I. Verificando-se as agravantes das alíneas b) (coabitação) e c) (deficiência), do nº1 do artigo 177º, por referência ao artigo 171º, nº 2, ambos do Código Penal, é adequada e proporcional a condenação do arguido na pena de 5 anos e 6 meses de prisão por cada um dos dois crimes de abuso sexual agravado e na pena única de 6 anos de prisão;
II. Tendo o arguido, de forma reiterada, ofendido a liberdade de autodeterminação sexual da ofendida, com violação flagrante do princípio da confiança que resultava da coabitação e as consequências ao nível comportamental e mental que a mesma sofreu e ainda sofre e os juízos de equidade reclamados pelo legislador é justa, adequada, prudente e equitativa, a indemnização de 5.000,00€ fixada pelo Tribunal.
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça
I Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de ... - Juiz ..., por acórdão de 08 de Novembro de 2024, foi o arguido AA condenado, nos seguintes termos:
- pela prática em autoria material de dois crimes de abuso sexual de criança agravados, previsto e punido pelos artigos 171º, nº 1 e nº2 e 177º, nº1, b) do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão por cada um.
Operado o cúmulo jurídico, foi o recorrente condenando na pena unitária global de 6 anos de prisão.
Condenar o arguido/demandado no pagamento a BB da quantia de 5 000,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a data do presente acórdão até integral pagamento.
2. Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Por decisão sumária de 12 de Março de 2025, a Senhora Juíza Desembargadora Relatora, declarou o Tribunal da Relação de Lisboa incompetente, ordenando a remessa dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.
O arguido no seu recurso, retira da respectiva motivação, as seguintes conclusões: (transcrição)
1º Vem o recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo “, o qual deliberou declarar parcialmente procedente a acusação, com alteração da qualificação jurídica e procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB, e:
“…1. Operar alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no artigo 358º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal, passando a imputar ao arguido, dois crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos nos artigos 171º, nº1 e 2 e 177º, nº 1, alínea b) do Código Penal, afastando a imputação da agravação prevista na alínea c).
2. Condenar AA, por dois crimes de abuso sexual de criança agravados previsto nos artigos 171º, nº 1 e nº2 e 177º, nº1, b) do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão por cada um.
3. Operar cúmulo jurídico, condenando o arguido na pena unitária global de 6 anos de prisão.
4. Não condenar o arguido nas penas acessórias previstas nos artigos 69ºB, nº2 e 69º-C, nº2 do Código Penal.
5. Condenar o arguido/demandado no pagamento a BB da quantia de 5 000,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a data do presente acórdão até integral pagamento…”
2º E vem interposto, porque salvo melhor opinião, a pena e indemnização em que foi condenado, não se mostram adequadas, nem proporcionais em alguns aspetos.
3º Na determinação da pena em concreto a aplicar ao arguido cumpre atender ao disposto nos artigos 70º e 71º do Código Penal.
4º Não parece que o julgador tenha tido em conta as orientações vertidas nos artigos referidos.
Nem teve em conta o facto do arguido não ter antecedentes criminais, e do atualmente padecer de várias doenças do foro psicológico e necessitar de apoio médico.
A pena será justa, proporcional e equitativa se for aplicada uma pena de 3 anos de prisão suspensa na execução da mesma nos termos do arº 50º do Código Penal, por um período de cinco anos, constituindo este período num verdadeiro regime de prova, o qual garantiria a reprovação do agente e a prevenção de novos crimes.
Relativamente à indemnização este deverá ser reduzido tendo em conta a situação socio económico do recorrente dada como provada no douto Acórdão.
Dando provimento ao presente recurso, farão V.Exa., a costumada JUSTIÇA (fim de transcrição)
3. O Ministério Público na 1ª instância não apresentou resposta ao recurso.
4. Neste Supremo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu o seu douto parecer concluindo pela improcedência do recurso.
5. Notificado o recorrente o mesmo não respondeu.
Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos e efectuada a conferência, cumpre decidir.
II Fundamentação
6. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3
Da leitura dessas conclusões, o recorrente coloca apenas a este Tribunal, a medida das penas parcelares e da pena única, a qual pretende ver reduzida para 3 anos e suspensa na sua execução e ainda, de forma meramente conclusiva, a redução do montante da indemnização.
Vejamos, antes de mais, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados.
