COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
UNIÃO DE CONTRATOS
COMPENSAÇÃO
PREÇO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
Sumário

Sumário:
1. A figura da coligação contratual está claramente assumida na ordem jurídica portuguesa.
2. Apenas na união interna ou com dependência se pode falar de coligação contratual em sentido técnico, com uma finalidade económica comum e subordinação entre os contratos coligados, que mantêm uma autonomia formal entre eles.
3. A subordinação entre os contratos significa e implica que as vicissitudes de um negócio se repercutem no outro.
4. A dependência entre os contratos é criada pelas cláusulas acessórias ou pela relação de correspectividade ou de motivação que afectam os contratos.
5. Quando as partes pretendem terminar a compropriedade e trocar entre si metades de imóveis e, para tanto, trataram de celebrar, na mesma ocasião, quatro contratos cruzados em que se pretendia a compensação parcial dos preços, em que ambas pretendiam compensar o valor de cada parte que seria adquirida pelos valores das outras partes que seriam vendidas, existe entre eles uma relação de dependência, uma unidade económica e um propósito comum, apesar de se ter optado por uma pluralidade de relações contratuais interligadas, o que permite concluir pela existência de uma coligação contratual.
6. A excepção do não cumprimento do contrato tem o seu âmbito de aplicação claro nas obrigações sinalagmáticas, tendo sempre presente o princípio da boa fé e o apelo à ideia de abuso de direito.
7. Quando a reciprocidade de obrigações existe nos quadros de vários contratos coligados, existe a possibilidade de recurso a essa excepção.
8. Nada impede que se declare essa excepção ainda que a ré não tenha feito a qualificação jurídica certa, já que o Tribunal é livre no que respeita à qualificação jurídica dos factos e, desde que os pertinentes factos estejam alegados, pode qualificar-se a situação como uma excepção de não cumprimento.
9. Tendo resultado provado que a autora não está em condições de cumprir a sua parte da prestação, por não poder emitir a sua declaração de venda para que uma parte pudesse passar para a propriedade da ré e que essa é uma parte importante como contraprestação, designadamente em termos de valor, para que a ré emita a sua declaração de venda dos demais prédios que prometeu vender, pode a ré colocar-se numa situação de recusa da sua prestação enquanto a autora não estiver em condições de emitir a sua declaração de venda.

Texto Integral

Apelação n.º 1379/23.1T8FAR.E1
(1.ª Secção)

Relator: Filipe Aveiro Marques
1.º Adjunto: Filipe César Osório
2.º Adjunto: Ricardo Miranda Peixoto


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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:


I. RELATÓRIO:

I.A.

AA e BB intentaram acção declarativa de condenação contra CC.

Terminaram com o seguinte pedido:
“deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, em consequência, ser declarado constitutivamente adquirido pelas AA., nos termos do disposto no art. 830.º, n.º 1 do Cód. Civil, o direito de propriedade sobre:
a) a metade indivisa do prédio rústico, composto de terra de cultura com árvores, a qual compõe o misto sito no Local 1, freguesia ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...78, inscrita na matriz a parte rústica sob o artigo ...3, secção 1M;
b) a metade indivisa do prédio misto denominado “...3” sito em Local 2, freguesia ... e ..., concelho ..., composta a parte rústica de terra de cultura com árvores e construção rural e, a parte urbana de um conjunto de habitações, armazém e de um prédio urbano com dois pavimentos constituído por ... e ... andar, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...96, inscrita na matriz a parte urbana sob o artigo 1792 e a parte rústica sob o artigo ...6, secção 1H;
c) a metade indivisa da fração autónoma designada pela letra “A” do prédio urbano, destinada a armazém e atividade industrial, com uma divisão, sita na cave do prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...75 e inscrita na respetiva matriz predial sob o artigo ...91, sem que haja lugar a pagamentos entre as AA. e a R. em virtude dos valores acordados entre ambas face ao valor da compra atribuído aos prédios prometidos vender e prometidos comprar.
Deverá ainda a R. ser condenada:
i) no pagamento do montante pecuniário diário, nunca inferior a € 50,00, por cada dia de mora desde a sua citação até ao cumprimento definitivo da obrigação que assumiu no contrato-promessa;”

Para tanto alegaram, muito em síntese, que são (mãe e filha) comproprietárias em conjunto com a Ré dos referidos prédios e que existiu acordo para a respetiva divisão, mediante a celebração de quatro contratos-promessa de compra e venda, recusando a Ré celebrar as escrituras públicas dos contratos definitivos.

A ré contestou e invocou a ilegitimidade activa da autora BB, a ineptidão da petição inicial, a nulidade dos contratos por omissão de formalidades (certificação da licença de utilização). Mais disse que não ficou acordada a data para a celebração do contrato definitivo; a obtenção dos documentos necessários cabia às autoras; e não foi a ré interpelada para comparecer para celebrar o contrato definitivo. Invocou, ainda, que estava em erro sobre o objecto do negócio. De resto, impugna os factos.

Foi saneado o processo em audiência prévia, onde se julgaram improcedentes as excepções de ineptidão da petição inicial e da ilegitimidade activa.

Após julgamento foi proferida sentença pelo Juízo Central Cível ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., que terminou com o seguinte dispositivo:
“Por todo o exposto, e ao abrigo dos citados preceitos legais, o Tribunal decide julgar a presente ação improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver a Ré dos pedidos.”


I.B.

