Sumário:
I - Se, numa ação com vários réus, algum deles contestar, os efeitos da revelia não se produzem em relação aos factos contraditados, constituindo esta situação uma das exceções legais previstas no artigo 568º do CPC, à regra geral da revelia operante.
II - Em tal caso, o autor tem de provar, em sede de audiência de julgamento, os factos que articula, não havendo aqui nenhum um agravamento da sua posição uma vez que ao instaurar a ação o titular do direito conta razoavelmente com o ónus da prova dos factos que alega.
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO
Zip Reoco Resi Portfolio, S.A., que alterou a sua denominação para Zip Reoco Resi Portfolio, Sicafi, S.A., instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo que os réus sejam condenados a:
- Reconhecer que a autora «é dona e legitima proprietária da fração autónoma designada “X”, que corresponde à habitação sita no Piso 5 – letra A, parte integrante do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Praceta ..., número 21, em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 1455/S. Sebastião e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o Artigo 12598º da supramencionada freguesia, conforme indicado no artigo 1º da p.i.»
- «Restituir o prédio que ocupam, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava, quando da ocupação ilegal por parte dos R.;»
- No «Pagamento do montante peticionado a título indemnizatório pelo lucro cessante e dano emergente que se venha a apurar em inspeção à fração, acrescido de sanção pecuniária compulsória;»
- «Pagar à A. a quantia de 1.000,00€ (mil euros), a título de indemnização por cada mês de ocupação abusiva, contados desde a data de aquisição até entrega efetiva do prédio;»
- «Abster-se de praticar atos que impeçam ou dificultem o acesso da Autora à fração na origem do presente pleito».
Alega, em síntese, ser a legítima proprietária da identificada fração e que teve conhecimento que a mesma se encontra a ser abusivamente ocupada pelos réus, vendo-se impedida de exercer a sua atividade e de retirar qualquer rentabilidade económica da mesma.
A ré BB, regularmente citada, não apresentou contestação.
O réu AA foi citado editalmente, estando representado pelo Ministério Público, que apresentou contestação, alegando desconhecer se correspondem à verdade os factos constantes da petição inicial (com exceção da prova documental), por não se tratar de factos pessoais ou de que deva ter conhecimento, os quais, por isso, se devem considerar impugnados, concluindo que a ação deverá ser julgada e decidida “conforme for de Direito”.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, não tendo sido admitido o pedido de condenação dos réus no pagamento do dano emergente que se venha a apurar em inspeção à fração, por se ter considerado tratar-se de um pedido genérico inadmissível.
Foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Teve lugar a audiência de julgamento, e a final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo parcialmente procedente, por não provada, a acção e, em consequência:
a) Declaro a Autora ZIP REOCO RESI PORTFOLIO, SICAFI, S.A., dona e legitima proprietária da fração autónoma designada “X”, que corresponde à habitação sita no Piso 5 – letra A, parte integrante do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Praceta ..., número 21, em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 1455/S. Sebastião e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o Artigo 12598.
b) Absolvo os Réus do demais peticionado.
c) Custas pela Autora (artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.»
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação de 56 prolixas conclusões - que pouco menos são do que um mero repositório do corpo das alegações -, as quais não satisfazem minimamente a enunciação sintética ou abreviada dos fundamentos do recurso, tal como exige o disposto no art. 639º, nº 1, do CPC, e, por isso, não serão aqui transcritas na sua totalidade, designadamente as conclusões que se limitam a descrever o iter processual dos autos, e a tecer considerações de ordem geral sobre a aquisição do direito de propriedade e a ação de reivindicação.
Assim, porque delimitam, no que é essencial, o objeto do recurso, transcrevem-se apenas as seguintes conclusões:
«36. Regularmente citados por carta registada com aviso de receção e editalmente, apenas o Recorrido AA apresentou contestação representado pelo Exmo Senhor Procurador do Ministério Público.
37. Contestação essa, que salvo o devido respeito nenhuma prova é feita de que quer que seja.
38. E muito menos pode ser aproveitada pela Recorrida BB que foi regularmente citada na morada do imóvel, não contestou e como tal devia terem sido considerados confessados os factos alegados pela Recorrente.
39. Pelo que andou mal o Tribunal a quo ao considerar que não foi feita a prova pela Recorrente que o imóvel estava ocupado indevidamente pelo menos pela Recorrida BB e por outras pessoas estranhas à Recorrente, provavelmente pelo Recorrido AA, que se limitou a devolver a correspondência.
40. E tanto mais que demonstrado e provado ficou nos autos, que para além da Recorrida, ocupavam o imóvel indevidamente outras pessoas, que o Agente de Execução identificou.
41. Pelo que o pedido de restituição e a condenação da Recorrida na desocupação do imóvel e consequente entrega à sua proprietária, a ora Recorrente, deveria ter sido dado como provada e por conseguinte também procedente a ação de reivindicação, nesta parte.
