Sumário1:
I. O pedido de “restituição/reconhecimento de titularidade” das ações fundado em simulação só pode ser formulado se estiverem nos autos, quer os primeiros simuladores, quer aqueles que as detiveram e detêm, por não poder ser exigido ao simulador a entrega de um bem que já não possui e não poder ser pedida a terceiros a entrega do bem sem o reconhecimento da simulação.
II. Por ocorrer uma situação de litisconsórcio necessário natural (passivo), ocorre a exceção dilatória de ilegitimidade dos RR., de conhecimento oficioso -pelo que, apesar de não ter sido suscitada anteriormente (seja pelas partes, seja pelo tribunal recorrido), deve este tribunal de recurso dela conhecer, não sendo já, nesta sede, possível o suprimento dessa falta de pressuposto processual (ao abrigo dos artigos 265º, nº 2, e 508º, nº 1, al. a), do CPC), por ter passado o momento processual próprio e por a omissão dessa diligência de suprimento não configurar nulidade de conhecimento oficioso.
III. Consequentemente, resta a este Tribunal determinar a revogação da sentença e a absolvição dos RR. da instância, ficando prejudicado o conhecimento de mérito da ação e da matéria suscitada na apelação.
Acordam, em conferência na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
* I. RELATÓRIO
AA e esposa BB intentaram contra CC a presente ação que classificaram como de simples apreciação, sob a forma de processo comum, com fundamento em transmissão simulada de participações sociais.
Alegaram para o efeito que fizeram construir e exploraram uma unidade hoteleira situada em ..., denominada “Hotel DD” e que por ter existido um diferendo judicial, no qual lhes estava a ser pedida uma avultada quantia monetária, os ora Autores entenderam colocar o seu património em nome de outra pessoa.
Para o efeito decidiram constituir uma sociedade por quotas, em nome da qual foi colocado o património correspondente a essa unidade hoteleira, sendo que a maioria do capital dessa sociedade foi colocada no nome do filho do ora Autor, EE.
A sociedade veio a ser transformada em sociedade anónima, mantendo no essencial a mesma composição de capital, mas vindo a ocorrer que, como o filho do autor, a dado passo, deixou também ele de poder ter património, por questões pessoais, foi decidido colocar as participações sociais na titularidade da ora Ré.
Referiram que desde o início da exploração do hotel e mesmo depois da constituição da sociedade (logo na forma de sociedade por quotas e posteriormente na forma de sociedade anónima), foi o autor quem sempre a geriu, sendo EE, um mero gerente nominal, sem verdadeira interferência na gestão dos destinos da sociedade e que a ora Ré, mesmo quando as participações sociais foram colocadas em seu nome, nunca teve qualquer relação com a atividade societária da empresa.
Acrescentaram que apenas em 2017, por problemas de saúde do Autor AA, o seu filho, EE, passou a desempenhar funções de efetiva gerência da sociedade.
Considerando os Autores que ocorreu uma cadeia sucessiva de simulações, pretendem que se declare a invalidade desses negócios para que a totalidade das participações sociais da sociedade reverta novamente para o seu património.
Concluíram, pedindo seja a presente ação julgada procedente, por provada, e, em consequência, sejam os Autores reconhecidos como únicos acionistas da sociedade "FF, S.A.", com o número de identificação de pessoa coletiva ... e cujo código de acesso à certidão permanente é 1732-4754-4161.
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A Ré contestou, alegando que, pelo menos a partir de 1995, EE passou a estar integrado na vida da sociedade e a comparticipar na respetiva direção, que foi desejo do autor que o mesmo se interessasse pela vida da sociedade, tendo para o efeito colocado participações sociais em nome deste.
Não obstante alegar que das atas de assembleias gerais efetuadas já posteriormente à sua detenção das participações sociais a mesma figura como sócia da empresa, aceitou que as participações poderiam ter a composição relativa originariamente definida pelo autor e por EE, rejeitando que os autores sejam os únicos detentores do capital da sociedade e alegando que EE, que ademais se desligou de toda a vida profissional que tinha para vir ajudar a dirigir a sociedade, detém a maioria do capital.
Concluiu pela improcedência da ação. *
Realizada audiência prévia, foi elaborado despacho saneador, identificado o objeto do litígio e foram elaborados os temas da prova, tudo conforme se alcança da respetiva ata.
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Procedeu-se à realização da audiência final, após o que veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu julgar a ação improcedente, absolvendo-se a Ré do pedido.
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Inconformados interpuseram os Autores recurso, o qual motivaram, após o que apresentaram a seguinte síntese conclusiva:
A. Os recorrentes intentaram a presente ação de processo comum, tendo peticionado que fossem reconhecidos como únicos acionistas da sociedade "FF, S.A.", com fundamento numa cadeia de transmissões simuladas das participações sociais da referida sociedade cujo intuito foi proteger o património dos recorrentes dos seus credores.
B. O presente recurso tem como objeto a douta sentença proferida pelo tribunal recorrido que julgou improcedente a ação instaurada pelos recorrentes, dessa forma absolvendo a recorrida do pedido.
C. Tendo em conta a matéria de facto que foi dada como assente pelo tribunal recorrido, entendem os recorrentes que o tribunal recorrido deveria ter chegado a uma conclusão diversa daquela que consta na douta sentença recorrida.
D. O direito que que os recorrentes reivindicaram na presente ação teve como fundamento a celebração de dois acordos simulatórios que tiveram como único propósito transferir as participações sociais da sociedade para terceiros e assim proteger o património dos recorrentes:
- O primeiro, que sucedeu aquando da constituição da sociedade em 22.11.2005 e que consistiu na colocação da maioria das participações sociais daquela sociedade, então por quotas, em nome de EE;
- O segundo, que ocorreu em 29.03.2019, na sequência da publicação da Lei n.º 15/2017, de 3 de maio, e que consistiu na transmissão para a recorrida das participações sociais dos recorrentes (nelas incluindo as que, por força do referido acordo simulatório, de 2005, e após a conversão das sociedade em Sociedade Anónima (em 2011) foram colocadas em nome de EE), o que aconteceu após a conversão das ações ao portador, pertencentes aos recorrentes e - de forma simulada – tituladas por EE, em ações nominativas.
E. O tribunal recorrido decidiu julgar a ação intentada pelos recorrentes improcedente por considerar que não é inequívoco que a distribuição da maioria do capital social da sociedade a favor de EE, aquando da constituição da sociedade, se tratou de uma mera simulação.
F. Segundo o tribunal recorrido, apesar de ser cristalino que a transferência das participações sociais para a recorrida, ocorrida em 29.03.2019, foi de facto uma mera ficção, pairando sobre a distribuição de capital ocorrida aquando da constituição da sociedade a dúvida acerca da sua natureza simulatória, não se pode afirmar com certeza que os
recorrentes são os verdadeiros acionistas da sociedade.
G. Entendem os recorrentes que andou mal o tribunal recorrido ao considerar que não é inequívoco que a distribuição da maioria do capital da sociedade a favor de EE foi simulada.
H. Os factos dados como provados (bem como os que foram dados como não provados) e que resultaram da prova documental, testemunhal e por declarações de parte, por si só e de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, levam à conclusão inevitável conclusão de que aquando da constituição da sociedade, a colocação da maioria das participações da sociedade em nome de EE foi uma mera simulação com o intuito de proteger o património dos aqui recorrentes.
I. Se à primeira vista poderia existir alguma incerteza acerca daquilo que foi efetivamente sucedeu aquando da distribuição do capital social da sociedade aquando da sua constituição, tal incerteza é totalmente dissipada após uma leitura, interpretação e conjugação minuciosa e sistemática da matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido.
J. Conforme resulta dos factos provados, EE apenas deixou a sua vida em Lisboa e veio para o Algarve volvida mais de uma década desde a data da constituição da sociedade, o que é demonstrativo de que, aquando da constituição da sociedade, a distribuição da maioria das participações sociais a favor de EE não teve subjacente qualquer desejo do recorrente AA de que o seu filho EE viesse para o Algarve e se interessasse pela sociedade e não foi o culminar de qualquer intenção do recorrente de que o seu filho fosse materialmente sócio maioritário da sociedade "FF, Lda."
