Sumário:
O requerimento de reclamação contra a rejeição de um recurso nos termos do artigo 643º do CPC, não está sujeito à formulação de conclusões.
Acordam em Conferência na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo de Execução de Loulé – Juiz 1, corre termos sob o número em epígrafe, a execução sumária (AG) para pagamento de quantia certa.
Em 19-09-2024, foi proferido despacho que julgou válida a decisão da senhora Agente de Execução que deu sem efeito o anterior leilão eletrónico a que procedeu e abriu novo leilão.
Inconformada com o decidido, em 18-10-2024, AA LDA, representada por BB, Interveniente licitante no referido leilão eletrónico, interpôs recurso do despacho supra referido.
Em 30-12-2024, foi proferido despacho a não admitir o recurso por ter sido interposto intempestivamente.
Em 10-01-2025, a Recorrente apresentou reclamação ao abrigo do artigo 643.º do CPC requerendo a admissão do recurso.
Não foi apresentada resposta à reclamação e a mesma foi remetida a este Tribunal da Relação.
Já nesta Relação, em 26-03-2025, o Relator do processo proferiu decisão singular que indeferiu a reclamação por a mesma não conter conclusões, julgando prejudicada a apreciação da (in)tempestividade da interposição do recurso.
A Reclamante veio, então, requerer a prolação de acórdão em sede de Conferência.
Foram colhidos os vistos dos Srs. Des. Adjuntos e designada a Conferência para o passado dia 22-05-2025, a qual foi nesse dia adiada por vencimento do Relator.
Cumpra, agora, proferir Acórdão em sede de Conferência que acolha a posição que obteve vencimento em relação à questão objeto de dissídio, ou seja, se a reclamação prevista no artigo 643.º do CPC tem de inserir conclusões sob pena de indeferimento.
II – APRECIAÇÃO DA QUESTÃO DECIDENDA
Na apreciação da questão controvertida supra enunciada, importa ter em consideração que a reclamação em causa se encontra regulada no artigo 643.º do CPC sob a epígrafe «Reclamação contra o indeferimento» correspondendo a um meio de impugnação do despacho que não admitiu o recurso ou que o retenha (artigo 641.º, n.º 6, do CPC)..
O artigo 643.º do CPC prevê nos n.ºs 1 e 2 o prazo para a apresentação da reclamação e da resposta, regulando o n.º 3 a instrução da reclamação; os n.ºs 4, 5 e 6 reportam-se à tramitação da reclamação no Tribunal da Relação.
Também é necessário ter em conta que, como decorre dos artigos 627.º e 628.º do CPC, os meios processuais para impugnar as decisões judiciais são os recursos e a reclamação.
Os recursos ordinários (apelação e revista), mas já não assim os recursos extraordinários (recurso para uniformização de jurisprudência e revisão), são direcionados ao tribunal hierarquicamente superior; as reclamações ao tribunal que proferiu a decisão. O que sucede, por exemplo, na reclamação prevista no artigo 596.ºdo CPC (reclamação contra o despacho que identifica o objeto do recurso e enuncia os temas da prova), mas também noutras disposições legais, mesmo quando a lei expressamente não as apelide de reclamações, como sucede quando são suscitados vícios e a reforma das sentenças/despachos nos casos em que não é admissível recurso (artigos 613.º a 617.º do CPC) ou no âmbito dos procedimentos cautelares quando decretados sem contraditório (por ex., artigo 372.º, n.º 1, alínea b), do CPC). Nos tribunais superiores, a situação mais corrente é a da reclamação para a conferência das decisões singulares do Relator (artigos 652.º, n.º 3, e 679.º do CPC).
A reclamação prevista no artigo 643.º do CPC não segue essa regra, pois é dirigida ao tribunal superior àquele que proferiu a decisão, ainda que seja instruída por este e depois seja remetida para o tribunal ad quem, como ocorre nos recursos.
Ainda assim, da previsão do artigo 643.º do CPC não decorre que o reclamante tenha obrigatoriamente de formular conclusões como sucede nos recursos (artigo 639.º, n.ºs 1 e 3, do CPC) e, sobretudo, se não as formular, tenha tal omissão as consequências previstas no artigo 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC, ou seja, o indeferimento/rejeição da reclamação.
Consequência assaz restritiva do direito do reclamante que teria de se encontrar expressamente prevista por determinar uma limitação ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva prevista no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Ainda que não fosse ferida de inconstitucionalidade tal opção do legislador ordinário, se a mesma tivesse sido acolhida, seguramente para ser conforme à CRP teria de estar estabelecida em letra de lei, tal como sucede em relação à falta de conclusões nos recursos.
Sendo claro que o legislador não previu o indeferimento/rejeição da reclamação por falta de conclusões, há que recorrer à interpretação da lei de acordo com a regras da hermenêutica jurídica, relevando, no caso, numa primeira linha, o princípio que estabelece que onde a lei não faz distinção, não cabe ao intérprete fazê-la (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus), e, num segundo momento, considerar que na interpretação da lei há que levar em conta, nos termos do artigo n.ºs 1 e 2 do artigo 9.º do Código Civil, os elementos lógicos, como sejam, o teleológico (ratio legis), o sistemático (unidade do sistema jurídico) e o histórico (circunstâncias em que a lei foi elaborada e condições específicas do tempo em que é aplicada), sem olvidar que o resultado da interpretação deve ter um mínimo de correspondência na letra da lei «ainda que imperfeitamente expresso».
