I - A ineptidão da petição inicial é de conhecimento oficioso, como decorre do artigo 196.º, do Código de Processo Civil, mas nas situações em que a correspondente exceção/nulidade não tenha sido arguida na contestação, o tribunal apenas deve conhecê-la quando se verifique a sua ocorrência.
II - Do disposto nos artigos 607.º, número 3 e 4 e 608.º do Código de Processo Civil resulta que o juiz só deve pronunciar-se sobre os factos que se revelem necessários à resolução das questões submetidas à sua apreciação, que não se confundem com os temas da prova.
III - Se no momento da sentença o tribunal concluir que alguns dos temas da prova se referem a factos que não relevam para a decisão, não deve pronunciar-se sobre tais factos, não sendo a não pronúncia sobre alguns dos “temas da prova” causa de invalidade da sentença.
IV - A alegação de que se é proprietário do imóvel em que foram executadas obras acordadas em contrato de empreitada não é essencial para a dedução de pedidos de reparação desses defeitos e de indemnização dos danos deles decorrentes, já que tais pedidos resultam da relação contratual entre o dono da obra/comitente e o empreiteiro/comissário.
V - Aos contratos de empreitada em que o dono da obra a destine a um uso não profissional e o empreiteiro se dedique a uma atividade profissional que abranja a realização da obra em causa contra remuneração aplica-se o regime especial da responsabilidade pelos defeitos das obras nos contratos de empreitadas de consumo, previsto no DL 67/2003, de 8 de abril.
VI - No âmbito deste regime legal, é admissível a dedução de pedidos alternativos de reparação dos defeitos/pagamento de tal reparação/ indemnização pelos danos deles decorrentes, não estabelecendo a lei, como sucede com o regime geral da empreitada previsto no Código Civil uma hierarquia/ordem de precedência para o exercício de tais direitos.
VII - A eventual aceitação da obra, desacompanhada da alegação e prova da natureza aparente dos defeitos ou do seu prévio conhecimento pelo dono da obra não impede este de reclamar a reparação dos defeitos, nem de pedir indemnização pelos danos deles decorrentes.
VIII - Nas ações fundadas no cumprimento defeituoso cabe ao dono da obra a alegação e prova dos defeitos e ao empreiteiro a alegação e prova de que os mesmos não lhe são imputáveis.
(Sumário da Responsabilidade da Relatora)
Recorrente: A..., Ldª.
Recorridos: AA e BB.
Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeiro adjunto: Jorge Martins Ribeiro
Segunda adjunta: Teresa Maria Sena Fonseca
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
1. Em 26-02-2020 AA e BB propuseram ação declarativa de condenação a seguir a forma de processo comum contra A..., Ldª pedindo que a mesma fosse condenada a efetuar as reparações dos defeitos existentes na obra que a ré executou a seu pedido ou, em alternativa, a pagar-lhes 90 607, 95 € para os indemnizar pelo custo que terão com tais reparações. Cumulativamente pediram a condenação da ré no pagamento de 7.500€ a título de indemnização “por dano moral” decorrente desses mesmos defeitos e de quantia a liquidar posteriormente com vista a ressarci-los pelo dano futuro que terão com o cumprimento do seu dever de indemnizar os seus vizinhos por causa das infiltrações que sofreram e foram decorrentes dos defeitos da obra e com os custos que suportarão com o pagamento de técnico e de deslocação de perito à obra para acompanhar as futuras reparações, bem como com a obtenção da licença de obras em falta.
Alegaram, em suma, que contrataram a ré para proceder à remodelação de um imóvel de que eram proprietários pelo preço de 340 000 € acrescido de IVA, devendo as obras iniciar-se em setembro de 2016 e estar prontas em 31 de junho de 2017. Tais obras não estão ainda concluídas, porque a ré atrasou a sua execução e porque teve necessidade de fazer sucessivas reparações que, apesar de executadas, não eliminaram todos os defeitos e desconformidades que os autores lhe foram apontando e que descrevem. Alegaram que, por isso, estão impossibilitados de usar parte do referido imóvel, que constitui a sua habitação de família e que, por causa da má execução da obra, ocorreram infiltrações em imóvel de um vizinho que terão de reparar, ou cuja reparação terão de custear. Descreveram ainda as obras/reparações a fazer com vista à eliminação dos defeitos que enumeraram e que alegaram terem comunicado ao legal representante da ré, nomeadamente por escrito, tendo-se este deslocado várias vezes à obra onde admitiu a existência dos defeitos, a necessidade das intervenções pedidas pelo autor, bem como, posteriormente, admitiu ter feito várias tentativas de resolução dos problemas que o mesmo lhe descrevera. Perante a interpelação escrita dos autores para que a ré procedesse novamente a reparações ou optasse por os ressarcir, esta afirmou que a obra estava concluída desde fevereiro de 2018 e que os autores sempre a tinham acompanhado já que viviam no imóvel, acusando-os de não quererem pagar o preço devido. Alegaram ainda que a ré não lhes entregou documentos necessários a instruir o processo de obtenção de licença de obra (apesar de saber do termo do prazo para tanto, entretanto ocorrido), com o argumento de que o autor marido assinara documento de que decorria não ser obrigação da ré a entrega dos mesmos. Tal declaração, todavia e segundo os autores, terá sido assinada juntamente com outros documentos que a ré lhe deu a assinar sem que o autor se tenha apercebido do seu teor. Descreveram os danos sofridos com o atraso na obra, os seus defeitos e a necessidade de pedirem a prorrogação de prazo para a emissão da licença junto do Município de Lisboa, competente para tal em face da localização do imóvel.
2. A ré contestou em 13-05-2020, excecionando a caducidade do direito dos autores à eliminação dos alegados defeitos e a qualquer indemnização pelos mesmos, alegando ainda que os autores não podem pedir a sua condenação por eventuais ocorrências futuras. Afirmou que o seu exercício do contraditório ficou prejudicado pela forma de articulação dos factos na petição inicial e pela indevida numeração dos documentos, mas impugnou especificadamente vários artigos da petição inicial e apresentou outra versão para muitos deles, nomeadamente alegando: que alertou os autores para a insuficiência do tubo único existente no imóvel para recolha de águas limpas e de esgotos; que as alterações feitas na escadaria foram feitas a pedido dos autores; que nunca foi interpelada pelos autores para a entrega de quaisquer documentos nem alertada sobre qualquer prazo para o licenciamento; e que os autores tinham noção da necessidade de licenciamento da obra antes do início da sua execução, optando por a iniciar antes de o obterem e responsabilizando-se pelas consequências que daí pudessem advir.
Deduziu reconvenção alegando, em suma, ter concluído a obra acordada em fevereiro de 2018, tendo os autores ali residido durante todo o tempo da sua execução, o que lhes permitiu verificá-la, como fizeram, até à sua entrega. Pediu o pagamento de 17 376 € do preço acordado e ainda não pago e de juros de mora desde o vencimento da última fatura, em 6 de julho de 2018. Alegando ter executado trabalhos extra a pedido dos autores pediu também o respetivo pagamento, no valor de 7 467, 33 € acrescido de juros de mora desde janeiro de 2020, data de vencimento da respetiva fatura.
3. Os autores replicaram em 28 de junho de 2020, impugnando o pedido reconvencional, pedindo a condenação da ré como litigante de má-fé e respondendo à exceção de caducidade, para o que alegaram ter denunciado os defeitos descritos na petição inicial logo que se mudaram para o imóvel passando a habitar o seu andar superior, em julho de 2018, quando a ré estava ainda terminar as obras na parte inferior do imóvel, tendo a ré admitido os mesmos e a sua reparação. Alegaram, quanto à causa de pedir do pedido reconvencional, que a obra não está concluída, indicando os trabalhos que estão por terminar, e que, de qualquer modo, do preço acordado para a obra apenas estão por pagar 10 501, 53 €, valor que dizem sempre teriam direito a reter dado o prejuízo sofrido por causa da sua má execução. Impugnaram a realização dos trabalhos extra e afirmaram que ainda que tivessem ocorrido, teria de “se levar em conta” que a ré não executou todos os trabalhos orçados nem aplicou todos os materiais acordados bem como que a mesma combinou com os autores que compensaria o valor de 2 704, 50 €, que os mesmos já pagaram a um vizinho por danos causados pela obra, com o preço acordado no orçamento complementar.
4. A ré respondeu a 13-07-2020, opondo-se à amplitude do articulado da réplica na parte em que excedeu a reposta à reconvenção e impugnando o ali alegado bem como os documentos juntos.
5. Em 27-09-2020 os autores juntaram novo articulado alegando o agravamento dos danos no imóvel dos vizinhos e pedindo a imediata realização de perícia aos mesmos, dada a urgência em efetuarem a reparação com vista a evitar maior deterioração desse prédio.
6. A ré opôs-se a tal produção antecipada de prova em 07-10-2020, que foi deferida por despacho de 27-11-2020, despacho que a ré pediu que fosse revogado em 02-12-2020, o que lhe foi indeferido.
7. Em 17-02-2021 a ré pediu a declaração de nulidade do despacho de 02-02-2021 que ordenou aos autores o pagamento da taxa de justiça devida pela perícia antecipada e, em 08-03-2021, requereu que se julgasse tardio o pagamento a mesma.
8. Em 16-03-2021 a ré arguiu a nulidade do despacho de 08-03-2021 que admitiu a perícia e ordenou a sua notificação para se pronunciar sobre o seu objeto e, em 22-03-2021, pediu o desentranhamento da resposta dos autores a tal arguição de nulidade (em que uma vez mais os mesmos pediam a sua condenação como litigante de má-fé).
9. Por despacho de 24-03-2021 foi julgada improcedente a arguida nulidade e em 14-0-2021 foi ordenada a realização da perícia e a indicação de peritos.
10. Em 20-04-2021 a ré interpôs recurso desse despacho, que foi julgado improcedente por acórdão de 29-09-2021.
11. Em 21-04-2021 a ré arguiu a suspeição do perito indicado pelos autores o que foi objeto de indeferimento por despacho de 26-05-2021.
12. Em 09-06-2021 a ré arguiu a nulidade desse despacho, o que lhe foi indeferido por despacho de 01-07-2021.
13. Apresentado o relatório pericial em 01-02-2022 os autores pediram esclarecimentos em 11-02-2022 e a ré, em 14-02-2022, veio novamente arguir que a perícia só podia ter sido requerida na petição inicial e que a mesma não incidiu sobre factos ali alegados, bem como pediu a comparência dos peritos em audiência de julgamento e que o seu mandatário se pudesse fazer acompanhar por técnico especializado em tal audiência.
14. Os autores requereram a ampliação do pedido em 04-04-2022, por forma a que a ré fosse condenada a pagar-lhes: o valor que vierem a ter de pagar a um seu vizinho na sequência da decisão de processo comum de condenação que contra eles intentou com vista ao ressarcimento dos danos que alegou ter sofrido com a obra levada cabo pela ré; indemnização de 2000 € pelo dano moral sofrido pela autora mulher por ter sido demandada nesse processo; e, ainda, a pagar aos autores todas as custas e despesas que sofrerão com a pendência desse processo.
15. A Ré opôs-se a tal pretensão em 26-04-2022, arguindo a inadmissibilidade da ampliação e impugnando a sua causa de pedir.
16. Por despacho de 01-05-2022 tal ampliação do pedido foi indeferida.
17. Em 28-09-2022 realizou-se audiência prévia com discussão das questões de facto e de direito objeto do litígio, após o que foi pedida e determinada a suspensão da instância com vista a negociar possível acordo, que se frustrou.
18. Em 18-11-2022 foi proferido despacho saneador em que se relegou para final o conhecimento da exceção de caducidade, se identificou o objeto do litígio e enunciaram os temas da prova, tendo sido admitidos os requerimentos probatórios.
19. A ré reclamou em 05-02-2022 alegando que as exceções que invocara deviam levar à improcedência da ação no despacho saneador, nomeadamente por falta de alegação de factos essenciais pelos autores e sustentando que o pedido feito na petição inicial ultrapassa a reclamação de defeitos que lhe haviam endereçado os autores. Requereu, ainda, a nomeação de um perito pelo tribunal para coadjuvar na averiguação de desconformidades entre os projetos em que se basearam os pedidos de licenciamento e “a lei”.
20. Por despacho de 09-01-2023 foi julgada improcedente tal reclamação e indeferido o pedido de nomeação de técnico para auxílio do tribunal.
21. Em 23-01-2023 a ré pediu que se julgasse injustificada a junção pelos autores “da documentação relativa aos projetos de obra por que foram feitos os pedidos de licenciamento (Proc. Municipal 1467/EDI/2016 e Proc. 7982/OTR/2019”, e que fosse aplicado o disposto no artigo 417.º, número 2 do Código de Processo Civil.
22. Por despacho de 28-02-2023 foi considerada “validamente assumida pelos autores” a escusa na junção desses documentos nos termos do artigo 431.º, número 1 do Código de Processo Civil, podendo a ré usar da faculdade de provar que não era verdadeira a alegação dos autores de que não tinham os referidos documentos.
23. Em 25-04-2023 os autores juntaram quatro documentos de que alegaram terem tido conhecimento superveniente, ao que se opôs a ré em 05-05-2023.
24. Por despacho de 27-05-2023 foi admitida a junção dos referidos documentos tendo os autores sido condenados em multa pela sua junção tardia.
25. Em 25-10-2023 iniciou-se a audiência de julgamento tendo a ré uma vez mais arguido que a prova pericial não podia ter por objeto defeitos que diz nunca lhe terem sido denunciados e cuja reparação nunca lhe foi pedida, tendo sido proferido despacho no sentido de que a questão da denúncia dos defeitos era controvertida e seria conhecida em sede de sentença. A audiência de julgamento continuou em 01-02-2024 e 23-02-2024.
26. Em 09-02-2024 a ré juntou documentos com vista a sustentar a alegação de que o autor marido mentira durante o seu depoimento de parte.
27. Em 20-02-2024 os autores impugnaram tais documentos, juntaram outros para os contraditar e voltaram a requerer a condenação da ré como litigante de má-fé.
28. A Ré respondeu impugnando os documentos juntos pelos autores.
29. Na sessão da audiência de julgamento de 23-02-2024 foi indeferida a junção de todos os documentos apresentados por ré e autores em 09-02-2024 e 20-02-2024, tendo sido encerrada a audiência de julgamento.
30. Em 11-03-2024 a ré interpôs recurso do despacho que indeferiu a junção de documentos requerida a 09-02-2024, alegando que a mesma era essencial em face do depoimento de parte do autor, que disse ter faltado à verdade. Tal recurso foi julgado improcedente por acórdão desta secção de 23-09-2024, que confirmou o despacho recorrido.
