PRESTAÇÃO DE CONTAS
INDEFERIMENTO LIMINAR
ADMINISTRAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário

Sumário:
1. O processo especial de prestação de contas é uma das formas de exercício do direito de informação consagrado no artigo 563.º do Código Civil e visa estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.
2. A acção de prestação de contas não tem por fim determinar se o réu foi ou não diligente na administração, não visa a responsabilização dessa pessoa por eventual má administração, nem mesmo a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência dessa pessoa.
3. Não pode servir esse tipo de processo para se apurarem receitas virtuais (nomeadamente as que poderiam ter existido se existisse uma boa administração de um imóvel) ou a responsabilidade civil pela destruição da coisa administrada.
4. Apenas se pode discutir na acção de prestação de contas se existe, ou não, a correspectiva obrigação de prestar as contas e o valor ou a inscrição de receitas e despesas efectivas (e não potenciais ou virtuais).

Texto Integral






Apelação n.º 3830/23.1T8FAR-A.E1
(1.ª Secção)
Relator: Filipe Aveiro Marques
1.ª Adjunta: Susana Ferrão da Costa Cabral
2.º Adjunto: Filipe César Osório

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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:


I. RELATÓRIO:

I.A.
AA veio instaurar acção especial de divisão de coisa comum contra BB e terminou com o seguinte pedido:
“Nestes termos deve, a presente ação, ser julgada provada e procedente, sendo proferida decisão que ponha termo à indivisão da fração identificada nesta Petição sendo tal imóvel adjudicado à R. Com o pagamento de tornas ao A., ou, subsidiariamente, que se proceda à venda do mesmo e que seja repartido o valor da venda de acordo com as quotas de cada parte, depois de pago o empréstimo existente sobre o mesmo.”.

Veio, agora, AA por apenso a essa acção, instaurar acção especial de prestação de contas contra BB e terminou com o seguinte pedido:

“Nestes Termos deve ser promovida a citação do R. para apresentar, no prazo de 30 dias as referidas contas, ou contestação à ação. Sob pena de, não apresentando contas ou contestar as mesmas, não poder declarar oposição às contas apresentadas, que senão julgadas segundo os termos legais, nos termos do art. 943.º do Cód. De Proc. Civil.

Sendo, em qualquer caso, a final, condenado o R. no pagamento à A. a titulo de rendas/contrapartidas não pagas pela utilização/ocupação/administração por parte do R. no valor de 15.400,00€ (quinze mil e quatro centos euros) correspondente ao período entre Janeiro de 2022 até à presente data, correspondente à quota-parte da propriedade do imóvel, pois tal valor corresponde ao valor que lhe corresponderia caso o imóvel estivesse a ser administrado em nome de ambos os proprietários desde a supra identificada data; a pagar ou, em contrapartida, a que seja declarado judicialmente a existência de um crédito no referido montante, tendo em conta todo o apuramento das contas, bem como no pagamento das rendas vincendas, ou seja, que se vencerem até ao dia em que efetivamente cessar a ocupação/utilização ilegítima, porque feita contra a vontade da A., valor esse que sempre lhe seria devido, a título de responsabilidade civil, nos termos dos artigos 483.º e seguintes do Cód. Civil.

Mais deve ser condenado o R. em montante determinado em perícia judicial que pague/repare todos os danos causados (identificados nessa perícia) pelo R. no imóvel e nos móveis que estavam no imóvel e em perfeito estado de utilização”

Para tanto alegou, em suma, que ambas adquiriram o imóvel e nele fizeram obras e arrendaram-no. Entretanto foi terminado o contrato de arrendamento. A partir de 20/01/2022 o réu passou a viver sozinho nesse imóvel, deixando a autora sem acesso ao mesmo. Foi retirado o telhado. Em 11/06/2022 o réu deixou de viver no imóvel, mas continuou a não dar acesso do mesmo à autora. Em Novembro de 2022 a autora teve acesso e encontrou o imóvel danificado: sem madeira no tecto da divisão de entrada, escadas e corrimão; 3 portas desaparecidas, 3 janelas de alumínio desaparecido; sem pavimento flutuante do 1.º andar; sem o material eléctrico do 1.º andar; sem cilindro. O réu abriu todas as portas do R/C, permitindo assim que o chão e o interior das divisões fossem danificados pela chuva. O réu provocou a desvalorização do imóvel. Retirou os materiais para os voltar a colocar quando a casa fosse dele. A autora tentou reparar o imóvel, mas foi impedida pelo réu. A autora não recebe rendimentos do imóvel desde 20/01/2022.

Foi, então, proferido despacho liminar em 17/01/2024 que terminou com o seguinte dispositivo:

“Termos em que, julgo verificada a excepção dilatória de erro na forma de processo e, em consequência, indefiro liminarmente o requerimento inicial apresentado por AA.

Custas pela A. (art. 527º do CPC), sem prejuízo do decidido quanto ao benefício do apoio judiciário.

