Sumário elaborado pela relatora:
I- A ação emergente de acidente de trabalho corre oficiosamente, isto é, sem necessidade do impulso das partes e a instância inicia-se com o recebimento da participação – artigo 26.º, n.º 1, alínea e), e n.ºs 3 e 4, do Código do Processo do Trabalho – e não com a apresentação da petição ou do requerimento de junta médica.
II- No caso de um retardamento da apresentação da petição inicial, como sucedeu nos autos, a entrega desta peça processual faz, necessariamente, prosseguir a instância já iniciada, como se deduz do prescrito no n.º 4 do artigo 119.º do Código de Processo do Trabalho.
III- Perante um despacho de deserção da instância proferido nesta ação, não restava outra alternativa ao tribunal, após a apresentação da petição, que não fosse a reabertura/prosseguimento da instância, dado o regime processual especial aplicável, diferente do regime previsto no Código de Processo Civil.
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1
I. Relatório
Em 30-09-2022 foi apresentada, no Juízo do Trabalho de Évora, a participação de um acidente de trabalho.
Em 23-10-2023 realizou-se a tentativa de conciliação a que aludem os artigos 108.º a 112.º do Código do Processo do Trabalho, na qual esteve presente o sinistrado, AA, a seguradora, Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A., e a entidade empregadora, BB – Promoções e Construção Imobiliária, Lda..
Do auto de tentativa de não conciliação resulta que a responsabilidade emergente de acidente de trabalho estava apenas parcialmente transferida para a seguradora e que esta não aceitou conciliar-se por entender que houve violação das regras de segurança.
Em 26-10-2023 foi proferido despacho judicial que declarou suspensa a instância, ao abrigo do preceituado no artigo 119.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho.
Em 13-05-2024 foi prolatada decisão que julgou deserta a instância, por o processo se encontrar a aguardar o competente impulso processual há mais de seis meses.
Em 28-06-2024 foi assinado o visto em correição.
Em 06-11-2024, o sinistrado, patrocinado pelo Ministério Público, apresentou a petição inicial, deduzida contra a seguradora e contra a entidade empregadora.
O processo foi requisitado ao arquivo, as rés foram citadas e apresentaram contestação.
O sinistrado respondeu às exceções deduzidas pela entidade empregadora.
Em 03-02-2025 foi proferido despacho saneador que conheceu da exceção da ilegitimidade passiva, bem como da extinção da instância e da exceção da caducidade, invocadas na contestação da entidade empregadora.
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Inconformada, veio a Ré empregadora interpor recurso para esta Relação, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões:
«a) O Recurso vem interposto do douto Despacho Saneador, de 03/02/2025, com a referência 32955891.
b) No supramencionado despacho o Tribunal a quo julgou não verificadas as exceções perentórias extintivas invocadas pela Recorrente, o que, no seu entendimento, consubstancia uma errada aplicação do Direito aos factos.
c) Relativamente ao facto de no presente processo n.º 1924/22.0T8EVR, ter sido proferida uma sentença que julgou a instância deserta, e que transitou em julgado em 03/06/2024 e não foi objeto de qualquer recurso, não pode proceder a decisão proferida.
d) Este processo teve início com a fase conciliatória no dia 30/09/2022, com a 11 apresentação da participação do acidente de trabalho, que culminou, no dia 23/10/2023, numa não conciliação.
e) Em consequência, o Ministério Público assumindo a representação do sinistrado dispunha do prazo de 20 dias para apresentar a petição inicial, o que deveria ter ocorrido até ao dia 13/11/2023, podendo este prazo, fundadamente ser prorrogado – cfr. n.º 1 do artigo 119.º do CPT; o que não foi requerido.
f) Após o que, a MM.ª Senhora Juíza a quo, atenta a não conciliação ter por base a não aceitação de responsabilidade pela Ré Seguradora, suspendeu a ação, porquanto esta não poderia prosseguir a tramitação simplificada, devendo ser apresentada petição inicial.
g) Não foi apresentada pelo Autor petição inicial no prazo legalmente estabelecido, nem foi pedida qualquer prorrogação do prazo para o efeito; pelo que, em 13/05/2024, foi proferida douta sentença que julgou a instância deserta, o que teve como consequência a extinção da instância – artigo 277.º, al. c) do CPC.
h) Estando extinta a ação está esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, pelo que não poderá o Tribunal conhecer da petição inicial extemporaneamente apresentada pelo Ministério Público em representação do Autor, no dia 06/11/2024 – artigo 613.º do CPC.
i) A oficiosidade e urgência do processo emergente de acidente de trabalho não são conceitos absolutos, não podendo, como tal, sobrepor-se às regras processuais, para mais, decorrendo a extinção da instância da inércia do Autor devidamente representado, que apresenta a petição inicial meses após a extinção da ação.
j) Ao não reconhecer esta exceção, o Tribunal a quo viola o disposto no artigo 119.º, n.º 1 do CPT e o artigo 613.º do CPC.