31. Em 13-01-2025 foi proferida sentença que julgou ilegal a formulação dos dois pedidos alternativos de reparação de defeitos ou de pagamento dessa reparação, tendo absolvido a ré da instância quanto ao segundo. Foi a ré condenada a: eliminar defeitos enumerados por remissão para os factos provados; e a pagar aos autores indemnização a liquidar ulteriormente correspondente ao montante que venham a pagar aos vizinhos que sofreram danos decorrentes de infiltrações descritas nos factos provados. A ré foi absolvida do demais pedido e os autores foram absolvidos do pedido reconvencional.
II - O recurso:
É desta sentença que recorre a ré, arguindo a nulidade “do julgamento e da sentença”, pretendendo a alteração da matéria de facto provada e a sua revogação, quer quando à sua condenação quer no que tange à improcedência do pedido reconvencional.
Para tanto, formulou as seguintes conclusões de recurso:
(…)
Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1 - a nulidade do processado por ineptidão da petição inicial (conclusões 1ª, 2ª e 4ª)
2 - a nulidade do julgamento por alteração dos temas da prova (conclusão 3ª);
3 - a nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a alegada propriedade do imóvel em que foram executadas obras (conclusão 5ª);
4 - a responsabilidade dos autores por todos os defeitos existentes na obra dada a falta de projetos de arquitetura e outros e a falta de especialistas que orientassem e fiscalizassem a obra (conclusões 6 ª e 7ª);
5 - o afastamento da “culpa” da ré pelos defeitos da obra dada a essencialidade dos documentos (projetos de arquitetura) cuja junção foi requerida pela ré e o facto de não terem sido juntos (conclusão 8ª);
6 - a aceitação da obra pelos autores sem reserva, depois de concluída (conclusão 9ª);
7 - a falta de denúncia dos defeitos e a exceção de caducidade do direito dos autores (conclusão 10ª);
8 - a ilegalidade da cumulação de pedidos alternativos e a consequente absolvição da ré da instância (conclusão 11ª ponto 1);
9 - a falta de fundamento para condenação da ré no pagamento de quantia que venha a ser fixada em ação em que a mesma não tem intervenção (conclusão 11ª ponto 3);
10 - a consideração pelo Tribunal a quo de factos não alegados (conclusão 12ª);
11 - a impugnação da matéria de facto (conclusões 13ª a 23ª); e
12 - a procedência do pedido reconvencional (conclusão 24ª).
IV – Fundamentação:
1 – A nulidade do processado por ineptidão da petição inicial (conclusões 1ª, 2ª e 4ª):
Como resulta do relatório a ré/recorrente, em sede de contestação, alegou que o seu exercício do contraditório ficou prejudicado pela forma de articulação dos factos na petição inicial (e reiterou tal alegação ao longo de vários outros requerimentos), afirmando que a numeração dos documentos juntos à petição inicial nem sempre era visível e que tal articulado não cumpria o disposto nos artigos 552.º, número 1 d) e 147.º do Código de Processo Civil, impossibilitando-a do cumprimento do ónus de impugnação.
Segundo a ré, os autores não teriam articulado os factos por artigos da forma prevista o artigo 147.º do Código de Processo Civil, por não corresponder a cada artigo um único facto, por não ter sido seguida uma ordem cronológica dos acontecimentos e porque em vários artigos coabitam comentários e factos. Concluiu que “tais aspetos negativos não podem ser postergados”.
Em momento algum da contestação, a ré excecionou, contudo, a ineptidão da petição inicial ou pediu a declaração de nulidade do processado como prevista no artigo 186.º, número 1 do Código de Processo Civil.
Ora, o artigo 573.º do Código de Processo Civil obriga à concentração de toda a defesa na contestação, apenas se admitindo a dedução posterior de exceções que sejam supervenientes. A ineptidão da petição inicial constitui exceção dilatória conducente à absolvição do réu da instância, pelo que constitui defesa por exceção, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 572.º, número 2 segunda, 576.º, número 2 e 577.º b) parte do Código de Processo Civil. Assim deveria a ré ter invocado expressamente tal exceção em sede de contestação, o que não fez, pois se limitou a criticar a forma de exposição dos factos e de numeração dos documentos pelos autores e não afirmou não compreender a petição inicial nem que à mesma faltasse causa de pedir.
Vem agora a ré/recorrente, no recurso, defender que deveria ter sido absolvida da instância em sede de despacho saneador, o que diz ter arguido em na audiência prévia e na audiência de julgamento, porque o que apelida de “escrito inicial” não é uma petição inicial. Argumenta, agora, que os autores não alegaram factos essenciais de que dependia a sua pretensão o que a impediu de exercer o contraditório, do que resultou a nulidade da petição inicial nos termos do artigo 186º, número 1 a) do Código de Processo Civil que prevê a ineptidão da petição inicial quando falte ou seja ininteligível o pedido ou a causa de pedir.
Prevê o artigo 627.º, número 1 do Código de Processo Civil que “(as) decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos”. O recurso dirige-se assim à reapreciação de uma decisão e não a um segundo julgamento da questão decidida.
Segundo Castro Mendes[1] o objeto do recurso “é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ter sido proferida”, não sendo o nosso sistema de recursos ordinários em matéria civil um sistema de reexame, caso em que o “objeto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida”. Assim, e por isso, os recursos não podem ter por objeto questões novas, não colocadas ao tribunal a quo, salvo se forem de conhecimento oficioso, como decorre do disposto nos artigos 608.º, número 2 e 663.º, número 2 do Código de Processo Civil[2].
A ineptidão da petição inicial é de conhecimento oficioso, como decorre do artigo 196.º, do Código de Processo Civil. Tal conhecimento deve ocorrer, apenas e contudo, quando o tribunal verifique a ocorrência da nulidade.
Não é o caso.
De facto, nenhuma das censuras que a recorrente agora dirige à petição inicial tem fundamento. A mesma contém a alegação dos factos essenciais à procedência da sua pretensão e a mesma foi articulada de forma ininteligível. Os autores alegaram terem celebrado com a ré um contrato, que descreveram, afirmando que a mesma não concluiu a execução da obra a que se obrigou por via desse contrato, bem como afirmaram a sua execução com defeitos, que enumeraram, e que dizem ter denunciado à ré. Descreveram os danos sofridos e formularam pedidos em consequência dessa causa de pedir. É, pois, manifesto que a ação tem causa de pedir devidamente alegada na petição inicial e que a mesma é perfeitamente inteligível, o que a ré demonstra ao ter impugnado especificadamente a mesma e ao ter, também, apresentado uma diferente versão para parte dos factos alegados.
A ré não demonstrou qualquer dificuldade na interpretação e na contestação da petição inicial, que entendeu, como o tribunal, como contendo uma pretensão dos autores de verem reparados defeitos em obra que encomendaram à ré e a mesma se obrigou a fazer e de serem indemnizados pelos danos decorrentes do atraso na conclusão na obra e dos defeitos na sua execução.
Os autores, em sede de réplica, pronunciaram-se também sobre as exceções que a ré invocara na contestação e desse articulado resulta que os mesmos consideram que a ré interpretou corretamente a petição inicial, pelo que a ocorrer (e não ocorre) a ineptidão da petição inicial com base na alínea a) do número 2 do artigo 186.º do Código de Processo Civil sempre estaria sanada nos termos número 3 do mesmo artigo.
Pelo que improcede a primeira das vias em que se sustenta o recurso.
A sentença recorrida, depois do respetivo relatório, tem o seguinte teor:
“Da reformulação dos temas da prova:
Não pretendendo de forma alguma beliscar a grande qualidade e a cuidada reflexão inerente a elaboração dos temas de prova nos presentes autos, julga-se adequada uma reformulação dos mesmos.
Pretende o subscritor por um lado ater-se apenas aos factos essenciais, ou seja, factualidade constitutiva, impeditiva ou extintiva dos direitos litigados. Embora seja ainda hoje discutido se os factos instrumentais devem ou não ser objecto de pronúncia expressa na decisão final, julga o subscritor que, após a reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, é esse o sentido apontado pelo art. 5.º, n.º 1, do CPC. O complemento ou concretização dos factos essenciais a que se refere o art. 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, deve resultar da instrução da causa e não tem por isso lugar nos temas de prova. Quanto aos factos instrumentais a que se refere o art. 5.º, n.º 1, alínea b), do CPC, julga-se que o seu lugar é na motivação da decisão de facto e não no elenco dos factos provados. No sentido de centrar os temas de prova nos factos essenciais, e já em face dos princípios que informavam a elaboração da anterior base instrutória, opina Lebre de Freitas, in O Novo Processo Civil, Caderno I, publicação electrónica do Centro de Estudos Judiciários, Setembro de 2013, pp. 215 e 216.
Neste enquadramento, julga-se que os seguintes temas de prova extravasam o âmbito dos factos essenciais à discussão da causa:
a) “Direito de propriedade dos autores” – Estando em causa apenas a discussão sobre o cumprimento ou incumprimento de um contrato de empreitada, com eficácia relativa, a factualidade configurativa de um direito de propriedade não é essencial à discussão.
b) “Estado actual da obra” – A factualidade constitutiva do direito dos autores, no que respeita a esta enunciação, resume-se à existência dos defeitos alegados. Quanto à reconvenção temos apenas a factualidade respeitante às alterações acordadas à obra. Em ambos os casos foram enunciados temas de prova específicos não sendo necessária a manutenção de um tema de prova com esta amplitude.
c) “Modo e custo da reparação das anomalias” – Apenas o custo releva em face do pedido alternativo formulado. Não é peticionado, nem tem apoio legal, que o tribunal condene a ré a reparar defeitos por um específico método. Não foi alegado pela ré que as despesas com a reparação sejam desproporcionadas ao proveito, caso em que a especificação do método de reparação poderia ter relevância, ainda assim meramente instrumental.
d) “Litigância de má-fé” – Trata-se de instituto de conhecimento oficioso do tribunal, que dispensa a enunciação de um tema de prova próprio.”.
A recorrente insurge-se contra este trecho decisório alegando que o mesmo é causa da nulidade do julgamento por terem sido violados os artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa e 3.º, n.º, 3, 5.º, números 1 e 2, 613.º, números 1 e 3 e 620º, número 1 do Código de Processo Civil. Sustenta, em suma, que não foi observado o contraditório prévio sobre o que o Tribunal a quo considerou serem factos essenciais, complementares, concretizadores e instrumentais e que estava já transitada em julgada a decisão pela qual tinham sido enunciados os temas da prova. Diz ignorar se o Tribunal a quo já “orientou a sua atividade judicativa” com base na reformulação dos temas da prova. E conclui que estes não podiam ter sido alterados.
A produção de prova em processo civil tem por objeto nos termos do disposto no artigo 410.º do CPC os temas da prova enunciados. Tal redação tem sido alvo de críticas, a nosso ver justificadas, na medida em que a atividade instrutória tem por objeto e finalidade o apuramento de factos, e os temas da prova não correspondem necessariamente a factos ou grupos de factos[3].
O legislador não explicita em nenhum preceito o que sejam os temas da prova a selecionar nos termos do artigo 596.º, número 1 do Código de Processo Civil.
O que resulta claro do uso desse conceito, em contraponto com a anterior obrigação de seleção de factos assentes e a instruir, é que já não se exige em sede de saneamento a quesitação de cada facto controvertido, satisfazendo-se o legislador com a enunciação das questões de facto essenciais à decisão sobre que deve ser produzida prova [4].
É, pois, de admitir que a seleção dos temas da prova, tenha um caráter genérico e até que possa agrupar vários factos essenciais à decisão numa formulação ampla, por temas/assuntos relevantes, desde que tal seleção respeite os limites que decorrem da causa de pedir e das exceções invocadas, tendo em conta as soluções plausíveis de direito. Foi o que sucedeu nos autos.
No momento da sentença, todavia, o legislador já obriga a que se discriminem os factos que se julgam provados e não provados, como resulta do disposto nos números 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil [5].
E foi isso que fez o Mmº Juiz a quo que enumerou vários factos provados e não provados, apenas se tendo dispensado de o fazer relativamente àqueles que reputou irrelevantes para a decisão do mérito, como lhe competia, nos termos do artigo 5.º do Código de Processo Civil, de que se retira que apenas devem ser considerados pelo juiz os factos essenciais que constituem a causa de pedir e os que lhes sejam instrumentais, complementares ou concretizadores. Do disposto nos artigos 607.º, número 3 e 4 e 608.º do Código de Processo Civil resulta que o juiz só deve pronunciar-se sobre os factos que se revelem necessários à resolução das questões submetidas à sua apreciação. E, na motivação da sua convicção, deve o julgador indicar “as ilações tiradas dos factos instrumentais”, como resulta do número 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
Assim, a seleção dos factos provados e não provados a constar da sentença deve conter os que sejam essenciais às pretensões das partes, sendo os factos instrumentais (que tenham sido alegados, resultem da instrução ou tenham sido oficiosamente averiguados) úteis para a prova dos primeiros e não em si mesmos (salvo se deles resultar a aplicabilidade de presunção legal).
O que são os factos essenciais a cada pedido/exceção é questão que sempre tem de ser resolvida no confronto das pretensões das partes e o direito substantivo que pode suportar as mesmas.
Em resumo: os factos essenciais devem ser alegados pelas partes, apenas sendo lícito ao juiz considerar outros, não alegados, se forem complementares, instrumentais, notórios ou que sejam do seu conhecimento por virtude do exercício das suas funções. Estes últimos, contudo, não têm de ser selecionados no elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença (salvo se deles resultar a aplicabilidade de uma presunção legal), apenas cabendo referi-los na motivação da mesma, como previsto no número 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil.
Tendo presente estas considerações que visam o enquadramento da questão a resolver, verifica-se que a apelante não invoca a omissão de pronúncia sobre factos essenciais, apenas alegando que o Tribunal não podia ter eliminado alguns dos temas da prova.
Ora estes, como acima se referiu, não visam mais do que a delimitação das questões sobre que há de incidir a atividade probatória. Certo é que, estando os temas da prova enunciados não devem, por regra, ser alterados. Ou, pelo menos, uma vez verificado que os mesmos estão indevidamente enunciados por excesso, a melhor prática seria a de que tal fosse anunciado antes do início da audiência de julgamento, facultando-se o contraditório e decidindo-se pela sua eliminação, por forma que a atividade probatória já sobre eles não incidisse.
Assim não ocorreu nos autos. Todavia, não foram aditados novos temas da prova com que as partes não pudessem contar e nem o tribunal tomou conhecimento de factos não incluídos nos temas da prova fixados. Apenas anunciou que alguns dos temas da prova se reportavam a matérias que não relevavam para a decisão de mérito.
Os temas da prova também não se confundem com as questões a resolver na sentença, como estão previstas no artigo 608.º do Código de Processo Civil, que o Tribunal a quo enunciou e decidiu. A apelante, aliás, não invoca a omissão de pronúncia senão sobre a questão da propriedade do imóvel, que conheceremos de seguida, pela sua improcedência, pelas razões que infra se referirão e se resumem assim: a propriedade do imóvel em que foram executadas as obras pela ré é irrelevante para o conhecimento dos pedidos da ação e da reconvenção.
