COMPETÊNCIA MATERIAL
ESTACIONAMENTO
CONCESSIONÁRIO
Sumário

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
Os tribunais comuns são materialmente incompetentes para conhecer acção proposta por concessionária da exploração e manutenção de zonas de estacionamento em espaços públicos e que visa obter o pagamento da contrapartida devida pela utilização dos espaços de estacionamento pelos utentes.

Texto Integral

Proc. 131863/23.4YIPRT

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I. Data Rede, SA, intentou procedimento de injunção contra AA, reclamando o pagamento de 1.374,46 euros, correspondente ao valor (acrescido de juros) devido pelo estacionamento de viatura do requerido em locais onde a requerente presta serviços de parqueamento oneroso, na sequência de contrato de concessão celebrado com o Município de Setúbal.


Tendo o requerido deduzido oposição (na qual invocou a prescrição dos créditos e impugnou a alegação da requerente), foi suscitada oficiosamente pelo tribunal a possibilidade de se avaliar a competência material do tribunal, tendo a requerente sustentado a atribuição dessa competência ao tribunal judicial comum.


Foi depois proferida decisão que, por entender, no essencial, que a legitimidade da requerente «na cobrança de um determinado montante pela utilização de tais parques de estacionamento tem subjacente um contrato administrativo de interesse público, pois como o próprio contrato menciona, são espaços públicos cuja gestão está a cargo do Município de Setúbal», considerou que a competência para apreciar as questões emergentes dessa relação cabia aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do art. 4º n.º1 al. e) do ETAF. Em consequência, foi formulada a seguinte decisão: «julgo verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Juízo Local Cível de Setúbal, e em consequência absolvo o Réu AA da instância.».


Desta decisão interpôs a requerente recurso, formulando as seguintes conclusões:


a) Vem o presente recurso apresentado contra a Douta Sentença A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Setúbal, para cobrança dos créditos da Autora.


b) No âmbito da sua atividade, a A. celebrou contrato com a Câmara Municipal de Setúbal, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.


c) No seguimento deste contrato, a Data Rede adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Setúbal, dispendiosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.


d) Enquanto utilizador do veículo automóvel ..-LZ-.., o R, estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a A. explora comercialmente na cidade de Setúbal, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 1251,00 que o R. recusa pagar.


e) Para cobrança deste valor, a A. viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.


f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.


g) As ações intentadas pela A. contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.


h) A Recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, agindo como mera entidade privada, pelo que, contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de natureza privada, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade por incumprimento do contrato.


i) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.


j) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.


k) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.


l) Proposta tácita temporária da A., que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela A., concorda com os termos de utilização propostos pela A., amplamente publicitados no local.


m) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.


n) Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente.


o) A DATA REDE SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.


p) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.


q) Os montantes cobrados pela DATA REDE SA., também não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.


r) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.


s) A Data Rede, ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou nem quis atuar, em substituição da autarquia, munida de poderes públicos concessionados.


t) Entender que os tribunais competentes são os administrativos e de entre estes os fiscais, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos.


u) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes.


v) Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a Data Rede SA., não pode, contudo, este primeiro contrato, ser equiparado aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a Data Rede e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, não só pela forma como os seus intervenientes atuam, como também pelas normas que regulam as relações jurídicas em causa.


w) Refira-se finalmente que, ainda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de natureza pública, o que apenas se concebe para mero efeito de raciocínio, as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos na redação introduzida pela L 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao nº 4 do Art.4º do E.T.A.F).


x) Nos termos dessa alínea, “estão… excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.


y) Da exposição de motivos da Proposta de Lei nº 167/XIII-4ª, que esteve na origem da L 114/2019, consta: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”


z) O serviço de estacionamento não é um dos serviços elencados no Art.1º nº 2 da L 23/96, mas, tal como ocorre nos serviços públicos essenciais, a relação entre o prestador do serviço e o utente é uma relação de direito privado. Veja-se por tudo, o Douto Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa de 18.12.2024, proferido no âmbito do Processo 16685/24.0YIPRT da 8ª Secção.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, importa avaliar a quem cabe a competência material para apreciar judicialmente o litígio.