Fixo à causa o valor de 100.000,00€.”


I.B.
A requerente/apelante veio recorrer desse despacho de 17/01/2025 e apresentou alegações onde termina com as seguintes conclusões[[1]]:
“1 1. A A. pretende, através da presente Ação, ser ressarcida de todos os factos descritos na Petição Inicial.
2. Entre os quais, a utilização do imóvel por parte do R.
3. Os donos provocados pelo R. ao imóvel;
4. Portanto, tirou o recorrido uma série de utilidades e benefícios do uso exclusivo do imóvel, e tem de prestar contas por isso.
5. O Recorrido ainda se encontra a administrar o imóvel.
6. O presente caso configura até um caso de enriquecimento sem causa
7. Cujos pressupostos e requisitos para efeitos de indemnização se encontram todos preenchidos.
8. Aplicando-se ao presente caso a figura do contrato tácito para efeitos de fundamentar um dever de reembolso co base nos argumentos supra aduzidos, que se aplica aos casos de compropriedade
9. E caso assim não se entendesse, ainda assim, o recorrido teria de ser considerado responsável nos termos dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil.
10. Cujos pressupostos e requisitos também se verificam todos.
11. De maneira que deve a douta sentença ser revogada, de modo que o processo siga os seus normais trâmites até final, a fim de que o recorrido seja condenado a proceder ao pagamento à A/ Recorrente das quantas em causa e supra explanadas.
Assim,
Temos em que requer a V. Exas com provimento ao presente Recurso, revogando a douta sentença de maneira que o processo siga os seus normais trâmites até final, a fim de que o recorrido seja condenado a proceder ao pagamento à A./Recorrente das quantias em causa e supra explanadas,
Fazendo a necessária e inteira JUSTIÇA!”


I.C.
Não houve resposta.

I.D.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.

Após os vistos, cumpre decidir.

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II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).

Assim, no caso, impõe-se apreciar se a pretensão da requerente pode ser apreciada na presente acção especial.


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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A. Fundamentação de facto:
A matéria a considerar encontra-se descrita no relatório.


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III.B. Fundamentação jurídica:

O despacho de indeferimento liminar é do seguinte teor:
Do uso indevido ou inadequado da acção especial de prestação de contas

Por apenso à acção de divisão de coisa comum que a Autora AA propôs contra BB, veio a Autora intentar acção especial de prestação de contas contra o Réu peticionando que este preste contas e que, a final, seja condenado no pagamento «a título de rendas/contrapartidas não pagas pela utilização/ocupação/administração por parte do R. no valor de 15.400,00€ correspondente ao período entre Janeiro de 2022 até à presente data, correspondente à quota parte da propriedade do imóvel, pois tal valor corresponde ao valor que lhe corresponderia caso o imóvel estivesse a ser administrado em nome de ambos os proprietários desde a supra identificada data; a pagar ou, em contrapartida, a que seja declarado judicialmente a existência de um crédito no referido montante, tendo em conta todo o apuramento das contas, bem como no pagamento das rendas vincendas, ou seja, que se vencerem até ao dia em que efetivamente cessar a ocupação/utilização ilegítima, porque feita contra a vontade da Autora, valor esse que sempre lhe seria devido, a título de responsabilidade civil, nos termos dos artigos 483º e seguintes do Código Civil. Mais deve ser condenado o R. em montante determinado em perícia judicial que pague/repare todos os danos causados (identificados nessa perícia) pelo R. no imóvel e nos móveis que estavam no imóvel e em perfeito estado de utilização».

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Sendo conhecida a posição do Autor quanto à adequação do meio processual usado, dispenso a sua audição (art. 3º/3, do Código de Processo Civil).

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Da alegação explanada na petição inicial não resulta que as despesas cujo ressarcimento a Autora peticiona resultem da administração da coisa comum, antes consubstanciam uma pretensão indemnizatória, que a A. formula contra o Réu, pelo uso exclusivo da coisa comum e pela prática de actos ilícitos que ocasionaram danos na coisa comum.

Ora, tal pretensão não se enquadra no objecto da acção especial de prestação de contas, que visa o apuramento das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios (art. 941º do Código de Processo Civil).

Como a própria A. alega, o valor que esta peticiona a título de rendas/contrapartidas não corresponde a montantes cobrados/recebidos pelo Réu de terceiros (eventuais arrendatários), mas consiste numa compensação que a A. entende ser-lhe devida por o Réu usar em exclusivo o bem comum.

Da mesma forma, a A. pretende a condenação do R. no pagamento do montante necessário à reparação dos danos por aquele alegadamente causados. Ou seja, não se trata de despesas já suportadas com a administração da coisa comum.