A autora AA veio recorrer dessa sentença e apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:
“a) A douta sentença decidiu da seguinte forma que se transcreve:
“Por todo o exposto, e ao abrigo dos citados preceitos legais, o Tribunal decide julgar a presente ação improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver a Ré dos pedidos.”
b) A base de fundamentação desta decisão foi apenas discricionária no sentido de considerar que entre os contratos promessa existe uma coligação contratual e, que os mesmos não podem ser executados especificamente de forma individual.
c) O Tribunal a quo toma uma decisão totalmente contrária à fundamentação em que assenta, sem que tenha justificado essa opção, apoiando-se num desequilíbrio que não resulta quer dos factos provados, quer dos factos não provados.
d) Ora, os fundamentos exarados são no sentido da possibilidade da execução especifica, uma vez que considera que a Recorrida tinha conhecimento do que estava a assinar e queria fazê-lo, esbarrando num contrato promessa independente, quando o Tribunal a quo considerou estar dependente dos restantes, o que não podemos aceitar.
e) Pelo que se verifica que a Sentença é nula nos termos do art. 615.º, n.º 1 als. b) e c) do CPC.
f) A Recorrente não concorda com os factos não provados, designadamente os factos a) b) e c), pois a prova carreada para os autos demonstra o contrário.
g) Além do mais ficam por inserir factos novos na matéria provada, que foram olvidados pelo Tribunal a quo ou considerados como factos instrumentais, mas essenciais para a boa decisão da causa.
h) A Recorrida contratou uma solicitadora, negociou os contratos e seus montantes por si ou através desta representante e recebeu no dia da assinatura o montante de 5 mil euros.
i) Pelo que os factos não provados da douta sentença como a), b) e c) deveriam ter sido considerados como provados.
j) Por sua vez, o Tribunal a quo deveria ter considerado factos adicionais que já supra se mencionou.
k) A Recorrida quis a permuta como a mesma especificou e quiseram celebrar contratos independentes entre si.
l) A Recorrida apelida de permuta porque na globalidade ficaria com os urbanos e a Recorrida com os rústicos mais uma cave especificada na douta sentença do Tribunal a quo.
m) Caso contrário, teriam celebrado apenas um contrato promessa englobando todos os prédios de que são comproprietárias, o que não o fizeram.
n) Especificaram a divisão dos bens em 4 contratos promessa que poderiam ter sido executados individualmente.
o) Os factos novos 1, 2 e 3 deveriam ter sido considerados como provados.
p) Além do mais, após a leitura dos contratos promessa é verificado que não ocorreu pagamento de sinal ou convenção contrária que impeça a execução específica dos contratos promessa.
q) Da mesma forma que a Recorrente mantém o interesse na execução especifica de forma individual relativamente a cada contrato, nunca tendo sido referido que caso um não fosse possível celebrar que não se poderia celebrar qualquer contrato.
r) Desta forma os factos novos 4 e 5 também deveriam ter sido adicionados à matéria como provada.
s) O douto Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, pelo que deveria ter considerado os factos não provados a), b) e c) como provados, e ter considerado uma factualidade mais abrangente, adicionando os novos factos 1, 2, 3, 4 e 5 supra referidos, bem como a possibilidade da execução especifica por ser essa a vontade das partes no conjunto e de forma individual para cada contrato.
t) A Recorrente e Recorrida, em 09/07/2020, celebraram 4 contratos promessa com reconhecimento de assinatura no notário.
u) Nos contratos de compra e venda ficou combinado que os urbanos seriam para a Recorrida e as hortas para as Recorrente, e assim foi porque a Recorrida começou a receber de imediato as rendas dos arrendamentos até à presente data, apesar de ter enviado uma carta meses após a celebração dos contratos promessa a referir que achava que teria sido enganada, pelo que ficou provado que várias pessoas da sua confiança leram o contrato e deram-lhe essa opinião, conforme depoimento gravado nos autos.
v) Denota-se em conformidade com a douta sentença do Tribunal a quo que o Local 1 não poderia ser vendido antes da desanexação que tem de operar entre rústico e urbano.
w) Por esse motivo não se enviou carta para a formalização da venda do Local 1, e considerou-se os negócios independentes entre si.
x) A Recorrida não quis comparecer e enviou missiva a referir que não estaria presente.
y) Contudo não pode aceitar a justificação do Tribunal a quo, na qual presumiu e fez um entendimento não assente em qualquer prova de que os contratos foram feitos em coligação e que caso não fossem celebrados em conjunto configurará um desequilíbrio.
z) A Recorrente poderia ter optado por executar na presente demanda apenas um contrato ou os três contratos cuja escritura pública agendou. Poderia também ter iniciado 4 demandas distintas para executar cada contrato promessa.
aa) Não pode a Recorrente ser penalizada por uma opção jurídica do Tribunal a quo.
bb) [[1]]
cc) O Tribunal a quo decidiu que os 4 contratos promessa celebrados na mesma data e reconhecidos no notário estariam coligados entre si, sem distinguir de que forma é que tal união se faria.
dd) Pelo que definem que a coligação pode ter uma união extrínseca, uma união com dependência e uma união alternativa.
ee) No limite, aceita-se uma união extrínseca de contratos por terem sido celebrados na mesma data entre as mesmas partes, mas cujos escritos são independentes entre si.
ff) Ora, na hipótese académica de existir a coligação extrínseca, nunca colocaria em causa a celebração dos contratos promessa e a validade dos mesmos de forma individual.
gg) O argumento do desequilíbrio entre as partes não pode valer, pois os valores atribuídos aos imóveis foram-nos feitos para cada contrato sem que ocorra dependência entre si.
hh) individual com pagamento do preço por cada um dos imóveis.
ii) Pelo que não haverá qualquer desequilíbrio entre as partes.
jj) No limite estará a Recorrente a ser prejudicada porque não recebe qualquer renda dos imóveis urbanos e investe toda a sua faturação nos prédios rústicos valorizando-os e beneficiando a Recorrida caso a sentença do Tribunal a quo prevaleça.
kk) Pelo que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao considerar a existência de coligação de contratos e, de um suposto desequilíbrio entre as partes.
ll) Da forma como foram considerados como não provados os factos, não o poderiam ter sido por possuírem suporte de prova para que os mesmos existam.
mm) Por todos estes factos omitidos pelo Tribunal a quo e pela justificação sem base legal ou jurisprudencial, verifica-se um vício da insuficiência da matéria de facto, erro notório na apreciação da prova e incorre em erro de julgamento o Tribunal a quo, sendo a sentença considerada nula, ou devendo ser substituída por outra que considere os pedidos da Recorrente na sua totalidade.
Pelo exposto, e pelo que mais que for doutamente suprido por V. Exas., deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão proferida e, em consequência, condene a Recorrida nos pedidos realizados executando-se especificamente os contratos promessa celebrados entre as partes, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA”


I.C.

Respondeu a ré, com ampliação do âmbito do recurso relativa à modificação da decisão de facto. Nessa parte, concluiu que:
“M) Na sequência, a recorrida vem ampliar o objeto de recurso no contexto em que a apelante impugna a decisão de facto.
N) Assim, a ré impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como assente, reapreciando os meios de prova gravada, cumprindo o ónus previsto no art.º 640º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Civil.
O) Deste modo deverão considerar-se provados os seguintes factos:
a) A recorrente e a recorrida não acertaram os valores e o conteúdo mencionados nos contratos promessa.
b) A ré nunca foi esclarecida do teor e alcance dos contratos promessa que assinou.
P) De igual modo, deverão julgar-se não provados os factos enunciados nos números 20, 26, 27 e 28 em sede III-Fundamentação, Factos Provados cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Q) Assim, reapreciando a matéria de facto consistente no depoimento da recorrente e recorrida, deverão declarar-se provados os factos constantes das alíneas a) e b), nos termos enunciados em 23.º, assim como deverão ser dados como não provados os factos referidos em 24.º - números 20, 26, 27 e 28 da douta decisão de facto.
R) A ré, no cumprimento do ónus do art.º 640º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, vem dar por integralmente reproduzidos os comentários e as declarações da recorrente AA e da recorrida CC, nos precisos termos que se alcançam respetivamente de 9.º a 16.º e 17.º a 18.º.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve julgar-se procedente o pedido de ampliação da matéria de facto; negar-se provimento ao recurso interposto pela ré e manter-se a douta decisão recorrida.”

I.D.

O recurso foi devidamente recebido pelo Tribunal a quo.

Já neste Tribunal da Relação, após convite do relator, as partes pronunciaram-se no tocante à eventual aplicação do instituto da excepção de não cumprimento do contrato previsto no artigo 428.º do Código Civil: a recorrente por via do requerimento de 26/05/2025 (REFª: 52427028) onde defende que se considere improcedente a aplicação da exceção de não cumprimento do contrato e se determine a execução específica dos contratos; a recorrida pelo requerimento de 27/05/2025 (REFª: 52446899) em que diz não ser “aplicável ao caso dos autos o instituto da exceção de não cumprimento do contrato”.

Após os vistos, cumpre decidir.

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II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).

Assim, no caso, impõe-se apreciar:

a) Invocada nulidade da sentença;

b) Impugnação da matéria de facto;

c) Eventual erro de julgamento quanto à possibilidade de execução específica dos contratos promessa.

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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A. Apreciação das invocadas nulidades da sentença recorrida:

Invoca a recorrente a nulidade da decisão recorrida.

Estabelece o indicado artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”.

O recorrente imputa à sentença recorrida a violação das alíneas b) e c) desse artigo (alíneas c) a e) das conclusões).