6.1. O Tribunal a quo declarou provados, os seguintes factos: (transcrição)
1. BB nasceu a ... de ... de 2005, e é filha de CC e de DD.
2. Os pais de BB separaram-se quando ela tinha três anos de idade, passando a residir, desde então, com a mãe, na Rua ..., em ....
3. Entre 2016 e 2017, o arguido coabitou com a mãe da BB, como se fossem marido e mulher, passando a integrar o agregado familiar desta e da ofendida, na morada referida em 2, durante cerca de um ano.
4. Em data situada em 2017, numa ocasião em que a ofendida e o arguido se encontravam sozinhos em casa, o arguido, no quarto de dormir, visualizava vídeos de conteúdo pornográfico, concretamente um no qual uma mulher fazia fazer sexo oral a um homem.
5. A ofendida BB, à data com 11/12 anos de idade, movida pela curiosidade, aproximou-se do arguido e este permitiu que ela assistisse ao vídeo referido em 4 e que colocasse a boca no seu pénis, reproduzindo a ação objeto do aludido vídeo, e aí o introduziu, enquanto acariciava a cabeça da ofendida, após o que passou a empurrá-la na direção do seu órgão sexual, em movimentos de vaivém.
6. O arguido repetiu o comportamento descrito em 5 pelo menos mais uma vez, na sala da residência.
7. O arguido aproveitou a circunstância de coabitar com a menor BB, mercê da relação que mantinha com a mãe desta, bem como as ocasiões em que esta se ausentava para trabalhar, ficando sozinho em casa com a ofendida, para satisfazer os seus impulsos sexuais, levando a mesma a suportar atos de teor sexual consigo, o que quis e conseguiu.
8. O arguido saba que a BB tinha 11/12 anos e sabia que, em razão da idade, aquela não possuía capacidade e discernimento necessários a uma livre decisão, não compreendendo o alcance e o significado dos atos sexuais que o arguido praticou consigo.
9. BB apresenta atraso global do desenvolvimento, facto que o arguido conhecia.
10. Bem sabia o arguido que a ofendida, em razão da idade e do défice cognitivo, era pessoa débil e fragilizada e, assim, incapaz de opor resistência, circunstâncias que aproveitou para melhor concretizar os seus intentos, o que quis e conseguiu.
11. O arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos sexuais, praticando os atos sexuais supra descritos com a ofendida, aproveitando-se da pouca idade da mesma, da relação de confiança existente, da sua superioridade física, do ascendente decorrente da sua idade e experiência, bem como da ingenuidade, imaturidade e falta de experiência sexual da mesma.
12. Sabia o arguido que as suas condutas eram suscetíveis de prejudicar, como prejudicaram, o normal desenvolvimento da liberdade e da autodeterminação sexual da BB bem como a sua sã personalidade e livre desenvolvimento, ofendendo assim o sentimento de inocência, modéstia e vergonha da ofendida bem como a integridade física e psicológica desta, o que quis e conseguiu.
13. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
14. Do seu certificado de registo criminal não constam condenações.
15. À data dos factos, o arguido residia com CC, mãe da ofendida, e com a ofendida, em casa, propriedade, dos pais da companheira, em ....
16. O arguido retratou a existência de uma dinâmica disfuncional, tendo veiculado uma imagem negativa da companheira e da ofendida, tendo referido que era frequente o recurso a punições físicas sobre a ofendida, alegadamente por parte da companheira, mas também por si.
17. O arguido também considerou que era habitual os adultos e a menor andarem nus na habitação e dormirem juntos sem roupa, tendo admitido que a ofendida terá assistido a momentos de intimidade entre o casal.
18. O arguido referiu que também daria banho à ofendida, por vezes, tomando em conjunto, o que considerou ser normal, apesar da ofendida ter cerca de 11 anos.
19. Foi inteligível, ao nível do discurso, que o arguido não manteria uma ligação afetiva com a ofendida, denotando o mesmo superficialidade na sua abordagem.
20. Após a separação, o arguido afirmou ter ficado a residir sozinho em habitação cedida por amigo, até ter estabelecido nova relação com EE com a qual coabita desde 2019, em casa térrea arrendada.
21. O arguido descreveu de forma positiva a relação existente, o que nos foi confirmado pela companheira.
22. De acordo com o apurado, o casal dispõe de adequadas condições de acomodação.
23. Foi referido que o filho mais novo do arguido permanece, por vezes, ao fim de semana, no agregado, tendo AA caracterizado a relação como sendo positiva.
