Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- na reclamação dirigida à relação de bens em inventário, cabe ao reclamante alegar os factos concretos que sustentam a sua discordância, de forma clara e expressa, não podendo apelar a factos «subentendidos».
- o dolo, na sonegação de bens, depende da alegação e verificação de um elemento intelectual e um elemento volitivo. Faltando a alegação, e demonstração, deste, não pode concluir-se pela existência de dolo.
- a questão colocada em conclusão, no recurso, que não seja precedida da sua discussão nas alegações não pode ser atendida.
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I. Nomeado cabeça de casal, AA apresentou relação de bens na qual indicou como verba 1 «1/3 Saldo da conta bancária depósitos à ordem n.º (...), junto do Banco Santander Totta, S.A., no valor de € 3.581,84».
O interessado BB presentou requerimento no qual:
i. deduziu reclamação de bens, tendo, quanto àquela verba 1:
- impugnado o valor indicado, e
- afirmado que o «bem a partilhar não é 1/3 do saldo que se vier a verificar ser o existente, ou o que deveria existir, mas a totalidade do mesmo».
A reclamação incidiu ainda sobre outras verbas, em termos que nesta sede não montam.
ii. alegou depois que teria ocorrido sonegação de bens pelo cabeça de casal e pela interessada CC quanto aos seguintes bens:
- saldo da conta descrita na verba 1, que pertencia, como aqueles sabiam, inteiramente ao falecido.
- parte do preço da venda de imóvel, parte do preço que pertenceria ao falecido e de que os visados se teriam apropriado em vida do falecido.
iii. afirmou, no final do requerimento, que «não sabe se o inventariado DD era titular de contas bancárias em outras instituições que não o Banco Santander Totta SA».
O cabeça-de-casal respondeu, tendo, na parte ora relevante:
- reconhecido que todo o saldo da conta elencada na verba 1 pertencia ao inventariado, alterando em conformidade a relação de bens.
- recusaram ter ocorrido a ocultação de bens, afirmando que a descrição da verba 1 se deveu a lapso, e que o preço da venda foi partilhado entre os interessados (o inventariado e os herdeiros de EE, com excepção do reclamante que não era herdeiro desta) e o inventariado doou a parte que lhe coube aos netos - admitindo que deveria ter relacionado a doação, o que pretenderia agora fazer.
Obtidos novos documentos, foi proferida a seguinte decisão:
«a) A verba n.º 1 do activo passa a ser relacionada na sua totalidade, mantendo-se o valor constante da relação de bens;
b) Julga-se procedente, por provada, a reclamação, na parte respeitante à falta de relacionação da quota parte pertencente ao de cujus, do produto líquido da venda do identificado bem imóvel e, em consequência, adita-se à relação de bens uma verba do activo com a seguinte formulação:
«Crédito da herança sobre o cabeça de casal, AA, e sobre a interessada, CC, no valor global de 56.206,66€ (cinquenta e seis mil, duzentos e seis euros e sessenta e seis cêntimos).»
c) Julga-se improcedente, por não provado, o incidente de sonegação de bens, dele se absolvendo o cabeça de casal.».
Desta decisão interpôs o interessado BB, formulando as seguintes conclusões:
A. O douto Despacho recorrido não admitiu, devendo fazê-lo, a reclamação relativa à impugnação do saldo bancário relacionado como Verba 1 da Relação de Bens apresentada pelo cabeça de casal;
B. O douto Despacho recorrido não admitiu a discussão da matéria relativa à sonegação de bens alegada pelo Recorrente, devendo fazê-lo, julgando-a liminarmente improcedente;
C. O requerimento de prova do Recorrente foi em local próprio e tempestivamente apresentado;
pelo que, relativamente às conclusões supra, foi incorrectamente interpretado e aplicado o disposto nos arts. 5º nº1, 293º nº1 e 1105º nº2 do CPC.
D. Caso assim não se entenda, o que se admite por cautela de patrocínio, deveria o Recorrente ter sido convidado a aperfeiçoar a peça processual apresentada, por força do disposto no art. 590º nº2 al.b) do CPC.