42. Essa pretendida restituição apenas poderia ser evitada caso os Recorridos tivessem provado, que não o fizeram, nem podiam, dispor de um título legítimo válido para possuírem ou deterem a fração, nos termos do art. 1311º CC.
43. Essa prova essa que não foi feita, tanto mais, que só o Recorrido AA, contestou de forma vaga a ação, não tendo a Recorrida BB sequer contestado a ação, apesar de, insiste-se, regularmente citada para o fazer.
44. A Recorrente, e autora tem, por isso, inequivocamente, direito a ver os Recorridos/réus, ou pelo menos a Recorrida BB, condenada a restituir-lhe a fração.
45. Pelo que andou mal, por conseguinte, a douta sentença recorrida, ao não condenar pelo menos a Recorrida BB a restituir à Autora a referida fracção.
46. A ocupação pelo menos pela Recorrida e sabe-se lá quem mais ocupará o imóvel da Recorrente, sem título, é fundamento para a sua condenação no pagamento de uma quantia, a título de privação do uso.
47. Na verdade, a privação do uso de um bem decorrente de ocupação ilícita importa, em regra, na existência de um dano de que o lesado deve ser compensado.
48. Conforme afirmado no Ac. da R.L. de 12.15.2011, Proc. nº 1470/08.4TCSNT.L1-8 (Ilídio Sacarrão Martins), in www.dgsi.pt, a privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda patrimonial que deve ser considerada, tudo se resumindo à deteção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória.
49. Pelo que igualmente deveria ter sido proferida douta sentença a condenar a Recorrida BB ao pagamento de uma indemnização pela ocupação abusiva da imóvel propriedade da Recorrente, ou seja, dar como confessados todos os factos alegados pela Recorrente, como assim está previsto no artigo 795º do CPC supra citado e, não apenas dar como provado a propriedade da Recorrente sobre o imóvel.
50. A propriedade do imóvel, já a Recorrente sabe que é, pelo que ao interpor a presente ação tinha como se disse implícita a vertente da desocupação e a sua entrega à Recorrente.
51. Pelo que a douta sentença foi tão simples, mas salvo o devido respeito parca na sua procedência, uma vez que não condenou, como devia pelo menos a Recorrida BB à desocupação do imóvel e bem assim, ao pagamento de valor indemnizatório pela ocupaão e uso indevido do imóvel.
52. Pelo exposto, e à luz das regras do direito probatório material, o ónus da prova do reivindicante limita-se à demonstração de que o proprietário de uma coisa que se encontra sob o uso material do réu.
53. Uma vez provada a propriedade e a detenção pelo réu, caberá ao demandado provar que detém a coisa a título legítimo, se quiser eximir-se à condenação.
54. Ou seja, tem o utente da coisa o ónus de alegação e prova de factos legitimadores do uso da coisa, portanto, dos factos impeditivos do efeito essencial reivindicante (art. 342.º, n.º 2).
55. Pelo que não tendo sido contestada a ação deveria a douta sentença dar como procedente por provada e por confissão pelo menos da Recorrida BB, todos os factos alegados pela Recorrente e consequentemente condenada a Recorrida a entregar o imóvel à Recorrente e no pagamento valor peticionado a título de indemnização e, não a limitar-se a dar como procedente e provada apenas a propriedade da Recorrente.
56. A decisão recorrida é ilegal, violando o artigo 9° e, consequentemente, os artigos 615, 795º 581 do CPC e artigo 1311 do CC. todos do Código Civil»
O Ministério Público, em representação do réu ausente, contra-alegou, defendo a manutenção da sentença recorrida.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consubstancia-se em saber quais os efeitos da revelia do réu e se, in casu, deviam ter sido considerados provados os factos alegados na petição inicial, por falta de contestação da ré, regularmente citada.
III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1- Pela Ap. 6627, de 31-05-2022, está registada a favor da Autora a aquisição, por compra, do prédio urbano, denominado ..., sito na Praceta ..., n.º 21, com a área total de 338,4 m2, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de ... em ... sob o artigo 12598, e descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob a ficha n.º 1455/19890426.
2- O edifício acima referido abrange a fração autónoma designada “X” e que corresponde à habitação sita no Piso 5 – Letra A.
E foi considerado não provado que:
A- A Autora sempre pagou as contribuições e os impostos referentes à fração autónoma identificada em 2.
B- A principal atividade da Autora é a compra de imóveis para revenda e o prédio acima referido foi adquirido com esse fim.
C- Os Réus encontram-se a ocupar a fração identificada em 2., sem autorização para o efeito e sem procederem ao pagamento de qualquer contrapartida.
D- A ocupação da fração por parte dos Réus inviabiliza a Autora de rentabilizar o imóvel em causa e de realizar a sua atividade.