III. Os elementos factuais relevantes constam, no essencial, do relatório elaborado. Os termos do contrato de concessão não se prestam a uma reprodução integral nesta sede, valendo os seus termos, tal como constam do documento junto ao processo.


IV. 1. Está em causa a atribuição da competência jurisdicional, aqui considerada enquanto «o poder genericamente atribuído a certa categoria de tribunais em face das restantes categorias de tribunais», ou seja, enquanto «medida de jurisdição atribuída a cada categoria de tribunal e que o legitima a conhecer de determinado litígio», questão esta crucial pois a decisão sem competência (material) determina a ineficácia da decisão.


Sendo a competência qualificada como pressuposto processual, é dominantemente entendido que aquela se afere essencialmente pelos elementos objectivos da acção (o seu objecto, definido a partir do pedido e da causa de pedir), o que se compreende pois o que vai ser julgado é aquela pretensão, com os fundamentos em que se apoia, e assim é para estes elementos que o tribunal tem que ter competência decisória.


Sendo que, atendendo à competência regra ou residual dos tribunais judiciais (art. 211º n.º1 da CRP, 64º do CPC e 40º n.º1 da LOSJ), a atribuição da competência material aos tribunais administrativos e fiscais dependerá da identificação da regra legal que, perante as referidas circunstâncias da acção, sustente tal atribuição.


2. A questão colocada tem sido jurisprudencialmente decidida, de forma consistente e unívoca, no sentido da atribuição da competência material à jurisdição administrativa e fiscal, com base em razões que se mostram persuasivas, a partir essencialmente das seguintes considerações [1]:


- partindo do art. 212º n.º3 da CRP e do art. 1º do ETAF, afirma-se que o conceito de «relação jurídica administrativa» seria o critério determinante da repartição de jurisdição (e assim da definição do âmbito da justiça administrativa). O conceito é, a um tempo, reduzido mas também ampliado pelo elenco constante do art. 4º n.º1 do ETAF. De entre as hipóteses nesta norma consideradas, apela-se essencialmente às al. e) e o) do n.º1 daquele artigo, na medida em que atribuem à jurisdição administrativa e fiscal a competência para apreciar litígios que se reportem a questões relativas à execução de contratos administrativos por pessoas colectivas de direito público (al. e) ou questões relativas a relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas demais alíneas (al. o).


- em especial quanto à segunda das referidas hipóteses legais, e na falta de definição legal do que seja a relação jurídica administrativa, esta pode entender-se num sentido estrito tradicional de relação jurídica de direito administrativo, por oposição às relações de direito privado em que intervém a Administração, permitindo considerar relações jurídicas públicas aquelas «em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» [2] ou até, mais amplamente, as relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.