K. A este propósito, cumpre sublinhar que EE, para além de apenas ter passado a residir no Algarve volvida mais de uma década desde a data da constituição da sociedade, apenas o fez em virtude da situação de saúde do recorrente, o que também resulta da factualidade provada.
L. A natureza simulatória da distribuição da maioria do capital social a favor de EE é igualmente corroborada pela circunstância de o imóvel onde se encontrava instalado o estabelecimento hoteleiro ter sido arrendado a EE uma década antes da data da constituição da sociedade e durante a qual EE sempre trabalhou na Caixa Geral de Depósitos (até ter cessado aí as suas funções, o que sucedeu apenas em 2017 e como consequência do estado de saúde do recorrente, sublinha-se), o que demonstra que já nessa altura era intuito dos recorrentes recorrer a EE para ser o seu “testa de ferro”.
M. Acresce que, in casu, a natureza simulatória da distribuição da maioria do capital social a favor de EE aquando da constituição da sociedade é ainda mais gritante porquanto, em 29.03.2019, data em que as ações da sociedade, então ao portador, foram convertidas em nominativas, a totalidade das ações da sociedade foi transmitida para a recorrida.
N. Ou seja, a circunstância de tanto as ações dos recorrentes como as ações colocadas em nome EE (representativas de 79,19% do capital social) terem sido transferidas para a esfera da recorrida é claramente demonstrativa de que aquilo que efetivamente se passou aquando da constituição da sociedade foi uma mera ficção.
O. Na verdade, bem vistas as coisas, cumpre perguntar o seguinte: se EE fosse efetivamente o
detentor material/titular das participações sociais da sociedade, então por que motivo o mesmo haveria de transmitir as suas participações (representativas de 79,19% do capital social, reitera-se) para a recorrida (como veio a transmitir), se apenas os recorrentes é que careciam de transmitir as suas ações (por se terem convertido em nominativas por imposição legal) por força do receio que tinham da dívida que contraíram ao Turismo de Portugal?
P. Quando, de resto, resulta da douta sentença recorrida que não se provou que “i) A distribuição, em 2005, do capital social da sociedade comercial ora denominada "FF, S.A.", anteriormente "FF, Lda.", deveu-se à vontade e proposta manifestada pelo Autor AA ao seu filho EE, como forma de o manter interessado na atividade comercial da mesma e de o património familiar continuar a pertencer maioritariamente nas mãos dos seus descendentes, evitando que o controlo daquela sociedade passasse para a alçada dos herdeiros da Autora BB, segunda mulher do Autor AA, em caso de falecimento deste.; que “ii) Nunca em situação alguma foi falado ou sugerido que EE seria um mero “testa de ferro” do pai, o Autor AA, papel que aquele jamais teria aceite desempenhar.”; e que “iii) Era pretensão dos autores, em 2017, recorrer novamente a EE para, formalmente, titular a totalidade das ações da sociedade, contudo este encontrava-se em processo de divórcio e receou que essa situação tivesse repercussões na subsequente partilha, caso passasse a integrar, mesmo de forma simulada, tal ativo.” !?
Q. Pelo que ficou supra exposto, entendem os recorrentes que não faz qualquer espécie de sentido o plasmado na douta sentença recorrida, quando aí se equaciona que “pode ter ocorrido que o autor, que era quem verdadeiramente tomava as decisões, tenha decidido que a colocação do capital social em nome do seu filho seria um estímulo a que o mesmo se envolvesse mais na atividade da sociedade e que viesse para o Algarve passando a participar na gestão da mesma”.
R. E, como tal, se imporia – e imporá a este Venerando Tribunal – ter dado como provado que “O Sr. EE passou a ser aquilo a que na gíria se chama um testa-de-ferro, assumindo em seu nome, de forma simulada, parte do património societário do seu pai e da esposa deste.”, devendo tal ponto ser aditado à matéria de facto provada, imediatamente a seguir ao ponto 10. dos factos provados “10- A gerência da sociedade ficou a pertencer ao autor AA (artºs 5º e 6º da p.i.).”
S. Por conseguinte, forçoso se torna concluir que a tese da recorrida, no sentido de que EE, desde a data da constituição da sociedade foi o detentor efetivo do seu capital social, terá necessariamente de soçobrar.
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T. Subsidiariamente, apenas para a eventualidade de se entender que os recorrentes não têm o direito à totalidade das participações sociais da sociedade – o que não se aceita -, importa não olvidar que, conforme bem reconhece o tribunal recorrido, a recorrida não tem nem nunca teve qualquer relação com a vida da sociedade e a detenção por esta da totalidade do capital social não passa de uma mera ficção, “tal terá acontecido e não se encontra verdadeiramente em discussão na causa”.
U. Isso mesmo foi reconhecido pela recorrida na sua contestação, quando aí refere, no seu artigo 33.º, que detém
as ações representativas do capital social da sociedade por conta dos recorrentes e do seu filho EE.
V. Ou seja, a própria recorrida confessou que detém 20,32% do capital social por conta do recorrente AA e 0,49% do capital social por conta da recorrente BB.
W. Em face de tal confissão, entendem os recorrentes que o tribunal recorrido, ao concluir que os recorrentes não são titulares da totalidade do capital social, deveria ter, quanto mais não seja, reconhecido que os recorrentes são titulares do capital social nos termos confessados pela recorrida, dessa forma julgado a ação parcialmente procedente.
X. Para o efeito, adicionando à matéria de facto provada o seguinte ponto: “A Ré, enquanto acionista única da sociedade "FF, S.A." e titular formal das ações representativas do capital social desta sociedade, detém as mesmas por conta do Sr. EE e dos Autores, tal como estes as detinham antes de operar a sua transmissão a favor daquela e desde a transformação da sociedade "FF" em sociedade anónima, realizada em 2011, ou seja, da seguinte forma:
- Sr. EE titular de 9550 ações, representativas de 79,19% do capital social;
- Sr. AA titular de 2450 ações, representativas de 20,32% do capital social;
- Sra. BB titular de 60 ações, representativas de 0,49% do capital social.” ***
Y. Portanto, e em jeito de resumo, no contexto da factualidade provada, afigura-se-nos evidente que, contrariamente ao entendimento exarado na douta sentença recorrida, existiu em 22.11.2005 um acordo simulatório que consistiu na colocação da maioria das participações sociais em nome de EE.
Z. Tal asserção, aliada à certeza de que a recorrida não é nem nunca foi detentora efetiva das participações sociais da sociedade (uma vez que a transmissão das participações da sociedade para a recorrida foi de facto simulada), reconhecida na douta sentença recorrida, tem como consequência necessária e lógica a conclusão de que os recorrentes são e sempre foram os verdadeiros titulares da sociedade "FF, S.A."
AA. Por conseguinte, entendem os recorrentes que os presentes autos, ainda que com recurso ao aditamento à matéria de facto ora pugnado, reúnem todos os elementos necessários para que seja decretada a reversão do património societário para a esfera dos recorrentes.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso de apelação e, em consequência, ser revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra que declare que os ora recorrentes são os únicos acionistas da sociedade "FF, S.A.", com o número de identificação de pessoa coletiva ..., pois só assim se fará justiça.
Ou, assim não se entendendo, o que por mera hipótese académica se equaciona, ser revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra que declare que os recorrentes AA e BB são titulares de 20,32% e 0,49% do capital social da sociedade "FF, S.A.", respetivamente.
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A Ré contra-alegou, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
A) Vem o presente recurso de apelação interposto da douta sentença proferida, em 15/12/2024, a qual julgou improcedente a ação proposta pelos ora recorrentes e absolveu a ora recorrida do pedido, o qual consistia em serem aqueles reconhecidos como únicos acionistas da sociedade "FF, S.A.", melhor identificada nos autos.
B) De acordo com a factualidade dada como provada, desde os anos de 2001/2002, que EE, único filho do autor ora recorrente AA, começou a tratar dos e-mails relacionados com a atividade comercial daquela unidade hoteleira, por inabilidade do autor ora recorrente AA para lidar com as novas tecnologias informáticas, num trabalho, que apesar de feito à distância, lhe ocupava a totalidade do seu tempo disponível, fora da Caixa Geral de Depósitos.