Assim, do facto de na sentença se não tomar conhecimento de todos os temas da prova não resulta qualquer consequência pois apenas a omissão de pronúncia sobre factos essenciais poderia determinar a sua anulação.
Acresce ainda afirmar que quanto aos concretos temas da prova antes fixados e que o Tribunal a quo entendeu de “eliminar” - ora por não terem interesse para a decisão do mérito, ora por terem uma amplitude desnecessária, ou, ainda, por serem redundantes -, verifica-se acertada a motivação do Tribunal a quo acima transcrita.
De facto, a questão da alegada propriedade dos autores sobre o imóvel em que foi feita a obra em nada releva para a apreciação das suas pretensões pois, estando em causa o cumprimento de um contrato de empreitada e baseando-se a ação e a reconvenção apenas e tão-só nessa relação contratual, é irrelevante saber a quem pertence o imóvel onde a mesma foi feita pois o dono da obra é, nos termos dos artigos 1207.º a 1209.º do Código Civil aquele perante quem o empreiteiro se obriga a realizar a obra, e o mesmo não tem necessariamente que ser proprietário (no caso de obra em imóvel) do prédio a construir/modificar. Tal qualidade resulta da celebração do contrato de empreitada e não de qualquer relação de domínio sobre o móvel ou imóvel em que será executada a obra[6].
Quanto ao tema de prova enunciado como “estado atual da obra” bem entendeu o Tribunal a quo que a ação se baseou na alegação de defeitos da mesma e a reconvenção na alegação de execução de trabalhos extra e de conclusão dos acordados. Pelo que só relevava apurar a existência dos alegados defeitos e quais os trabalhos efetivamente acordados e efetuados, o que foi feito (e já estava previsto noutro tema da prova), como resulta dos factos provados e não provados.
Também quanto ao modo de reparação “das anomalias” não se vê qualquer interesse na averiguação dos factos alegados a esse propósito, pois o pedido formulado (e cujo mérito foi conhecido) foi o de reparação dos defeitos e não o da sua correção por uma determinada forma. Quanto ao custo dessa reparação, tendo o Tribunal a quo absolvido a ré da instância quanto ao pedido, alternativo, de condenação no pagamento da mesma (e estando nessa parte transitada em julgado a sentença já que dessa absolvição não recorreram os autores), os factos atinentes a tal tema de prova tampouco relevam para a decisão do mérito. Diga-se, contudo, que a alegação desse custo foi conhecida pelo Tribunal a quo, tendo o respetivo facto sido dado por não provado.
Também a questão da litigância de má-fé, erigida em tema de prova, não é em si mesma um “tema” sobre que deva recair a atividade instrutória, mas, antes, uma “questão a resolver” (de conhecimento oficioso até), sem embargo de se deverem dar por provados ou não provados os factos em que a mesma pudesse assentar e que sejam relevantes para aferir da eventual dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento a parte não pudesse ignorar.
No caso, nenhuma das partes foi condenada como litigante de má-fé e nem o recurso tem por objeto tal trecho decisório pelo que a eliminação dessa questão como “tema de prova” não tem qualquer interesse para o sucesso do recurso. Note-se que foram os autores quem pediu a condenação da ré/recorrente como litigante de má-fé e viram tal pretensão improceder, com tal se conformando.
Assim, o trecho decisório em análise, embora se possa ter por desnecessário ou até indevidamente formulado (como sendo relativo à “alteração dos temas da prova”), mais não é do que a fundamentação do Tribunal a quo para a não indicação, nos factos provados ou não provados, dos que fossem relativos a tais temáticas, o que muitas vezes é feito no final da seleção dos factos provados ou não provados com a afirmação pelo tribunal - por vezes genérica e outras vezes mais detalhada -, de que não se faz referência a quaisquer outros dos factos alegados por se reputarem de irrelevantes para a decisão.
Pelo que também improcede a pretensão da apelante quanto a esta via argumentativa.
Pelas razões já acima expostas, também nesta alegação não tem a apelante razão.
A sentença é nula sempre que “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, como previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
O dever de o juiz decidir todas as questões que tenham sido submetidas à sua apreciação decorre do previsto no número 2 do artigo 608º do mesmo Diploma,
É aqui também oportuno convocar que acima já se referiu sobre o artigo 5º do Código de Processo Civil, preceito que estatui a obrigação das partes de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, bem como o artigo 552º, número 1 d) do mesmo Diploma, onde se prevê o ónus do autor de, além de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir indicar, também, as razões de direito que servem de fundamento à ação. Quanto ao direito, todavia, o já citado artigo 5º, no seu número 3, afirma que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
É no contexto destes ónus das partes e do tribunal que se deve procurar aferir o que são as questões cujo não conhecimento determina a nulidade da sentença.
Doutrina e jurisprudência têm entendido que apenas os assuntos que integram o “thema decidendum”, são verdadeiras questões que o tribunal tem o dever de conhecer, excluindo o dever de o Tribunal se pronunciar expressamente sobre todos os argumentos invocados pelas partes.
Em 16-11-2023 o Supremo Tribunal de Justiça mais uma vez reafirmou tal entendimento ali se podendo ler que: “(…) a nulidade por omissão de pronúncia está diretamente relacionada com o comando previsto no art. 608.º, n.º 2, do CPC, sancionando a sua inobservância. O dever consagrado neste preceito diz respeito ao conhecimento, na sentença ou no acórdão, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentados pelo Autor (ou, eventualmente, pelo Réu/Reconvinte) suscitam quanto à (im)procedência do pedido formulado. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão suscitada pelas partes (sujeitos), e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir, e a questão resolvida pelo Tribunal, identificada por estes mesmos elementos. Só isto releva para a resolução do pleito. E é por isso mesmo que já não importam os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos - embora possa ser conveniente que o Tribunal os considere para que a decisão vença e convença as partes - de que as partes se socorrem quando se apresentam a demandar ou a contradizer, para fazerem valer ou naufragar a causa posta à apreciação do Tribunal. É de salientar ainda que, de entre a questões essenciais a resolver, não constitui nulidade o não conhecimento daquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela decisão de outra.”[7]
Ora, no caso dos autos é manifesto que se conheceu do objeto da ação e de todas as questões levantadas pelas partes.
Como acima se afirmou, a propriedade do imóvel em que foram feitas as obras objeto dos autos, apesar de afirmada pelos autores na petição inicial, não é objeto de qualquer pedido e nem faz parte da causa de pedir sendo absolutamente irrelevante para a aferir da eventual responsabilidade contratual da ré, enquanto empreiteira, pelo cumprimento defeituoso ou incumprimento das suas obrigações contratuais perante os dons da obra/comitentes.
Improcede, assim e também, a nulidade em epígrafe, por não ocorrer omissão de pronúncia.
5 – O afastamento da “culpa” da ré pelos defeitos da obra dada a essencialidade dos documentos (projetos de arquitetura) cuja junção foi requerida pela ré e o facto de não terem sido juntos (conclusão 8ª).
Na medida em que a argumentação dos apelantes para fundar estas duas questões é em parte comum, as mesmas serão apreciadas em conjunto.
Para a sua apreciação é relevante convocar o teor de alguns artigos da contestação apresentada pela ré:
Artigo 61: “Os trabalhos de execução da obra, em todas as especialidades, foram executados com integral respeito pelos projectos de cada especialidade, com fiscalização do Eng. CC e de técnicos do Gabinete de Arquitectura, que elaborou o projecto, denominado “...”;
Artigo 90º: “Naturalmente, o projecto que foi deferido, cujo processo tem o referido n.º
1467, foi elaborado por arquitectos”.
Artigo 91º: “Que não terão deixado de fazer sentir aos DEMANDANTES a necessidade de, após a aprovação do projeto de arquitectura, a licença só ser emitida contra a entrega dos elementos que a notificação referida exigia”.
Em momento algum os réus se defenderam na contestação pela alegação de que a obra foi executada sem que tenham sido realizados projetos de arquitetura ou das especialidades, como agora alegam, nem, por consequência, que a falta desses projetos e da respetiva fiscalização tenha sido a causa dos defeitos. Pelo contrário.
Como acima se referiu já a propósito do conhecimento da primeira questão a resolver, os recursos não podem ter por objeto questões novas, não colocadas ao tribunal a quo, salvo se forem de conhecimento oficioso - como decorre do disposto nos artigos 608.º, número 2 e 663.º, número 2 do Código de Processo Civil - e os réus devem concentrar na contestação toda a defesa, como decorre do artigo 573.º do Código de Processo Civil.
Ora, não só a ré/apelante, não alegou a inexistência de quaisquer projetos de arquitetura e de especialidade em momento próprio, como afirmou mesmo que estes existiam e que “(os) trabalhos de execução da obra, em todas as especialidades, foram executados com integral respeito pelos projectos de cada especialidade, com fiscalização do Eng. CC e de técnicos do Gabinete de Arquitectura, que elaborou o projecto, denominado “...”. Pelo que não pode agora sustentar o contrário.
De todo o modo, também não deixará de se afirmar que ainda que assim não fosse, a alegação da apelante de que os defeitos da obra apenas se podem dar por provados no confronto com os referidos projetos não é correta, pois os defeitos podem ser não só as desconformidades entre a obra executada e a acordada, como os vícios consistentes nas imperfeições que excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário ou o previsto no contrato[8]. São deste segundo tipo a maioria dos defeitos alegados e dados por provados e, quanto às desconformidades com o que foi acordado, os autores alegaram-nas no cotejo com o orçamento feito pela ré e que é anexo ao contrato de empreitada, alegado e dado por provado. Foi por remissão dos outorgantes para o teor desse orçamento - que faz parte integrante do contrato de empreitada - que as partes fixaram as caraterísticas da obra a realizar, pelo que a falta de junção dos projetos que a ré/recorrente agora alega inexistirem não tem qualquer relevo para a prova dos defeitos alegados.
Acresce que também não tem razão a recorrente quando pretende que a violação das “disposições urbanístico-administrativas” pelos autores (decorrente do início da execução da obra sem aprovação da necessária licença), é decisiva “na avaliação jurídica do caso dos autos”, sem, contudo, concretizar em que medida. Para a apreciação dos pedidos e respetivas causas de pedir da ação e da reconvenção – que, como se disse e repete, são inteiramente decorrentes da celebração de um contrato entre as partes -, é absolutamente irrelevante apurar se os autores, ou a própria ré, cumpriram ou não as suas obrigações perante a administração local quanto ao licenciamento da obra.
Pelo que também quanto a estas vias argumentativas, improcede a pretensão da apelante
7 – A falta de denúncia dos defeitos e a exceção de caducidade do direito dos autores (conclusão 10ª).
Uma vez mais o conhecimento destas duas questões apela a análise de argumentos comuns e à aplicação de conceitos de direito que se relacionam intrinsecamente, pelo que será feito em conjunto.
Relembremos o que alegou a ré na contestação a propósito da aceitação da obra pelos autores e da denúncia de defeitos/reclamação:
“9. Os DEMANDANTES sempre tiveram a sua residência permanente no apartamento ajuizado, durante a execução da obra.
10. Diariamente acompanharam e verificaram a execução da obra, cumprindo o dever que lhes cominava o n.º 1 do art.º 2018.º do C.C.
11. Os DEMANDANTES receberam e aceitaram, assim e diariamente, a obra sem terem feito qualquer reclamação.
12. Pelo que, nos termos do art.º 1218.º do C.C, aceitaram a obra, sem reservas. (…)
147. A verificação da execução da obra foi assim feita diariamente pelos DEMANDANTES, que, no decurso e no termo da obra, não reclamaram da existência de qualquer vício de construção da obra.
148. Só, algum tempo após, reclamaram dos “maus cheiros” que dizem, se faz sentir, mas que não têm qualquer relação com a obra executada pela DEMANDADA, pois estão relacionados, como atrás se demonstrou, com a natureza das canalizações colectivas do prédio.”.
A apelante entende que da conclusão e da aceitação da obra pelos autores sem reservas decorre que os mesmos não podem exercer os direitos que reclamam na ação relativos à indemnização dos defeitos. Sustenta, ainda, a caducidade da ação defendendo a inaplicabilidade do DL 67/2003 de 8 de abril porque as suas normas “visam o comércio de produtos em massa e não uma obra de construção civil que é uma singularidade”.
Note-se que a ré não impugna a matéria de facto dada por provada nas alíneas y) a z) dos factos provados, pelo que é possível o conhecimento da questão da caducidade independentemente do que venha a ser decidido quanto à matéria de facto impugnada.
A caducidade é uma exceção perentória que não é de conhecimento oficioso, salvo quando esteja estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes – cfr. artigos 576.º, número 3 do Código de Processo Civil, 298º, número 2 e 333.º, número 1 do Código Civil.
No caso está assente que entre as partes foi celebrado um contrato de empreitada – tal como definido no artigo 1207.º do Código Civil, qualificação de que não divergem as partes. Ou seja, no domínio da liberdade contratual, estamos situados em matéria que está na livre disponibilidade das partes. Cumpria, assim, à ré excecionar a caducidade, nos termos do artigo 303.º do Código Civil que impõe que a mesma seja invocada por aquele a quem aproveita.
A ré invocou-a na contestação alegando que decorreu mais de um ano entre a data da denúncia dos defeitos pelos autores e a propositura da ação (artigos 20 a 22, 24 da contestação). Em sede de recurso, e uma vez mais, a ré/recorrente defende que decorreu mais de um ano entre a denúncia dos defeitos e a propositura da ação, pelo que o que a mesma coloca em causa é o atempado exercício do direito de exigir a eliminação dos defeitos/indemnização e não da denúncia. Alega, ainda, que “o dono da obra não pode intentar a ação com base em defeitos, sem primeiro fazer o empreiteiro antes das descoberta dos defeitos” (é patente o lapso de escrita querendo a recorrente dizer “primeiro fazer saber” e não “primeiro fazer”). Todavia a recorrente afirma também que “os autores apresentaram a denúncia de defeitos em 08-07-2018 e que intentaram a ação em 26-02-2020” (cfr. conclusão 10.5).
Pelo que o Tribunal a quo salientou, e bem, que não estava em causa a eventual caducidade da denúncia dos defeitos à ré (afirmando, corretamente, que esta não alegou em que data os autores detetaram tais defeitos), mas apenas a caducidade da ação.
A recorrente entende que foi indevidamente aplicado o regime previsto no DL 67/2003, de 8 de abril.
O Tribunal a quo fundou a sua aplicação da seguinte forma: “Embora este diploma tenha por referência mais nominal os contratos de compra e venda, nos termos do seu art. 1.º-A, n.º 2, o presente decreto-lei é, ainda, aplicável, com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, bem como à locação de bens de consumo.