No que toca à nulidade prevista na citada alínea b), só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, como de forma lapidar se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/12/2021 (processo n.º 7129/18.7T8BRG.G1.S1[[2]]). Não é, manifestamente, o caso dos autos pois na sentença recorrida foram elencados os factos provados, os não provados, as razões pelas quais se entendeu estarem tais factos demonstrados ou não, além de nela se conter extensa fundamentação jurídica. Improcede, por isso, esta parte da pretensão da recorrente.

Quanto à nulidade prevista na referida alínea c), do artigo 615.º do Código de Processo Civil, a mesma ocorre quando exista ininteligibilidade (o que, no caso, não se verifica, dada a clareza da parte decisória da sentença) ou quando a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final (o que, evidentemente, também não ocorre – pois toda a argumentação de direito aponta no sentido da decisão que veio a ser tomada). Esta nulidade não se pode confundir com o eventual erro de julgamento (ou errada qualificação jurídica dos factos), pelo que também improcede a alegação da recorrente nesta parte.


*

III.B. Fundamentação de facto:

III.B.1 Impugnação da matéria de facto:

A recorrente cumpriu minimamente os requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que se impõe a análise das questões suscitadas na sua impugnação da matéria de facto.

Na verdade, como se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/02/2024 (processo n.º 2351/21.1T8PDL.L1.S1[[3]]): “Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação”.

Assim, conforme o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, esta Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento impuserem decisão diversa.

O Tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve considerar o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4, do artigo 607.º e da alínea a), do n.º 2, do artigo 5.º, ambos do Código de Processo Civil.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2024 (processo n.º 99/22.9T8GDM.P1[[4]]), “O Tribunal da Relação para reapreciar a decisão de facto impugnada tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso”.

a) Da conclusão f) da pretensão recursória da recorrente retira-se a indicação das alíneas a), b) e c) dos factos não provados, como sendo aqueles factos que, na sua visão, merecem resposta positiva.

Essas alíneas são do seguinte teor:

“a) a Ré acordou os valores de compra e venda com a Autora AA e pediu-lhe que tratasse da documentação necessária para realização das escrituras públicas;

b) face à proximidade de valores a pagar por cada parte à outra, no momento da assinatura dos contratos-promessa, foi decidido pela Ré, com a concordância da Autora AA, que esta apenas teria de entregar à Ré a quantia de €5.000,00;

c) no dia da assinatura dos contratos-promessa a Autora AA procedeu à entrega à Ré, em numerário, da quantia de €5.000,00;”

A sentença recorrida, para fundamentar a resposta a esses pontos, além do mais, consignou que:

“A Autora manteve que tudo foi negociado e acordado antes de assinarem os contratos-promessa de compra e venda, negando a Ré que assim foi. Apenas existem estas duas versões quanto ao teor do que ficou acordado antes da assinatura dos contratos-promessa de compra e venda, pois nenhuma testemunha que foi ouvida quanto a esta matéria presenciou as negociações que conduziram à elaboração dos contratos, nem foi apresentado qualquer outro elemento de prova que nos permita saber o que ficou combinado. (…)

Perante as duas versões, mantidas pelas partes, perante a insuficiência de meios de prova que comprovassem ter sido efetivamente acordado o preço de compra e venda e paga a diferença, foi considerada como não provada a factualidade referida nas alíneas a) a c).”.

Ora, o Tribunal a quo explicou da forma possível (face à ausência de prova segura) a resposta a essas alíneas a) a c).

A recorrente baseia a sua impugnação, essencialmente, nas suas próprias declarações. E autora foi, na verdade, a única que relatou a versão apresentada na petição inicial, nomeadamente na parte em que disse ter entregue à ré a quantia de 5.000,00€.

Após audição das declarações e depoimentos prestados em audiência, a verdade é que não resulta do depoimento de parte da ré qualquer confissão destes factos. E dos depoimentos das testemunhas referidos pela recorrente também não resulta a prova destes factos nem se corrobora a versão apresentada pela autora.

As declarações prestadas são, manifestamente, insuficientes para afastar a dúvida referida na fundamentação da sentença recorrida. E a dúvida, em processo civil, resolve-se nos termos do artigo 414.º do Código de Processo Civil: quando, após a valoração da prova, não se atingir o patamar da probabilidade prevalecente ou se as provas produzidas pelas partes forem equivalentes (no sentido de que inexistem parâmetros concretos que justifiquem a prevalência da credibilidade de umas sobre as da contraparte), entra em campo a solução de resolver a dúvida contra a parte a quem o facto aproveita – ver, neste sentido, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[[5]].

Improcede a requerida impugnação das alíneas a) a c) dos factos não provados.

b) Pretende a recorrente, por outro lado, aditar à matéria de facto provada o seguinte:
“1. A Ré sempre quis uma permuta dos bens com a A. nos termos do contrato promessa que assinou.
2. As partes quiseram celebrar 4 contratos promessa por serem independentes entre si.
3. A Ré aceitou celebrar os contratos mas arrependeu-se após falar com a sua família.
4. As partes não convencionaram de forma contrária à execução especifica.
5. A A. mantém interesse na execução especifica de cada contrato de forma individual.”

Quanto ao pretendido nesse ponto 1, o que resulta das declarações da autora (e resulta do alegado na PI – conjugação dos artigos 24.º, 25.º e 42.º a 44.º) e da ré, tal como se salienta na sentença recorrida (quando se diz que “a Ré admitiu no depoimento que prestou que pretende, efetivamente, colocar fim à compropriedade de bens existente com a Autora” e “em audiência a Ré não desmentiu a intenção de efetuar a divisão dos bens, que apelidou de permuta, demonstrando que teria interesse em celebrar com a Autora os negócios jurídicos mas mediante um diferente valor”), é que as partes pretendiam colocar fim à compropriedade mediante uma troca (embora mantenham divergência quanto aos valores).

Resulta claro da prova produzida, por outro lado, que os contratos promessa foram assinados e as assinaturas reconhecidas.

Não existe, no entanto, prova que antes da data da assinatura dos contratos as negociações tenham sido noutro sentido que não a referida troca. Como se disse na sentença recorrida (e acima ficou consignado: “A Autora manteve que tudo foi negociado e acordado antes de assinarem os contratos-promessa de compra e venda, negando a Ré que assim foi. Apenas existem estas duas versões quanto ao teor do que ficou acordado antes da assinatura dos contratos-promessa de compra e venda”), não existiu prova segura (para além do que ficou dito quanto ao propósito de trocar os imóveis) do estava negociado antes da assinatura, daí que não se possa manter a redacção do ponto 20. dos factos provados da sentença recorrida (e que era do seguinte teor: “Ficou acordado entre a Autora AA e a Ré que iriam assinar quatro contratos-promessa de compra e venda dos prédios identificados em 5. e 6.”).

De resto, a autora/recorrente pretende que se dê como provado, precisamente, o que a ré declarou a esse respeito: que esta pretendia uma permuta dos imóveis com a autora. No entanto, não pode proceder integralmente o que a recorrente pretende nesse ponto (já que também não se pode dizer que nos termos dos contratos promessas as partes tenham feito constar uma permuta).

Daí que se entenda que a redacção do ponto 20. dos factos provados (na sequência do que já estava provado nos pontos 17 e 18) deve ser alterada para aí ficar a constar o que resultou da prova produzida:

20- Ficou acordado entre a autora e a ré que, para por fim à compropriedade, iriam trocar entre si as metades dos imóveis referidos em 5. e 6.