Não foi apresentada resposta.
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
Assim, atendendo literal e estritamente às conclusões formuladas, estariam colocadas as seguintes questões:
- avaliação da reclamação que visou a verba 1 da relação de bens.
- apreciação da invocada sonegação de bens (por referência àquela verba 1).
- apreciação das diligências de prova requeridas (por referência às questões colocadas em recurso).
- subsidiariamente, omissão do devido convite ao aperfeiçoamento.
III. Não tendo sido fixados de forma autónoma factos provados (e não provados), sem que tal seja discutido ou se mostre indispensável, os factos relevantes reconduzem-se ao teor das peças processuais relevantes (máxime, reclamação, resposta e decisão judicial), obviamente irreproduzíveis nesta sede mas que têm suficiente tradução no relatório elaborado e que aqui serão consideradas.
IV. 1. Está em causa, em primeiro lugar, a verba 1. Tal verba foi descrita como:
- «1/3 Saldo da conta bancária depósitos à ordem n.º (...), junto do Banco Santander Totta, S.A., no valor de € 3.581,84».
Na sua reclamação, o recorrente afirmou, em concreto, que «Impugna-se que a verba nº 1 – saldo bancário – seja no valor de apenas 3.581.84€», aditando que o «bem a partilhar não é 1/3 do saldo que se vier a verificar ser o existente, ou o que deveria existir, mas a totalidade do mesmo».
Face a esta reclamação, a decisão recorrida considerou:
- de um lado, que o reclamante litiga em erro, já que impugna valores quando lhe cabe o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito que alega; e que, como o cabeça-de-casal aceitou relacionar a totalidade do saldo bancário, nada mais cumpria determinar.
- de outro lado, e especificamente quanto ao valor do saldo bancário, considerou que o valor relacionado estava correcto por corresponder ao valor do saldo na data do óbito (data relevante segundo o art. 2031º do CC), dado o extracto bancário que analisou (embora posterior, em 2 dias, à data do óbito [1]).
Neste recurso, o recorrente considera ter alegado que o valor do saldo bancário descrito naquela verba «não é apenas no valor de 3.581.84€». Em particular, considera que aquela sua alegação deveria ser articulada com o que alegou quanto à sonegação de bens, afirmando que «Como parece dever concluir-se do conjunto dos factos por si alegados, o Recorrente não aceita que o saldo bancário possa ser apenas desse valor, pretendendo significar – embora admita não ter utilizada a melhor forma de o fazer - que parte do valor que determinaria o saldo bancário correcto, terá sido subtraído pelo cabeça de casal e pela interessada CC.».
2. O que daqui deriva, em primeiro lugar, é que o recorrente não pretende realmente discutir, no recurso, o valor do saldo bancário da conta identificada na verba 1, na data do óbito, mas antes a circunstância de, dessa conta e antes da data do óbito, os demais interessados dela terem subtraído valores (por isso, aliás, que pretenda que se obtenham informações sobre movimentos bancários desde 01.01.2020).
Ou seja, não discute o decidido quanto à verba 1, que se reporta ao valor deixado pelo de cujus, mas uma realidade distinta, assente na apropriação de bens daquele de cujus, em vida deste, por outros interessados [2]. A diferença entre estas duas realidades foi já esclarecida na decisão recorrida e é intuitiva: uma coisa é o direito hereditário ao saldo bancário (a exercer perante o depositário), direito definido pelo valor existente na data do óbito; outra coisa, é o direito de crédito à devolução das quantias de que terceiros (que não o de cujus) se apropriaram indevidamente. Sendo que, a partir do momento da apropriação, ou da saída dos valores da conta bancária do de cujus, a situação já nada tem a ver com a conta bancária relacionada sob a verba 1 e assim nada tem a ver com esta verba 1. A conta bancária está na origem dos valores apropriados, mas o crédito da herança surge desligado de tal conta, pois não depende dela mas de factos externos à conta (a apropriação), da qual são independentes. Ora, ao dirigir o recurso a esta realidade, fica por impugnar aqueloutra situação (valor do saldo bancário na data do óbito), cuja avaliação transitou assim em julgado.