C) Desta forma, aquando da constituição da sociedade com a firma "FF, Lda.", em 22/11/2005, em nome da qual viria a ser explorado o Hotel/Aparthotel DD e para nome de quem se transmitiriam os direitos de propriedade sobre os imóveis onde fora construída aquela unidade hoteleira, a decisão do autor ora recorrente AA em atribuir e fazer registar uma participação maioritária,no valorde € 3.750,00, correspondente a 75% do então capital social daquela sociedade, ao seu único filho, EE, que já há muito tempo colaborava com aquele na gestão diária da sociedade, reservando para si uma participação minoritária, no valor de € 1.250,00, correspondente aos restantes 25% do então capital social daquela sociedade, nada teve de simulatório.
D) Se o autor ora recorrente AA pretendesse, com a constituição da sociedade com a firma "FF, Lda.", em 22/11/2005, e colocação da maioria das participações sociais em nome do seu único filho EE, proteger o seu património dos credores, especialmente do Fundo do Turismo (atualmente Turismo de Portugal), não o teria conseguido fazer, uma vez que continuava a deter uma participação social naquela sociedade, ainda que minoritária, que sempre poderia ser “atacada” judicialmente por aqueles credores, pelo que, não faz qualquer sentido defender-se a existência de um negócio jurídico (constituição da sociedade) simulado, que nem sequer constituiu, em bom rigor jurídico, uma transmissão simulada das participações sociais da referida sociedade.
E) Apesar de o tribunal “a quo” ter dado como não provado, a verdade é que a distribuição, em 2005, do capital da sociedade comercial ora denominada "FF, S.A.", anteriormente "FF, Lda.", deveu-se à vontade e proposta manifestada pelo autor ora recorrente AA ao seu único filho EE, como forma de o manter interessado na atividade comercial da mesma e de o património familiar continuar a pertencer maioritariamente nas mãos dos seus descendentes, evitando que o controlo daquela sociedade passasse para a alçada dos herdeiros da autora ora recorrente BB, segunda mulher do autor ora recorrente AA, em caso de falecimento deste.
F) Tal resulta inequivocamente da prova produzida nos autos, nomeadamente das declarações prestadas pela testemunha EE, conforme consta da sentença recorrida, de que se transcreve:
“A partir da constituição da sociedade, em 2005, afigura-se-nos que as coisas começaram a tornar-se algo mais nebulosas. E isto ocorre porque EE também declarou que o pai distribuiu as participações sociais e confirmou que o mesmo pagou a sua entrada no capital inicial da sociedade, o que ocorreu porque queria que o filho EE viesse para o Algarve (e tal veio, uns anos mais tarde, efetivamente a suceder). (…)
Também pode ter ocorrido que o autor, que era quem verdadeiramente tomava as decisões, tenha decidido que a
colocação do capital social em nome do seu filho seroa um estímulo a que o mesmo se envolvesse mais na atividade da sociedadee que viesse para o Algarve passando a participar na gestão da mesma, o que, reitera-se, acabou por vir a suceder.” (realces nossos).
G) Sendo que para o tribunal “a quo”, o depoimento de EE não sai desabonado pela circunstância de o mesmo ser visivelmente pessoa interessada na causa, sendo quem verdadeiramente tem interesse, nomeadamente, numa repartição do capital social que não implique que a totalidade das participações sociais fique a pertencer aos AA, dado que “o mesmo é também a pessoa que maior conhecimento direto dos factos tem, por na maioria dos mesmos ter tomado parte, sendo que depôs de modo claro, lógico, seguro e sereno, não se esquivando a esclarecer o que se demandava que esclarecesse. E se se lhe pode apontar que é interessado na questão, sempre se dirá que também a A. teve ocasião de ser ouvida, em declarações, diga-se que, em boa medida, coincidentes com as prestadas pela testemunha, exceção feita à circunstância de sustentar que EE só começou a tomar parte na gestão da sociedade a partir de 2017. E, neste particular, as regras de experiência comum, tendo em conta o exposto, induzem-nos a pensar que EE, à medida do aumento na complexidade da gestão dos assuntos da sociedade, própria do devir do tempo, a que foi acrescendo o envelhecimento dos AA., pelo menos progressivamente, foi passando a ser parte da gestão do rumo da sociedade.” (realces nossos).
H) Assim sendo, a sentença recorrida contem uma manifesta contradição entre a referida decisão sobre não ter dado como provado o facto acima assinalado no ponto i) por referência ao art.º 9º da contestação e a sua posterior fundamentação e análise crítica da prova, em particular das declarações prestadas a esse propósito pela testemunha EE.
I) Motivos, pelos quais, deve ser modificada a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, sendo aditado, nos factos provados, um n.º 48, com o seguinte teor: “A distribuição, em 2005, do capital da sociedade comercial ora denominada "FF, S.A.", anteriormente "FF, Lda.", deveu-se à vontade e proposta manifestada pelo Autor AA ao seu filho EE, como forma de o manter interessado na atividade comercial da mesma e de o património familiar continuar a pertencer maioritariamente nas mãos dos seus descendentes, evitando que o controlo daquela sociedade passasse para a alçada dos herdeiros da Autora BB, segunda mulher do Autor AA, em caso de falecimento deste.”
J) Também resulta dos factos provados que, relativamente à conversão das ações representativas do capital social da sociedade "FF", decorrentes de anterior aumento do capital social e transformação daquela em sociedade anónima, de ações tituladas ao portador em ações tituladas nominativas, o registo da mesma ocorreu em 4 de abril de 2011, no seguimento de uma deliberação social tomada, em 27 de fevereiro de 2011, e, para tanto, foi indicado nessa transformação que teria havido suprimentos prestados pelo Sr. EE, a que se juntavam suprimentos prestados pelos autores (num valor correspondente a uma participação que viria a ser minoritária, sendo o aumentado o capital da sociedade de € 5.000,00 para € 60.300,00.
L) Tendo a sociedade "FF" passado a ser uma Sociedade Anónima, com 12.060 ações de valor nominal de €
5,00 cada, ao portador, as quais foram atribuídas da seguinte forma:
- EE titular de 9.550 ações, representativas de 79,19% do capital social;
- AA titular de 2.450 ações, representativas de 20,32% do capital social;
- BB titular de 60 ações, representativas de 0,49% do capital social.
M) A composição e atribuição dos títulos das ações representativos do capital social da sociedade "FF, S.A." acima descrita manteve-se até 29 de março de 2029, constando das Atas da Assembleia Geral da mesma realizadas nos anos de 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018, assinadas incluindo os autores ora recorrentes.
N) Igualmente a partir do início de 2011 EE começou a tratar das questões que se relacionavam com tudo o que fosse tratado por meios eletrónicos, nomeadamente, negociar contratos da sociedade "FF, S.A." com fornecedores (tais como da prestação de serviços de comunicações e do fornecimento de energia), quem tratava do mapa de reservas (mapa diário que indicava a posição do Hotel, em termos de quartos disponíveis), quem passou a assegurar o tratamento de reclamações de clientes, quem efetuava os pagamentos de salários, impostos, serviços, fornecedores, comissões, entre outros, utilizando para isso o homebanking da sociedade, que tinha duas contas em dois bancos: Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e Banco Português de Investimento.
O) Sendo que, a partir de março de 2017, EE deixou o seu emprego na Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa, rescindindo o seu contrato de trabalho por mútuo acordo, tendo-se mudado definitivamente para o Algarve, a tempo inteiro, para poder passar a gerir, por completo, a sociedade "FF, S.A."
P) Através das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da sociedade "FF, S.A." realizada, em 29 de março de 2019, foi deliberada, pelos autores ora recorrentes em conjunto com EE, a conversão das ações da sociedade, ao portador, em títulos nominativos titulados pela Ré CC, primeira mulher do Autor AA e mãe do único filho deste, EE, bem como alterar a composição do Conselho de Administração da sociedade, passando a ter apenas um Administrador Único, cargo que passou a ser exercido por EE, conforme consta da ata número vinte e dois e do novo Contrato de Sociedade.
Q) As referidas alterações societárias resultaram, por um lado, de uma imposição legal (Lei n.º 15/2017, de 3 de maio e Decreto-Lei nº 123/2017, de 25 de setembro), e, por outro lado, quer de uma exigência da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, para concessão de um importante financiamento à sociedade "FF, S.A.", no sentido da cessação das funções de gestão e controlo acionista da empresa por parte dos “senhores AA e BB”, passando o controlo acionista da mesma “para o senhor EE”, quer ainda por conveniência pessoal de EE.