24. Quanto ao seu percurso de vida, o arguido referiu ter crescido no seu agregado nuclear, em ..., com pais e irmãos germanos, tendo sido, de acordo com o próprio, exposto, desde idade precoce, a contextos de violência, em que o agressor, seria o pai, que o arguido descreveu de forma negativa como “mulherengo”(sic) e alcoólico que agredia com violência os filhos.
25. A mãe, apesar de ter sido descrita como mais afetiva, também exercia castigos físicos sobre o arguido e irmãos, o que AA procurou justificar pelo facto de estar “esgotada” da situação familiar.
26. O arguido referiu que, aos 18 anos, na sequência dos maus tratos que vivenciou, saiu de casa e veio a integrar o agregado de tia materna, que residia na ..., tendo afirmado que acabou por sair de casa desta, na sequência de desentendimentos, relativos a questões financeiras.
27. Após cumprimento do serviço militar, o arguido afirmou que voltou a residir, por cerca de 2 meses, com os pais, mas que novos conflitos levaram a que viesse a integrar o agregado de tias maternos que residiam no ....
28. O arguido descreveu de forma negativa a dinâmica familiar que existia, tendo referido que o tio era toxicodependente, o que condicionaria, de forma negativa, as relações intrafamiliares.
29. Com cerca de 20 anos autonomizou-se, tendo, nessa altura contraído matrimónio com FF, tendo o casal primeiro ido residir com os pais do arguido, e depois arrendado casa na zona de ....
30. Devido a constrangimentos económicos, o arguido e a mulher vieram residir para casa cedida por familiar, e depois conseguiram adquirir habitação própria, na qual viveram até se separarem, quando o arguido contava cerca de 32 anos.
31. Desta relação nasceram as duas primeiras filhas do arguido, com idades compreendidas, atualmente entre os 25 e os 16 anos, com os quais perdeu a ligação afetiva, sendo que o arguido responsabilizou os filhos por esta rutura, não tendo identificado o seu papel na mesma.
32. O arguido referiu ter tido um segundo relacionamento, com coabitação, que terá tido uma duração de cerca de 1 ano. O arguido afirmou ter residido na casa desta ex-companheira, tendo responsabilizado a mesma pelos conflitos que ocorreram e pela separação.
33. O arguido viria a manter, entre os 34 e os 38 anos, novo relacionamento amoroso com GG, tendo do mesmo nascido o seu terceiro filho, HH.
34. Em termos laborais, à data que reportam os factos, o arguido afirmou que trabalhava como distribuidor de dispensador de brindes e que auferia de um rendimento de cerca de 600 euros mensais.
35. Face ao que considerou ser escassez de rendimentos, o arguido optou por ir trabalhar com a sua companheira e mãe da ofendida, no café que esta explorava “B... ........”.
36. O arguido afirmou que o agregado dispunha, na altura de uma situação económica estável.
37. Após a separação, o arguido estabeleceu vínculo contratual com a D.., como operador de armazém, tendo facultado diversos recibos de vencimento os quais dão conta de um salário base de 841 euros, ao qual acresce subsidio de alimentação e subsidio noturno.
38. A atual companheira do arguido realiza limpezas para particulares, dispondo de rendimentos mensais variáveis de acordo com os trabalhos que realiza.
39. Contudo, ambos afirmam dispor de condições económicas estáveis e suficientes para as necessidades familiares, tendo sido referidas como principais despesas o arrendamento da habitação, água e eletricidade no valor de cerca de 600 euros, e a prestação de alimentos relativa aos filhos menores no valor de cerca de 121 euros no total.
40. No que concerne a rotinas, o arguido afirmou que as mesmas à data dos factos eram centradas nas vivências laborais e familiares, situação que será similar ao presente.
41. O arguido não fez menção a uma rede social próxima de amigos, não existindo, aparentemente convívios sociais frequentes.
42. Em termos de saúde, o arguido referiu que à data dos factos teria problemas de hipertensão e disfunção eréctil que condicionariam negativamente o seu quotidiano.
43. O arguido referiu que em dezembro de 2023, necessitou de apoio hospitalar, sendo que no documento que nos facultou as queixas eram referentes a ansiedade, labilidade emocional, e sentimentos de agressividade para com terceiros, existindo referência a uma alegada ideação suicida.
44. De acordo com a informação clínica disponibilizada pelo próprio, terá mantido consumos excessivos de álcool, em período não apurado, tendo tido consulta de alcoolismo no Hospital 1, e tendo chegado a efetuar tratamento psicofarmacológico de desabituação.