Consumidor para efeitos do supra transcrito art. 1.º-A, n.º 1, é aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, definição que resulta do art. 1.º-B, alínea a).
Destinando os autores o apartamento a remodelar a uso pessoal, como é a habitação, como resulta da alínea d) dos factos provados, são qualificados como consumidores para efeitos de aplicação do diploma citado.
Sendo a ré uma sociedade comercial, cujo objecto visa o lucro económico, e que consiste precisamente na construção civil e reabilitação de imóveis, é esta qualificável como profissional, nos termos da norma supracitada.
O estatuto contratual a ter em conta na presente decisão é assim formado pelo clausulado do contrato, pelo diploma ora mencionado, e pelo regime do contrato de empreitada previsto nos arts. 1207.º e ss., do CC".
Concordamos com o teor desta fundamentação, que acompanhamos.
De facto, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de maio, aplicável ao contrato dos autos dada a qualificação dos autores como consumidores, resultam os seguintes normativos, aplicáveis à empreitada de consumo e à responsabilidade por defeitos da obra:
Artigo 1.º-A, número 2: “O presente decreto-lei é, ainda, aplicável, com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, bem como à locação de bens de consumo”.
Artigo 2.º, n.º 2: “ Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem”.
Artigo 4.º, número 1: “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.”.
Artigo 5º-A, número 3: “Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data”.
Assim, estando provado que a denúncia dos defeitos ocorreu a partir de 8 de julho de 2018, é manifesto concluir que a propositura da ação em 26-02-2020 foi tempestiva.
A tal conclusão não obsta a alegada aceitação da obra pelos autores.
A aceitação da obra sem reservas está alegada nos artigos 11 e 12 da contestação, admitindo a ré que em maio, junho e julho de 2018 os autores fizeram algumas reclamações.
Da aceitação da obra sem reservas decorre que o empreiteiro não responde pelos defeitos desde que o dono a tenha aceitado com conhecimento dos mesmos. No caso, como já acima salientado e afirmado na sentença recorrida, não foi alegado em que momento tiveram os autores conhecimento dos defeitos que denunciaram e dos factos provados não resulta, portanto, a conclusão de que a aceitação da obra tenha ocorrido com conhecimento dos defeitos e nem sequer, aliás, que tenha havido aceitação da obra, desconhecendo-se até em que data a mesma foi concluída pela ré (já que os autores também alegam que também ficaram trabalhos por executar, não estando assim a obra terminada). Está controvertido (porque impugnado neste recurso), o seguinte facto não provado: “Que em Fevereiro de 2018 a ré tivesse terminado todos os trabalhos aludidos em a), c) e f), e os tivesse colocado à disposição dos autores para verificação, que depois os aceitaram (arts. 8.º, 11.º, 141.º e 147.º da contestação).” Contudo, ainda que se provasse tal facto, dele não resulta necessariamente que os autores, nessa data, tivessem conhecimento dos defeitos que a própria ré alega que foram por eles denunciados em maio, junho e julho de 2018. Apenas no caso de se concluir que se tratavam de defeitos aparentes, nos termos do artigo 1219.º, número 2 do Código Civil se poderiam presumir que os mesmos eram do conhecimento do dono da obra no momento da aceitação.
Ora a ré alegou que a aceitação da obra ocorreu em fevereiro de 2018, após o termo da mesma e a sua entrega aos autores e verificação da mesma por estes. Ainda que se provasse tal facto – dado por não provado e impugnado em sede de recurso -, da descrição dos defeitos denunciados a partir de junho de 2018 e dados por provados não resulta que se tratassem de defeitos aparentes. Ficaram provados maus cheiros, manchas, quebra de tijoleira, impermeabilização deficiente, rutura de ripado de porta, ligeiras imperfeições na aplicação de calha de led, empolamento de armários, insuficiente cota de esgoto, riscos no chão, desafinação de porta, oscilação de batente, cedência em portas de correr, queda de portas, diferença de 2 mm na espessura prevista para o revestimento da ilha e da banca da cozinha e outros defeitos que, todos, pela sua natureza, podiam ter surgido apenas depois da entrega e que não eram necessariamente visíveis num momento de vistoria/aceitação. E a ré, repetimo-nos, não alegou que os mesmos fossem visíveis no momento a entrega.
Pelo que a eventual aceitação da obra, desacompanhada da alegação e prova da natureza aparente dos defeitos ou do seu prévio conhecimento pelos autores em nada releva para a decisão dos autos, improcedendo também este argumento da apelante.
A apelante insurge-se contra a decisão que o Tribunal a quo proferiu na decorrência da consideração de que a cumulação dos pedidos alternativos formulados na petição inicial era ilegal.
Não discorda da afirmação pelo Tribunal a quo de que tais pedidos são incompatíveis entre si, mesmo que formulados em alternativa. Entende, contudo, que competia aos autores e não ao Tribunal a quo “escolher o pedido” em que condenou a recorrente. Afirma, que foi “absolvida do pedido preterido, quando devia ter sido absolvida da instância”.
Ora, não foi assim, de facto.
Quanto ao que qualificou de cumulação ilegal de pedidos é o seguinte o teor da sentença recorrida:
Os autores peticionam, em alternativa, a condenação da ré a proceder à eliminação dos defeitos por si alegados ou a pagar-lhes o custo de tal reparação, no valor de €90.607,95.
Nos termos do art. 553.º, n.º 1, do CPC, é permitido fazer pedidos alternativos, com relação a direitos que por sua natureza ou origem sejam alternativos, ou que possam resolver-se em alternativa.
Ora os direitos à eliminação de defeitos e indemnização do montante necessário à sua eliminação num contrato de empreitada, que é o que está em causa, como infra se analisará, não são, no âmbito dos arts. 1221.º e 1222.º, do CC, alternativos. A mesma solução decorre do art. 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio.
Considerando, o tribunal apreciará apenas o pedido de eliminação de defeitos e absolverá a ré da instância quanto ao pedido do pagamento do custo da reparação, por formulação ilegal de pedido alternativo, excepção dilatória inominada, nos termos do art. 576.º, n.º 2, e 577.º, do CPC.”
Sob a alínea C do seu trecho decisório a sentença tem o seguinte teor: “Absolver a ré da instância quanto ao pedido de condenação a pagar aos autores noventa mil seiscentos e sete euros e noventa e cinco cêntimos (€90.607,95), elencado na alínea b) do petitório”.
Pelo que manifestamente não é correta a afirmação da ré/recorrente de que foi absolvida desse pedido e que devia ter sido absolvida da instância.
Se com essa afirmação a mesma quer defender (embora expressando-se incorretamente) que da cumulação ilegal deveria ter decorrido a sua absolvição da instância em relação a todos os pedidos, tampouco tem razão.
É que, ao contrário do que foi afirmado na sentença, a lei permitia aos autores formular pedidos alternativos, nos termos do artigo 553.º do Código de Processo Civil, de reparação/eliminação dos defeitos ou de indemnização com vista à mesma.
Dispõe aquele preceito que “(é) permitido fazer pedidos alternativos, com relação a direitos que por sua natureza ou origem sejam alternativos, ou que possam resolver-se em alternativa”.
Nos termos do já acima referido artigo 4.º, números 1 e 5 do DL 67/2003, o dono da obra que apresenta desconformidades, tem, opcionalmente, e, sem qualquer precedência legal, os direitos à reparação, à substituição da obra, à redução do preço e à resolução do contrato.
Quanto ao direito à reparação da obra pode ser exercido por via da exigência de indemnização com vista a custear a mesma, não obrigando a lei, no caso da empreitada de consumo, a que o comitente exija do empreiteiro a reparação antes do exercício de qualquer outro direito decorrente dos defeitos a reparar. Assim tem sido unanimemente decidido pela jurisprudência, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça[9] e deste Tribunal[10]. Como defende Cura Mariano[11], “(se) relativamente ao conteúdo dos direitos do dono da obra, o regime da empreitada de consumo não apresenta significativas especialidades, já quanto ao modo de articulação dos diferentes direitos no seu exercício existe uma diferença substancial. Enquanto no regime do CC vigoram regras rígidas que estabelecem várias relações de precedência e subsidiariedade entre aqueles direitos, que condicionam severamente o seu exercício, no âmbito do D.L. nº 67/2003 os direitos do dono da obra consumidor são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas restringida pelos limites impostos pela proibição geral do abuso de direito (…). Em princípio, perante a existência de faltas de conformidade na obra realizada, o dono desta pode exercer livremente qualquer um dos direitos conferidos pelo art.º 4º nº 1, do D.L. nº 67/2003”.
Pelo que discordamos da conclusão a que chegou o Tribunal a quo quando afirma que é ilegal a dedução de pedidos alternativos. No caso, podia a autora tê-los deduzido da forma como o fez e podia e devia a condenação ter sido também ela alternativa.
Caberia então à ré (e não aos autores, como defende a apelante), durante a pendência da ação ou posteriormente, escolher a obrigação a cumprir, permitindo a lei que tal escolha fosse feita até em sede de processo executivo – cfr. artigo 714.º, número 1 do Código de Processo Civil.
Tendo-se os autores conformado com a absolvição da ré da instância quanto a um dos pedidos alternativos e não pondo a recorrente em causa essa absolvição – já que o que defende e pretende não é a sua condenação nesse pedido ou nos dois pedidos formulados em alternativa, mas a absolvição da instância relativamente a todos os pedidos -, não há por que revogar a sentença nessa parte. A mesma transitou em julgado na parte em que absolveu a ré da instância quanto ao segundo pedido alternativo e não ocorre qualquer nulidade na dedução dos pedidos alternativos que importe a anulação do processado.
Pelo que também nesta parte improcede o recurso.
A apelante insurge-se pelo facto de ter sido condenada a pagar aos autores quantia que decorrerá da decisão de outra ação, em que diz não ter intervenção, nela não se podendo defender.
Está em causa uma condenação genérica, prevista e permitida pelos artigos 609.º, número 2 do Código de Processo Civil e 564.º, número 2 ex vi artigo 1223.º do Código Civil, onde se prevê que no caso de danos futuros previsíveis possa a condenação no dever de indemnizar ser liquidada em decisão ulterior.
A referida condenação tem o seguinte teor: “Condenar a ré a pagar aos autores quantia a liquidar em decisão ulterior, correspondente ao montante da indemnização que os autores paguem aos vizinhos do 2.º andar direito e 3.º andar esquerdo para reparação dos danos consequentes às infiltrações de água aludidas nas alíneas k) e t) dos factos provados”.
Não é, assim, correta a leitura que a recorrente faz da sentença para sustentar a sua revogação.
A sentença recorrida condenou-a não no pagamento do que vier a ser decidido noutra ação, mas em montante a liquidar posteriormente, em incidente, portanto, em que a ré será ouvida e terá oportunidade de exercer contraditório e apresentar prova, nos termos do artigo 360.º, número 3 do Código de Processo Civil. A sentença estabelece, ademais, como limite para essa condenação o que os autores efetivamente venham a pagar aos vizinhos do segundo andar direito e do terceiro esquerdo, para reparação dos danos que sejam consequentes a defeitos – infiltrações -, que ficaram provados. Ou seja, não condena a ré a pagar aos autores a quantia em que venham a ser condenados, mas a pagar o valor que os autores efetivamente paguem e que decorra dos defeitos provados nesta ação.
No ulterior incidente de liquidação poderá a ré, portanto, contraditar nomeadamente os valores que os autores aleguem ter pago e também o nexo entre os danos porque tenham efetivamente indemnizado os seus vizinhos e os defeitos da sua obra.
Pelo que, uma vez, mais, falha tal via argumentativa.
Repetindo a alegação de que a petição inicial não contém a alegação dos factos essenciais de forma rigorosa e suficiente, a apelante afirma que também a fundamentação de facto da sentença “é uma construção sem qualquer correspondência com proposições de facto” descritas na petição inicial e que recorreu apenas a algumas alusões daquele articulado, mas também à contestação e a um documento junto pelos autores. Afirma a apelante que na sua fundamentação de facto a sentença se baseia “um arrazoado desconexo e impreciso, feito com alegorias e hipérboles” e que, por isso, não lhe foi assegurado o direito a um processo equitativo, e nem a efetiva tutela dos seus direitos de defesa. Para além destas afirmações absolutamente vagas e (elas sim!) imprecisas e hiperbolizadas, a apelante não indica, contudo, qualquer facto concreto que tenha sido julgado provado apesar de não alegado, o que apenas vem a fazer mais adiante, em sede de impugnação da matéria de facto, quanto ao teor da alínea s) dos factos provados (conclusão 17ª). Pelo que aquando do conhecimento dessa questão será apreciado se os factos contidos nessa alínea não foram alegados.
No mais, nenhuma das censuras dirigidas à sentença recorrida que acima se transcreveram é fundada, sendo manifesto que os factos provados e não provados resultam do que foi alegado nos articulados das partes, com as concretizações que resultam dos meios de prova apreciados pelo Tribunal a quo.
Note-se que em cada alínea dos factos provados e não provados o Tribunal a quo insere mesmo os artigos da petição inicial, da contestação e da réplica de que derivam.
Pelo que também improcede esta via argumentativa da recorrente.
A recorrente indicou os concretos pontos de que discorda, a decisão que se impunha, a seu ver, quanto a cada um deles e os meios de prova em que sustenta a sua alteração, tendo, no caso da prova gravada, indicado as passagens das gravações tidas por relevantes e até transcrito as mesmas. Pelo que estão cumpridos os ónus previstos no artigo 640.º números 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Uma vez mais deve afirmar-se que o recurso visa, também nesta parte, o reexame de uma decisão e não a reapreciação da causa. Assim sendo, não está em causa efetuar um novo julgamento dos factos, mas apenas a reapreciação da prova indicada por recorrente e recorridos (em sede de contra-alegações) e de outra que se venha a revelar necessária, por forma a aferir se a decisão do Tribunal a quo sobre os concretos pontos impugnados merece censura.
Serão, assim, reapreciados os meios de prova indicados no pressuposto de que o Tribunal da Relação tem competência própria em matéria de facto, do que decorre autonomia decisória na sua reapreciação, cabendo-lhe efetuar uma avaliação crítica das provas de que pode resultar uma convicção diversa da gerada no tribunal recorrido [12].
Em sede de reapreciação dos meios de prova vigora também, o princípio da livre apreciação da prova pericial e testemunhal previsto nos artigos 389.º e 396.º do Código Civil. Deve, contudo, uma vez que há já uma decisão sobre a matéria de facto – de que se recorre -, ter-se também presente a fundamentação da mesma feita pelo Tribunal a quo para aferir se, de acordo com o que resulta das gravações dos depoimentos e demais elementos de prova, a apreciação crítica que está espelhada na motivação da sua convicção se ancora ou não em regras de experiência e de lógica, bem como para apurar se ocorreu erro na referida apreciação.