3. Em segundo lugar, daqui deriva, como referido, que o recurso visa uma realidade diversa da verba 1 (verba esta que se mostra restrita ao direito de crédito ao saldo bancário existente na data do óbito), realidade aquela assente numa apropriação indevida de fundos depositados. Neste ponto, o que se verifica é que a alegação do recorrente, no seu requerimento de reclamação, se mostra omissa a esse respeito: em momento algum se alega na reclamação a matéria relativa a tais apropriações. O que, levando em conta o princípio do dispositivo (nas vertentes da alegação e do pedido), levaria a considerar excluída tal matéria do âmbito da reclamação.
O recorrente acaba por reconhecer esta omissão, afirmando que a reclamação deveria ser articulada com os termos da por si também invocada sonegação de bens. Ocorre que, e abstraindo da questão atinente à possibilidade de o procedimento de sonegação poder substituir o procedimento de reclamação (quanto à alegação dos factos pertinentes), a sonegação invocada pelo recorrente, tal como a configurou, tem alcance bem mais limitado do que aquele que agora sustenta. Com efeito, aquela sonegação vem, pelo recorrente, apontada exclusivamente a dois bens. De uma banda, sustenta que o saldo bancário (a verba 1) pertencia em propriedade exclusiva ao de cujus (art. 24 a 27) e, de outra banda, afirma que o valor que pertencia ao de cujus na venda de certo imóvel (parte do preço de 88.000 euros) faria parte do património a partilhar e, não constando da conta bancária, terá ocorrido sonegação por parte dos demais interessados (art. 28 a 36). Estas questões foram especificamente resolvidas: a primeira por força da atitude do cabeça-de-casal, que admitiu a propriedade plena do de cujus; a segunda através de avaliação expressa da decisão recorrida, que nesta parte também não foi impugnada. Em momento algum se referiu o recorrente, na sonegação, a outros valores relativos à conta indicada na verba 1.
Naturalmente, a mera afirmação de que «O Requerente não sabe se o inventariado DD era titular de contas bancárias em outras instituições que não o Banco Santander Totta SA» é irrelevante. Pois é incapaz de, por si, suportar qualquer alegação de sonegação de bens (ou, igualmente, qualquer reclamação relevante). Exprime, com efeito, uma mera declaração de ignorância, e já não a alegação de que existiam contas por relacionar ou outros valores apropriados. Perante ela, o tribunal sabe o que o recorrente afirma ignorar, mas apenas isso, dela se não retirando qualquer outra asserção ou pretensão (e muito menos a afirmação da existência, ainda que em potência, de outras contas bancárias).
Assim, nada mais sobra que devesse ser avaliado, pois em momento algum o recorrente se refere a outros valores indevidamente apropriados pelos demais interessados. Inexiste, desta forma, alegação, no âmbito da sonegação, que possa funcionar como fundamento para a reclamação de outros bens (mormente crédito da herança sobre os demais interessados). Naturalmente, sem objecto instrutório (alegação), são as diligências probatórias requeridas desnecessárias e processualmente inúteis.
Não se vê, pois, onde fundar a conclusão do recorrente, de que a decisão recorrida não admitiu a reclamação relativa à verba 1.
4. A partir da segunda conclusão formulada, o recorrente discute a decisão proferida sobre a sonegação de bens. Atendendo à alegação, verifica-se que a impugnação do recorrente assenta nos seguintes argumentos:
i. que alegou, quanto à verba 1, que os interessados em causa «sabem, e não podem deixar de saber» que o saldo da conta 1 é propriedade exclusiva do falecido.