No caso, nada no elemento literal indica a exigência da obrigatoriedade da reclamação prevista no artigo 643.º do CPC apresentar conclusões. Mas mais do que isso, o elemento histórico aponta no sentido da sua não exigibilidade.
Efetivamente, a reclamação hoje prevista no artigo 643.º do CPC (com correspondência no artigo 688.º do CPC1961) tem na sua génese a «carta testemunhável» prevista no CPC de 1876 e o «recurso de queixa» previsto no CPC 1939, esses sim, com feição de verdadeiros recursos, cujo figurino legal o CPC 1961 arredou, transmutando o «recurso de queixa» numa reclamação com regulação própria, na qual não previu a apresentação de conclusões e muito menos qualquer consequência para a sua não apresentação.
Opção que se manteve no CPC de 2013.
Assim, embora a reclamação do artigo 643.º do CPC tenha como nota dissonante em relação a outras situações de reclamação prevista no processo civil, o facto de ser dirigida e decidida ab initio pelo tribunal superior ao que preferiu a decisão reclamada, o que a aproxima do regime dos recursos, não se pode deixar de levar em conta que essa característica é um resquício histórico e que, desde o CPC de 1961, o legislador assumiu afastar a anterior natureza de recurso de queixa e, ao invés, qualificou esta forma de impugnação como uma reclamação, mantendo, pragmaticamente, a sua «natureza funcional dado a delinear como uma simples fase dos recursos propriamente ditos»1, ou seja, não a concebendo como um recurso.
Por conseguinte, não obstante se conhecer jurisprudência e doutrina que pugna no sentido oposto e que essa posição foi a adotada na Decisão Singular do Relator do processo (para a qual se remete por razões de economia processual), entendeu-se maioritariamente que não é essa a solução que atualmente se encontra prevista na lei, tal como é defendido, aliás, por outras correntes jurisprudenciais e doutrinárias que afastam a natureza recursória deste meio de impugnação.
Neste sentido, veja-se o que escreve RUI PINTO a propósito desta questão:
«Constitui entendimento dominante o de que este meio impugnatório apresenta a natureza jurídica de recurso, pelo que se lhes aplicam as disposições gerais dos recursos, nomeadamente aquelas. Tratar-se-ia do “velho” recurso de queixa do Código de Processo Civil de 1939, caracterizado por ser um pedido impugnatório dirigido a um tribunal superior àquele que decidiu. Por ex. “A chamada reclamação do despacho que não admite o recurso ex artigo 643.º do nCPC é um verdadeiro recurso, razão pela qual não se deve dispensar que as alegações concluam pela formulação de conclusões, sob pena de indeferimento” (RL 17-9-2015/Proc. 23801/13.5T2SNT-A.L1-8 (LUÍS CORREIA DE MENDONÇA).
Em conformidade, têm sido rejeitadas reclamações do artigo 643.º com fundamento em o requerimento não conter ou juntar a alegação do reclamante ou a alegação do reclamante não ter conclusões.
Como o devido respeito, este entendimento não procede.
O problema não se pode colocar em termos da natureza jurídica do meio, mas da vontade do legislador. Ora, este é muito claro a dizer, no “portal” das disposições gerais o que pretende que sejam recursos para efeitos de sujeição a esses preceitos dos artigos 628.º ss., maxime dos artigos 637.º e 639.º: a apelação, a revista, o recurso para uniformização de jurisprudência e a revisão. Os demais meios são, nas suas próprias palavras, “reclamações” – para o relator (cf. artigo 643.º), para a conferência (cf. artigo 652.º, n.º 3); entenda-se: são “não recursos” para efeitos de sujeição às disposições gerais. Note-se, ainda, que não era por acaso que no Código de Processo Civil de 1939 o dito “recurso de queixa” estava incluído nos recursos ordinários previstos no artigo 677.º do mesmo Código e que, depois, em 1961, com o Decreto-Lei n.º 44 129, de 28 de dezembro de 1961, deixou de estar no mesmo lote. Pretendeu, assim, o legislador tratar a reclamação do artigo 643.º, como trata a reclamação por nulidade (cf. artigo 615.º) ou para reforma (cf. artigo 616.º): um meio impugnatório simples, por simples ser o seu objeto.»2
No mesmo sentido se pronuncia ABRANTES GERALDES quando se reporta a esta questão:
«Como se decidiu na decisão singular do STJ, de 22-216, 490/11 – Abrantes Geraldes, a reclamação deve ser motivada (no mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ, de 17-10-23, 18912/22).