- a regulação e gestão do estacionamento em locais e vias públicas constitui actividade de interesse público. Este interesse público da matéria é notório e evidente, dispensando desenvolvimentos adicionais, dada a sua conexão com a forma como usamos ou podemos usar espaços acessíveis a todos, integrados no domínio público, estando em causa utilização que tem uma aptidão impeditiva ou condicionadora do uso do mesmo espaço pelos demais. A consagração e recepção legal deste interesse público encontra-se no regime relativo às condições de utilização dos parques e zonas de estacionamento, aprovado pelo DL 81/2006, de 20.04, do qual deriva, em geral, um conjunto de regras impositivas atinentes ao funcionamento dos parques e zonas de estacionamento e, em particular, a atribuição a regulamento municipal, ou aos órgãos municipais, do encargo de regular as condições de utilização daqueles parques e zonas de estacionamento e as taxas aplicáveis (art. 2º n.º2 e 3 daquele regime) - e que a regulamentação do estacionamento deve constar de regulamento decorre também do art. 70º n.º2 do CEstrada. Nesta linha, atribui-se à câmara municipal competência para intervir na matéria (art. 33º n.º1 al. rr) da Lei 75/2013, de 12.09). A natureza pública da intervenção camarária reflecte-se ainda na qualificação legal da contrapartida exigida ao utente como taxa (municipal), estabelecendo uma conexão entre a utilidade prestada (gestão de áreas de estacionamento) e o valor (taxa) cobrado (art. 6º n.º1 al. d) da lei 53-E/2006, de 29.12). A dimensão pública desta actuação deriva ainda do facto de este diploma também impor que a taxa obedeça a um critério proporcional e funcional, pois, sendo fixada de acordo com o princípio da proporcionalidade, não deve ultrapassar o custo da actividade pública local ou o benefício auferido pelo particular, e se pode ser fixada com base em critérios de desincentivo à prática de certos actos ou operações, ainda aí continua vinculada àquela proporcionalidade (art. 4º n.º1 e 2 daquela Lei 53-E/2006). Colocando tal intervenção, pois, fora do domínio económico comum, domínio este subordinado às regras de mercado e visando uma projecção lucrativa. Neste quadro de correspectividade entre a disponibilização de espaço público para uso particular e o pagamento de uma contrapartida, a qualificação legal da contrapartida paga (como taxa) até se tende a mostrar ajustada ao conceito normativo da taxa [3], no sentido de que a finalidade tributária (angariação de receita), surge relacionada «com a compensação de um custo ou valor das prestações de que o sujeito passivo é (...) beneficiário», estabelecendo uma relação de bilateralidade entre dada prestação administrativa e a compensação dessa prestação (v. o referido Ac. 291/2024 do TC, e art. 4º n.º2 da LGT). Este conjunto normativo revela que a câmara municipal (ente público) está dotada de poderes de autoridade, revelados desde logo no poder regulador da utilização dos espaços de estacionamento através de regras impositivas, vertidas em regulamento (regulamento que constitui acto de gestão pública, porque emitido ao abrigo de normas de direito público, e com vocação reguladora geral e abstracta, contendo por isso normas jurídicas [4]). E poderes de autoridade vinculados à prossecução do interesse público ou comum. No caso, aquele poder foi actuado através da aprovação do Regulamento Municipal de Estacionamento Público Tarifado e de Duração Limitada no Concelho de Setúbal (publicado no DR II de 26.08.2016).


- de forma sucinta e genérica, este regulamento define zonas de estacionamento diferenciadas, períodos de permanência máxima, o regime de validade do estacionamento, e, em particular, procede à previsão do pagamento de taxas pelo uso do espaço público para estacionamento, taxas a que se assinalam finalidades públicas (racionalizar e organizar o estacionamento, reprimir estacionando abusivo e contribuir para melhoria da qualidade de vida dos residentes), e taxas cujos valores são também por aquele regulamento fixados.


- daqui decorre que a relação a estabelecer entre o município e o utente teria que ser caracterizada como uma relação administrativa, dada a qualidade de um dos sujeitos, e o exercício de poderes regulativos públicos (que justificam a posição de domínio na fixação das condições do estacionamento e na imposição de uma contrapartida), em ordem à prossecução de interesses comuns à comunidade. Mais ainda, é também evidente que a relação seria disciplinada por normas (regulamentares) de direito administrativo. Relevando, assim, directamente para os termos da referida al. o) do nº 1 do art. 4º do ETAF (na falta de outra alínea aplicável).


- os termos desta avaliação não se alteram com a intervenção (ou melhor, interposição) da recorrente. Com efeito, e na linha da desintervenção estatal do Estado regulador, alargou-se «a possibilidade de intervenção dos particulares no sector das actividades públicas nos casos em que a lei confere à Administração o poder de delegar ou conceder o respectivo exercício».


- é nesse âmbito que surge a actuação da recorrente, desempenhando, por concessão, poder administrador e regulador próprio da Administração (local). O que significa que a sua actividade mantém a mesma natureza da intervenção da Administração, uma vez que por aquela concessão «o titular do serviço público cede uma parcela dos direitos e poderes inerentes à titularidade do serviço público». Ora, atendendo à exposta caracterização da posição da entidade concedente (exercendo poderes públicos de autoridade, ainda que por via do regulamento aprovado, com vista à realização de finalidades públicas), está-se então «perante uma entidade particular no exercício de um poder público e actuando com vista à realização de um interesse público».