Como decorre directamente do art. 2096º n.º1 do CC ao reportar-se à ocultação dolosa, o dolo do agente constitui elemento de facto indispensável da sonegação. Deste modo, a mera omissão (que pode estar subjacente à falta de relacionação do bem), despida de qualquer elemento adicional, constitui situação inconsequente do ponto de vista da sonegação, não bastando para a revelar (para preencher a hipótese legal) nem, por isso, para desencadear as sanções legalmente cominadas.
O dolo, na fórmula de N. Pinto Oliveira, «caracteriza-se pela circunstância do agente (...) causar um resultado juridicamente desvalioso que foi querido» [3], envolvendo o conhecimento da situação pelo agente e uma certa orientação da vontade desse agente (em função daquele conhecimento). O dolo é composto, portanto, por dois elementos, que surgem em qualquer uma das modalidades do dolo [4]: um elemento intelectual (conhecimento) e um elemento volitivo (direcção da vontade) [5]. Assim, e partindo do dolo directo, este pressupõe que o agente conheça certa realidade específica (que represente a sua forma de actuação) e que actue com uma certa intenção, elementos estes traduzidos, no caso, primeiro no conhecimento da natureza hereditária do bem e no conhecimento da específica conduta que adoptam (elemento intelectual), e depois na intenção de excluir aquele bem da herança, dele se apropriando (elemento volitivo). Ora, a alegação do recorrente apenas contempla aquele elemento intelectual, referindo aquilo que os interessados em causa saberiam. Já nada se diz sobre o elemento volitivo, a vontade que teria presidido à conduta imputada, sendo omitida qualquer referência a uma específica «intenção de quem oculta [os bens] os fazer exclusivamente seus» [6] ou a uma «intenção ou consciência de enganar os co-herdeiros» [7]. Ora, estes elementos subjectivos, relativos à vida psíquica do agente, têm uma irredutível natureza factual, integrando-se na «matéria de facto». Pois «dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (...) mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica sensorial ou emocional do indivíduo» [8], pelo que também estes pressupõem a sua específica alegação. E como o referido aspecto do dolo se traduziria num elemento essencial do substrato subjectivo da sonegação, a saber, a vontade de apropriação, defraudando outros herdeiros, sem ele, não é possível afirmar a existência de dolo e, dessa forma, a existência de sonegação [9]. Aliás, ainda que se pudesse aceitar que uma intenção de apropriação pressupõe o conhecimento do carácter alheio do bem, já o conhecimento desse carácter não implica necessariamente intenção de apropriação.
Três notas se aditam ainda.
A sonegação depende, na formulação legal, de uma conduta de ocultação, conduta esta para cuja caracterização se pode apelar ao regime do art. 253º do CC [10]. Neste sentido, a ocultação dolosa corresponde à utilização de artifícios, manipulações ou, em geral, comportamentos aptos a ocultar, a manter o bem afastado da partilha. Ou seja, a exigência de uma ocultação leva implícita a exigência de um certo tipo de conduta, ajustada e adequada a encobrir ou esconder os bens. No caso e segundo o recorrente, tal derivaria da omissão de 2/3 do saldo bancário na verba 1. Ora, as circunstâncias do caso, com a descrição do saldo da conta bancária, embora limitado a um terço, mal se ajustam a uma verdadeira ocultação (e muito menos a uma ideia de apropriação), por deixarem claramente exposto o que a sonegação supõe estar ocultado: a forma de descrição do bem já contém em si a revelação do bem supostamente escondido (subtraído) e assim a possibilidade da sua reclamação, inexistindo uma ocultação ou manipulação factual eficaz. Acresce que, perante a reclamação, o cabeça-de-casal prontamente reconheceu o erro (sendo que até se afirma que a negação, perante a reclamação, é que constituirá, se não a consumação da sonegação, pelo menos a revelação da motivação fraudulenta). Neste quadro, nem haveria um verdadeiro comportamento ocultador, porque a situação fica exposta a partir da própria alegação, sem artifícios ou omissões concludentes. Por esta via seria também inconsequente a alegação do recorrente.