k) Face a esta situação de impossibilidade de prossecução da ação n.º 1924/22.0T8EVR, e porque à partida nada obstaria à propositura de uma nova ação, a Ré recorrente lançou a seguinte hipótese: a aproveitar-se esta petição inicial de 06/11/2024 como uma nova ação, sempre o direito de ação teria caducado, porquanto sobre a data 12 da cura clínica, já decorreu mais de um ano – v. artigo 179.º, n.º 1 da LAT.
l) O Tribunal a quo não indica a base legal para que a instância pudesse renovar-se, uma vez que a renovação da instância tem de estar expressamente prevista.
m) A presente ação iniciada em 2022 com a participação morreu, está extinta; pelo que, não é de invocar o disposto no n.º 3, do artigo 26.º do CPT.
n) Não é pelos direitos serem indisponíveis, que as normas substantivas e adjetivas, que implicam prazos podem ser afastadas, porquanto os direitos serem indisponíveis significa que os seus titulares a eles não poderão livremente renunciar, que estão subtraídos ao domínio da vontade das partes.
o) A caducidade não é, pois, incompatível com os direitos indisponíveis, pois caso contrário o disposto no artigo 179.º da LAT seria letra morta; sendo que, ao decidir como decidiu quanto à caducidade invocada, o Tribunal a quo, violou ainda esta disposição legal.
p) Mais, decidiu a MM.ª Senhora Juíza a quo, no douto despacho saneador, que a Ré tinha encapotadamente invocado uma exceção de ilegitimidade passiva, que julgou improcedente; o que não se verificou.
q) O que a Ré recorrente expressamente afirmou foi que quanto ao pedido subsidiário “O Autor não alega qualquer facto que permita concluir pela responsabilidade da Ré empregadora.”
r) Na petição inicial, o Autor apenas declarou quanto à Ré empregadora que “Ademais, não resulta do inquérito elaborado pela ACT, que o acidente se tenha devido única e exclusivamente à inobservância das regras de segurança.”
s) A recorrente disse que deduzindo o Autor um pedido contra a Ré empregadora, mesmo que a título subsidiário, incumbia-lhe o ónus de alegar quais as regras de segurança concretamente violadas, em estrito cumprimento do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do CC.
t) Mais disse a recorrente que “A Ré empregadora tinha a sua responsabilidade parcialmente transferida para a Ré Seguradora. (...) Conforme a Ré empregadora assumiu no auto de conciliação, pagará o valor apurado da indemnização por incapacidade temporária (€ 288,13) e da pensão anual e vitalícia de acordo com a responsabilidade que não foi transferida (€ 480,00).”
u) A recorrente ao contrário do decidido no despacho saneador, não olvidou a sua responsabilidade no pedido principal, tendo-se limitado a afastar a sua responsabilidade quanto ao pedido subsidiário.
v) Pelo que, houve um manifesto excesso de pronúncia do Tribunal a quo, por ter sido conhecida questão não suscitada pela parte.
w) E ao decidir desde já que a Ré não tem razão quanto à inobservância do ónus de alegação pelo Autor, porque é efetivamente o que o Tribunal a quo faz ao dizer que se resultarem provados os factos alegados pela ré seguradora, a ré empregadora será condenada no ressarcimento dos danos, está a substituir-se ao Autor, dando por satisfeito o seu ónus de alegação e decidindo, assim, do mérito; o que conduz à nulidade do despacho saneador, nos termos do disposto na al. d) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.
x) Deverá o despacho saneador recorrido ser objeto de revogação, e substituído por outro que julgue verificadas as exceções perentórias extintivas invocadas pela Recorrente, bem como a nulidade do despacho por excesso de pronúncia.
Nestes termos, nos mais e nos melhores de Direito aplicáveis e sempre com mui douto suprimento de Vossas Excelências, deverá o presente Recurso ser recebido e julgado procedente e, em consequência, deverá ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo no despacho saneador quanto à improcedência da exceção invocada de extinção da instância e consequente esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal, substituindo-se a mesma por outra que julgue a exceção invocada procedente por provada e, consequentemente, seja a Recorrente absolvida; sendo que, entendendo-se que a petição inicial apresentada em 06/11/2023 constitui uma nova ação, deverá ser julgada verificada a exceção de caducidade do direito de ação.
Mais deverá ser declarada a nulidade do despacho saneador, por excesso de pronúncia, ao decidir uma questão de ilegitimidade passiva não suscitada e, em simultâneo, vir conhecer sobre o (in)cumprimento do ónus de alegação do Auto, devendo ser julgada procedente a exceção extintiva invocada pela recorrente nesta matéria.
Assim fazendo V. Exas. Venerandos Senhores Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação de Évora, como sempre, a costumada, JUSTIÇA!»
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Contra-alegou o sinistrado, propugnando pela improcedência do recurso.
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A 1.ª instância não admitiu o recurso do despacho que julgou improcedente a exceção da ilegitimidade processual passiva da Ré empregadora e admitiu o recurso do despacho saneador na parte que julgou não verificada as exceções de caducidade e extinção da instância. Este recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
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O Apenso do recurso subiu à Relação.