Aí se referiu:
“A reclamação contra o despacho de não admissão de recurso de recurso de revista prevista no art. 643.º do CPC – que sucedeu ao “recurso de queixa” outrora regulada no art. 689.º do CPC de 1939 – constituiu uma das modalidades que pode assumir a impugnação de decisões judiciais , devendo integrar a exposição dos fundamentos da revogação do despacho em causa”. (…)
Já não encontra sustentação a exigência de conclusões, segmento que a lei apenas impõe quando regula o ónus de interposição de recurso, nos termos que constam do art. 639.º.
Por conseguinte, ainda que não esteja vedada e até seja conveniente a sua apresentação, a eventual falta de conclusões não poderá determinar a rejeição liminar da reclamação, como também defende RUI PINTO, Manual do Recurso Civil, vol. I, pp. 330 e 331, e em “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil”, em Julgar Online, maio 2020, p. 4, nota 8.
Assim, como se observa naquela obra, p. 59, a reclamação não se apresenta como uma instância a se, com pressupostos próprios.
No mesmo sentido, cf. os Acs. da Rel. do Porto, de 27-1-23, 5465/21 e de 9-1-23, 5426/21.
Discorda-se, pois, do entendimento contrário que foi assumido no Ac. da Rel. de Coimbra, de 8-6-18, 1840/16, acolhendo o que foi decidido no Ac. da Rel. de Lisboa de 17-09-15, 23801/13 e no Ac. da Rel. de Guimarães, de 14-1-16, 3718/14.
Na realidade, para além de uma vaga associação arqueológica ao “recurso de queixa” que o CPC 1961 já não integrou, não existe outro argumento que possa legitimar a extração de um efeito tão gravoso como a rejeição da reclamação com base na falta de um segmento que nenhuma norma prescreve.»
É esta também a posição que obteve vencimento nos presentes autos.
III - DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam, em CONFERÊNCIA, em alterar a Decisão Singular do Relator do processo proferida em 26-03-2025, admitindo-se a Reclamação apresentada ao abrigo do artigo 643.º do CPC.
Sem custas.
Apresentem-se os autos ao Relator a fim de ser dado prosseguimento à tramitação da Reclamação.
Évora, 05-06-2025
Maria Adelaide Domingos – Relatora por vencimento
Susana Ferrão
José António Moita (vencido)
Votei vencido o acórdão porque a meu ver a reclamação apresentada nestes autos ao abrigo do disposto no artigo 643.º do CPC deveria ter sido desde logo indeferida por carecer da formulação de conclusões no respectivo final, de acordo com a fundamentação fáctica e jurídica explanada na decisão de relator, por mim subscrita, datada de 26/03/2025, que aqui e agora dou por reproduzida nos seus precisos termos, importando ainda acrescentar em apoio da tese que ali defendi que para além do acórdão proferido em 17/09/2015, no processo n.º 23801/13.5T2SNT- A.L1-8, relatado pelo Conselheiro Luís Correia de Mendonça, também se pronunciaram no mesmo sentido os acórdãos (mencionados, aliás, no presente acórdão), proferidos pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 08/06/2018, no processo n.º 1840/16.4T8FIG-A.C1 e pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 14/01/2016, no processo n.º 3718/14.7T8VNF-A.G1.
De resto, importa ainda destacar que a reclamação do artigo 643.º do CPC encontra-se inserida sistematicamente no “Capítulo I - Disposições gerais”, de um Título do Código de Processo Civil (Título V do Livro III), intitulado precisamente “Dos Recursos”, o qual se estende do artigo 627.º ao artigo 643.º.
Por outro lado, a meu ver e contrariamente ao referido pela Reclamante no requerimento que motivou a intervenção da conferência, não colhe comparar a reclamação prevista no artigo 643.º do CPC com a chamada “reclamação para a conferência” prevista no n.º 3 do artigo 652.º do mesmo diploma legal, visto que no primeiro caso, em tudo idêntico ao que se verifica nos recursos, a decisão reclamada de indeferimento de requerimento de recurso é objecto de análise e reapreciação por parte de um Tribunal hierarquicamente superior ao passo que no caso previsto no n.º 3 do artigo 652.º do CPC a decisão impugnada/reclamada é objecto de reapreciação pelo mesmo tribunal de onde aquela emanou apenas com a nuance de que a nova decisão é uma decisão colegial.
Afigura-se-me, ainda e por fim, que se o legislador tivesse pretendido tratar a reclamação do artigo 643.º do CPC como tratou a reclamação por nulidades, ou para reforma de despacho/sentença, outra coisa não faria sentido que inserir a disposição normativa atinente à dita reclamação contra o indeferimento de recurso imediatamente antes ou imediatamente após os artigos 615.º e 616.º do CPC, o que manifestamente não sucedeu, estando estas duas últimas normas integradas num capítulo respeitante a “Vícios e reforma da sentença”, num título denominado “Da sentença”.
José António Moita
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1. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 8.ª ed., p. 70.↩︎
2. RUI PINTO, Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º do CPC), in Julgar Online, maio 2020, p. 4 (8), consultável em https://julgar.pt/os-meios-reclamatorios-comuns-da-decisao-civil-artigos-613-o-a-617-o-do-cpc/.↩︎