- Alínea h) dos factos provados, que a apelante quer que passe a não provada:
Tem o seguinte teor: “Até Outubro de 2021 a sala de estar do apartamento apresentava cheiro a esgoto (artº 7º e 18º da petição inicial)”.
Entende a apelante que do relatório pericial decorre que na data em que o mesmo foi feito não se verificava mau cheiro naquele local e que da motivação da sentença não resulta em que meio de prova se sustentou tal alínea. Convoca, ainda, o depoimento da testemunha DD, que transcreveu em parte.
A prova desta alínea está fundada no relatório pericial e nos esclarecimentos ao mesmo, mas não só. Também foram relevados outros meios de prova, em concatenação com tal relatório: o teor de documento junto pelos autores e referente a uma vistoria à obra feita por terceiro a seu pedido em outubro de 2019 e os depoimentos de EE, FF, GG e de HH.
EE foi o empreiteiro contratado pelos autores para efetuar algumas das reparações necessárias e confirmou no essencial, de forma explicativa e segura, o teor do relatório que elaborou a pedido dos autores e está junto com a petição inicial como documento número 3.
FF inspecionou o apartamento dos autores em 2020 (ano em que surgiu o Covid, entre fevereiro e junho, segundo referiu) e revelou-se muito seguro na explicação do orçamento que fez para reparação do que no seu entender estava mal feito, tendo referido expressamente o mau cheiro, a esgoto, sobretudo na lavandaria, no escritório e na sala. Esta testemunha orçamentou a obra, mas depois não teve disponibilidade para a executar quando o autor pretendia, pelo que este contratou outro empreiteiro.
Também GG e de HH confirmaram tais odores. A primeira destas duas últimas testemunhas, arquiteta, disse ter amigos comuns com os autores e ter ido ao imóvel em causa a pedido deles, por terem problemas que entendiam serem decorrentes de uma obra, o que a mesma confirmou. Quanto aos maus cheiros disse tê-los detetado na primeira vez que foi à obra, mas já não na segunda. O seu depoimento revelou-se credível.
HH disse ser amiga da mãe da autora e ter ido algumas vezes à casa dos autores na companhia da sua amiga, tendo a primeira vez sido numa altura em que eles habitavam apenas uma pequena parte do apartamento, sem acesso à parte que estava em obras. Mais tarde voltou quando o apartamento, duplex, já estava ligado à outra parte. E nessa altura, disse, sentiu mau cheiro nos dois andares, nomeadamente na suite, no escritório, na lavandaria e na suite do casal. O que contraria a afirmação da recorrente de que da perícia resulta que não havia maus cheiros senão na lavandaria.
Com base nestes depoimentos e no documento número 3 junto à petição inicial o Tribunal a quo entendeu que, muito embora os senhores peritos não tenham podido confirmar a existência dos maus cheiros noutros locais além da lavandaria no dia em que inspecionaram o apartamento, tal não punha em causa o que resultou desses outros meios de prova. O que explicou de forma clara e fundamentada: os senhores peritos não afastaram a possibilidade de tais cheiros se sentirem de facto – não sendo necessário que se sintam a todo o tempo -, e esclareceram que quando foram visitar o imóvel com vista à realização da perícia a mesma já estava desabitada, fechada, portanto, o que poderia explicar que não tenham sentido tais odores (com exceção feita à zona da lavandaria, em que também os sentiram).
Quanto ao depoimento de Abel Oliveira (um dos trabalhadores por conta própria, canalizador, que executou a obra em regime de prestação e serviços) que a recorrente convoca, e mesmo atendendo apenas à parte que indica, verifica-se que tal testemunha apenas referiu uma concreta perceção de maus cheiros em obra, durante a sua execução, afirmando que foi logo resolvido o problema, mas desconhecendo se depois da obra concluída ressurgiu. Afirmou que deixou de ir à obra desde a sua entrega no início de 2018 e admitiu expressamente que “poderá eventualmente haver maus cheiros”. Segundo ele, a eliminação de uma antiga casa de banho que passou a sala obrigou a que se tivesse de fechar um esgoto que ali tinha ficado aberto, o que resolveu o problema. A instâncias da Ilustra mandatária dos autores a referida testemunha afirmou, contudo, “não estar a par” de problemas de maus cheiros provenientes do ar condicionado, origem possível dos mesmo apontada pelos peritos no relatório pericial (cfr. resposta ao quesito 39 a fls. 11 do mesmo).
Confrontado com uma comunicação de junho de 2018 em que o legal representante da ré referia expressamente ter-se tentando corrigir algumas patologias sem sucesso bem como com o relatório pericial a dar conta de várias patologias da obra, nomeadamente quanto aos cheiros em certos locais disse “não tenho que explicar nada” apesar de ter afirmado que a questão dos maus odores ficou resolvida durante a execução da obra.
Pelo que, em face destes meios de prova, se mantém o teor da alínea h) dos factos provados.
Tem o seguinte teor: “Até Outubro de 2021, o terraço, placa, varanda e muretes do apartamento estavam mal impermeabilizados, o que era causa de infiltrações de água no interior do apartamento e no apartamento do vizinho do 3º andar esquerdo (artsº 22º,25º,27º da petição inicial)”.
A apelante entende que o seu teor é conclusivo e que da motivação da sentença não se alcança como se chegou a tal conclusão. Afirma, ainda, que da sua redação resulta que os referidos defeitos deixaram de existir a partir de outubro de 2021.
Segundo a leitura que a recorrente faz do relatório pericial (indicando os pontos desse relatório que tem por relevantes), e dos esclarecimentos prestados pelos peritos resulta não provado que haja infiltrações decorrentes de má impermeabilização, pois não foram feitos testes de estanquicidade nem a observação que fizeram os peritos permite apurar a origem das infiltrações.
Convoca, ainda, a gravação dos esclarecimentos prestados pelos peritos II e JJ, que transcreve em parte. E defende que foram indevidamente valorados pelo tribunal quer um relatório particular feito a pedido dos autores quer os depoimentos de EE, KK e FF, que também transcreveu na parte que julgou relevante.
A afirmação de que ocorreram infiltrações de água no interior do apartamento dos autores e do vizinho porque foram indevidamente impermeabilizados os terraços, muretes, varandas e placa não é conclusiva, consistindo na mera afirmação do nexo causal entre vício e a sua origem, muito embora seja algo genérica a afirmação de que esta seja a deficiente impermeabilização, sem concreta descrição desse erro de construção.
Todavia, da prova feita não resultou que as referidas infiltrações tivessem uma única causa, mas apenas que podiam resultar de várias deficiências relativas à forma como foram aplicados revestimentos, soleiras, telas e rufos. Como é comum, aliás, a deteção da concreta causa das infiltrações é difícil, sendo, todavia, seguro afirmar que a mesma decorreu, segundo a perícia feita, de erros de construção relativos às técnicas de impermeabilização.
Do relatório pericial (fls. 5 a 8 e 28) resulta, de facto, e ao contrário do que alega a recorrente, a confirmação quer de várias infiltrações quer da multiplicidade das suas causas possíveis, sendo todas elas relativas à forma de impermeabilização efetuada pela ré.
Dele resulta nomeadamente que:
- “existem vestígios de entrada de água da chuva na caixa da escada” desconhecendo os peritos a sua proveniência;
- “as juntas dos inox dos muretes estão mal rematadas o que poderá originar infiltrações”;
-existem infiltrações no andar inferior (referindo-se ao andar do vizinho que consta do respetivo quesito 18) “cuja causa será a má impermeabilização daqueles espaços cuja causa especíca se desconhece”;
- há infiltrações no imóvel do 3º andar esquerdo derivadas do imóvel dos autores;
- os peritos concordaram, na resposta aos quesito 22º e 23º, com a solução proposta pelo perito que fez o relatório a pedido dos autores para solucionar tais patologias e que passa pelo levantamento total das cerâmicas e telas e colocação de nova tela, dobrada, e colocação de “microcimento ultratop Loft Mapei” bem como pelo levantamento das cerâmicas e rufos e da guarda e proteção do murete e sua recolocação;
- afirmaram os peritos que a soleira existente no terraço está mal aplicada e concordaram com o relatório apresentado pelos autores quando ali se propõe a retirada dos elementos existentes e recolocação “de rufo inox selado na caixilharia, colado e não aparafusado”;
- a infiltração no piso superior do imóvel dos autores causou manchas de humidade no teto e no chão junto à porta da suite, bem como o afastamento a parede do aro da porta (cuja fotografia está junta na resposta ao quesito 59 revelando o empolamento dessa madeira).
Do que resulta que a perícia é clara em confirmar a alegação da existência de infiltrações causadas por indevida impermeabilização, que a mesma tem várias causas possíveis e que pode ser corrigida por via de intervenções diversas, bem como que se alastra para o prédio vizinho, do mesmo andar.
Não é correta a afirmação da apelante que da redação dada à alínea em apreço resulte que as infiltrações deixaram de existir desde outubro de 2021, sendo essa data obviamente referida como aquela em que foi feita a visita ao local pelos peritos (9 de outubro de 2021, como resulta da primeira página do relatório), após o que os autores já tiveram de efetuar reparações no imóvel.
Acresce que nos esclarecimentos prestados, e como a própria apelante admite, os peritos afirmaram que não lhes foi possível verificar com certeza as causas das infiltrações por mera observação visual. Se a ré pretendia que a perícia fosse mais precisa e comportasse testes de estanquicidade poderia ter pedido uma segunda perícia ou que a mesma fosse completada. Todavia, perante a notificação do relatório pericial limitou-se a pedir a comparência dos peritos em audiência de julgamento (requerimento de 14-02-2022).
Ora, nessa audiência de julgamento foi afirmado pelos mesmos, e como a própria apelante transcreve, que “o problema terá a ver com o sistema de impermeabilização que não é visível, mas que em princípio não estará bem executado”. Também em audiência de julgamento foi afirmado pelos peritos que “não tiveram dúvidas de que existiam infiltrações e que elas eram visíveis no andar por baixo”. Esclareceram ainda que na altura em que foram à obra não havia água tendo mesmo a ideia de que seria verão (era outono, mas desta resposta presume-se que senhor perito tinha memória de que o tempo estaria seco e ainda quente). Explicaram ainda os peritos, a instâncias do mandatário da recorrente que não fizeram qualquer ensaio (que se sabe que passa normalmente pela colocação de grande quantidade de água para observar o seu trajeto), porque não estavam autorizados a tanto.
Quanto aos depoimentos gravados que a apelante convoca, foram ouvidos e deles não resulta infirmada a conclusão a que chegou o Tribunal a quo.
EE (e não ... como está identificado na gravação) disse ter um amigo comum ao autor. O autor tê-lo-á contactado para ir ver umas obras numa casa dele, que foram indevidamente executadas, o que ele fez em janeiro de 2022, num dia em que chovia, o que lhe permitiu verificar as infiltrações. Disse que se “revia a cola a sair do pavimento” do terraço por força da humidade, confirmou também os maus cheiros, afirmando, todavia, que não os sentiu sempre que lá foi. Relatou que em abril começou a retificar os defeitos a pedido do autor, tendo referido a retirada do pavimento do terraço e percebido que a tela por baixo estava remendada e solta e que por baixo dela existia um chão velho. Pelo que o partiu tendo visto que sob o mesmo (acima da placa) estava muita água, que necessariamente causava infiltrações no apartamento sob essa placa, no teto do vizinho de baixo. Também por baixo da base de chuveiro, em pedra, havia uma base de zinco calçada com “bocadinhos de esferovite, sem qualquer isolamento, pelo que do ralo do duche, que não tinha sifão, a água caía para baixo”. A base do chuveiro também não tinha, segundo tal testemunha, inclinação que permitisse um bom escoamento da água. Descreveu com pormenor os trabalhos que fez.
Essa testemunha disse que tinha várias fotos da obra, disponibilizando-se para as apresentar. O pagamento de mais de sessenta mil euros que diz ter recebido e cujas faturas emitiu, confirma a realização dos trabalhos que descreveu.
Do que se ouviu desse depoimento não vemos qualquer razão para divergir da convicção que gerou no Tribunal a quo, sendo justificada a conclusão de que merece credibilidade. Deste depoimento, bem mais longo do que o trecho que a ré transcreveu, resulta uma descrição segura da causa das infiltrações que não contraria, antes completa o relatório pericial.
Do depoimento de FF, a que já acima nos referimos e que disse ter ido ao imóvel em causa a pedido de uma irmã da autora na altura do Covid, resultou, quanto às infiltrações, que “o trabalho estava todo muito mal feito”, que a “água infiltrava-se por baixo das soleiras” e que “por baixo das tijoleiras não deveria ter tela dobrada”. Descreveu as infiltrações que viu no andar de baixo (vizinho de baixo), onde havia várias latas que estavam cheias de água. Apelou à sua experiência profissional quanto às causas da infiltração e foi muito seguro quanto a essas afirmações. Referiu, ainda, um tubo de que saía água, que ficava pousado no terraço, água essa “que não tinha por onde sair”. As consonâncias deste depoimento com o anterior são relevantes e conferem-lhe credibilidade. O facto de não ter feito testes de estanquicidade não pôs em causa a sua razão de ciência. O facto de não ter feito qualquer obra no imóvel – por não ter disponibilidade quando o autor queria -, faz com esta testemunha seja particularmente credível por apenas ter tido uma ligação esporádica com os autores: a elaboração de um orçamento.
KK, pintor, disse ter sido chamado pelo legal representante da ré para fazer o arranjo na placa do terraço, na sequência da obra que a ré já tinha ali em curso e foi seguro em descrever que, apesar de ter estado a trabalhar nesses arranjos numa altura em que estava calor (“até lhe escaldavam os pés”), conseguiu ver a existência das infiltrações porque as testaram com uma mangueira, pondo água sobre o terraço. Segundo ele, transmitiu ao legal representante da ré que era preciso tirar a tijoleira toda e pôr alcatrão, o que ele decidiu não fazer, colando a tijoleira uma em cima da outra, antiga, que ali existia. Disse que quando foi à obra não morava lá ninguém e que outros empregados da ré já tinham estado lá a fazer trabalhos, tendo-lhe sido pedido que reparasse o problema da entrada de água “por todos os lados”. Explicou, em consonância com a testemunha EE, que a tela que colocaram sob a tijoleira foi em “remendos”. Segundo afirmou, alertou o legal representante da ré para o erro da forma como estava a fazer o serviço, tendo este afirmado que era ele quem mandava, o que incomodou o depoente por não gostar de fazer serviços mal feitos.
Confirmou que o vizinho de baixo dos autores se queixou de infiltrações e que entrou no vizinho do apartamento ao lado e aí viu, de facto, as infiltrações.