R) Em face da matéria de facto dada como provada, à qual deve, em nosso entender, e face à prova produzida, ser aditado o facto correspondente ao alegado no art.º 9º da contestação acima mencionado, parece curial concluir que foi de livre, esclarecida e consciente vontade, isto é, sem quaisquer divergências, que o autor ora recorrente AA constituiu, em 2005, conjuntamente com o seu único filho, EE, a sociedade anteriormente denominada de "FF, Lda.", colocando-o como sócio maioritário, no intuito de que o mesmo aumentasse a sua participação na gestão da sociedade, que, como decorre da matéria que se provou, em certa medida, já ocorria desde os anos de 2001/2002 e se foi
intensificando ao longo do tempo, pelo que não existiu nessa altura um negócio com intenção simulatória.
S) Esta mesma realidade, de repartição do capital social da sociedade "FF" entre os autores ora recorrentes e EE, este enquanto sócio/acionista maioritário, sai reforçada, em 2011, aquando da realização das operações de aumento do capital social e transformação da sociedade em sociedade anónima, desta vez com recurso a suprimentos prestados por EE, a que se juntavam suprimentos prestados pelos autores(num valor correspondente a uma participação que viria a ser minoritária), que, tal como decorre da matéria de facto provada, resultou, mais uma vez segundo a vontade livre, esclarecida e consciente de todas as partes, na distribuição seguinte: EE titular de 9.550 ações, representativas de 79,19% do capital social; AA titular de 2.450 ações, representativas de 20,32% do capital social e BB titular de 60 ações, representativas de 0,49% do capital social, pelo que, também, não existiu nessa altura qualquer negócio com intenção simulatória.
T) Também as deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da sociedade "FF, S.A." realizada, em 29 de março de 2019, relativas à conversão das ações da sociedade, ao portador, em títulos nominativos titulados pela Ré CC, primeira mulher do Autor AA e mãe do único filho deste, EE, e alteração da composição do Conselho de Administração da sociedade, passando a ter apenas um Administrador Único, cargo que passou a ser exercido por EE, pelos motivos acima assinalados, resultaram de uma vontade livre, esclarecida e consciente de todas as partes, sem divergências entre a vontade declarada e a vontade real, nem o intuito de enganar terceiros.
U) Do exposto, decorre que jamais existiram negócios simulados, e muito menos, que as participações sociais (ações) representativas do capital social da sociedade "FF, S.A." pertencessem na sua totalidade e em exclusivo aos autores ora recorrentes, razão pela qual a presente ação, nos exatos termos em que se encontra configurada inclusive quanto ao seu pedido, teria e terá forçosamente de improceder.
V) Não sendo possível aos autores ora recorrentes, em fase do recurso de apelação, apresentarem ao tribunal “ad quem” um pedido subsidiário para o caso de se concluir, e bem, que aqueles não têm direito à totalidade das participações sociais (ações) representativas do capital social da sociedade "FF, S.A."
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. certa e muito doutamente muito suprirão, deve:
a) ser modificada a matéria de facto constante da sentença recorrida, sendo aditado, nos factos provados, um n.º 48, com o seguinte teor: “A distribuição, em 2005, do capital da sociedade comercial ora denominada "FF, S.A.", anteriormente "FF, Lda.", deveu-se à vontade e proposta manifestada pelo Autor AA ao seu filho EE, como forma de o manter interessado na atividade comercial da mesma e de o património familiar continuar a pertencer maioritariamente nas mãos dos seus descendentes, evitando que o controlo daquela sociedade passasse para a alçada dos herdeiros da Autora BB, segunda mulher do Autor AA, em caso de falecimento deste.”;
b) ser o presente recurso de apelação julgado totalmente improcedente, por não provado, com todas as consequências legais.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, foi proferida decisão singular da Relatora que revogou a decisão recorrida e abstendo-se de conhecer do pedido, ao abrigo do disposto nos artigos 30º, 33º, al. d), do nº1, do artigo 278º, nº1 e 2, do artigo 576º, al. e), do artigo 577º e artigo 578º, absolveu a Ré da instância, por se considerar verificada a exceção dilatória da ilegitimidade, dada a preterição do litisconsórcio necessário passivo não suscetível, já nesta fase, de sanação ao abrigo do nº2, do ar. 6º e al. a), do nº2, do artigo 590º e v., ainda, nº3, do artigo 278º.
*
Inconformada, veio a Apelada, vem requerer que sobre a matéria daquela decisão singular recaia um Acórdão da Conferência, de acordo com o disposto no artigo 652º, n.º 3 do Código de Processo Civil, alegando, em resumo, que o conhecimento da exceção dilatória de ilegitimidade passiva, questão nova, que não fora suscitada ou apreciada anteriormente nos autos, consubstancia uma decisão surpresa e deveria ter sido precedida de convite às partes para tomarem posição sobre a questão oficiosamente conhecida.
Referiu ainda que o conhecimento de tal questão constitui violação do princípio do dispositivo, porquanto a mesma não foi invocada nas alegações de recurso, ou, de resto, no processo em primeira instância.
Afirmou ainda a sua discordância relativamente aos fundamentos de que o Tribunal se socorreu para proferir decisão singular.
*
Por despacho de 06.05 foram as partes notificadas para querendo, e com vista à prolação de decisão em conferência, exercerem o contraditório acerca da exceção de ilegitimidade constatada na decisão singular proferida.
*
A Apelada pronunciou-se através do requerimento de 13.05.
*
Os Apelantes não responderam ao convite ou à reclamação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre, pois, agora, em conferência, apreciar e decidir o recurso.
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II. OBJETO DO RECURSO
Sendo e objeto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no caso, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i)Da legitimidade das partes, questão de conhecimento oficioso; e no caso se concluir pela verificação de tal pressuposto,
(ii) Da alteração da matéria de facto;
(iii) Da reapreciação da decisão jurídica da causa, no sentido de se apurar se se verificam os pressupostos da simulação.
* III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1- Os Autores, durante os anos 80 do século XX, adquiriram, em momentos diferentes, três lotes de terreno destinados a construção urbana, sem qualquer edificação, sitos em ..., na freguesia da Local 1, concelho de ..., distrito de Faro, com vista à construção de uma unidade hoteleira (artº 1º da p.i.).
2- Após tais aquisições, o Autor desenvolveu nos aludidos imóveis um projeto de licenciamento, no âmbito do qual erigiu um edifício, por fases, que destinou à exploração hoteleira, sob a insígnia Hotel/Aparthotel DD, atividade que foi iniciada, em nome individual, no final dos anos 80 e que assim se manteve até ao final do ano de 2005 (artº 2º da p.i.).
3- Os Autores começaram a ter problemas com o Fundo de Turismo (atualmente Turismo de Portugal) começaram, em princípios dos anos 90, por incumprimento no reembolso do capital mutuado (para a construção do hotel) e
pagamento de juros a esta entidade, pelo que foi solicitado pelo Autor AA ao seu único filho, EE, que aceitasse que a exploração daquela unidade hoteleira passasse para o nome individual deste, tendo-lhe sido arrendado o imóvel onde funcionava o hotel, em 1995 (artºs 3º e 6º da contestação).
4- Desta forma, EE, em 1995, abriu atividade como empresário em nome individual nas Finanças para poder efetuar a exploração daquela unidade hoteleira, tendo passado igualmente a descontar para a Segurança Social (artºs 4º e 6º da contestação).
5- Posteriormente, em 1998, o Sr. EE verificou que tendo passado a descontar para a Caixa Geral de Aposentações, via Caixa Geral de Depósitos, então a sua entidade empregadora, não seria necessário continuar a descontar também para a Segurança Social como empresário em nome individual, pelo que interrompeu a feitura desses descontos (artº 5º da contestação).