45. Todavia, o arguido não referiu manter qualquer consumo excessivo de álcool no presente momento.
46. No presente, o arguido afirmou manter os problemas inicialmente reportado, tendo afirmado manter sintomatologia depressiva.
47. O arguido centrou as repercussões da sua atual situação jurídico-penal no seu mau estar psicoemocional, não tendo identificado outras consequências em termos das vivências pessoais ou sociais.
48. A atual companheira do arguido tem conhecimento do presente processo, estando disponível para o apoiar.
49. Do que nos foi dado a conhecer, o arguido não mantém contactos com a ofendida, pese embora, não tenha sido possível confirmar esta informação.
50. Todavia, considera-se, que a mesma poderá beneficiar de medidas de proteção, atendendo à sua especial vulnerabilidade.
51. Da informação facultada pela PSP, verificamos a existência de quatro registos de ocorrência, um relativo ao processo 291/22.3..., entretanto arquivado de acordo com a informação facultada pelo arguido, e três outros NUIPC : 347/18.0... por crimes contra a liberdade pessoal; 570/13.3... por crimes contra a integridade física e 301/06.4..., por ameaça/coação, desconhecendo, estes serviços, o desfecho dos mesmos.
52. A capacidade intelectual da ofendida BB situa-se abaixo do percentil 25, classificada no nível inferior (grau IV).
53. O nível das capacidades e dificuldades comportamentais é avaliado em 20 pontos (categoria globalmente anormal), sendo 7 pontos na escala dos sintomas emocionais e 5 pontos na escala de problemas de comportamento.
54. BB não apresenta sintomatologia depressiva.
55. Em consequência da ação do arguido, a ofendida BB tem pesadelos, sente raiva, medo, tristeza e culpa, apresenta irritabilidade, com ataques de raiva e cautela excessiva relativamente a quem e ao que a rodeia, critérios de nível 17 de diagnóstico clínico de perturbação de stress pós-traumático, com impacto no seu bem-estar emocional.
56. Em 07 de dezembro de 2023, o arguido foi atendido em episódio de urgência no Hospital 2, etilizado, com queixas de ansiedade, labilidade emocional, ideação suicida, sentimentos de agressividade contra terceiros desde há um ano associados a problemas familiares.
57. Esses sintomas evoluíram favoravelmente no decurso do atendimento hospitalar, apresentando-se o arguido já calmo, colaborante, orientado, atento, com humor subdepressivo, discurso circunstanciado, sem labilidade emocional, sem alterações de comportamento ou ideias de morte.
58. Com diagnóstico de perturbação de uso de álcool e perturbação angodepressiva, o arguido teve alta, com prescrição de medicação (Sertralina, 50 mg e Diazepam, 5 mg) e certificado de incapacidade para o trabalho com a duração de 12 dias. (fim de transcrição)
6.2. Medida concreta das penas parcelares, pena única e sua suspensão.
O arguido vem, como ficou referido, recorrer das penas parcelares em que foi condenado e da pena única pretendendo a sua redução para 3 anos e a suspensão na sua execução.
Vejamos.
Em sede de medida da pena, o legislador estatui como parâmetros de determinação da mesma que deve ser fixada - “(…) dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” visando a aplicação das penas “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e levando ainda em conta “(…) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (artigos 71º, nº1 e nº2 e 40º, nº1 e nº2, ambos do Código Penal.
A densificação jurisprudencial destes critérios tem sido feita, por este Supremo Tribunal de Justiça, de modo a considerar e ponderar o equilíbrio entre “exigências de prevenção geral”, a “tutela dos respectivos bens jurídicos” e a “socialização do agente”.
Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, ponderando os referidos equilíbrios, “(...) Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente”,4 ou “(...) a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todo exigível”5.
Ao nível doutrinal, Figueiredo Dias entende que a medida da pena "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (...) a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida".6
No mesmo sentido, Fernanda Palma considera que, “(…) A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos – prevenção geral negativa, incentivar a convicção de que as normais penais violadas são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva. A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral”.7
Ainda, no mesmo sentido, Anabela Rodrigues considera também como finalidade essencial e primordial da aplicação da pena a prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada (…)”. Acrescenta a autora, que a prevenção especial se traduz na “(…) necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto, mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes”, sendo certo que ambas são balizadas pela culpa “ (…) a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (…) Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado”.8
Neste mesmo sentido, Figueiredo Dias considera, “(…) culpa e prevenção são assim dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena ( em sentido estrito ou de determinação concreta da pena”)9, acrescentando, “ (…) comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente».10
Enunciados os grandes princípios jurisprudenciais e doutrinais em matéria de medida da pena vejamos, antes de mais, o pensamento do Tribunal recorrido nesta matéria.