Quanto aos demais pontos (2 a 5) que a recorrente pretende introduzir na matéria de facto, percorrendo os articulados, designadamente a petição inicial, não se vislumbra que a matéria tenha sido atempadamente alegada (além de que parte do pretendido, designadamente o ponto 4, só pode ser considerado como meramente conclusivo).

As alegações de recurso não se destinam nem podem ser aproveitadas para apresentar factos novos (como, de forma lapidar, se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/11/2003, processo n.º 03A2957[[6]]).

Por ser assim, improcede a impugnação da matéria de facto nessa parte.

Por outro lado, importa consignar nos factos o que na PI (e sentença) se fez por remissão para os contratos promessa e dar, consequentemente, nova redacção aos pontos 26 e 27, transformando-os nos pontos 26 a 29 – um por cada contrato formalmente assinado:

26- No primeiro contrato promessa a ré prometeu vender à autora, e esta prometeu comprar-lhe, metade indivisa da parcela rústica do prédio misto situado em Local 1 pelo preço total de 30.000,00€ e a autora prometeu vender à ré, e esta prometeu comprar-lhe, metade indivisa da parcela urbana do mesmo prédio misto situado em Local 1 pelo preço total de 120.000,00€; mais declararam que no acto de assinatura do contrato a ré pagou à autora a quantia total de 120.000,00€ e a autora pagou à ré a quantia de 30.000,00€.

27- No segundo contrato promessa a autora prometeu vender à ré, e esta prometeu comprar-lhe, metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “B” do prédio sito na Rua ..., em ..., pelo preço total de 100.000,00€; mais declararam que no acto de assinatura do contrato a ré pagou à autora a quantia total de 100.000,00€.

28- No terceiro contrato promessa a ré prometeu vender à autora, e esta prometeu comprar-lhe, a metade indivisa do prédio misto situado em Local 2, pelo preço total de 150.000,00€, sendo atribuído à parcela urbana a quantia de 120.000,00€ e à parcela rústica a quantia de 30.000,00€; mais declararam que no acto de assinatura do contrato a autora pagou à ré a quantia total de 150.000,00€.

29- No quarto contrato promessa a ré prometeu vender à autora, que prometeu comprar-lhe, a metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “A” do prédio sito na Rua ..., em ..., pelo preço total de 35.000,00; €; mais declararam que no acto de assinatura do contrato a autora pagou à ré a quantia total de 35.000,00€.

Sobretudo, apesar de em cada um dos contratos se referir que o preço foi integralmente recebido (como se viu), a verdade é que resulta da alegação dos pontos 42.º a 44.º da PI (e é claramente reafirmado no recurso por parte da recorrente – basta ver a alínea h) das suas conclusões) o que, igualmente, resulta do artigo 84.º da contestação: os valores que constam dos contratos não foram pagos nem recebidos. Entende-se, por isso, que a questão do recebimento da totalidade do preço, constante nos contratos promessa pode e deve ser afastada pela confissão expressa (de ambas as partes) feita nestes autos e, por isso, deverá consignar-se nos factos provados (novo ponto 30) o que, a esse propósito, é assumido por ambas (sem se duvidar que apenas estava controvertida a questão do pagamento dos 5.000,00€ por parte da autora e que vinha alegada na PI, sendo que essa é matéria não provada, como acima se viu):

30- Autora e ré não pagaram uma à outra as quantias referidas nos contratos promessa.

Os restantes pontos da matéria de facto da sentença recorrida serão, por isso, renumerados.

c) Resta saber se deve ser analisada a impugnação dos factos pretendida pela recorrida.

A ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido será uma acção preventiva a uma possível decisão a proferir e não uma reação impugnativa a uma decisão já proferida.

Essa actuação cautelar do recorrido pode reportar-se:

1) aos fundamentos da ação ou da defesa (desde que plurais e a parte vencedora haja decaído em algum ou alguns deles; prevenindo a possibilidade de vir a decair quanto ao fundamento ou fundamentos que procederam na 1ª instância);

2) ao julgamento da matéria de facto desfavorável ao vencedor (prevenindo a possibilidade da decisão do recurso lhe vir a ser desfavorável por insuficiência de factos – provados – justificativos da solução jurídica impugnada); ou

3) à nulidade da sentença (prevenindo a possibilidade de passar de vencedor a vencido e enfermar a sentença de um erro de construção que, não fora a ampliação, não pode ser conhecida, por não haver sido suscitada e, assim, se estabilizar no processo) – neste sentido ver Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5/11/2015 (processo n.º 696/15.9T8STR-A.P1[[7]]).

Nas palavras de Abrantes Geraldes[[8]], não estamos perante um verdadeiro recurso, porque falta ao recorrido a qualidade de parte vencida relativamente ao resultado do processo e que serve de critério aferidor da legitimidade. Por isso, “a ampliação do objecto do recurso apenas será apreciada se acaso o tribunal ad quem vier a pronunciar-se sobre o mérito do recurso interposto” e, por outro lado, “apenas fará sentido apreciar as questões suscitadas se, porventura, forem acolhidos os argumentos arrolados pelo recorrente (ou que oficiosamente forem conhecidos) com repercussão na modificação da decisão recorrida”.

Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/05/2015 (processo n.º 169/13.4TCGMR.G2.S1[[9]]) não pode o Tribunal de recurso conhecer de uma questão que apenas lhe foi colocada – e que a lei apenas permite – para o caso de procederem os fundamentos da apelação, o que quer dizer que se conhecer dessa questão sem se saber se podem proceder os fundamentos da apelação, estará a conhecer de questão que lhe estava vedado conhecer, nos termos dos citados artigos 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte e 608.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil.

Para já, improcedeu em grande medida a impugnação da matéria de facto tal como vinha colocada pela recorrente, pelo que só se poderá passar a conhecer da impugnação da recorrida após análise dos demais fundamentos da apelação.


*

III.B.2. Factos provados:

Considera-se, por isso e para apreciação dos fundamentos da apelação da recorrente, a seguinte matéria de facto provada:

1. No dia ../../2007 faleceu, no estado de casado com AA, DD, tendo deixado como suas únicas herdeiras legitimárias o cônjuge sobrevivo e a filha BB.

2. No dia ../../2015 faleceu, no estado de casado com EE, FF, deixando como suas únicas herdeiras legitimárias a esposa e a filha AA.

3. No dia ../../2020 EE faleceu deixando como sua única e universal herdeira a filha AA.

4. No dia ../../2020 faleceu, no estado de casado com CC, GG, deixando como sua única herdeira legitimária a esposa.

5. GG e DD eram comproprietários, na proporção de metade cada um, da fração autónoma designada pela letra “A”, destinada a armazém, com uma divisão, sita na cave do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...75 e inscrita na respetiva matriz predial sob o artigo ...91.

6. FF e GG eram comproprietários, na proporção de metade cada um, dos seguintes prédios:

a. - Prédio misto, sito em Local 1, freguesia ... e ..., concelho ..., composta a parte rústica de terra de cultura e árvores e a parte urbana de um edifício de 2 pavimentos e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...78, inscrita na matriz a parte urbana sob o artigo 879 e a parte rústica sob o artigo ...3, secção 1M;

b. - Prédio misto, sito em Local 2, denominado “...3”, freguesia ... e ..., concelho ..., composta a parte rústica de terra de cultura com árvores, horta, pomares, vinha e construção rural e a parte urbana de um conjunto de habitações, armazém e de um prédio urbano com dois pavimentos constituído por ... e ... andar, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...96, inscrita na matriz a parte urbana sob o art.º 1792 e a parte rústica sob o art.º ...6, secção 1H;

c. - Fração autónoma designada pela letra “B”, destinada a armazém, sita no ... do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...75 e inscrita na respetiva matriz predial sob o art.º ...91.