6- Desde os anos de 2001/2002, que EE começou a tratar dos e-mails relacionados com a atividade comercial daquela unidade hoteleira, por inabilidade do Autor AA para lidar com as novas tecnologias informáticas, nomeadamente a receber e a responder aos pedidos de informações, de preços, de grupos, reservas de Tour Operator, cancelamentos, alterações, troca de cartões, pedidos diversos, passando a tomar conta de todos os tipos de contratos envolvendo a negociação com as plataformas online Booking, Expedia, Hotelbeds, Airbnb, Homeaway, Odisseias, Hostelbooker's, Abreu, TPVBooking, Edigeo, entre outras; assim como com a criação da página do Hotel no T.O. (Tour Operator), fotos, conteúdos, descrições, mapas, preços, tipos de quartos, num trabalho, que apesar de feito à distância, lhe ocupava a totalidade do seu tempo disponível, fora da Caixa Geral de Depósitos (artº 12º da contestação).
7- No ano de 2005, o autor decidiu constituir uma sociedade por quotas em nome da qual viria a ser explorada a atividade hoteleira e para nome de quem se transmitiram os direitos de propriedade sobre os imóveis referidos em 1 destes factos provados e construções neles existentes (artºs 3º e 4º da p.i.).
8- No dia 22 de novembro de 2005, foi constituída a sociedade com a firma
"FF, Lda." (cujo código de acesso à certidão permanente é 1732-4754-4161), cuja maioria do capital social (€ 3.750,00), ficou registada em nome de EE e do autor AA, que registou em seu nome uma participação minoritária, no valor de € 1.250,00 (artºs 4º da p.i. e 8º da contestação).
9- Tendo a exploração em nome individual de EE cessado apenas quando foi constituída a sociedade comercial ora denominada "FF, S.A.", anteriormente "FF, Lda.", mediante a celebração entre ambos de um contrato de trespasse do referido hotel (artº 7º da contestação).
10- A gerência da sociedade ficou a pertencer ao autor AA (artºs 5º e 6º da p.i.).
11- Nessa altura, EE não praticava qualquer ato societário por sua própria iniciativa (artº 7º da p.i.).
12- EE tinha, à data, uma carreira bancária na Caixa Geral de Depósitos, tendo estabelecido a sua vida familiar e profissional em Lisboa (Parede), mas deslocava-se ao Algarve para ver a família e indagava sobre a gestão da sociedade (artº 11º da contestação).
13- Em 2011, o A. decidiu transformar a sociedade numa Sociedade Anónima, pelo que, em 4 de abril de 2011, no seguimento de uma deliberação social tomada em 27 de fevereiro de 2011, foi registado um aumento do capital social da sociedade "FF, Lda." e, para tanto, foi indicado nessa transformação que teria havido suprimentos prestados pelo Sr. EE, a que se juntavam suprimentos prestados pelos autores (num valor correspondente a uma participação que viria a ser minoritária), sendo aumentado o capital da sociedade de € 5.000,00 para € 60.300,00, contando ainda com três novas entradas, de € 100 cada uma, de FF e GG, ao tempo mulher de EE, de modo a que a sociedade passasse a ser constituída por 5 acionistas, que viriam a compor o Conselho de Administração (artºs 8º e 9º da p.i. e 31º da contestação).
14- A sociedade passou, então, a ser uma Sociedade Anónima, com 12.060
ações de valor nominal de € 5,00 cada, ao portador, as quais foram atribuídas da seguinte forma:
- EE titular de 9.550 ações, representativas de 79,19% do capital social;
- AA titular de 2.450 ações, representativas de 20,32% do capital social;
- BB titular de 60 ações, representativas de 0,49% do capital social (artºs 10º da p.i. 14e º da contestação).
15- Esta composição e atribuição dos títulos das ações representativos do capital social da sociedade "FF, S.A." manteve-se, pelo menos, até 29 de março de 2019, constando das Atas da Assembleia Geral da mesma realizadas nos anos de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 até 29 de março de 2019, assinadas incluindo pelos aqui Autores (artº 15º da contestação).
16- A gestão da sociedade continuou a ser exercida pelo autor AA, Presidente do Conselho de Administração nos anos de 2011/2013, passando EE a possuir a qualidade de vice-presidente do Conselho de Administração, cargo que não exerceu sem ser com instruções do autor, embora a sociedade se pudesse legalmente vincular pela assinatura de qualquer um deles, conjunta ou isoladamente (artºs 11º da p.i. e 16º da contestação).
17- Relativamente aos mandatos subsequentes, nos anos 2014/2016 e 2017/2019, EE assumiu o cargo de Presidente do Conselho de Administração e o Autor AA assumiu o cargo de Vice-Presidente do Conselho de Administração (artº 17º da contestação).
18- No início do ano de 2017, em resultado da situação de saúde do autor AA (que, na sequência de uma doença vascular agravada pela Diabetes, foi forçado a amputar dois dedos do pé direito, o que lhe limitou a mobilidade) e uma vez que aquele já não conseguia relacionar-se cordialmente com os clientes e colaboradores, entrando em confrontos com os mesmos, EE passou a acompanhar permanentemente a gestão da
empresa, deixando de residir na Parede (Cascais) e passando a habitar em Local 2 (artºs 12º da p.i. e 20º da contestação).
19- A partir de março de 2017, EE deixou o seu emprego na Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa, rescindindo o seu contrato de trabalho por mútuo acordo, tendo-se mudado definitivamente para o Algarve, a tempo inteiro, para poder passar a gerir, por completo, a sociedade "FF, S.A.", passando a descontar de novo, como administrador daquela, para a Segurança Social (artº 21º da contestação).
20- Desta forma, EE passou a intervir no dia-a-dia da empresa (artº 13º da p.i.).
21- Já a partir do início de 2011 EE tratava das questões que se relacionassem com tudo o que fosse tratado por meios eletrónicos, nomeadamente, negociar contratos da sociedade "FF, S.A." com fornecedores (tais como da prestação dos serviços de comunicações e do fornecimento de energia), quem tratava do mapa de reservas (mapa diário que indicava a posição do Hotel, em termos de quartos disponíveis), quem passou a assegurar o tratamento de reclamações de clientes, quem efetuava os pagamentos de salários, impostos, serviços, fornecedores, comissões, entre outros, utilizando para isso o homebanking da sociedade, que tinha duas contas em dois bancos: Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e Banco Português de Investimento (artº 19º da contestação).
22- Entretanto, com a publicação da Lei n.º 15/2017, de 3 de maio, que veio alterar os Códigos das Sociedades Comerciais e dos Valores Mobiliários, por passar a ser proibida a emissão de valores mobiliários ao portador (incluindo ações ao portador) a partir de 4 de maio de 2017, os autores decidiram converter as suas ações em ações nominativas e, em conjunto com EE, decidiram alterar a composição do Conselho de Administração da sociedade, passando a ter apenas um Administrador Único, cargo que ficou entregue a EE, passando EE a ser o Administrador Único da sociedade "FF, S.A." desde 29 de março de 2019, mediante deliberação social tomada nessa data e registada a 6 de abril de 2019, cargo que mantém até à presente data (artºs 14º e 15º da p.i. e 18º da contestação).
23- E foi também decidido titular em nome da ré a totalidade das ações da sociedade (artºs 17º e 18º da p.i.).
24- Assim, através das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da sociedade "FF, S.A." realizada, em 29 de março de 2019, foi deliberada a conversão das ações da sociedade, ao portador, em títulos nominativos titulados pela Ré CC, primeira mulher do Autor AA e mãe do único filho deste, EE, conforme consta da ata número vinte e dois e do novo Contrato de Sociedade (artº 26º da contestação).
25- E a sociedade passou a vincular-se com a assinatura do administrador único, EE (artº 27º da contestação).
26- Na sequência desta assembleia, a sociedade viu o seu contrato de sociedade ser atualizado, ficando a totalidade das participações sociais em nome de uma pessoa em quem os AA. pensavam poder confiar e que não tivesse problemas com eventuais credores (artº 21º da p.i.).
27- Até esta altura, nunca a ré havia tido qualquer relação com a sociedade ou sequer com os bens imóveis onde esta desenvolvia a sua atividade (artº 19º da p.i.).
28- A ré CC vem mencionada na ata de Assembleia Geral da sociedade "FF, S.A." realizada, em 29 de março de 2019, na qualidade de acionista única, titular da totalidade das ações ao portador da sociedade, cujos títulos ali consta que exibiu (artºs 20º da p.i. e 28º da contestação).
29- A Ré tem vindo a ser mencionada como interveniente, na sua qualidade de acionista única da sociedade, em diversas assembleias gerais desta, designadamente as realizadas, em 30 de novembro de 2020 (artº 30º da contestação).