O recurso foi mantido, foi elaborado o projeto de acórdão e foram colhidos os vistos legais.
Cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, cumpre apreciar:
1. Nulidade da decisão recorrida.
2. Se o tribunal a quo errou ao decidir julgar improcedentes as exceções da extinção da instância e da caducidade.
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III. Matéria de Facto
A matéria de facto a atender é a que consta do relatório supra, para o qual remetemos, sem necessidade da sua repetição, bem como os demais elementos que constam dos autos que sejam relevantes para a apreciação da questão sub judice.
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IV. Nulidade da decisão recorrida
A Recorrente arguiu a nulidade da decisão recorrida por ter ocorrido, no seu entender, excesso de pronúncia – artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil -, porquanto foi conhecida uma questão de ilegitimidade passiva, que não havia sido suscitada, e, em simultâneo, decidiu-se já sobre a alegada inobservância do ónus de alegação do Autor quanto ao pedido subsidiário, por se ter entendido que a provarem-se os factos alegados pela Ré seguradora a entidade empregadora teria de ser condenada no ressarcimento dos danos, o que é decidir de mérito.
Ora, qualquer um dos fundamentos da arguida nulidade insere-se na parte do despacho saneador em relação à qual não foi admitido o recurso.
E inexistindo qualquer outro fundamento da nulidade respeitante à parte do despacho saneador em relação à qual foi admitido o recurso, esvaziou-se de conteúdo o vício invocado.
Consequentemente, este tribunal não apreciará a arguida nulidade da decisão recorrida.
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V. Do alegado erro de direito
A decisão de que se recorre tem o seguinte teor:
«- Da extinção da instância e da exceção de caducidade –
Em sede de contestação veio a ré entidade patronal alegar a extinção da instância e a exceção de caducidade do direito da ação por decurso do prazo de um ano desde a data da alta e a data da tentativa de conciliação e, bem assim, a data da petição inicial.
Dispõe o art. 179.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 04.09, na redação atual:
“O direito de ação respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta.”
Por outro lado, dispõe o art. 26.º, n.º 3, do CPT:
“4 - Na ação emergente de acidente de trabalho, a instância inicia-se com o recebimento da participação.”
No caso o acidente ocorreu em 18.11.2021 e a participação deu entrada em Tribunal a 30.09.2022, data em que, consequentemente, se tem por iniciada a instância, havendo duas consequências a assacar. Primeiro, que a data de entrada em juízo não tem relevo do ponto de vista da caducidade porquanto a instância considera-se iniciada, em qualquer dos casos, com o recebimento da participação. Segundo, que, não obstante julgada deserta, pode existir uma renovação da instância porquanto o direito de ação não caducou e estamos perante o exercício de direitos indisponíveis.
Improcedem, nesta conformidade, as exceções arguidas, o que se decide.»
Desde já adiantamos que o decidido não merece censura.
Expliquemos porquê.
A ação emergente de acidente de trabalho corre oficiosamente, isto é, sem necessidade do impulso das partes e a instância inicia-se com o recebimento da participação – artigo 26.º, n.º 1, alínea e), e n.ºs 3 e 4, do Código do Processo do Trabalho – e não com a apresentação da petição ou do requerimento de junta médica – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-10-2002 (Proc. n.º 03S523), acessível em www.dgsi.pt.
No caso de um retardamento da apresentação da petição inicial, como sucedeu nos autos, a entrega desta peça processual faz, necessariamente, prosseguir a instância já iniciada, como se deduz do prescrito no n.º 4 do artigo 119.º do Código de Processo do Trabalho.
Logo, perante o despacho de deserção da instância proferido, não restava outra alternativa ao tribunal a quo, tendo em consideração os princípios de interesse e ordem pública que subjazem à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho e doenças profissionais, que não fosse a reabertura/prosseguimento da instância – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-03-2007 (Proc. n.º 06S3782), consultável em www.dgsi.pt – dado o regime processual especial aplicável, diferente do regime previsto no Código de Processo Civil.
Por outras palavras, à decisão que declarou a instância deserta não se aplica o disposto no artigo 277.º, alínea c) do Código de processo Civil.
Ademais, nunca tendo havido decisão judicial sobre o alegado acidente de trabalho, não poderia mostrar-se esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria.
Acresce referir que a participação do acidente impediu a caducidade do direito de ação, pois a alta clínica data de 27-09-2022 e a participação foi apresentada em 30-09-2022 – cfr. artigo 179.º da LAT.
Em suma, inexiste qualquer erro jurídico na apreciação das exceções.
Concluindo, o recurso terá de improceder.
As custas do recurso são da responsabilidade da Recorrente, nos termos previstos pelo artigo 527.º do Código de Processo Civil.
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VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
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Évora, 5 de junho de 2025
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
Filipe Aveiro Marques
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1. Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Filipe Aveiro Marques↩︎