7. Com o falecimento de DD, a metade da fração autónoma “A” passou a integrar o respetivo acervo hereditário, encontrando-se averbada em nome da herança do falecido.

8. Com o falecimento de FF, a metade dos 3 prédios identificados em 6. passou a integrar o respetivo acervo hereditário, encontrando-se averbada em nome da herança do falecido.

9. Após o falecimento de EE, a metade dos prédios identificados em 6. passou a pertencer à Autora AA, na qualidade de única herdeira legitimária dos pais.

10. Com o falecimento de GG, a Ré passou a ser a proprietária da metade de cada um dos prédios/frações descritos em 5. e 6.

11. A Autora AA e a Ré são proprietárias, na proporção de metade, cada uma, do prédio misto sito no Local 1, do prédio misto denominado ...3 e da fração autónoma designada pela letra “B”.

12. A Autora AA e a filha, BB, são proprietárias, em comum e sem determinação de parte ou direito, de metade da fração autónoma designada pela letra “A”.

13. DD, FF e GG constituíram uma sociedade por quotas denominada A..., Sociedade Agrícola, Lda., com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ...76, com sede no ..., freguesia ... e ..., concelho ..., a qual dedicava-se essencialmente à exploração agrícola de citrinos.

14. Após falecimento de GG a Autora manteve a produção de citrinos e informou a Ré que precisava de tratar do negócio.

15. A Ré deslocava-se com frequências às hortas, mas lamentava-se afirmando que não tinha idade para estar à frente do negócio e não tinha filhos para lhe darem continuidade.

16. Além de que não percebia nada do negócio, pois era o marido quem sempre esteve à frente de tudo.

17. Após falecimento do marido da Ré a Autora propôs-lhe que se colocasse fim às metades indivisas de todos os prédios e à sociedade agrícola.

18. A Ré concordou com a sugestão e informou que não queria as hortas para si, nem a sociedade.

19. Em data não apurada do ano de 2020, a Autora AA solicitou uma reunião com a Ré para acordarem o que ficaria para cada uma das partes e os montantes a pagar.

20. Ficou acordado entre a autora e a ré que, para por fim à compropriedade, iriam trocar entre si as metades dos imóveis referidos em 5. e 6.

21. No dia 09.07.2020 a Ré deslocou-se ao Cartório Notarial ..., em ....

22. A Autora AA aguardou pela chegada da Ré ao Cartório Notarial onde iriam realizar o reconhecimento das assinaturas a apor nos contratos-promessa.

23. A Ré permaneceu na viatura onde se fez transportar devido a dificuldade de locomoção.

24. A funcionária HH, ao serviço do Notário, deslocou-se até essa viatura e falou com a Ré, assegurando-se que esta percebia o teor dos contratos-promessa que iria assinar e não tinha qualquer dúvida.

25. A Ré e a Autora AA assinaram os quatro contratos-promessa e as respetivas assinaturas foram reconhecidas pela colaboradora HH.

26. No primeiro contrato promessa a ré prometeu vender à autora, e esta prometeu comprar-lhe, metade indivisa da parcela rústica do prédio misto situado em Local 1 pelo preço total de 30.000,00€ e a autora prometeu vender à ré, e esta prometeu comprar-lhe, metade indivisa da parcela urbana do mesmo prédio misto situado em Local 1 pelo preço total de 120.000,00€; mais declararam que no acto de assinatura do contrato a ré pagou à autora a quantia total de 120.000,00€ e a autora pagou à ré a quantia de 30.000,00€.

27. No segundo contrato promessa a autora prometeu vender à ré, e esta prometeu comprar-lhe, metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “B” do prédio sito na Rua ..., em ..., pelo preço total de 100.000,00€; mais declararam que no acto de assinatura do contrato a ré pagou à autora a quantia total de 100.000,00€.

28. No terceiro contrato promessa a ré prometeu vender à autora, e esta prometeu comprar-lhe, a metade indivisa do prédio misto situado em Local 2, pelo preço total de 150.000,00€, sendo atribuído à parcela urbana a quantia de 120.000,00€ e à parcela rústica a quantia de 30.000,00€; mais declararam que no acto de assinatura do contrato a autora pagou à ré a quantia total de 150.000,00€.

29. No quarto contrato promessa a ré prometeu vender à autora, que prometeu comprar-lhe, a metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “A” do prédio sito na Rua ..., em ..., pelo preço total de 35.000,00; €; mais declararam que no acto de assinatura do contrato a autora pagou à ré a quantia total de 35.000,00€.

30. Autora e ré não pagaram uma à outra as quantias referidas nos contratos promessa.

31. Ficou acordado que as escrituras de compra e venda seriam realizadas logo que toda a documentação estivesse em condições para o ato, cabendo à Autora efetuar a sua marcação, prontificando-se a comunicar à outra, o dia, hora e local da sua realização com a antecedência de quinze dias úteis.

32. A Ré, a partir do mês de julho de 2020, passou a receber as rendas provenientes dos prédios arrendados e a si prometidos vender, designadamente das divisões suscetíveis de utilização independente que compõem a parte urbana do prédio sito no Local 1 e da fração autónoma designada pela letra “B”.

33. E passou a emitir os recibos de renda, a dirigir-se por carta aos arrendatários como se fosse a proprietária única dos prédios.

34. A Autora AA tinha bens móveis e veículos automóveis depositados no armazém correspondente ao ... do prédio urbano sito no Local 1 prometido vender à Ré.

35. Por esse armazenamento, a Ré exigiu à Autora o pagamento de uma renda mensal no montante de €1.200,00, por entender que o armazém lhe pertencia e que tinha direito a ser ressarcida de um valor por si fixado.

36. A Autora AA efetuou o pagamento à Ré de duas rendas mensais, no montante de €1.200,00 cada, correspondente ao período de setembro e outubro de 2020.

37. A Autora AA passou a suportar as despesas, encargos e responsabilidades com a gestão do prédio misto denominado “...3”, com a parte rústica que compõe o prédio sito no Local 1 e com a fração autónoma designada pela letra “A”.

38. E restaurou, a suas expensas, as construções agrícolas existentes no prédio denominado “...3”, adquiriu e substituiu o sistema de rega, adquiriu tratores, bombas de água, vedou os terrenos e limpou as árvores.

39. E passou a pagar os consumos de água e luz, as taxas e impostos respeitantes aos prédios a si prometidos.

40. E reabilitou as árvores e os equipamentos existentes nos prédios, com vista a obter rendimento da produção de citrinos existente nos prédios rústicos.

41. Por carta datada de 16.11.2020, dirigida à Autora, a Ré alegou não ter os conhecimentos básicos necessários para analisar o teor das matérias constantes do contrato assinado em 09.07.2020 e pretender algumas retificações das cláusulas do contrato, uma vez que “depois de ter colhido alguma informação junto de pessoas experientes e conhecedoras destas matérias, conclui que pode ter existido algum desequilíbrio na valorização de alguns ativos mencionados no contrato”.

42. No que respeita à quota societária que a Ré detinha na sociedade agrícola A..., Sociedade Agrícola, Lda., em 05 de janeiro de 2021, a Ré veio renunciar à sua gerência e cedeu a sua quota à Autora AA, pelo montante de €5.000,00 (cinco mil euros).