30- A qualidade da Ré como tendo passado a ser acionista única da sociedade "FF, S.A." foi ainda feita constar do Registo Central do Beneficiário Efetivo da sociedade, cuja declaração foi submetida, em 18 de abril de 2019, pelo Advogado Dr. HH, ilustre mandatário judicial dos Autores nestes autos (artº 29º da contestação).
31- A ré continuou a nunca praticar qualquer ato referente à sociedade, nada tendo a ver com a sociedade ou com qualquer intervenção no âmbito da sua atividade (artº 22º da p.i.).
32- Entretanto, EE, passou a administrar a empresa exclusivamente de acordo com as suas ideias e afastou completamente os autores de toda a operação da sociedade (artºs 25º e 26º da p.i.).
33- EE cancelou o acesso dos autores às contas bancárias tituladas pela sociedade, incluindo aos cartões multibanco da sociedade (artº 27º da p.i.).
34- Por outro lado, EE cessou a principal atividade da empresa (exploração hoteleira), encerrando o hotel/aparthotel e colocando à venda todo o património societário (artºs 28º e 29º da p.i.).
35- EE enviou os trabalhadores da sociedade para casa, cessando os respetivos contratos, modificou a propriedade horizontal dos prédios de que a sociedade era proprietária que, assim, passaram a ser constituídos por frações autónomas, as quais decidiu deixar de explorar turisticamente e que vendeu, para além de que vendeu as moradias e lotes de terreno pertença da sociedade e alterou a sede da sociedade, passando-a para o concelho de Local 2, para a morada da sua habitação (artº 29º da p.i.).
36- Os autores enviaram a EE e à ré, previamente à instauração da presente ação as comunicações que se encontram juntas, respetivamente, como documentos nºs 3 e 4 com a p.i., tendo obtido a resposta que consta dos documentos juntos com a p.i. com os nºs 5 e 6 (artº 48º da p.i.).
37- Em novembro de 2018, a sociedade "FF, S.A." tomou conhecimento através do então advogado daquela, Dr. II, e posteriormente mediante a afixação de Edital de Venda emanado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Execução de Silves, que o imóvel onde estava instalado o Hotel DD iria ser vendido mediante propostas em carta fechada, para pagamento das dívidas contraídas pelos Autores junto Instituto de Turismo de Portugal (artº 22º da contestação).
38- A sociedade "FF, S.A.", para tentar salvar a propriedade e a exploração da referida unidade hoteleira, apresentou no âmbito da referida execução uma proposta de aquisição daquele imóvel pelo valor de € 1.020.000,00 (um milhão e vinte mil euros), a qual veio a ser aceite e concretizada mediante título de transmissão passado em 14 de maio de 2019 (artº 23º da contestação).
39- Com vista a lograr conseguir a aquisição do referido imóvel, a sociedade "FF, S.A." teve de solicitar um financiamento bancário junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, no aludido montante de € 1.020.000,00 (um milhão e vinte mil euros), o qual veio a ser concedido e formalizado em 24 de abril de 2019 (artº 24º da contestação).
40- Porém, para poder realizar a escritura de mútuo com hipoteca e fiança com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, a sociedade "FF, S.A.", para além de ter previamente de regularizar a situação da conversão das suas ações ao portador em ações nominativas, decorrente de imposição legal (Lei nº 15/2017, de 3 de maio e Decreto-Lei nº 123/2017, de 25 de setembro), teve ainda, e por exigência daquela instituição de crédito, de retirar o então executado e ora Autor AA da administração daquela sociedade, de forma a mitigar qualquer risco de eventual conflito de interesses na realização da operação de financiamento em causa tendo em consideração a finalidade da mesma (artº 25º da contestação).
41- A sociedade "FF, S.A.", em março de 2019, apresentava dificuldades de tesouraria, fruto de uma dívida financeira contraída durante a gestão levada a cabo pelo Autor AA (no valor total de 2 milhões de euros), a que se somou uma Pandemia em 2020 com a paralisação do setor hoteleiro e a necessidade de contração de novos empréstimos para obter liquidez (artº 35º da contestação).
42- No final do ano 2021, caso não se tivesse dado início à venda do património da sociedade "FF, S.A." (lotes e moradias que circundavam o Hotel e o próprio Hotel), só a dívida bancária daquela sociedade atingiria os 2,1 milhões de euros, sendo que a sociedade, só em dívida bancária, pagava mais de 80.000 € anualmente, ou seja, trabalhava durante um ano inteiro para ir pagando juros e efetuar pequenas amortizações de capital, mas não lograva pagar a totalidade das dívidas (artºs 37º e 38º da contestação).
43- A venda do ativo da sociedade "FF, S.A." permitiu que esta liquidasse todo o passivo bancário existente, extinguisse os postos de trabalho de todos os trabalhadores efetivos da empresa pagando-lhes os vencimentos devidos, pagasse todas as restantes dívidas a fornecedores e ainda mantivesse um total de saldos bancários positivos, à data da contestação, de € 1.575.873 (artº 39º da contestação).
44- Nesta data, a sociedade "FF, S.A." tem a sua situação regularizada perante a Autoridade Fiscal e perante a Segurança Social, não existindo qualquer dívida a estas entidades públicas, contrariamente ao tempo em que a gestão era feita pelo Autor AA (artº 40º da contestação).
45- Em 2022, as contas da sociedade "FF, S.A." foram, pela primeira vez, certificadas sem reservas pela fiscalização a cargo da SROC (as contas tinham sido certificadas com reservas desde o seu início), reportando-se a uma situação retroativa aos anos de 2016 em diante até ...(artº 41º da contestação).
46- Os atos de alienação de bens do ativo da sociedade por parte do administrador único EE encontram-se registados na contabilidade desta, tendo o produto desses atos, bem como as despesas a eles inerentes, integrado as contas da sociedade (artº 44º da contestação).
47- O cancelamento de acesso dos Autores às contas bancárias da sociedade "FF, S.A." deveu-se ao facto de, só no período de um ano, o Autor AA, atuando como se nada de grave se passasse na situação financeira da empresa, ter procedido ao levantamento de mais de € 40.000, isto para além de ter as despesas com os serviços de alarme da casa, com os serviços de televisão/net/voz, com os 2 telemóveis, com a aquisição de automóveis novos, incluindo seguros, portagens e impostos, todas pagas pela sociedade e ainda ser o Sr. EE quem paga a renda da casa onde os Autores habitam, não
obstante estes terem uma reforma que ronda € 1.600 mensais (artº 36º da contestação).
*
III.2. E consideraram-se como não provados os seguintes factos:
i) A distribuição, em 2005, do capital social da sociedade comercial ora denominada "FF, S.A.", anteriormente "FF, Lda.", deveu-se à vontade e proposta manifestada pelo Autor AA ao seu filho EE, como forma de o manter interessado na atividade comercial da mesma e de o património familiar continuar a pertencer maioritariamente nas mãos dos seus descendentes, evitando que o controlo daquela sociedade passasse para a alçada dos herdeiros da Autora BB, segunda mulher do Autor AA, em caso de falecimento deste (artº 9º da contestação).
ii) Nunca em situação alguma foi falado ou sugerido que EE seria um mero “testa de ferro” do pai, o Autor AA, papel que aquele jamais teria aceite desempenhar (artº 10º da contestação).
iii) Era pretensão dos autores, em 2017, recorrer novamente a EE para, formalmente, titular a totalidade das ações da sociedade, contudo este encontrava-se em processo de divórcio e receou que essa situação tivesse repercussões na subsequente partilha, caso passasse a integrar, mesmo de forma simulada, tal ativo (artº 16º da p.i.).
iv) Os comportamentos de EE consubstanciam um impedimento ao regular e normal funcionamento da sociedade que, sem rendimentos da exploração hoteleira, se vê seguramente impossibilitada de honrar os seus compromissos assumidos perante terceiros, correndo o risco de incumprir as suas obrigações com entidades bancárias, com a Autoridade Tributária, Segurança Social e trabalhadores, criando uma relação de absoluta dependência da venda de ativos (artº 31º da p.i.).