De outro lado, os factos relativos à verba 1 respeitam apenas ao cabeça-de-casal (autor da relação de bens, na qual se concretizava a imputada ocultação de bens), nunca se alegando que actuou concertadamente com a interessada CC (o recorrente atribui a identificação do bem na relação de bens a ambos os visados mas, sem mais nada se alegar, pela relação de bens apenas o cabeça de casal responde). Pelo que fica por perceber o quadro factual de responsabilização desta interessada nesta parte.
Por fim, a alegação do recorrente e por ele usada nesta sede como argumento apenas valeria para a propriedade do saldo da verba 1 (que não seria apenas de 1/3 do saldo) e já não para os movimentos relacionados com o preço da venda, aspecto em relação ao qual inexiste alegação idêntica à agora invocada (inexiste a invocação de qualquer elemento subjectivo cabível na noção de dolo).
ii. que da epígrafe “da sonegação de bens” e da demais matéria alegada «não se poderá tirar outra conclusão, que não seja a de que o Recorrente aí acusa o cabeça de casal de ter intencionalmente omitido bens na Relação apresentada e que ele, bem como a interessada CC, subtraíram à conta bancária em causa verbas a que não tinham direito». Trata-se de asserção insustentável no âmbito do processo civil, pois cabe à parte alegar os factos essenciais para sustentar a sua pretensão (art. 5º n.º1 do CPC), alegação esta que tem que ser expressa: a única interpretação compatível com o princípio do dispositivo, com o ónus de alegação e com a ressalva do contraditório implica que facto alegado se identifique com facto afirmado de forma clara e acessível. Em particular, não pode a parte deixar os factos implícitos ou subentendidos quer porque tal não equivale à alegação de factos (mas antes à omissão da sua alegação) quer porque não cabe às demais partes e ao tribunal avaliar que factos estariam subentendidos (escondidos) na alegação. Tal mostra-se incompatível com o regime do citado art. 5º n.º1 do CPC, porque aquilo que fica ocultado, porque apenas subentendido, não é alegado, mas também com o regime do art. 574º n.º1 do CPC, porque sobre aquilo que está implícito não tem, nem em rigor pode, a parte contrária tomar posição, ou também com o regime do art. 607º n.º3 do CPC, pois não pode o tribunal avaliar, como provado ou não, aquilo que está apenas subentendido. Assim, o que persiste é apenas a falta de alegação de factos essenciais - sendo que não estariam em causa factos complementares ou concretizadores mas verdadeiros factos nucleares essenciais.
iii. que deve levar-se em conta se se trata de movimentos que o falecido intencionalmente realizou ou se os interessados em causa efectuaram movimentos a débito de forma abusiva; donde a necessidade de acesso ao extracto bancário da conta. Trata-se de alegação irrelevante do ponto de vista da questão (falta de alegação de factos subjectivos essenciais) e por isso desprovida de valor persuasivo e já que os movimentos efectuados (ainda que abusivos) não substituem aquela alegação. Aliás, a própria pretensão de acesso aos extractos extravasa o âmbito da questão.
iv. que não se vislumbra como poderia o ora Recorrente ter discriminado a existência de contas bancárias quando o que se pretende apurar é a existência de tais contas. Também aqui se trata de asserção absolutamente irrelevante para a questão impugnada, a cuja resolução nada acrescenta: a invocação de outras contas também extravasa o âmbito da questão impugnada (sonegação, relacionada apenas com os dois bens já identificados), nada tendo a ver com a sua decisão.
5. Já no âmbito das conclusões, considera o recorrente que, subsidiariamente (ou seja, improcedendo pretensões anteriores), deveria ter sido efectuado convite ao aperfeiçoamento da peça processual apresentada.