43. Em 17.09.2020 a Ré vendeu um lote de terreno sito no ..., freguesia ..., concelho ..., que o havia colocado à venda na B..., Unipessoal, Lda.

44. Em 08.03.2022, a Autora AA requereu junto da Câmara Municipal ... uma certidão de isenção de licença de utilização do prédio denominado “...3”.

45. Obtendo, a suas expensas, as certidões de registo predial e os certificados energéticos dos prédios (frações A e B e prédio “...3”).

46. A Autora agendou a realização de escritura de compra e venda das frações A e B e do prédio misto “...3” para o dia 25 de julho de 2022, pelas 10h00m, no Cartório Notarial ..., em ....

47. Por cartas registadas com aviso de receção, enviadas por advogado em representação da Autora AA, datadas de 15.06.2022, a Ré foi notificada da data, hora e local da escritura de compra e venda das frações “A” e “B” e do prédio misto “...3”, cartas que recebeu em 23.06.2022.

48. Por carta registada com aviso de receção, datada de 15 de julho de 2022, enviada a 17 de julho de 2022, a Ré comunicou ao mandatário da Autora AA que não aceitava a marcação das escrituras e não iria comparecer no notário, alegando que “Toda a gente sabe que os documentos são falsos e nunca ninguém me leu os contratos promessa que eu assinei sem ler. Leram à pressa os papéis e ninguém me explicou o que estava a assinar, disseram só assine aqui.”.

49. Por carta registada com aviso de receção, datada de 15 de julho de 2022, enviada a 18.07.2022, a Ré comunicou à Autora AA que não assinava as escrituras e não ia ao Notário no dia 25.07.2022.

50. Por carta registada com aviso de receção, datada de 28 de julho de 2022, enviada nessa mesma data, o mandatário da Autora AA respondeu interpelando a Ré para celebrar a escritura de compra e venda de todos os prédios prometidos vender e comprar, agendada para o dia 30 de agosto de 2022, pelas 11h00m, no Cartório Notarial ..., em ....

51. Por carta registada com aviso de receção, datada de 05 de agosto de 2022, enviada pela Ré ao mandatário da Autora AA, confirmou a receção da carta datada de 28.07.2022 e informou que não iria comparecer.

52. A Ré não compareceu no Cartório Notarial para realizar as escrituras públicas, em 30 de agosto de 2022, tendo sido emitido o certificado de não comparência.

53. Apesar da insistência da Autora, a Ré não celebrou até hoje as escrituras de compra e venda.

54. A Autora mantém interesse na concretização das escrituras de compra e venda dos prédios identificados em 5. e 6.


*

III.B.3. Factos não provados:

Do elenco dos factos não provados continuará a constar:

a. a Ré acordou os valores de compra e venda com a Autora AA e pediu-lhe que tratasse da documentação necessária para realização das escrituras públicas;

b. face à proximidade de valores a pagar por cada parte à outra, no momento da assinatura dos contratos-promessa, foi decidido pela Ré, com a concordância da Autora AA, que esta apenas teria de entregar à Ré a quantia de €5.000,00;

c. no dia da assinatura dos contratos-promessa a Autora AA procedeu à entrega à Ré, em numerário, da quantia de €5.000,00;

d. o conteúdo dos contratos-promessa não foi objeto de negociação com a Autora;

e. a Ré não se encontrava esclarecida do teor e alcance dos contratos-promessa que assinou;

f. a Ré apenas teve consciência do teor e alcance dos contratos-promessa quando recebeu a carta referida em 44.


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III.C. Fundamentação jurídica:

A. Em primeiro lugar, importa salientar que estão em causa 5 prédios. E que autora e ré prometeram vender e comprar as suas respectivas metades para terminar com a compropriedade sobre os mesmos: 1) a fracção “A” destinada a armazém; 2) parte rústica do Local 1; 3) parte urbana do Local 1; 4) prédio misto do “...3”; e 5) a fracção “B” destinada a armazém.

Na sentença recorrida, entendeu-se que nas promessas de compra e venda realizadas quanto ao prédio misto denominado “Local 1”, existiu uma promessa de compra e venda relativa à metade da parte urbana (prometida vender pela autora) e outra promessa de compra e venda relativa à metade da parte rústica (prometida vender pela ré) e decidiu-se que não era possível a execução específica dessas promessas.

Fundamentou-se do seguinte modo:

“Ora, não se evidenciando que tenha existido alteração na composição deste prédio misto, será necessária autorização para a desanexação da parte rústica da parte urbana, para que se concretize a compra e venda, o que a Autora reconhece na petição inicial.

Donde, se conclui, não se verificam os legais pressupostos para a realização do respetivo contrato definitivo, não se alegando, nem documentando que, entretanto, as partes tivessem obtido a indispensável desanexação. Pelo que verificar-se-á a impossibilidade da celebração deste contrato-promessa de compra e venda e, forçosamente, a impossibilidade da respetiva execução específica.

Ou seja, ainda não estão reunidas as condições necessárias à realização do contrato definitivo e a verificação dessas condições está sujeita a regulamentação específica que não pode deixar de ser observada e a um ato administrativo de autorização que não pode deixar de ser praticado.

Na verdade, se a falta de verificação daquelas condições obsta à realização do contrato definitivo, também obsta à execução específica do contrato-promessa.

E a nossa lei não admite a figura da condenação condicional, isto é, da condenação em que o direito reconhecido fica dependente da verificação de determinada condição, ainda não ocorrida à data do encerramento da discussão (cf. Ac. do TRG de 15.10.2020, em www.dgsi.pt).

Com efeito, deve ser julgada improcedente a ação de execução específica em que a sentença a proferir será uma decisão condicional, dependente da verificação de um facto futuro e incerto, como é o da desanexação de uma parcela.”

Nas conclusões do recurso v) e w) a recorrente expressamente concorda com essa parte da sentença, pelo que apenas vem colocada à apreciação deste Tribunal de Recurso a questão de se saber se pode proceder, apesar disso, a execução específica das restantes promessas.

B. Na expressão feliz de Pedro Pais de Vasconcelos[[10]], salta à vista que só muito raramente, se é que alguma vez, dois ou mais contratos se encontrarão por acaso no mesmo documento ou no mesmo acto, sem que algo de importante (ou de não ocasional) tenha determinado a coincidência.

Nas palavras desse autor, “a contextualidade e a contemporaneidade são geralmente indícios de uma ligação de outra ordem que exista entre os contratos”.

A doutrina[[11]] e jurisprudência[[12]] têm vindo a afirmar a figura da união de contratos, com a sua clássica tripartição: a união externa (o vínculo dos contratos é apenas material, exterior ou acidental); a união interna (contratos ligados por um nexo funcional); e a união alternativa (em que a opção por um ou outro está dependente da verificação, ou não, da mesma condição).

E, como bem explica Romano Martinez[[13]], na união externa ou acidental não há um nexo de relevância jurídica entre os dois contratos, já que entre eles existe uma mera ligação material[[14]]; e na união alternativa não há um coexistência dos dois contratos no que respeita à produção dos respectivos efeitos[[15]].

Apenas na união interna ou com dependência se pode falar de coligação contratual[[16]] em sentido técnico: finalidade económica comum e subordinação entre os contratos coligados. E a subordinação entre os contratos significa (e implica) que as vicissitudes de um negócio se repercutem no outro. Sendo certo (e nisso se distingue do contrato misto) que nos casos de união interna existe sempre uma autonomia formal entre os contratos (e que mantêm a sua individualidade).