O DIREITO
Segundo a recorrente, uma vez que a ré, regularmente citada, não contestou, os factos alegados na petição inicial deveriam ter-se por confessados, competindo à autora fazer apenas prova da propriedade do imóvel, pelo que, assim não tendo decidido, «[a] decisão recorrida é ilegal, violando o artigo 9° e, consequentemente, os artigos 615, 795º 581 do CPC e artigo 1311 do CC. todos do Código Civil» [conclusão 56].
Esta conclusão é, salvo o devido respeito, incompreensível. Se a recorrente quis apenas invocar artigos do Código Civil, como decorre da parte final da conclusão, então apenas fará algum sentido a invocação do artigo 1311º daquele Código, relativo à ação de reivindicação, pois todos os demais preceitos nada têm a ver com o caso dos autos.
Se porventura a recorrente está a referir-se aos artigos 615º 795º e 581º do CPC, então a sua invocação também não faz o menor sentido, sendo que, relativamente ao artigo 615º, em momento algum diz a recorrente de que nulidade enferma a sentença, nem o podia fazer, acrescentamos nós, pois nenhuma das nulidades elencadas naquele preceito aqui se verifica.
Vejamos, pois, a pretensão recursiva da recorrente,
Como é sabido, por regra, a revelia, dizendo-se operante, tem por efeito serem considerados confessados os factos articulados pelo autor na petição inicial (ficta confessio), nos termos do artigo 567º, nº 1, do CPC. Todavia, há casos previstos na lei, em que, excecionalmente, aquele efeito se não produz. Neste caso, a revelia diz-se inoperante, ou seja, não obstante o réu não ter apresentado contestação, e apesar de ter sido citado na sua própria pessoa, não se consideram confessados os factos articulados pelo autor na petição inicial. É o que sucede nos casos previstos nas várias alíneas do artigo 568º do CPC.
Limitando-nos à situação que releva nos autos, verificamos que a alínea a) do citado preceito legal impõe que, havendo vários réus, a contestação de um aproveita aos restantes, quanto aos factos que o contestante impugnar. O que tem aplicação em qualquer situação de pluralidade de réus, seja em litisconsórcio necessário ou voluntário ou ainda em caso de coligação, limitando-se, contudo, a sua eficácia aos factos de interesse para o réu contestante e para o réu revel1.
Uma vez que o Ministério Público, em representação do réu ausente, contestou toda a factualidade e sendo a revelia da ré inoperante, cabia à recorrente fazer prova de todos os factos constitutivos do seu direito, por si alegados na petição inicial, nomeadamente os relativos à propriedade do imóvel, à ocupação ilícita e abusiva pelos réus, bem como dos danos daí decorrentes, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil2.
Assim, uma vez que a autora/recorrente juntou aos autos apenas a caderneta predial do imóvel e a certidão do registo predial, tendo prescindido das testemunhas arroladas – sibi imputate -, fez apenas prova da propriedade do imóvel, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao decidir da forma como fez, pois a única prova documental existente não é idónea a provar a ocupação abusiva do imóvel, nem os alegados danos, como bem aduz o Ministério Público na resposta ao recurso.
Assim nenhuma razão assiste à recorrente, que faz tábua rasa do regime da revelia do réu, consagrado nos artigos 566º a 568º do CPC, pois sendo certo que a ré BB, pessoal e regularmente citada, não apresentou contestação, à mesma aproveita a contestação por impugnação apresentada pelo Ministério Público, em representação do réu AA, citado editalmente, sendo, por isso, inoperante a revelia da ré, em toda a extensão da impugnação apresentada na contestação, de acordo com o disposto no artigo 568º, al. a), do CPC.
Por conseguinte, o recurso improcede não se mostrando violadas as normas invocadas pela recorrente ou quaisquer outras.
Vencida no recurso, suportará a autora/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
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Évora, 5 de junho de 2025
Manuel Bargado (relator)
Sónia Moura
Susana Costa Cabral
(documento com assinaturas eletrónicas)
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1. Cfr., inter alia, o Ac. do TRP de 21.09.2010, proc. 474/04.0TBOAZ-I.P1, in www.dgsi.pt. Como também se pode ler no sumário deste aresto, «[s]e posteriormente o autor desiste do pedido que formulou contra o réu contestante, e ele é, por isso, absolvido do pedido, a situação de revelia não operante do réu não contestante perdura nos autos, tendo o autor de provar, em sede de audiência de julgamento, os factos que lhe imputa».↩︎
2. Não há aqui um agravamento da posição do autor, «uma vez que ao intentar uma ação o titular do direito conta razoavelmente com o ónus da prova dos factos que alega», como se pode ler no sumário do Ac. do TRP de 20.04.2023, proc. 7559/20.4T8VNG.P1, in www.dgsi.pt.↩︎