O recurso é, como corolário do princípio do dispositivo, necessariamente fundamentado, estando esta fundamentação subordinada a dois momentos: a alegação, onde se desenvolvem as razões que sustentam o recurso, e as conclusões, nas quais se sintetizam aquelas razões, assim se expondo os fundamentos invocados de forma sucinta e resumida (art. 637º n.º2 e 639º n.º1 do CPC). A função das conclusões analisa-se na individualização precisa do objecto do recurso, ao delimitar e definir os concretos fundamentos invocados (delimitando assim o poder de cognição do tribunal e intervindo ainda na salvaguarda do exercício cabal do contraditório). As alegações obedecem a um princípio mais amplo, contendo o desenvolvimento e discussão das razões que servem de fundamento ao recurso e que são, depois, sintetizadas nas conclusões. Existe, assim, entre as alegações e as conclusões uma relação «bi-unívoca» ou de interdependência e complementaridade, já que as alegações sustentam as conclusões, e as conclusões delimitam o alcance das alegações, fixando o seu sentido. Deste modo, os fundamentos invocados para sustentar o recurso têm que constar quer das alegações, onde são discutidos, quer das conclusões, onde são sumariamente evidenciados como questão a apreciar: nas alegações, o recorrente explana as razões, motivos e interpretações; nas conclusões, define o sentido preciso do argumento ou fundamento, assim o integrando no objecto do recurso. Sem a conclusão, o fundamento não integra o objecto do recurso; sem a alegação, a conclusão atraiçoa a sua finalidade, pois, sem suporte argumentativo, não constitui síntese de coisa alguma, sendo assim gratuita
No caso, o recorrente apenas suscitou a referida questão (convite ao aperfeiçoamento) nas conclusões, não lhe dirigindo qualquer avaliação nas alegações. O que inviabiliza o seu conhecimento. Pois, e como referido, servindo a alegação para expor as razões da pretensão recursória e as conclusões para as sintetizar, qualquer questão colocada tem que constar quer das alegações, quer das conclusões. Não constando das alegações, fica inviabilizado o seu conhecimento quer porque falta a sua arguição e discussão perante o tribunal (falta a sua inserção no recurso enquanto problema a debater), quer porque as conclusões constituem mera síntese dos fundamentos do recurso, que assim pressupõem, não podendo servir para os alargar ou para colocar questões novas (art. 639º n.º1 do CPC). Por essa razão que as conclusões sirvam legalmente para restringir tacitamente o objecto do recurso, mas não para o alargar (art. 635º n.º4 do CPC), sem ser cabível qualquer aperfeiçoamento por legalmente circunscrito a outras situações11. Asserção esta que se torna mais relevante no caso porquanto a decisão recorrida apreciou especificamente a questão do eventual convite ao aperfeiçoamento, afastando-o por considerar não ser viável quanto à omissão de factos essenciais (como seria o caso dos factos omitidos), avaliação esta que o recorrente nunca discutiu, limitando-se a formular a aludida conclusão. Assim, não pode ser esta questão conhecida nesta sede.
6. No âmbito da alegação, o recorrente invocou também a circunstância de ter levantado a questão quanto ao estado de saúde do falecido, a qual não foi apreciada pelo tribunal a quo (o que não é exacto: a decisão recorrida considerou essa matéria prejudicada pela solução dada à questão do preço da venda). Sucede que tal questão é omitida nas conclusões, que a ela se não referem, o que inviabiliza o seu conhecimento. Com efeito, e como acabado de referir, as conclusões delimitam o âmbito do recurso e assim o objecto da apreciação pelo tribunal de recurso: trata-se de efeito da restrição (expressa ou tácita) do objecto de cognição que as conclusões efectuam (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC). Assim, não incluindo o recorrente nas conclusões questões discutidas nas alegações, fica tacitamente restringido o objecto do recurso, que já não contempla tais questões. Por isso, e dada a completa omissão das conclusões a tal questão, fica inviabilizado o seu conhecimento12.