* III.3. Considerou-se ainda que:
“Todos os artigos não mencionados acima não contêm quaisquer factos, mas apenas apreciações conclusivas, opiniões e/ou considerações sobre o aspeto jurídico da causa, sem cabimento no julgamento da matéria de facto.
Referimo-nos aos artigos 23º, 24º, 32º a 47º, 49º e 50º da p.i. e 1º, 2º, 31º a 34º, 42º, 43º e 45º da contestação.”
* IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Os Autores pedem o reconhecimento dos mesmos como únicos acionistas da sociedade "FF, S.A.", com o número de identificação de pessoa coletiva ... e cujo código de acesso à certidão permanente é 1732-4754-4161.
Pretensão que fundam, como resulta da decisão recorrida, na alegação da celebração de dois acordos simulatórios que tiveram como único propósito transferir as participações sociais da referida sociedade para terceiros e assim proteger o património dos recorrentes:
- O primeiro, que sucedeu aquando da constituição da sociedade em 22.11.2005 e que consistiu na colocação da maioria das participações sociais daquela sociedade, então por quotas, em nome de EE, filho do recorrente AA e da recorrida;
- O segundo, que ocorreu em 29.03.2019, na sequência da publicação da Lei n.º15/2017, de 3 de maio - que veio alterar os Códigos das Sociedades Comerciais e dos Valores Mobiliários, passando a proibir a emissão de valores mobiliários ao portador (incluindo ações ao portador) a partir de 04.05.2017 -, e que consistiu na transmissão para a recorrida das participações sociais dos recorrentes (nelas incluindo as que, por força do referido acordo simulatório, de 2005, e após a conversão das sociedade em Sociedade Anónima, em ..., foram colocadas em nome de EE), o que aconteceu após a conversão das ações ao portador, pertencentes aos recorrentes e - de forma simulada – tituladas por EE, em ações nominativas.
Dispõe o artigo 240º do Código Civil que “1. Se, por acordo entre declarante
e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo.”.
A simulação consiste, pois, na divergência entre a vontade e a declaração, estabelecida por acordo entre as partes, e com o intuito de enganar terceiros.
São, assim, requisitos da simulação o acordo entre o declarante e o declaratário, no sentido duma divergência entre a declaração e a vontade das partes, e com o intuito de enganar terceiros.
A simulação pode ser absoluta, quando as partes declaram a vontade de celebrar um negócio jurídico, quando, na realidade, não o querem celebrar, nem celebrar qualquer outro, ou relativa, quando as partes quiseram celebrar um outro negócio sob o negócio simulado.
Dispõe o artigo 241º do Código Civil que “1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado. 2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”.
Formas de simulação relativa são a simulação subjetiva, que incide sobre as pessoas intervenientes, e a simulação objetiva, que incide sobre o negócio ou alguma das suas cláusulas.
Tendo em atenção a factualidade alegada pelos Autores para fundamentar a invocada simulação dos negócios celebrados – a várias vezes designada “cadeia de transmissões simuladas de participações sociais” - em causa estarão em causa negócios jurídicos (simulados) - a constituição da sociedade em 22.11.2005, com a colocação da maioria do capital social em nome do filho EE e a colocação das ações que titulam o capital social em nome da ora Ré, em 29.03.2019, ações de que consideram ser titulares e que apenas foram objeto de tais negócios para proteger o património dos ora Recorrentes dos credores,
pedindo-se agora que estes sejam declarados nulos.
Nos termos do disposto no artigo 30º do Código de Processo Civil, o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer (nº 1), exprimindo-se tal interesse pelo prejuízo que lhe advenha da procedência da ação (nº 2), considerando-se titular desse interesse, na falta de indicação da lei em contrário, o sujeito da relação controvertida tal como é configurada pelo autor (nº 3).
Por seu turno, dispõe o artigo 33º do mesmo diploma que “1 - Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade. 2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. 3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.”.
No caso em apreço, o que está em causa é aquilatar da aplicação dos nºs 2 e 3 do preceito, uma vez que a lei não impõe o litisconsórcio necessário quando se invoca a simulação do negócio e se peticiona a declaração da sua nulidade.
Como se referiu, o preceito reproduzido impõe o litisconsórcio necessário, a intervenção de todos os interessados na ação, quando a natureza da relação jurídica assim o determine para assegurar que a decisão a obter produz o seu efeito útil normal.
E o nº 3 do mencionado preceito concretiza que a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, embora não vinculando os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Conforme pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 20.02.2024, que aqui seguimos de perto:
“Em anotação ao artigo em análise, escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no CPC Anotado, Vol. I, 4ª ed., págs. 99/100, que “a norma do nº 3 não trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças – ou outras providências - inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o
seu efeito típico em face apenas das partes processuais. A pedra de toque do litisconsórcio necessário é, pois, a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou ainda, nas ações de simples apreciação de facto, apreciando a existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em caus não comportar uma definição ou realização parcelar.”.
De forma elucidativa, escrevem (João de Castro Mendes e) Miguel Teixeira de Sousa, no Manual de Processo Civil, Vol. I, 2022, págs. 364 a 366, que “(a) A maneira mais impressiva de mostrar a necessidade de litisconsórcio natural é recorrer a um aspeto temporal: o litisconsórcio é necessário se tiver de haver uma decisão simultânea para todos os interessados. … Também constituem exemplos de litisconsórcio necessário natural a instauração de uma ação de simulação de um contrato contra todos os que o celebraram; … (b) O que conta para se exigir o litisconsórcio natural não é definitividade de uma decisão global entre todos os interessados, mas a não definitividade de uma decisão que seja proferida apenas em relação a alguns dos interessados. … Assim, não é a circunstância de haver vários interessados que torna o litisconsórcio necessário; o que impõe o litisconsórcio natural é a circunstância de uma decisão parcelar entre apenas alguns dos interessados correr o risco de se tornar incompatível com outra decisão igualmente parcelar obtida entre outros interessados.” (sublinhado nosso).
Embora incidindo sobre circunstancialismo distinto, mas analisando o âmbito de aplicação do disposto nos nºs 2 e 3 do art.º 33º do CPC, escreve-se no Ac. do STJ de 22.10.2015, P. nº 2394/11.3TBVCT.G1.S1 (Lopes do Rego), em www.dgsi.pt, que “A doutrina e a jurisprudência têm, porém, desde há muito, operado una interpretação mais ampla do conceito de efeito útil normal, admitindo o litisconsórcio necessário natural nas situações em que, por ser o objeto do processo um interesse indivisível e incindível dos vários interessados ou contitulares, se impõe o litisconsórcio por prementes razões de coerência jurídica, que ficaria relevantemente afetada pela possibilidade de serem proferidas, em causas separadas, decisões divergentes acerca desse mesmo objeto unitário e indivisível (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 162/163). É este entendimento que está na base da exigência do litisconsórcio quando numa ação se discuta a validade ou eficácia de um negócio jurídico em que outorgaram várias partes por vício que envolva todos os interessados, por essa via se obtendo na ação uma pronúncia, simultânea e definitiva, acerca da validade ou eficácia do ato. Como escreve Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo, 2014, pág. 75), numa ação destinada a obter a declaração de nulidade de um negócio jurídico, visto que o negócio, a ser nulo (ou válido), há de sê-lo para todos os contraentes, é obrigatória a presença de todos eles, atenta a natureza da questão jurídica que se discute nos autos, sob pena de os contraentes ausentes na lide não ficarem vinculados à decisão a proferir, a qual, por isso, não teria a virtualidade de regular de modo definitivo a questão submetida a juízo. Também a ação destinada à anulação de uma escritura de partilhas exige a intervenção de todos os sucessores outorgantes na mesma.”.
Aplicando estes ensinamentos ao caso em apreço, não se pode deixar de concluir que existe preterição de litisconsórcio necessário natural passivo, por falta de intervenção do filho dos Autores, interveniente em todos os negócios, na ação o que implica a ilegitimidade processual da Ré.
Note-se que no presente caso, é pedida a condenação da Ré a reconhecer os Autores como titulares das ações da referida sociedade anónima, tudo com base, além do mais, na declaração de nulidade dos negócios celebrados designadamente entre eles e o referido EE.