Admitiu que sendo pintor ia lá para pintar, mas que o legal representante da ré o mandou fazer aquelas reparações, pelo que as fez conforme ordenado.
Não vimos qualquer razão para duvidar da isenção desde depoimento, já que o mesmo nunca teve qualquer relação com os autores, mas apenas com a ré, para quem efetuou trabalhos. É compreensível a falta de memória sobre a data exata em que iniciou e terminou os trabalhos para que foi chamado. Quanto à alegada altercação que tal testemunha terá tido no exterior da sala de audiências antes do seu depoimento com o legal representante da ré, com exceção da pergunta feita pelo mandatário desta, nada se sabe, pelo que não se pode retirar da sua suposta ocorrência qualquer conclusão.
Em face destes meios de prova, é de manter a prova da alínea em apreço, não havendo razões para censurar a convicção do Tribunal a quo.
Tem o seguinte teor: “Até Outubro de 2021 a soleira existente no terraço do apartamento não garantia estanquicidade, devido à má aplicação (artº 32º da petição inicial)”.
A recorrente entende que esta alínea tem um teor conclusivo, tal como entende ser conclusiva a resposta dos peritos ao respetivo quesito. Também defende que a prova desta alínea que contradiz tudo o que já antes defendeu a propósito da reapreciação da alínea k), remetendo para o que alegou a propósito da mesma.
Uma vez mais começaremos por afirmar que não é conclusiva a afirmação do nexo causal entre a falta de estanquicidade e a má aplicação da soleira em causa. Trata-se da mera afirmação da relação de causa efeito entre dois factos. A má aplicação dada por provada consubstancia-se em diferentes erros de construção que foram objeto de prova e que não tinham que ser julgados provados com maior pormenor, pois não foi pedida a sua reparação por uma concreta forma.
Quanto à impugnação da prova desse facto que a apelante faz com base na perícia, a mesma é infundada. Cumpre salientar que o relatório pericial é absolutamente claro em afirmar, em resposta aos quesitos 24 e 25, a fls. 8 que a soleira não estava devidamente aplicada, não observando as regras que permitem garantir estanquicidade e que a solução sugerida de “aplicação de rufo em inox selado na caixilharia, colado e não aparafusado e que cubra a totalidade da superfície após a retirada dos elementos existentes”.
Tanto é quanto basta, na falta de outros elementos de prova que tenham contrariado tal afirmação, e face até à sua confirmação por outros meios de prova:
- o já referido depoimento de EE; e, ainda,
- o teor do documento número 4 junto à petição inicial, de que decorre a assunção pelo legal representante da ré que em 25, 26 e 27 de junho de 2018 foram efetuados vários trabalhos de reparação pendentes, com exceção dos que ali discriminou, entre eles os relativos à “soleira em pedra para a porta de acesso à escadaria”, o que foi julgado provado sob a alínea dd).
Pelo que é também de manter a prova da alínea l).
É o seguinte o seu teor: “ Em Outubro de 2021, o escritório do apartamento apresentava o chão arranhado e riscado ao longo da zona de circulação, cheiro a esgoto, a fechadura da porta não estava afinada, a calha led tinha uma imperfeição no remate, faltava colocar uma tampa no armário na área técnica de telecomunicações e na janela da casa de banho a posição de oscilo batente batia na ombreira (artºs 7º, 8º e 50º a 54º da petição inicial)”.
Quanto a esta alínea a recorrente afirma em primeiro lugar que não tendo a perícia apontado qualquer “culpado” para o facto de o chão do escritório estar arranhado, não podia ter sido condenada a reparar tal defeito. Como é manifesto tal questão não se relaciona com a apreciação da prova do facto, pelo que será apreciada em momento ulterior.
Uma vez mais sustenta-se também a impugnação desta alínea na afirmação de que do relatório pericial resulta que não tinham sido sentidos maus cheiros pelos peritos no escritório para concluir que os mesmos não podiam ter sido julgados provados. Remetemos aqui para o que acima se exarou aquando do conhecimento da impugnação da alínea h), nomeadamente para a reapreciação da prova que ali se fez (assim evitando a sua repetição) e que nos levou a concluir pela existência de maus cheiros noutros compartimentos além da lavandaria, único local expressamente referido na perícia onde os mesmos existiriam.
Pelo que se mantém também o teor desta alínea.
Tem o seguinte teor “Em Outubro de 2021 a suite principal do apartamento apresentava cheiro a esgoto, algumas imperfeições nos revestimentos, falta de afinação de uma das janelas, uma base de duche da casa de banho partida, os estores da casa de banho produzem um ligeiro ruído, havia manchas de humidade no tecto e piso junto à porta, tendo o aro e guarnição da porta descolado por causa da humidade e também devido à humidade tornava-se necessário rectificar a pintura das paredes (artºs 7º,8º,10º e 57º da petição inicial).”
A fundamentação para a alteração desta alínea começa por se basear, uma vez mais, na repetida afirmação da apelante de que os autores não alegaram em concreto tais defeitos na petição inicial, mas antes “uma multitude de facto desordenados”. Sobre a suficiência da alegação feita na petição inicial e a sua inteligibilidade já acima nos pronunciamos pelo que não nos repetiremos. No concreto caso dos defeitos provados na alínea s) a sentença faz constar expressamente que os mesmos resultam do alegado nas alíneas 7ª, 8ª, 10ª e 57ª da petição inicial. Tem elas o seguinte teor (que apesar de extenso se transcreve, pois do mesmo resulta claramente infirmado o alegado pela recorrente, dispensando-se mais fundamentação):
“7º- O Autor marido abordou o representante da ré, A..., em 8.7.18, onde o adverte da necessidade de proceder ao que ainda está pendente por falta de execução ou má execução, denunciando naquela data os defeitos ali verificados (á data porque posteriormente surgiram outros ), onde em suma os resume: Defeitos de construção causadores de maus cheiros no imóvel intervencionado pela ré:
a)-Cheiro a esgoto na lavandaria, cheiro praticamente constante dentro do armário da lavandaria e regularmente perto da varanda onde se encontra um ralo.
b) - Cheiros a esgoto nas salas de estar e de jantar: na sala de estar / jantar não é possível até hoje utilizar o ar condicionado, porque ao liga-lo intensifica-se os maus cheiros sendo impossível ali permanecer. Dias existem que os cheiros permanecem mesmo sem ligar o ar condicionado num local com uma enorme aérea de vidro, no ultimo piso de um prédio, pelo que a exposição ao calor torna o local inabitável em certos dias de calar, cada vez mais frequentes em Lisboa; de Inverno o problema é contrário: frio intenso se não se ligar o ar condicionado, numa casa em que o único aquecimento que existe é o do ar condicionado, não havendo lareira.
c)Pelo que esta situação dos maus cheiros torna impossível a utilização da sala de estar e a de jantar.
d)Impossibilitando a utilização da sala de estar e da sala jantar, não tendo os autores possibilidade de ali permanecer com visitas, de fazer refeições, de ver TV, de ouvir música, de descansar, de brincar com seus filhos e demais atividades normais que tornam útil uma sala de estar e uma sala de jantar. Para além desta razão de não possibilidade de utilização destes espaços, os AA temem que tais cheiros intensifiquem os problemas respiratórios que o autor marido tem bem como o seu filho LL, de 10 anos de idade, ambos com crises agravadas asmáticas quando os cheiros se intensificam. Alturas existem que quando os mesmos ali permaneciam por um espaço superior a 1 hora, não conseguiam parar respirar sem dificuldade, tendo que sair para o terraço para respirar ar exterior á habitação, sobretudo o menor LL. Os AA, preocupados com tal facto, e com as idas ao hospital daquele menor com crises agravadas de asma, trataram de fazer a experiência, retirando o menor dali para, por determinados períodos, poder melhor a respiração… … concluindo, que bastava tal saída por períodos de dois / três dias para que o autor e o menor melhorassem.
e)-Maus cheiros que se sentem provir da parede existente por trás do armário construído pela ré, devido a má execução da construção daquela, problema identificado no relatório de peritagem de engenharia que se junta como doc 3. Mas não é somente naqueles espaços que os maus cheiros persistem.
g)-No escritório dos AA, os maus cheiros fazem-se sentir, sem qualquer razão de ser, no armário de livros e informática ali existente na lateral direita daquele espaço, tornando o espaço inabitável, cheiros que alteram entre cheiro a esgoto e cheiros a cozinhados, provavelmente proveniente do andar inferior de vizinho do 2º Dto.
h)- Mesmo com as janelas fechadas o cheiro é intenso impossibilitando a utilização deste compartimento da casa.
Para além destes defeitos:
8º-Devido as múltiplas intervenções sem cuidado, sem proteções e sem limpeza adequada, o chão de madeira do escritório, e da suite principal, por onde múltiplas vezes usaram para entrar com matérias, está todo picado, assim como as escadas em madeira que dão para o andar superior.”.
“10º - Os maus cheiros continuam ainda na suite principal, cheiro a esgoto que não provem nem do ralo ou outro orifício daquela dependência, nem de outra qualquer casa de banho do imóvel”.
“57º Os defeitos de construção estendem-se ainda à suite principal do imóvel dos AA, onde se identificam os seguintes:
a)- maus cheiros neste espaço.
b)- O lavatório aplicado, não suporta a água da torneira o que origina o seu transbordo sempre que esta se abre.
c)- infiltrações na parede, teto e chão desta suite que afetam as paredes do vizinho do 2º dt.(ver denuncia apresentado á policia que se protesta juntar ).
d)- infiltração derivada do mau funcionamento da base de chuveiro.
e)- base do duche partida derivada da última intervenção da ré ao tentar solucionar o problema do mau escoamento.
f)- estores da casa de banho que fazem ruídos anormais e não funcionam corretamente
g) derivado da infiltração superior (provindo do terraço e dos muretes) o chão na entrada da suite encontra-se danificado com manchas escuras devido a grande quantidade de água que entrou durante meses e derivado da tal infiltração, todo o contorno em madeira á volta da porta da suite principal encontra-se inchada.
h)- por tudo o exposto, necessário será retificação de toda a pintura nas paredes circundantes afetadas pela infiltração.
i)-chão danificado derivado da falta de cuidado dos empregados da ré aquando da tentativa de reparação da base de chuveiro, não tendo isolado o pavimento.”.
Os sublinhados são nossos e visam evidenciar os factos que constam da alínea s), assim demonstrando que os mesmos resultam, de facto, da petição inicial.
Quanto à não prova dos cheiros existentes na suite principal a recorrente apenas sustenta a mesma na alegação, de novo, de que da perícia tal não resulta.
Uma vez mais, portanto, se remete, para evitar fastidiosas repetições, para a apreciação crítica da prova feita pelo tribunal a quo e para a reapreciação da mesma que constam do conhecimento da impugnação da alínea h) dos factos provados. Como acima se concluiu, a concatenação dos vários meios de prova ali referidos e a sua análise crítica pelo Tribunal a quo não merecem reparo, acompanhando-se a conclusão a que chegou de que, não obstante os senhores peritos não terem verificado tais odores no dia em que se deslocaram ao imóvel, não excluem a possibilidade da sua existência, que está amplamente confirmada pelos depoimentos que acima sumariamos e que valoramos no mesmo sentido que o fez o Tribunal a quo.
Pelo que também esta alínea será mantida como provada.
Tem o seguinte teor: “Em Outubro de 2021 a escadaria do apartamento era em madeira, não correspondendo à escadaria com degraus em chapa e estrutura em ferro constante do ponto 11.2 do orçamento (artº 72º da petição inicial).”
Reapreciada a prova indicada pela recorrente, o depoimento do legal representante da ré e de DD e MM constata-se, começando por este último e como acima afirmado, que nada sabia sobre o assunto das escadas. O mesmo aconteceu com o depoimento da testemunha DD. Apenas o legal representante da ré afirmou ter havido acordo quanto à alteração da referida escadaria (o que, todavia, os autores infirmaram), não sendo tal depoimento, por interessado, suficiente para a prova do dito acordo. Também o facto de alegadamente os autores estarem todos os dias em obra não foi confirmado por todas as testemunhas, várias havendo que o negaram, como acima se sumariou a propósito de alguns depoimentos, não resultando da prova qualquer convicção segura em que momentos os autores acompanharam de perto a obra, quando passaram a residir num dos andares da fração em obras enquanto as obras ocorriam no outro e nem se sabendo se a escadaria em causa foi feita nalgum desses momentos.
Pelo que não há por que alterar tal alínea.
Uma vez mais a discordância da apelante baseia-se na alegada inconclusividade da perícia a esse respeito, não indicando a mesma nenhum outro meio de prova a reapreciar.
A propósito da suficiência dos demais meios de prova valorados pelo Tribunal a quo relativamente à existência e à causa das infiltrações já acima nos debruçamos, tendo-se já explicitado que dos depoimentos de EE, FF e KK, acima sumariados e do documento número 3 junto com a petição inicial resulta confirmado aquilo que os Srs. Peritos não puderam constatar, nomeadamente por não terem levantado o pavimento do terraço, a soleira, muretes e outros elementos a partir dos quais, por indevido acabamento/aplicação, entrava água da chuva no interior do imóvel. Recorde-se, uma vez mais, que os Srs. Peritos não afirmaram que não existiam infiltrações, apenas que não observaram a sua causa, sendo certo que afirmaram que a sua observação foi feita a olho nu, sem qualquer intervenção de fundo.
Todavia, das repostas dadas no relatório pericial aos quesitos 4, 5, 6, 7, 13, 17, 18, 19, 20 (esta com fotografias bem elucidativas das infiltrações no 3º esquerdo), 22 a 25, resulta expressamente que os peritos constaram; que os materiais de impermeabilização acordados em orçamento não foram aplicados; que o cimento cola aplicado fosse mais adequado seriam minimizadas as infiltrações; que pode ser causa das infiltrações a existência de um tubo de água abaixo do nível da cerâmica do terraço; que as juntas de inox dos muretes estão mal rematadas, o que poderá originar infiltrações; que existem vestígios de água de chuva na escada; que admitem a má impermeabilização dos muretes, viga, terraço e placa com causas específicas desconhecidas; e que na fração do 3º andar esquerdo há infiltrações de humidade causadas pela má impermeabilização desses concretos espaços.
Pelo que é absolutamente infundada a censura dirigida pela apelante aos factos provados, nomeadamente o constante na alínea v).
cc) “O representante da ré reconheceu perante o autor a ocorrência das infiltrações descritas em K) dentro do apartamento e fez deslocar local trabalhadores para diligenciar pela sua reparação antes de Maio de 2019 ; (artº 91º da petição inicial)”; e
dd) “Representante da ré reconheceu perante o autor em 28.6.2018 a ocorrência de falta de estanquicidade da soleira descrita na al. i) (arts. 86º e 87º da petição inicial)”.