O Tribunal recorrido, na interpretação destes mesmos preceitos legais, considerou, no que respeita à medida da concreta das penas parcelares e pena única, o seguinte: (transcrição)
Pelo exposto, praticou o arguido, em concurso real, dois crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos nos artigos 171º, nº1 e 2 e 177º, nº1, b) do Código Penal, puníveis com pena de prisão de 3 a 10 anos agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, isto é, com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão
2. Escolha e determinação da medida das penas:
É, pois, ilícita a ação do arguido, certo que violou disposições legais e ofendeu os interesses penalmente protegidos da autodeterminação e liberdade sexual e ainda da proteção de menores e do desenvolvimento harmonioso da personalidade.
São particularmente elevadas as exigências de prevenção geral.
E, uma vez que conhecia a ilicitude dos atos que praticou e a legal proibição da sua conduta e, não obstante, quis empreendê-los, agiu com dolo direto (artigo 14, nº1 do Código Penal).
A intensidade do ilícito excede largamente a mediania, atendendo às consequências dele resultantes para a ofendida, atenta a natureza dos atos praticados e a especial vulnerabilidade daquela.
O dolo, atenta a reflexão necessária ao empreendimento da ação, assume intensidade muito significativa, mais elevada no segundo dos ilícitos.
Não resulta da factualidade assente qualquer fundamento atendível da atenuação da culpa, mostrando-se, pelo contrário, a ação especialmente censurável.
Nas situações de violência sexual infantil intrafamiliar, o desvalor da ação é particularmente acentuado porque a criança confia e sente-se segura nesse ambiente familiar e espera receber proteção e afeto e essa confiança é traída, o que prejudica inevitavelmente o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade,
Não existem causas de exclusão da ilicitude.
Beneficia o arguido de bom comportamento anterior, consubstanciado na inexistência de condenações anteriores, tendo completado já 47 anos de idade.
Porém, considerando a natureza e a gravidade dos factos, não é possível deixar de admitir a verificação de exigências relevantes de prevenção especial.
(Basta recordar a Fábula das Abelhas, de Bernard Mandeville: (…) Todos os dias se cometiam delitos nessa colmeia e a própria colmeia estava corrompida. Mas nem por isso a colmeia era menos próspera porque os vícios dos particulares contribuíam para a felicidade pública”, isto é, no constante jogo das aparências, como se costuma dizer, virtudes públicas, vícios privados.
Não expressou o arguido arrependimento ou autocensura.
Beneficia, aparentemente, de inserção familiar, embora instável ao longo do tempo e laboral.
De harmonia com o plasmado no artigo 40º do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a proteção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal e a reintegração social do agente, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa, sendo certo que não se trata de medida exata, situando-se a pena concreta entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), intervindo os outros fins das penas - prevenção geral e especial - dentro daqueles limites (cf. Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, págs. 4 a 113).
A determinação da medida concreta da pena será, pois, efetuada segundo os critérios estatuídos no artigo 71º do Código Penal, onde se explicita que a medida da pena se determina em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele.
Considerando os elementos de ilicitude e culpabilidade, o restante circunstancialismo apurado e o disposto nos citados artigos 40º, 41º, nº1 e 71º do Código Penal, julga-se adequado cominar ao arguido, por cada um dos ilícitos imputados, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
3. Do cúmulo jurídico:
Estamos perante a prática de dois crimes, em concurso real e efetivo, pelo que há que proceder a cúmulo jurídico das penas de prisão, nos termos e para os efeitos do regime consagrado no artigo 77º do Código Penal.
Dispõe o citado normativo que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (...) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
A moldura penal abstrata aplicável é de 5 anos e 6 meses (pena parcelares idênticas) a 11 anos de prisão (soma aritmética das penas parcelares).