- asserção que se confirma pelo facto de as condições do estacionamento, incluindo o «preço» (a taxa), a que se submetem os particulares derivarem do referido regulamento administrativo, pelo que a recorrente, quando actua, fá-lo exercendo poderes derivados do regulamento e na aplicação daquele regulamento, e a partir dos poderes púbicos que estão na origem do regulamento. Não tem poderes para fixar regras ou preços, mas apenas para aplicar (numa actividade de gestão e fiscalização, como deriva do contrato de concessão) normas jurídicas pré-determinadas, que correspondem a um regime de direito público e visam a satisfação de um interesse geral. O que exclui, aliás, a tese da sua actuação como qualquer particular, pois nem ela nem os visados se encontram num plano privatístico e tendencialmente paritário: ao invés, os utentes estão sujeitos às regras regulamentares inflexíveis, não negociais (o que cria uma relação de supra-infra ordenação entre a entidade reguladora e o utente), regra que a recorrida apenas aplica ou cuja aplicação observa. Sendo o regulamento que funda a juridicidade da relação estabelecida, é por força da sua vinculatividade, e não com base numa relação negocial, que é exigível o pagamento das taxas. Por isso, aliás, que o contrato de concessão seja omisso quanto à atribuição à recorrente de poderes conformadores das regras de estacionamento. E por isso também que a invocação das relações contratuais de facto (figura, aliás, dominantemente rejeitada) seja desajustada pois, mais que discutir uma relação negocial (assente na materialidade subjacente), importa atender a que está em causa uma relação normativamente enquadrada por via do regulamento administrativo aprovado (que define as condições de utilização do serviço público de estacionamento) [5] e, por essa via, uma relação administrativa: só por via do regulamento pode a recorrente cobrar as taxas (sem liberdade para recusar o estacionamento, ou para alterar valores, etc.). E asserção que se manifesta também, simetricamente, pelo facto de a relação com os utentes não estar sujeita às regras do mercado, mormente na fixação de preços ou num escopo lucrativo, como deriva do exposto quanto à forma de fixação e finalidade das taxas cobradas. Donde ser justificado afirmar que «os actos praticados pela recorrente não revestem a natureza de actos privados susceptíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas, ao invés, revestem-se de natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público» [6].


- tudo justificando que, para efeitos de inclusão no contencioso administrativo, a actuação da recorrente se integre nas relações jurídicas administrativas externas, pois nestas, compreendendo as relações entre a Administração e os particulares, também se incluem as relações entre entes que actuem em substituição de órgãos integrados na administração (mormente no contexto do exercício por particulares de poderes públicos, por exemplo, os tradicionais concessionários) e os particulares [7]. O que convoca a aplicação do regime do referido art. 4º n.º1 al. o) do ETAF.


- aliás, por esta via também se pode sustentar que estariam em causa contratos administrativos, para os termos da al. e) do n.º1 do ar. 4º do ETAF, por via da sua sujeição a normas (ainda que regulamentares) de direito público que regulam aspectos, e aspectos determinantes, do seu regime (na linha da posição eu defende a integração naquela alínea de «todo o contencioso dos contratos», superando os seus exactos termos literais).


- a invocação do art. 4º n.º4 al. e) do ETAF é descabida pois esta norma apenas se reporta aos serviços públicos essenciais, e, como a própria recorrente admite, aí se não insere o estacionamento (art. 1º n.º1 e 2 da Lei 23/96, de 26.07) - aliás, sustenta-se que o elenco deste art. 1º n.º2 tem natureza taxativa, sendo insusceptível de ampliação interpretativa.


- o facto de a nota de cobrança estar «desprovida de força executiva, não podendo (...) dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal», é irrelevante: apenas coloca a recorrente na posição do normal credor, obrigado a obter um título executivo judicial (na ordem jurisdicional competente).


- o facto de a recorrente não dispor de poderes sancionatórios não serve para descaracterizar a sua posição, tal como exposta, não sendo aqueles poderes nota imprescindível da relação jurídica administrativa para os efeitos em causa.