Verifica-se, pois, um erro na forma do processo.
Na verdade, para obter o reconhecimento do crédito que aqui reclama, a Autora deveria ter lançado mão de outra via processual.
O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei (art. 193º/1, do CPC).
Contudo, no caso em análise, entende-se não haver possibilidade de aproveitar os actos praticados e convolar a presente acção especial em acção de processo comum, porquanto o requerimento inicial não obedece aos requisitos de uma petição inicial (art. 552º do CPC) e ainda se verifica uma diferença no pedido formulado e na tramitação do processo posterior aos articulados que não se compadecem com tal convolação.
Nestes termos, impõe-se a anulação de todo o processado, o que se determina, estando-se em presença de uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, conducente ao indeferimento liminar do requerimento inicial (art. 590º/1, do Código de Processo Civil).
Termos em que, julgo verificada a excepção dilatória de erro na forma de processo e, em consequência, indefiro liminarmente o requerimento inicial apresentado por AA.
Custas pela A. (art. 527º do CPC), sem prejuízo do decidido quanto ao benefício do apoio judiciário.
Fixo à causa o valor de 100.000,00€.
Registe e Notifique.

Apreciando.

Uma vez que a autora expressamente pretendeu deduzir uma acção especial de prestação de contas, importa considerar o que se dispõe no artigo 941.º do Código de Processo Civil que, além de estabelecer a regra relativa à legitimidade nesse tipo de acção, estabelece a regra relativa ao seu objecto: “a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.

Retira-se dessa norma, por isso, que essa acção especial tem por fim o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administre bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que se venha a apurar.

É que, como tem vindo a ser afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, este tipo de processo é uma das formas de exercício do direito de informação consagrado no artigo 563.º do Código Civil. Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/02/2005 (processo n.º 04B4671[[2]]) “A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito”.

A existência de uma obrigação de prestação de contas, que é uma obrigação de natureza material ou substantiva, decorrerá de uma norma legal ou de contrato que impunha essa prestação. Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28/11/2024 (processo n.º 156/14.5TBMTR.G1[[3]]) “o dever de prestação de contas surge como uma obrigação de informação pormenorizada das receitas e despesas efetuadas, acompanhada da justificação e documentação respetivas, com vista a definir um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito”.

Por ser assim, a acção de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração nem visa a responsabilização dessa pessoa por eventual má administração, nem mesmo a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência dessa pessoa (neste sentido ver Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[[4]] e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/04/2003, processo n.º 03A073[[5]]).

E essa acção especial também não se adequa à pretensão de condenação do réu no pagamento de determinada quantia com fundamento na sua apropriação ilícita (ver, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/05/2022, processo n.º 3676/14.8T8GMR.G2[[6]]).

O processo especial de prestação de contas não se destina a verificar um eventual incumprimento de contrato por uma das partes mas, tão somente, a apurar o montante das receitas e despesas que efectivamente foram cobradas ou efectuadas (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/02/2016, processo n.º 17099/98.0TVLSB.L1.S1[[7]])

Não pode ser usada acção de prestação de contas para se obter uma compensação com fundamento na utilização exclusiva de um imóvel (ver Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/12/2024, processo n.º 2551/23.0T8FAR-B.E1[[8]]).

Nem pode ser usada para indagar sobre eventual responsabilidade civil ou apurar se alguma quantia é devida a título de enriquecimento sem causa (ver Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/05/2010, processo n.º 14-A/1998.C2[[9]])

Assim, não pode servir esse tipo de processo, naturalmente, para se apurarem receitas virtuais (nomeadamente as que poderiam ter existido se existisse uma boa administração de um imóvel) ou a responsabilidade civil pela destruição da coisa administrada, como pretende a autora neste processo.

Apenas se pode discutir na acção de prestação de contas se existe, ou não, a correspectiva obrigação de prestar as contas e o valor ou a inscrição de receitas e despesas efectivas (e não potenciais ou virtuais).

Como defendem os referidos autores (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[[10]]), “caso pretenda averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas, o autor deve recorrer ao processo comum, e não ao processo especial de prestação de contas”.

Uma vez que não pode a pretensão da autora/apelante prosseguir nesta acção especial, improcedem todas as suas conclusões do recurso (nada mais havendo, por isso, a conhecer).


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As custas do presente recurso deverão ficar a cargo da recorrente, pois nele ficou vencida (cf. artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.

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IV. DECISÃO:

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a decisão recorrida.

Condena-se a apelante nas custas do recurso, sem prejuízo do apoio judiciário.

Notifique.


Évora, 5 de Junho de 2025
Filipe Aveiro Marques
Susana Ferrão da Costa Cabral
Filipe César Osório





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[1] Que se transcrevem verbatim.
[2] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2ab8e6cd44116cd480256fb2005bc175.
[3] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/247c5c9d2473e94a80258bef005586f2.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pág. 389.
[5] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/D078F41F2134623380256D2700572F13.
[6] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/935bcc107de00b1180258860004dd4e9.
[7] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/3847995E953B44CE80257F5B00599BAF.
[8] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/960b7654684433be80258c0e005d4c49.
[9] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/78952d37931a8f6b802577420033eb67.
[10] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pág. 390.