apenas e tão só, à própria Autora e à própria Ré.


Tal constatação implica, necessariamente, o indeferimento da requerida intervenção principal provocada.


Poderia ponderar-se se existiria fundamento para a intervenção acessória, prevista no artigo 321º do CPC, caso se entendesse que a Ré considera que a sua condenação seria suscetível de lhe conferir um direito de regresso a exercer contra a chamada.


Porém, não só a Ré não alega tais factos, como a decisão sobre o chamamento de terceiro em sede de incidente de intervenção acessória provocada, qualquer que seja o entendimento do juiz, deferindo ou indeferindo o chamamento, é irrecorrível, como expressamente estatui o art. 322º nº2 do CPC:


“2 - O juiz, ouvida a parte contrária, aprecia, em decisão irrecorrível, a relevância do interesse que está na base do chamamento, deferindo-o quando a intervenção não perturbe indevidamente o normal andamento do processo e, face às razões invocadas, se convença da viabilidade da ação de regresso e da sua efetiva dependência das questões a decidir na causa principal.”


Ou seja, por força do disposto no art. 322º, n.º 2, do CPC, a decisão proferida a este respeito na primeira instância é irrecorrível, assumindo, portanto, carácter definitivo, no âmbito do processo.


Não cabe, pois, a esta instância de recurso entrar na apreciação dos pressupostos invocados pela Requerente quanto à eventual intervenção acessória, porquanto o legislador reservou em exclusivo tal tarefa à primeira instância.


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Improcedem, pois, todas as conclusões do recurso.


Face ao total decaimento da pretensão, a Apelante terá de suportar as custas respetivas (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).


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V. Decisão.


Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.


Custas pela Apelante.


Registe e notifique.


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Évora,


Ana Pessoa


Sónia Moura


Filipe César Osório

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1. Da exclusiva responsabilidade da relatora.↩︎

2. Cfr. Gama Prazeres, Dos Incidentes da Instância no Actual Código de Processo Civil, pág. 102↩︎

3. Cfr. Lopes do Rego, Comentário ao Código do Processo Civil, pág. 242↩︎

4. Cfr. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, Coimbra - 1999, pág. 104↩︎

5. Proferido no âmbito do processo n.º 1539/22.2T8STR-B.E1, acessível em www.dgsi.pt; Cf. ainda neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 23.04.2024, proferido no âmbito do processo n.º 2692/23.3T8VIS-A.C1, no qual se decidiu:

“A intervenção a que alude o art.º 316.º, n.º 3, al.ª a), do NCPCiv. depende da verificação de litisconsórcio voluntário entre o réu e o interessado que se pretende chamar, o que pressupõe a existência de uma relação material controvertida – de acordo com a configuração do autor na sua petição – em que sejam sujeitos passivos tais réu e interessado.”↩︎