A coligação contratual pode ser bilateral (relação de interdependência, em que as alterações de qualquer dos contratos se reflectem no outro) ou unilateral (um dos contratos tem predomínio sobre o outro e só as vicissitudes de um se repercutem no segundo).

Também este autor apresenta como modalidades da coligação contratual a genética (um dos contratos produz efeitos na fase formativa do outro) ou funcional (os contratos estão ligados na formação e no desenvolvimento das respectivas relações); e, por último, a voluntária (depende unicamente da vontade dos contraentes) ou a necessária (relação natural entre os contratos, que pode ser económica ou teleológica).

De notar que depois do seguro avanço doutrinal e jurisprudencial sobre este tema, o legislador já estabelece uma previsão legal e expressa de coligação de contratos: o contrato de crédito coligado (como sendo aquele em que o contrato de crédito está coligado a um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços específico, nos termos da alínea o), do n.º 1, do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23 de Abril[[17]], relativa a contratos de crédito aos consumidores).

A figura da coligação contratual está, por isso, claramente assumida na nossa ordem jurídica. Cumpre saber, apenas, se no caso concreto a relação contratual entre as partes pode ser configurada como uma coligação contratual (ou união interna).

Para Antunes Varela[[18]], nos casos de coligação de contratos, a dependência entre os contratos é criada pelas cláusulas acessórias ou pela relação de correspectividade ou de motivação que afectam um deles ou ambos os contratos. Mas não são as partes que decidem, dentro ou fora das cláusulas do contrato, sobre a qualificação singular (contrato misto) ou plural (coligação) do acordo que estabeleceram. Na verdade, será, nas palavras daquele mestre, “a natureza do acordo por elas estabelecido, à luz do pensamento sistemático denunciado na classificação e definição dos diferentes contratos típicos, que as dúvidas na matéria hão-de ser solucionadas”.

Ora, seguindo Pedro Pais de Vasconcelos[[19]] podem ser apontados como casos de união de contratos com dependência bilateral, entre outros, as compras e vendas cruzadas com compensação total ou parcial dos preços[[20]].

Foi o que, manifestamente, ocorreu no caso dos autos: autora e ré pretendiam terminar a compropriedade e trocar entre si as metades dos imóveis (pontos 17 e 18 dos factos provados) e, para tanto, trataram de celebrar, na mesma ocasião, quatro contratos cruzados (pontos 20, 21 e 26 a 30 dos factos provados) em que, no fundo, se pretendia a compensação parcial dos preços. De resto (como a autora já tinha alegado na PI), essa será a razão pela qual, formalmente e em cada um dos quatro contratos, se disse que o preço estava pago: pela simples razão de que cada uma das contraentes pretendia compensar (ainda que não totalmente) o valor de cada parte que seria adquirida pelos valores das outras partes que seriam vendidas.

Cada um dos contratos funcionava como a contraprestação dos outros (pois que, na verdade, os valores referidos em cada contrato não foram pagos), o que constitui uma das mais sérias manifestações de dependência recíproca.

Havia, portanto, uma unidade económica e um propósito comum, apesar de se ter optado por uma pluralidade de relações contratuais interligadas, o que permite concluir pela existência de uma coligação contratual.

E, nessa medida, improcede essa parte da argumentação da recorrente (alíneas K), Y) a KK) das suas conclusões).

Sabendo-se, por isso, que com a assinatura dos quatro contratos promessa se visava a prossecução de um resultado económico comum, importa considerar qual a consequência dessa qualificação para a pretensão da autora.

C. A coligação contratual releva, sobretudo, quando não se pode executar um dos contratos e, por via da interdependência, essa circunstância terá de ter consequências nos contratos conexos.

A realidade económica resultante da coligação deverá, sempre, nortear a interpretação.

A situação mais estudada será a da nulidade de um dos contratos ou da cessação de um dos vínculos (por denúncia ou resolução) que, por inviabilizarem o prosseguimento da finalidade pretendida, podem fazer cessar os outros contratos conexos (Romano Martinez[[21]] fala, no caso de cessação de um vínculo, da possibilidade de caducidade por inviabilidade superveniente da execução do contrato coligado)

No caso vertente, no entanto, não ocorreu qualquer extinção ou nulidade de um dos contratos promessa (designadamente das promessas de compra e venda realizadas quanto ao prédio misto – parte urbana e parte rústica – denominado “Local 1”). Não pode, por isso, aplicar-se directamente o regime que decorre do artigo 292.º do Código Civil.

Apesar disso, a promessa da autora de vender à ré a metade indivisa da parcela urbana do prédio misto “Local 1” no valor de 120.000,00€ não pode ser vista, apenas, como a contraprestação da promessa da ré de vender a parcela rústica desse mesmo prédio misto (que tinha o valor de 30.000,00€), mas como a contraprestação de outras promessas de venda que a autora fez na mesma altura (basta ver os valores em causa e, sobretudo, o que a própria autora alega sobre o assunto: ver a alínea U) das suas conclusões).

Por ser assim, não faz sentido exigir-se o prosseguimento dos demais contratos sem que esta promessa que é, também, contraprestação daqueles possa ser executada simultaneamente.

Prescreve o artigo 830.º, n.º 1, do Código Civil que “se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.

Será, no entanto, o contraente fiel que pode pedir a execução específica do contrato promessa perante a mora por parte do outro obrigado (ver, a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2024, processo n.º 2182/21.9T8BCL.G1.S1[[22]]).

Ora, a excepção do não cumprimento do contrato tem o seu âmbito de aplicação claro nas obrigações sinalagmáticas, tendo sempre presente o princípio da boa fé e o apelo à ideia de abuso de direito (artigos 762.º, n.º 2 e 334.º do Código Civil).

Nas palavras certeiras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/02/2024, (processo n.º 13494/15.0T8LSB.L1.S1[[23]]): “a exceptio no quadro da coligação contratual é hoje admitida, sem controvérsia, tratando-se mesmo “de uma das manifestações da coligação negocial mais aceites pela doutrina” (…) e “sendo o fundamento próprio da exceptio a existência de uma relação de sinalagmaticidade entre duas obrigações, e podendo esta sinalagmaticidade existir nos quadros não de um mas vários contratos (“estruturalmente”) diversos, não há naturalmente qualquer base para se negar a possibilidade de recurso à exceptio”.

Importa saber, então, se no caso se mostra preenchida essa possibilidade para afastar a execução específica dos restantes contratos.

D. A excepção de não cumprimento deve ser qualificada como uma excepção dilatória de direito material ou substantivo. É uma excepção material porque se funda em razões de direito substantivo e será dilatória por não excluir, definitivamente, o direito do autor, apenas o paralisando temporariamente.

Trata-se, igualmente, de uma excepção de natureza disponível e, portanto, não é de conhecimento oficioso (neste sentido ver, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/03/2010, processo n.º 97/2002.L1.S1[[24]] e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/11/2018, processo n.º 85159/13.0YIPRT.C1.S1[[25]]).

Os factos pertinentes devem, por isso, ser invocados na contestação.

A excepção do não cumprimento do contrato traduz-se na recusa de execução da prestação por um dos contraentes, em contrato bilateral, quando o outro a reclama, sem, por sua vez, ter ele próprio realizado a respectiva contraprestação (cf. artigo 428.º do Código Civil).