Embora, a título de esclarecimento, se adiante que se trataria de uma falsa questão. Com efeito, a alegação do recorrente relativa ao estado de saúde do de cujus surge apenas no quadro da invocada sonegação respeitante a (parte) do preço de venda de certo imóvel, sonegação esta não acolhida em decisão que nesta sede se confirmou. Pelo que tal discussão estaria prejudicada. De outro lado, e decisivamente, trata-se de questão sem autonomia pois o recorrente não atribui efeitos próprios ao estado de saúde do de cujus (v.g. fundando nele qualquer vício negocial), nem sequer afirma que esse estado o impedia de controlar movimentos bancários ou que os demais interessados dele se aproveitaram. A alegação é gratuita e inconsequente, sendo, quando muito, facto instrumental (das circunstâncias da alegada apropriação). Nunca constituiria um foco autónomo de discussão. Nem, na verdade, o recorrente esclarece que questão final (que pretensão) ficou assim por apreciar.
7. Por fim, o recorrente dirige o recurso ao seu requerimento de prova [13]. Como deriva da conclusão formulada, a pretensão probatória dirige-se às «conclusões supra», ou seja, às questões atinentes à verba 1 e à sonegação, e pressupondo o acolhimento das pretensões do recorrente dirigidas a tais questões. Decaindo o recorrente, e ficando tais questões decididas, fica prejudicada a sua pretensão probatória (por despida de objecto).
8. Decaindo, responde o recorrente pelas custas do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC) - avaliação e decisão que se entende devida, embora, inexistindo encargos e estando paga a taxa de justiça, ela se restrinja à afirmação da responsabilidade tributária
V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.
Notifique-se.
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
António Marques da Silva - Relator
Maria João Sousa e Faro - Adjunta
Filipe César Osório - Adjunto
________________________________________
1. Esta referência não é exacta: o documento, reportando-se a período iniciado em 30 de Julho (data do óbito) indica o saldo existente nessa data (o qual corresponde ao valor relacionado); o que indica em 1 de Agosto (dois dias depois) é o primeiro movimento ocorrido após 30 de Julho.↩︎
2. O cabeça-de-casal, AA, e a interessada CC↩︎
3. Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora 2011, pág. 429.↩︎
4. Dolo directo, necessário ou eventual, e modalidades estas que P. de Lima e A. Varela admitem valer na sonegação (ob. e loc. cit.).↩︎
5. V, por todos, N. Pinto Oliveira, cit., pág. 431 e ss., A. Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, Almedina 2000, pág. 569 e ss. ou A. Barroso Rodrigues, O Concurso de Responsabilidade Civil, Almedina 2024, pág. 189/192.↩︎
6. Na formulação de I. Menéres Pimental, CC Anotado Livro V Direito das Sucessões, Almedina 2022, pág. 123.↩︎
7. Na fórmula, equivalente, de Cristina Araújo Dias, Lições de Direito das Sucessões, Almedina 2024, pág. 189 nota 306.↩︎
8. A. Varela, J. M. Bezerra e S. e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora 1985, pág. 407. V. ainda Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Coimbra 2003, pág. 232, ou A. Vicente Ruço, Processo civil - matéria de facto (...), Estudos em Comemoração dos 100 anos do Trib. da Relação de Coimbra, Almedina 2018, pág. 11.↩︎
9. Atendendo ao dolo directo, único concebível nesta sede e face aos contornos da situação em causa. Sem embargo, o exposto seria válido, e de forma mais acentuada, para as outras modalidades do dolo.↩︎
10. Apelando a esta norma, para caracterizar a conduta dolosa, P. de Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. VI, Coimbra Editora 1998, pág. 157 e R. Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra Editora 2002, pág. 59 nota 159.↩︎
11. Assim, A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 135, e R. Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL 2020, pág. 295 (se as conclusões versam matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes, diz-se aí, aderindo a Ac. do TRC, proc. 1840/16 e citando-se ainda Ac. do TRE proc. 612/08). V. ainda A. dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1981, pág. 357. Sobre a constitucionalidade da solução, v. Ac. 462/2016, do TC (disponível online).↩︎
12. V. A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 135.↩︎
13. Em princípio, a impugnação de decisão probatória deveria ser suscitada em recurso autónomo. No entanto, no caso ela é concomitante e inseparável da avaliação do mérito, justificando-se a impugnação conjunta. Aliás, a pretensão probatória só surge para o caso de procedência das demais questões recursivas.↩︎