Ora, tendo-se por claro que para a declaração da nulidade do contrato de compra e venda é necessária a intervenção dos seus intervenientes, por não se poder considerar o contrato válido para uns e inválidos para os outros, também o mesmo ocorre neste caso, em que se pretende opor a nulidade do e com base nesta obrigar à entrega de ações de que, aliás, alegam, ser o aquele titular – veja-se o segundo facto que pretendem ver aditado aos factos assentes:
“A Ré, enquanto acionista única da sociedade "FF, S.A." e titular formal das ações representativas do capital social desta sociedade, detém as mesmas por conta do Sr. EE e dos Autores, tal como estes as detinham antes de operar a sua transmissão a favor daquela e desde a transformação da sociedade "FF" em sociedade anónima, realizada em 2011, ou seja, da seguinte forma:
- Sr. EE titular de 9550 ações, representativas de 79,19% do capital social;
- Sr. AA titular de 2450 ações, representativas de 20,32% do capital social;
- Sra. BB titular de 60 ações, representativas de 0,49% do capital social.”
Os Autores não poderiam, pois, demandar a Ré exigindo o reconhecimento da titularidade da totalidade das ações, com fundamento na nulidade do contrato celebrado (também) com EE, sem que este interviesse nessa declaração.
Assim, o pedido de “restituição/reconhecimento de titularidade” das ações só pode ser formulado se estiverem nos autos, quer os primeiros simuladores, quer aqueles que as detiveram e detêm, por não poder ser exigido ao simulador a entrega de um bem que já não possui e não poder ser pedida a terceiros a entrega do bem sem o reconhecimento da simulação.
Não está aqui em causa apenas a nulidade do primeiro contrato constituição da sociedade, mas o seu efeito perante a ora Ré adquirente a quem os Autores pretendem impor o reconhecimento da titularidade das ações, com esse fundamento.
A situação dos autos configura, pois, uma situação de litisconsórcio necessário, natural passivo.
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Atendendo ao disposto nas disposições conjugadas dos artigos 33º, 278º, nº 1, al. d), 576º, nº 2, 577º al. e) e 578º do Código de Processo Civil, a ilegitimidade constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso.
A questão que importa analisar é a de saber se ainda é possível ser conhecida, nesta fase de recurso, posto que se trata de questão nova que não foi suscitada ou apreciada em 1ª instância.
Relativamente a tal questão, respondeu-se nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 06.03.2014 (proferido no âmbito do processo n.º 281/12.7TBPTS.L1-6), e da Relação do Porto de 17 de Março de 2009 (proferido no âmbito do processo n.º 27/05.6TBBAO), afirmativamente a tal questão, referindo-se:
«Perante isto, surge a questão de saber se é possível conhecer em sede de recurso dessa ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Sobre essa matéria pronunciou-se Amâncio Ferreira, sustentando que o tribunal de recurso pode «conhecer de questões novas, ou seja, não levantadas no tribunal recorrido, desde que de conhecimento oficioso e ainda não decididas com trânsito em julgado» e que essas questões podem referir-se «à relação processual (v.g. a quase totalidade das excepções dilatórias, nos termos do artº 495º)»[8].
No mesmo sentido, o acórdão da Relação do Porto de 14/9/2006[9], quando refere que «o tribunal de recurso pode - e deve - conhecer das questões novas - ou seja, não levantadas no tribunal recorrido -desde que não tenham sido decididas com trânsito em julgado e versem sobre questões de conhecimento oficioso», como seja a da ilegitimidade, devendo entender-se que, face ao disposto no artº 510º, nº 3, do CPC, a pronúncia genérica sobre essa excepção em despacho saneador tabelar (como o dos presentes autos, a fls. 93) não obsta a que «este tribunal de recurso se pronuncie sobre ela, visto que, sendo de conhecimento oficioso, ainda não se encontra decidida com trânsito em julgado por se encontrar inserida em mero despacho saneador tabelar ou genérico».
Em suma, não obstante a questão da ilegitimidade passiva não ter sido suscitada nos autos, e diversamente do que entende a Reclamante, nada impede que este tribunal de recurso se pronuncie sobre ela, visto que, sendo de conhecimento oficioso, ainda não se encontra decidida com trânsito em julgado, por se encontrar inserida em mero despacho saneador tabelar ou genérico, não sendo do interesse da Justiça e do Direito aceitar uma decisão judicial que, mais tarde, não possa efetivar-se em virtude de a mesma não ser aplicável a todos os seus interessados ou a todos aqueles que por ela, em abstrato, seriam afetados, mormente aos ora Recorrente, exigindo a interposição de uma outra ação para apreciação da mesma questão que é objeto do presente processo no que se refere ao indicado não demandado e que possa até possuir um desfecho distinto.
Por outro lado, não sendo agora, face ao estado da ação, mormente a existência de sentença, a referida exceção suscetível de sanação (cfr. os artigos 6º n.º 2 e 590º n.º 2 al. a) do Código de Processo Civil), a solução só pode passar pela absolvição da Ré da instância.
Neste sentido se pronunciou o Ac.do STJ, de 02-02-2005 (proferido no âmbito do processo n. 04S610):
«As consequências que, no plano prático, qualquer das decisões da primeira instância poderia acarretar bem revelam que estamos perante um caso de litisconsórcio necessário.
Como prevê o artigo 28º, n.º 1, do CPC, a falta de um dos interessados na relação controvertida, em caso de litisconsórcio necessário, é motivo de ilegitimidade. O juiz poderia ter providenciado pelo suprimento da falta do pressuposto processual, convidando a parte a corrigir a deficiência (artigo 265º, n.º 2, do CPC), mas não o tendo feito, não é agora possível, ao contrário do que propugna a Exma magistrada do Ministério Público, anular o processado para que tal diligência seja ainda efectuada, tanto mais que não se trata de nulidade processual de conhecimento oficioso (artigo 202º). Resta, pois, declarar a absolvição da instância por
ilegitimidade passiva»2.
Também o já citado acórdão da Relação do Porto de 17-03-2009, conclui «que, por ocorrer «in casu» uma situação de litisconsórcio necessário natural (passivo), ocorre a excepção dilatória de ilegitimidade dos RR., de conhecimento oficioso -pelo que, apesar de não ter sido suscitada anteriormente (seja pelas partes, seja pelo tribunal recorrido), deve este tribunal de recurso dela conhecer, não sendo já, nesta sede, possível o suprimento dessa falta de pressuposto processual (ao abrigo dos artos 265º, nº 2, e 508º, nº 1, al. a), do CPC), por ter passado o momento processual próprio e por a omissão dessa diligência de suprimento não configurar nulidade de conhecimento oficioso. Consequentemente, resta a este Tribunal determinar a revogação da sentença e a absolvição dos RR. da instância, ficando prejudicado o conhecimento de mérito da acção e da matéria suscitada na apelação».
Tratando-se, efetivamente, de caso de litisconsórcio necessário, verificando-se, agora, a ilegitimidade impõe-se o conhecimento oficioso de tal exceção e a absolvição da Ré da instância.
Improcede, pois, a reclamação relativamente a tal questão, mais se mostrando sanada a alegada omissão do cumprimento do contraditório, porquanto, como se referiu, tal cumprimento foi efetivada na sequência do despacho de 06.05, sendo que a discordância da Reclamante quanto aos fundamentos da prolação de decisão singular se mostra ultrapassada com a intervenção da Conferência.
* V. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam, agora em conferência, em revogar a decisão recorrida e abstendo-se este Tribunal de conhecer do pedido, ao abrigo do disposto nos artigos 30º, 33º, al. d), do nº1, do artigo 278º, nº1 e 2, do artigo 576º, al. e), do artigo 577º e artigo 578º, em absolver a Ré da instância, por se verificar a exceção dilatória da ilegitimidade, dada a preterição do litisconsórcio necessário passivo não suscetível, já nesta fase, de sanação ao abrigo do nº2, do ar. 6º e al. a), do nº2, do artigo 590º e v., ainda, nº3, do artigo 278º.
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Custas pelos Apelantes, que ficaram vencidos no recurso – artigo 527º, nº1 e 2, do CPC.
Registe e notifique.
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Évora, 05.06.2025
Ana Pessoa
José António Moita
Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto.
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1. Da exclusiva responsabilidade da relatora.↩︎
2. Cf. ainda o Acórdão da Relação do Porto de 26.04.2021. proferido no processo n.º 382/20.8T8VFR.P1↩︎