4. Assim, existindo regra atributiva da competência material aos tribunais administrativos e fiscais, fica excluída a competência regra ou residual dos tribunais comuns. Trata-se esta de conclusão pacificamente acolhida pelos tribunais, como se verifica pelo panorama da jurisprudência recente dos tribunais comuns. Assim, neste sentido, sem ser exaustivo (os Acs. citados remetem também para outras decisões, recentes e mais antigas), v., mais recentemente, os Ac. do TRE de 16.12.2024, proc. 42536/24.7YIPRT.E1 ou de 30.01.2025, proc. 42537/24.5YIPRT.E1, do TRL de 10.04.2025, proc. 143397/23.2YIPRT.L1-6, de 04.02.2025, proc. 118032/24.5YIPRT.L1-7, de 20.03.2025, proc. 86424/24.7YIPRT.L1-6, de 23.01.2025, proc. 118584/24.0YIPRT.L1-6, ou do TRP de 20.03.2025, proc. 126593/24.2YIPRT.P1, de 11.03.2025, proc. 69259/24.4YIPRT.P1, de 24.02.2025, proc. 143394/23.8YIPRT.P1, de 20.02.2025, proc. 79555/24.5YIPRT.P1, de 10.02.2025, proc. 126592/24.4YIPRT.P1, de 28.01.2025, proc. 69243/24.8YIPRT.P1.


Solução que vinha já sendo sustentada, também sem divergência, por exemplo nos Acs. do TRL de 20.01.2011, proc. 918/09.5TBPDL.L1-8, de 07.10.2010, proc. 1763/09.3TBPDL.L1-8, de 13-07.2010, proc. 825/09.1TBPDL.L1-8, de 24.02.2010, proc. 1950/09.4TBPDL.L1-2, ou de 24.06.2010, proc. 466/09.3TBPDL-A.L1-6, ou do STJ de 12.10.2010, proc. 1984/09.9TBPDL.L1.S1.


A mesma linha decisória é acolhida pelo Tribunal de Conflitos. Assim, o Ac. de 08.05.2025, proc. 0118584/24.0YIPRT.L1.S1 (com a mesma data, e os mesmos juízes, foram proferidas idênticas decisões nos proc. 0126592/24.4YIPRT.P1.S1, 042536/24.7YIPRT.E1.S1, 079534/24.2YIPRT.P1.S1 ou 0118032/24.5YIPRT.L1.S1), ou o Ac. de 02.03.2011, proc. 024/10, na linha dos Acs. de 25.11.2010, proc. 021/10, e de 09.06.2010, proc. 05/10.


Sendo ainda solução que os tribunais administrativos admitem (v. Ac. TCAS de 09.10.2014, proc. 11379/14, ou de 09.05.2013, proc. 09701/13, e Ac. do STA, de 25.10.2017, proc. n.º 0300/17) [8].


5. Donde que inexista razão para divergir da conclusão do tribunal recorrido (atento ainda o disposto nos art. 96º al. a), 99º n.º1 e 278º n.º1 al. a) do CPC).


6. Decaindo, suporta a recorrente as custas (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).


V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.


Custas pela recorrente.


Notifique-se.

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).

António Marques da Silva - Relator

Filipe César Osório - Adjunto

Ana Pessoa - Adjunta

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1. Disponíveis, de forma mais desenvolvida, na jurisprudência a final invocada.↩︎

2. J. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Almedina 2006, pág. 57/8.↩︎

3. Como é sabido, a qualificação como taxa depende do regime jurídico fixado, e não de uma qualificação legal ou sequer «da qualificação expressa do tributo como constituindo uma contrapartida de uma prestação provocada ou utilizada pelo sujeito passivo» (v. Ac. 291/2024 do TC, disponível no site do TC).↩︎

4. V. M. Rebelo de Sousa e A. Salgado de Matos, Direito administrativo geral, tomo III, D. Quixote 2007, pág. 238.↩︎

5. Assim, o utente não pode recusar o pagamento, alegando por exemplo estar em causa espaço público, de acesso livre, não por se ter vinculado contratualmente com as regulações da recorrente, mas porque deve obediência ao poder de regulação da administração, que em parte esta cedeu ao concessionário.↩︎

6. Ac. do TRL de 22.04.2010, proc. 1950/09.4TBPDL.L1-2.↩︎

7. J. Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 68, que se seguiu de perto.↩︎

8. Todos os acórdãos citados no texto encontram-se em 3w.dgsi.pt.↩︎