Mas, seguindo o decidido no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/11/2018 (processo n.º 85159/13.0YIPRT.C1.S1), nada impede que se declare essa excepção ainda que a ré não tenha feito a qualificação jurídica certa. É que o Tribunal é livre no que respeita à qualificação jurídica dos factos (cf. artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) e, desde que os pertinentes factos estejam alegados, nada impede que se qualifique a situação como uma excepção de não cumprimento.

Percorrendo a contestação verifica-se que nos artigos 42.º e ss. a ré invoca, ainda que de modo imperfeito, a sua recusa em cumprir enquanto a autora não cumprisse a sua obrigação (tendo a ré invocado que faltaram as autoras à sua obrigação de obtenção dos documentos; invocou, também, que não recebeu qualquer dinheiro no artigo 84.º da sua contestação). Foram, por isso, invocados os factos pertinentes para a excepção de não cumprimento e não está o Tribunal impedido de tomar dela conhecimento.

Ora, tendo resultado provado que a autora não está em condições de cumprir a sua parte da prestação (por não poder emitir a sua declaração de venda para que a parte urbana do prédio misto “Local 1” pudesse passar para a propriedade da ré) e que essa é uma parte importante (como contraprestação, designadamente em termos de valor) para que a ré emita a sua declaração de venda dos demais prédios que prometeu vender, pode a ré colocar-se numa situação de recusa da sua prestação enquanto a autora não estiver em condições de emitir a sua declaração de venda.

De notar que, não estando em causa o simples pagamento do preço (mas, antes, a emissão simultânea de outras declarações negociais interligadas) não tem aplicação do regime do artigo 830.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.

Sendo procedente essa excepção dilatória de direito material, deve improceder a pretensão da autora.

Improcede o recurso e fica, naturalmente, prejudicada a apreciação da impugnação de factos pretendida pela recorrida na ampliação do âmbito do recurso.


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As custas do presente recurso deverão ficar a cargo do recorrente, por ter ficado vencida, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.

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IV. DECISÃO:

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirmar a sentença recorrida.

Condena-se a autora/apelante nas custas do recurso.

Notifique.

Évora, 5 de Junho de 2025
Filipe Aveiro Marques
Filipe César Osório
Ricardo Miranda Peixoto





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[1] Está em branco no original.
[2] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/54940067083ff01f802587a80057e6d2.
[3] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1007b672c0f9ed2980258ad6005cfad7.
[4] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5c62d7680bfd396180258b8500342396.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, Almedina, pág. 506.
[6] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ef77d178154f14b280256e0b004298e7.
[7] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/DC3F921E0C930FD880257F02003A17AE.
[8] Recursos em Processo Civil, 7.ª Ed., Almedina, pág. 149.
[9] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a0ef3edf827b2b5f80257e51003d1a02.
[10] Contratos Atípicos, Colecção Teses, Almedina, 1995, pág. 218.
[11] Entre outros: Vaz Serra (“União de Contratos. Contratos Mistos”, BMJ, n.º 91, pág. 11 e ss.), Galvão Telles (Manual dos Contratos em Geral, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 475 e ss.; Direito das Obrigações, 7.º Edição, Coimbra Editora, pág. 87 e ss.), Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina, pág. 281 e ss.), Almeida Costa (Direito das Obrigações, 5.ª Edição, Almedina, pág. 304 e ss.), Menezes Cordeiro (Direito das Obrigações, Volume I, AAFDL, pág. 429 e ss.), Gravato de Morais (União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo, Colecção Teses, Almedina, pág. 387 e ss.), Pereira Coelho (“Coligação Negocial e Operações Negociais Complexas: Tendências Fundamentais da Doutrina e Necessidade de uma Reconstrução Unitária”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Volume Comemorativo 75 anos, pág. 273 e ss.), Menezes Leitão (Direito das Obrigações”, Vol. I, 15.ª Edição, Almedina, pág. 209) e Romano Martinez (Da Cessação do Contrato, Almedina, pág. 241 e ss.).
[12] A título de exemplo podem consultar-se: o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/07/2007 (processo n.º 22/06.8TBSBG.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc); o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/02/2011 (processo n.º 2022/08.4TBFIG.C1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrc); o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01/04/2014 (processo n.º 1386/12.0TBVNO.C1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrc); o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/10/2019 (processo n.º 9217/15.2T8VNF.G2, acessível em www.dgsi.pt/jtrg); o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/10/2021 (processo n.º 3787/19.3T8FNC.L1-4, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrl); o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/12/2015 (processo n.º 717/05.3TBVNO.C1.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj); o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/09/2020 (processo n.º 2402/19.0YLPRT.P1, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrp); o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/11/2022 (processo n.º 3378/15.8T8VIS-K.C2, acessível em https://www.dgsi.pt/jtrc); o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/02/2024 (processo n.º 13494/15.0T8LSB.L1.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj).
[13] Da Cessação do Contrato, Almedina, pág. 242.
[14] Dando o autor o exemplo de vários contratos de compra e venda celebrados num dado momento por um cliente na mesma loja.
[15] Na união alternativa a celebração de um contrato que afasta a celebração de outro: por exemplo se alguém arrenda uma casa se for colocado interinamente, mas compra-a se a nomeação para a localidade for definitiva.
[16] Como explica Rodrigo Xavier Leonardo (“Os contratos coligados”, Estudos De Direito Civil, Internacional Privado E Comparado. Coletânea Em Homenagem À Professora Véra Jacob De Fradera, Editora Leud, São Paulo, Brasil, estudo acessível em https://www.academia.edu/12625973/Os_contratos_coligados, pág. 7) em Portugal, tal como no direito italiano, a interligação entre contratos estruturalmente diferenciados é tratada com a expressão “contratos coligados”; no direito espanhol privilegia-se a expressão “contratos conexos”; no direito francês “grupos de contratos”; no direito anglo-americano “contratos ligados” (“linked contracts” ou “linked transaction”) ou “networks contratuais”, termo a partir do qual se extrai a denominação “redes contratuais”, comum ao direito argentino.
[17] Além do mais, como decorre do seu considerando 37, esta Directiva comunitária foi aprovada com o objectivo de proteger o consumidor nos seguintes termos: “no caso dos contratos de crédito ligados, existe uma relação de interdependência entre a aquisição de bens ou serviços e o contrato de crédito celebrado para esse efeito. Por conseguinte, se o consumidor exercer o seu direito de retractação relativamente ao contrato de compra e venda, com base no direito comunitário, deverá deixar de estar vinculado pelo contrato de crédito ligado”.
[18] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina, pág. 285 e 286.
[19] Contratos Atípicos, Colecção Teses, Almedina, 1995, pág. 225,
[20] Dando-se esse autor o exemplo da venda de um automóvel com a “retoma” do antigo automóvel do comprador: pode esse contrato ser qualificado como simples permuta, quando haja equivalência de valor sem pagamento de dinheiro; pode ser qualificado como compra e venda do automóvel novo com dação do velho em pagamento parcial do preço (sendo, nesse caso, um contrato misto); ou pode ser entendido como duas compras e vendas, cruzadas, com compensação total ou parcial dos preços (caso em que pode ser visto como uma união de contratos com dependência bilateral).
[21] Da cessação do Contrato, Almedina, pág. 245.
[22] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/31a1662a278c288680258bd4004dca2a.
[23] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/498bb1b92e1b011f80258ad6005c370d e em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/13494-2024-877449275.
[24] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/45e18ef8c868963b802576f1005118b3.
[25] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f8d45a7458f955218025834d004d1630.