Defende a apelante que nenhum desses factos podia ter sido julgado provado por os documentos juntos sob os números 6 e 8.1 da petição inicial não o revelarem e porque não pode dar-se credibilidade ao depoimento da testemunha KK, por “estar de mal com o legal representante da ré” e ser “faccioso”. Já acima sintetizamos o teor deste depoimento e afirmamos que não se viu razão para pôr em causa a sua credibilidade. Pelo contrário. O mesmo não tinha qualquer relação com os autores, mas teve com a ré, que foi quem o contratou para ir fazer as reparações que descreveu, o que leva a que se presuma que não estaria comprometido com a posição dos autores. Mais se reitera que, além da pergunta feita pelo mandatário da ré sobre uma suposta altercação entre tal testemunha e o legal representante da ré antes do julgamento e no exterior da sala de audiências, nada se sabe, tendo tal mandatário afirmado expressamente que não pretendia saber as causas da mesma. Ficamos sem saber que altercação foi essa, quem a iniciou e quais as suas causas. Pelo que daí não pode retirar-se a conclusão de que tal testemunha “estava de mal com o legal representante da ré” como alega a recorrente.
Quanto aos documentos em que o Tribunal a quo fundou a prova dessas alíneas, já referimos acima o email de 28 de junho de 2018 que consta do documento número 4 junto à petição inicial, de que decorre a assunção pelo legal representante da ré que em 25, 26 e 27 de junho de 2018 foram efetuados vários trabalhos de reparação pendentes, com exceção dos que ali discriminou. Das datas desse email e das obras efetuadas resulta claro que se tratam de obras de reparação pois a ré alega ter terminado a obra em fevereiro de 2018. Tal intuito, de reparação e o inerente reconhecimento das infiltrações resulta ainda do documento número 6 junto à petição inicial, em que o legal representante da ré menciona expressamente a questão das infiltrações, em email de 13 de maio de 2019, referindo que foram feitas duas intervenções nos locais de onde aquelas podiam surgir e sugerindo ainda o isolamento da soleira da janela da cozinha que propôs fazer no dia seguinte. Ali admitiu que a entrada de água reduziu 85% e prometeu que no dia seguinte tudo ficaria resolvido. Todos os emails seguintes e juntos sob os documentos 7 e 8 da autoria do legal representante da ré referem intervenções feitas para colmatar o problema que surgiu em relação à entrada da água, deles resultando claramente que a ré assumiu a responsabilidade pela reparação desse defeito, não pondo em causa que o mesmo decorresse da execução da obra, antes o confirmando em parte.
Pelo que são de manter como provadas as referidas alíneas cc) e dd).
- Que os autores e ré tivessem acordado na substituição da escadaria por uma escada em madeira (artº 70º da contestação).
- Que em fevereiro de 2018 a ré tivesse terminado todos os trabalhos aludidos em a), c) e f) dos factos considerados provados (artº 8º, 11º,141º e 147º da contestação).
A apelante não indica qualquer meio de prova a reapreciar com vista à impugnação destas alíneas, apenas afirmando, quanto à primeira, que os motivos que deveriam ter levado à não prova da alínea v) também devem conduzir à prova da alínea a).
Assim sendo não há porque alterar tal alínea, pelos motivos expressos na análise da impugnação da alínea v) dos factos provados, que aqui se dão por reproduzidos evitando-se assim a sua repetição.
Quanto à alínea b) limita-se a recorrente a alegar que sempre teria de ser dado por provado que a conclusão da obra ocorreu antes de 8 de junho de 2018 já que foi nesta data que os autores reclamaram dos defeitos. Ora a reclamação dos defeitos nessa data em nada se relaciona com a alegada conclusão dos trabalhos, nada impedindo os autores de os reclamarem e pedirem a sua reparação ainda que a obra não estivesse concluída.
Pelo que também quanto a estes pontos é de manter o decidido pelo Tribunal a quo.
“FACTOS PROVADOS:
a) O autor e um representante da ré apuseram as suas assinaturas no escrito datado de 12 de Setembro de 2016, e rubricaram o orçamento anexo, junto aos autos como documento n.º 1 com a contestação (fls. 95, verso, e ss), intitulado “Contrato de Empreitada”, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos, do qual consta nomeadamente que a ré se obriga a “proceder à execução da empreitada de remodelação/ampliação do apartamento existente, composto pela execução dos trabalhos das artes de trolha, pinturas, carpintaria, serralharia, pichelaria e eletricista, nos termos e condições presentes no orçamento anexo ao presente contrato” mediante o pagamento pela ré de €340.000,00; (arts. 3.º e 4.º da petição inicial e 43.º, 105.º, 106.º, 114.º, 128.º, e 132.º da contestação).
b) De tal escrito consta nomeadamente: “CLÁUSULAS (…) SEGUNDA 1. O SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a cumprir o presente contrato em conformidade, com o estabelecido no presente título contratual e no orçamento anexo a este contrato, observando, que em caso de dúvidas ou omissões do projeto deverá contar com os trabalhos necessários á execução das referidas artes que estejam previstas nos referidos documentos. (…) EXCLUSÕES (…) b) Não estão Incluídas licenças camarárias; publicitárias ou outras; (…) QUARTA 1. É estipulado um preço global para a empreitada, sendo este preço fixo, podendo ser revisível por acordo entre os outorgantes, durante a vigência do presente contrato, no caso de não se realizarem ou de se alterarem algum dos pontos do orçamento em anexo. 2 O preço global e total da empreitada é de 340.000,00€ (trezentos e quarenta ml! euros) ao qual acresce a taxa de IVA legal em vigor. QUINTA 1. O pagamento do preço estipulado de 340 000€ (trezentos e quarenta mil euros), será efetuado do seguinte modo: a) Primeira prestação, no valor de 60 000€ (sessenta mil euros) no acto de adjudicação de empreitada. O restante do valor em divida será liquidado em função do mapa de medições dos trabalhos executados mensalmente. Os autos de medição mensal serão apresentados até ao 25.º dia do mês a que respeitam e o pagamento realizado no máximo até ao dia 5 do mês seguinte.”; (arts. 3.º e 4.º da petição inicial e 43.º, 105.º, 106.º, 114.º, 128.º, e 132.º da contestação).
c) O autor após a sua no escrito datado de 12 de Setembro de 2016, incluído no documento junto aos autos como documento n.º 1 com a contestação (fls. 102, verso), intitulado “Declaração”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente: “que se responsabilizam pela obtenção de qualquer licença, alvará ou obtenção de qualquer documento necessário a requerer ou a emitir por qualquer entidade pública ou privada e pelo pagamento de qualquer multa ou coima que possa surgir em sequência da falta de qualquer dos documentos atrás referidos, para a realização de obras no prédio sito na Rua ....”; (arts. 43.º, 105.º, 106.º, 114.º, 128.º, e 132.º da contestação).
d) Os autores destinavam o apartamento referido em a) à sua habitação pessoal e a ré dedicava-se à construção civil e à reabilitação de imóveis; (arts. 2.º e 120.º da petição inicial).
e) Durante a execução da obra, autores e representante da ré concordaram entre si a não execução do recuperador com ventoinha a que se refere o ponto 13.1 do orçamento anexo ao contrato, no valor de €2.679,50, acrescido de IVA, e a sua substituição por uma porta decorativa; (art. 39.º da petição inicial).
f) Durante a execução da obra, autores e representante da ré concordaram entre si a execução de uma coluna de água exigida pela EPAL que não fora prevista no orçamento descrito em a); (art. 73.º da petição inicial).
g) Até Outubro de 2021 a lavandaria do apartamento apresentava cheiro a esgoto, e falta de acabamento do ralo de escoamento; (arts. 7.º, e 12.º a 16.º da petição inicial).
h) Até Outubro de 2021 a sala de estar do apartamento apresentava cheiro a esgoto; (arts. 7.º e 18.º da petição inicial).
i) Até Outubro de 2021, no terraço, varanda, muretes e soleiras do apartamento verificavam-se manchas esbranquiçadas nas cerâmicas aí colocadas causadas por afloramentos do cimento cola usado na sua aplicação que, ao contrário do constante do ponto 5.3.1. do orçamento, não foi “Microcimento Ultratop Loft Mapel”; (arts. 20.º e 22.º da petição inicial).
j) Até Outubro de 2021 existia uma tijoleira partida no terraço do apartamento; (art. 22.º da petição inicial)
k) Até Outubro de 2021, o terraço, placa, varanda e muretes do apartamento estavam mal impermeabilizados, o que era causa de infiltrações de água no interior do apartamento e no apartamento vizinho do 3.º andar esquerdo; (arts. 22.º, 25.º, 27.º da petição inicial)
l) Até Outubro de 2021 a soleira existente no terraço do apartamento não garantia estanquicidade, devido a má aplicação; (art. 32.º da petição inicial)
m) Até Outubro de 2021, existia uma tijoleira partida na sala de jantar do apartamento; (art. 34.º da petição inicial)
n) Na mesma sala, o pavimento foi revestido a cerâmica e não a “Microcimento Ultratop Loft Mapel”, conforme o ponto 5.1.1. do orçamento, o que resultou no entanto de acordo entre os autores e representante da ré; (arts. 37.º da petição inicial e 69.º da contestação)
o) Até Outubro de 2021, no hall do apartamento, a porta de acesso aos quartos apresentava fissuração, por rotura de fixação do ripado de suporte; (art. 40.º da petição inicial)
p) Em Outubro de 2021, num dos quartos do apartamento, um armário aí existente estava empolado e entortado e havia ligeiras imperfeições na aplicação das calhas de led da iluminação; (arts. 43.º e 49.º da petição inicial)
q) Em Outubro de 2021, as bases de chuveiro das casas de banho do apartamento apresentavam insuficiência de cota do esgoto para permitir um eficaz escoamento; (arts. 45.º a 47.º, 61.º e 62.º da petição inicial)
r) Em Outubro de 2021, o escritório do apartamento apresentava o chão arranhado e riscado ao longo da zona de circulação, cheiro a esgoto, a fechadura da porta não estava afinada, a calha led tinha uma imperfeição no remate, faltava colocar uma tampa no armário na área técnica de telecomunicações, e na janela da casa de banho a posição de oscilo batente batia na ombreira; (arts. 7.º, 8.º, e 50.º a 54.º da petição inicial)
s) Em Outubro de 2021 a suite principal do apartamento apresentava cheiro a esgoto, algumas imperfeições nos revestimentos, falta de afinação de uma das janelas, uma base de duche da casa de banho partida, os estores da casa de banho produziam um ligeiro ruído, havia manchas de humidade no tecto e piso junto à porta, tendo o aro e guarnição da porta descolado por causa da humidade, e também devido à humidade tornava-se necessário rectificar a pintura das paredes; (arts. 7.º, 8.º, 10.º e 57.º da petição inicial).
t) Na sequência de infiltrações de água nos termos descritos em k), e após atravessarem a suite descrita em s), ocorreram infiltrações no apartamento do 2.º andar direito do prédio, abaixo do apartamento dos autores, que danificaram pinturas e paredes de tal apartamento; (art. 57.º da petição inicial).
u) Em Outubro de 2021 a cozinha do apartamento verificava uma cedência na porta de correr e quedas das portas dos armários, devido à aplicação de vigas de suporte e amortecedores que não suportavam o peso das portas, a pia aplicada da cozinha não correspondia à contratada, e a ilha e a banca da cozinha tinha aplicado um material “Corian Glacier White” com a espessura de 10 mm, diversa da espessura de 12 mm prevista no orçamento, que implicava um aspecto estético frágil; (arts. 64.º, 65.º, 70.º e 71.º da petição inicial).
v) Em Outubro 2021 a escadaria do apartamento era em madeira, não correspondendo à escadaria com degraus em chapa e estrutura em ferro constante do ponto 11.2. do orçamento; (art. 72.º da petição inicial).
w) A ré não fez executar a coluna de água aludida na alínea f) dos factos provados; (arts. 73.º a 75.º da petição inicial).
x) Em Outubro de 2021 verificava-se entrada de água na caixa de escadas do prédio, através de tela aí feita colocar pela ré em execução da obra; (art. 78.º da petição inicial).
y) Em 8 de Julho de 2018, o autor remeteu ao representante da ré, que a recebeu, a mensagem de correio electrónico junta por cópia como documento n.º 4 junto com a petição inicial (fls. 42), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente comunicando a existência das anomalias descritas em g), quanto ao cheiro a esgoto, h), i), r), a respeito da anomalia na fechadura, e w); (arts. 84.º e 85.º dapetição inicial).
z) Em 1 de Janeiro de 2019, o autor remeteu ao representante da ré, que a recebeu, a mensagem de correio electrónico junta por cópia como documento n.º 7 junto com a petição inicial (fls. 49), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (art. 92.º da petição inicial).
aa) Em 22, 26, e 27 de Maio 2019, autor e representante da ré, remeteram entre si e receberam as mensagens de correio electrónico juntas por cópia como documento n.º 8 com a petição inicial (fls. 50, verso), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (art. 93.º da petição inicial).
bb) Em 4 de Julho de 2019, o autor remeteu ao representante da ré, que o recebeu em 17 de Julho de 2019, o escrito junto por cópia como documento n.º 9 com a petição inicial (fls. 51, verso), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente comunicando a existência das anomalias descritas em g), h), i), j), k), m), o), p), q), r), s), t), e w); (art. 94.º da petição inicial).
cc) O representante da ré reconheceu perante o autor a ocorrência das infiltrações descritas em k) dentro do apartamento e fez deslocar ao local trabalhadores para diligenciar pela sua reparação antes de Maio de 2019; (art. 91.º da petição inicial).
dd) Representante da ré reconheceu perante o autor em 28/06/2018 a ocorrência de falta de estanquicidade da soleira descrita na alínea l); (arts. 86.º e 87.º da petição inicial).
ee) A ré não fez entregar ao autor documento comprovativo de alvará de construtora apto a instruir o processo de licenciamento da obra junto da Câmara Municipal, apesar de o autor lho ter solicitado, por não ser titular de alvará de classe compatível com o valor da obra; (arts. 99.º, 104.º e 106.º da petição inicial).
ff) Em consequência do que o autor teve necessidade de contactar outro empreiteiro que lhe facultou o alvará necessário para a conclusão do licenciamento da obra; (art. 111.º da petição inicial).
gg) Diligência que implicou que os autores tivessem que requerer uma prorrogação do prazo para licenciamento da obra junto da Câmara Municipal de Lisboa; (art. 118.º da petição inicial).
hh) Durante a execução da obra, os autores habitaram espaço contíguo ao lugar onde esta decorria, e tinham oportunidade de acompanhar a evolução dos trabalhos e fazer sugestões; (arts. 11.º e 147.º da contestação).
ii) Para pagamento do preço da obra, incluindo IVA, os autores entregaram à ré €346.110,06; (arts. 95.º e 96.º da réplica)
FACTOS NÃO PROVADOS
Que a substituição acordada nos termos descritos em e) implicasse um valor inferior ao orçado para o recuperador de calor (art. 39.º da petição inicial).
Que autores e ré acordassem na substituição da escadaria com degraus em chapa e estrutura em ferro de suporte, conforme descrito no orçamento mencionado em a), por uma escada em madeira (art. 70.º da contestação).
Que autores e ré acordassem na colocação de uma estrutura de vigas e pilares no tecto da obra, não contemplada, no orçamento mencionado em a), acordando um preço adicional de €7.467,33, IVA incluído (arts. 161.º e 162.º da contestação).
Que ao nível do terraço seja necessário finalizar a porta de acesso às escadas ou seja necessário colocar nova tampa da Epal, danificada na obra (art. 22.º da petição inicial).
Que na sala de estar do apartamento os fios dos estores se encontrem visíveis, por má colocação, o que dá um aspecto de inacabado (art. 33.º da petição inicial).
Que na sala de jantar do apartamento o chão tivesse um aspecto geral de mau acabamento nas juntas das tijoleiras e se sentisse cheiro a esgoto (arts. 7.º e 35.º da petição
inicial).
Que no hall de entrada do apartamento a porta de madeira aludida na alínea e) dos factos provados se encontre inacabada e com mau aspecto (art. 39.º da petição inicial).
Que ao procurar reparar as bases dos duches das casas de banho, a ré tenha feito aplicar um produto que produzisse um cheiro intenso e insuportável, que obstasse à utilização das casas de banho e levasse os autores a abandonar o apartamento, e que os defeitos nas bases dos duches levassem a uma inundação da casa de banho com danificação da madeira (arts. 45.º a 47.º da petição inicial).
Que o lavatório da suite principal, por deficiente configuração, não suportasse a água da torneira (art. 57.º da petição inicial).
Que a cerâmica aplicada junto à base de chuveiro da casa de banho social seja diferente da restante (art. 62.º da petição inicial).
Que na cozinha existam azulejos/mosaicos do chão partidos (art. 60.º da petição
inicial).
Que a ré não tivesse fornecido aos autores o contrato de manutenção dos colectores solares instalados na obra e não providenciasse pela inspecção à instalação de gás (arts. 82.º e 83.º da petição inicial).
Que a alteração do cimento cola descrita em i) e do “Corian Glacier White” descrito em u) resultasse de acordo entre autores e representante da ré (art. 69.º da contestação).
Que o custo da reparação das anomalias descritas nos factos provados ascenda a €90.607,95, IVA incluído (art. 125.º da petição inicial).
Que a ré tenha tentado reparar defeitos nas bases dos duches da casa de banho após reclamação dos autores (art. 45.º da petição inicial).
Que a ré tenha tentado reparar a laje de tecto da casa das máquinas após reclamação dos autores (art. 78.º da petição inicial).
Que a ré tenha reconhecido junto dos autores qualquer outra das anomalias descritas nos factos provados para além das mencionadas em cc) e dd) (arts. 86.º a 90.º da petição inicial).
Que a ré tenha tentado reparar os aparelhos de ar condicionado após reclamação dos autores (art. 44.º da réplica).
Que o autor tenha suportado despesas adicionais para obtenção do alvará de construtor necessário ao licenciamento da obra (art. 111.º da petição inicial).
Que a necessidade de obter um alvará a outro empreiteiro e pedir prorrogação de prazo para o licenciamento causassem aos autores prejuízo económico e moral, aflição, deslocações a escritórios em diferentes cidades, falta de descanso, sossego e paz (arts. 118.º e 119.º da petição inicial).
Que em consequência das anomalias descritas nos factos provados os autores se vissem forçados a deixar de habitar o apartamento e se tivessem que mudar para casa da mãe da autora, mais pequena, sendo forçados a mudar de estilo de via, e sofrendo custos acrescidos com a mudança e armazenamento da sua mobília (arts. 7.º, 120.º, 121.º e 124.º
da petição inicial).
Que os autores suportassem custos com a realização de peritagem às anomalias em causa, em momento prévio à propositura da presente acção (art. 123.º da petição inicial).
Que em Fevereiro de 2018 a ré tivesse terminado todos os trabalhos aludidos em a), c) e f), e os tivesse colocado à disposição dos autores para verificação, que depois os aceitaram (arts. 8.º, 11.º, 141.º e 147.º da contestação).
Que o cheiro a esgoto aludido nos factos provados seja consequência de uma deficiente configuração do sistema de drenagem comum do prédio em que se integra a fracção autónoma, circunstância de que a ré advertiu os autores (arts. 15.º, 16.º, 18.º, 64.º e 65.º da contestação)”.
Uma delas relaciona-se com a impugnação da alínea r)[13] dos factos provados.
Quanto a esta alínea a recorrente afirmou em primeiro lugar que não tendo a perícia apontado qualquer “culpado” para o facto de o chão do escritório estar arranhado, não podia ter sido condenada a reparar tal defeito. Ora, o que se provou foram várias desconformidades ou vícios da obra que diminuem a sua utilidade e/ou valor e tal era quanto bastava à procedência do direito dos autores, salvo se a ré alegasse e provasse que os mesmos decorreram de causa alheia à sua construção.
Acompanhamos aqui o expendido na sentença sobre o ónus de alegação e prova dos defeitos e suas causas: “Cumpre ainda salientar que nesta parte cumpriria apenas apurar a existência ou não de defeitos como tal qualificáveis, sem necessidade de apurar a origem de cada uma das patologias, que na grande parte os autores optaram por especificar na sua alegação. Sendo a ocorrência de defeitos no apartamento uma forma de cumprimento defeituoso da obrigação contratual da ré presume-se a culpa desta nos termos do art. 799.º, n.º 1, do CC. Como decorre desta norma incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua. Ou seja, para afastar a presunção de culpa, cumpriria à ré alegar e provar que as patologias verificadas não decorriam de culpa sua na execução dos trabalhos, mas de outras causas. Os autores não estavam onerados a demonstrar a causa de cada uma das patologias invocadas por forma a imputá-las a culpa da ré.”.
É absolutamente correta esta análise dos ónus de alegação e prova que cabiam a cada uma das partes do contrato e da ação, como tem sido unanimemente afirmado pela jurisprudência[14].
A recorrente levantou, ainda, a propósito da impugnação da alínea t)[15] uma outra questão, de direito, relativa à forma como foi feito o pedido de condenação no pagamento de indemnização pelos danos dos vizinhos que os autores terão de ressarcir. Afirma o seguinte: “(…) realçamos o facto de que o pedido, como está formulado pelos autores, não referir vizinhos do 3º andar ou do 2º andar ! Pede sim a condenação da ré a apagar-lhes aquilo que “despender para ressarcir os dois proprietários seus vizinhos “… sem os identificar…”.
Já acima, aquando do conhecimento da nona questão a resolver se afirmou o seguinte quanto a tal pedido: “Está em causa uma condenação genérica, prevista e permitida pelos artigos 609.º, número 2 do Código de Processo Civil e 564.º, número 2 ex vi artigo 1223.º do Código Civil, onde se prevê que no caso de danos futuros previsíveis possa a condenação no dever de indemnizar ser liquidada em decisão ulterior”. A referida condenação tem o seguinte teor: “Condenar a ré a pagar aos autores quantia a liquidar em decisão ulterior, correspondente ao montante da indemnização que os autores paguem aos vizinhos do 2.º andar direito e 3.º andar esquerdo para reparação dos danos consequentes às infiltrações de água aludidas nas alíneas k) e t) dos factos provados”.
O pedido que lhe deu origem foi este: “Mais deve a ré ser condenada a pagar todas as quantias que os autores tiveram e terão ainda que despender para ressarcir os dois proprietários seus vizinhos dos prejuízos derivados da má construção de que é responsável a ré no imóvel dos AA, que ainda não se consegue à data totalmente contabilizar, pelo que se remete esta custo para liquidação de sentença”.
A causa de pedir desta pretensão está expressa nomeadamente nos artigos 25º, 57º e 76º da petição inicial em que se referem explicitamente os vizinhos do segundo andar direito e do terceiro andar esquerdo. É assim claro que decisão sob censura apenas limitou a condenar os réus em valor a liquidar ulteriormente de forma adequada e dentro do pedido formulado e da respetiva causa de pedir, para que não suscitasse qualquer dúvida de interpretação.
Pelo que é de manter in totum a condenação da ré, pelos mesmos fundamentos de facto e de direito em que se baseou a sentença recorrida.
A fundamentação para esta pretensão foi feita por remissão para as conclusões 12ª e 13ª sobre as quais já acima nos pronunciamos. A primeira refere-se:
- à alegada ineptidão da petição inicial que a apelante apelida de “arrazoado”– que já vimos ser infundada e que não compreendemos em que medida se relaciona com a improcedência do pedido reconvencional;
- à censura da fundamentação da sentença por se tratar de uma “uma construção que, dum arrozoado desconexo, impreciso, feito com alegorias e hipérboles, faz um texto rigoroso, coerente – ainda que sem provas do essencial –, que é como que a discutível interpretação
enunciativa (que há autores que dizem que é um preceito admitido virtualmente no texto legal, mas que as suas palavras não o enunciam).” Ficamos sem saber em que medida esta afirmação genérica (e aparentemente por completar) se relaciona com a improcedência do pedido reconvencional. Certo é que quanto a este, além da impugnação da matéria de facto, que improcedeu, a recorrente não alega qualquer fundamento para a sua alteração, pois também na conclusão 13ª se refere apenas à impugnação da alínea h) dos factos provados (que respeita à existência de um defeito que a ré foi condenada a reparar em nada se relacionando com a reconvenção).
Tendo a sentença fundado a absolvição do pedido reconvencional na falta de alegação e de prova pela ré de que apresentou e consensualizou com os autores mapas de medições mensais como acordado na cláusula quinta do contrato de empreitada (e na não prova da conclusão da obra e de que a ré colocou à disposição dos autores para aceitação), é de manter, com a mesma exata fundamentação, tal absolvição.
Contra esta fundamentação, em boa verdade, nada esgrimiu a recorrente com exceção feita à impugnação do seguinte facto não provado: “em fevereiro de 2018 a ré terminou todos os trabalhos aludidos em a), c) e f) dos factos considerados provados”. Tal facto manteve-se como não provado pelo que não há qualquer razão para alterar o decidido quanto à improcedência do pedido reconvencional.
Por tudo o exposto, é de confirmar a sentença recorrida.
V – Decisão:
Julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida
Custas pela Recorrente.
Porto 4 de junho de 2025.
Ana Olívia Loureiro
Jorge Martins Ribeiro
Teresa Fonseca
____________________________
[1] Direito Processual Civil, Volume III, AAFFL, 1987, página 28.
[2] Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-10-2024, para citar apenas um dos mais recentes, disponível em STJ 2242/20.3T8LRA.C1.S1
[3] Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-03-2024 disponível em TRL 3375/21.4T8LSB.L2-6.
[4] Segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 699), “(…) não se trata mais da quesitação atomística e sincopada de pontos de facto que caracterizou o nosso processo civil durante muitas décadas. Numa clara mudança de paradigma, procura-se agora que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiai e sem quaisquer constrangimentos, assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa.”.
[5] A este respeito os mesmos Autores, op. cit, afirmam: “(…) quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual.”.
[6] Nas palavras de Pedro Romano Martinez, Contrato de empreitada, Almedina, página 68, o dono da obra ou comitente “pode ser uma pessoa singular ou coletiva que encarrega outra de executar certa obra”. Nas páginas seguintes (71 a 73), o referido autor discorre sobre a legitimidade do comitente, admitindo que o mesmo possa ser um locatário, o titular de um direito real menor como o de servidão, o usufrutuário e o comproprietário.
[7]Acórdão STJ 11826/17.6T8SNT.L1.S1, em cujo sumário se pode ler: “I -.Conforme jurisprudência consolidada do STJ, as nulidades da sentença/acórdão encontram-se previstas no art. 615.º do CPC e reportam-se a deficiências estruturais da própria decisão, não se confundindo com os erros de julgamento, de facto ou de direito. A decisão não enferma de nulidade se o Tribunal deixar de apreciar qualquer consideração ou argumento invocado pela parte”. Disponível em:
[8] Pedro Romano Martinez, op. cit. página 189.
[9] Cfr. a título meramente exemplificativo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14-01-2025, STJ 1153/20-2T8PVZ.P1.S1 e de 17-10-2019, STJ 1066/14.1T8PDL.L1.S1.
[10] Cfr, a título meramente exemplificativo, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2023, TRP 164/21.0T8ARC.P1 e de 09-05-2024, TRP 2102/20.8T8VLG.P1em cujo sumário se pode ler: “V- No âmbito do regime jurídico da compra e venda de bens de consumo (art. 12.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho e o regime específico emergente do DL n.º 67/2003, de 8 de abril, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, e alterou a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, o qual vigorou até 31 de dezembro de 2021, dada a entrada em vigor, em 1 de janeiro de 2022, do atualmente vigente Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, que regula os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, transpondo as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770), os direitos do comprador consumidor são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas restringida pelos limites impostos pela proibição geral do abuso do direito (art. 4.º, n.º 5, do D.L. n.º 67/2003) pelo que, perante a falta de conformidade do bem com o contrato, o comprador/consumidor pode optar por qualquer um dos direitos conferidos pelo art. 4.º n.º 1, do D.L. n.º 67/2003, desde que essa opção respeite os princípios da boa fé, dos bons costumes e a finalidade económico-social do direito escolhido”.
[11] Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, 4ª edição, Almedina, páginas 225-226.
[12] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, sétima edição, páginas 334 e 335.
[13] “Em Outubro de 2021, o escritório do apartamento apresentava o chão arranhado e riscado ao longo da zona de circulação, cheiro a esgoto, a fechadura da porta não estava afinada, a calha led tinha uma imperfeição no remate, faltava colocar uma tampa no armário na área técnica de telecomunicações, e na janela da casa de banho a posição de oscilo batente batia na ombreira; (arts. 7.º, 8.º, e 50.º a 54.º da petição inicial)”.
[14] Cfr. a título de exemplo, os acórdãos (cuja hiperligação se deixa para facilitar a sua consulta): STJ 789/96, STJ 2722/03.5TCSNT.L1.S1, STJ 477/07.3TCGMR.G1.S1 TRG 477/07.3TCGMR.G1.S1 e TRG 17/18.9T8CBT.G1
[15] “Na sequência de infiltrações de água nos termos descritos em K) e após atravessarem a suite descrita em s), ocorreram infiltrações no apartamento do 2º andar direito do prédio, abaixo do apartamento dos autores, que danificaram pinturas e paredes de tal apartamento (artº 57º da petição inicial)”.