Operando o cúmulo jurídico, de harmonia com o disposto no artigo 77º do Código Penal, ponderando conjuntamente a factualidade assente e a personalidade desvaliosa evidenciada pelo arguido, que flui dos factos provados, julga-se adequado fixar, muito perto do limite mínimo, atenta a cessação de convivência com a ofendida, a pena única de 6 anos de prisão. (fim de transcrição)
Como ficou referido dos critérios legais anteriormente elencados e a apreciação doutrinal e jurisprudencial dos mesmos, na determinação concreta das penas devem ser consideradas razões de prevenção geral e especial, balizadas pelo grau de culpa do arguido enquanto limite inultrapassável da pena.
O recorrente invoca como fundamento da alteração das penas parcelares e da pena única, a ausência de antecedentes criminais, a doença do foro psicológico e necessidade de apoio médico e ainda a sua boa inserção social.
Importa dizer que todos estes elementos pessoais foram ponderados na douta decisão recorrida, como resulta da transcrição anteriormente efectuada.
O Tribunal recorrido de forma adequada e proporcional, em função dos critérios elencados, fixou as penas abaixo dos limites médios abstractamente estabelecidos, ponderando, para além de todo o circunstancialismo que rodeou os factos, o elevado grau de ilicitude manifestado no facto de se verificarem duas circunstâncias agravativas (coabitação e deficiência da vítima), o dolo directo com que o arguido actuou e ainda as suas condições pessoais e grau de culpa.
Perante todo o circunstancialismo constante dos factos provados e as fortes exigências de prevenção geral, dado o elevado número de crimes verificados a nível nacional, o significativo alarme social que este tipo de ilícitos causam na comunidade e ainda, as graves consequências para as vítimas e suas famílias ao nível psicológico (como resulta provado no caso dos presentes autos em relação à vítima – ponto 55 dos factos provados) e até para a comunidade em que estão inseridas, entendemos adequadas e proporcionais as penas parcelares em que o arguido foi condenado.
Importa ter ainda em consideração que, apesar de o arguido não ter antecedentes criminais, o mesmo não mostrou qualquer tipo de arrependimento e em várias circunstâncias pessoais desresponsabiliza-se dos factos por si vivenciados (31 e 32 dos factos provados e 16 e 19).
Neste enquadramento e mesmo tendo em conta que o arguido não tem contactos com a ofendida (facto não confirmado – 49 dos factos provados) e que já decorreram 7 anos sobre a prática dos factos, não são suficientes para a alteração das penas em que o mesmo foi condenado.
Convém ainda realçar que a pena de três anos de prisão reclamada pelo recorrente, não tem suporte legal, porquanto limite mínimo da pena abstractamente estabelecido são 4 anos e o máximo 13 anos e 4 meses de prisão, que correspondem à pena de 3 anos a 10 anos de prisão do artigo 171º, nº 2, agravada em 1/3 nos seus limites mínimos e máximos, por exigência do artigo 177º, nº1, alíneas b) e c), todos do Código Penal.
Considerando os referidos limites abstractamente estabelecidos, entendemos que as penas parcelares, aplicadas ao recorrente pelo Tribunal a quo são adequadas e proporcionais ao respectivo grau de culpa, não se justificando qualquer intervenção correctiva deste Supremo Tribunal de Justiça, em virtude de não se identificar qualquer incorreção, omissão ou erros evidentes no raciocínio que determinou a sua fixação.
Em relação ao cúmulo jurídico, deverá ter-se em conta o conjunto dos factos e a gravidade dos mesmos ou, na expressão do legislador, são “considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 05 de Junho de 2012, a “ pena única deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação ente si, mas sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente. (…) Com a pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e da gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda considerar, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.”11’12
Assim, tendo em consideração que a pena única deve ser encontrada tendo em conta a gravidade global do comportamento delituoso do arguido, pois tem de ser considerado e ponderado um conjunto dos factos e a sua personalidade “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, entendemos, estar em presença de actos isolados e não de qualquer tendência criminosa, o que deve ser valorado positivamente na determinação da pena única.
Situando-se a moldura do cúmulo jurídico entre os 5 anos e 6 meses e os 11 anos de prisão, é adequada e proporcional a pena única aplicada (6 anos) a qual está, manifestamente, dentro dos limites da sua culpa e mostra-se adequada e proporcional à mesma, satisfazendo as demais exigências de prevenção geral e especial.
Mantendo-se a pena única, fica prejudicada a suspensão da execução da pena de prisão por não verificação dos respectivos pressupostos, nos termos do artigo 50º, nº1 do Código Penal.
6.3 Montante da indemnização arbitrada
Como referido nas questões a decidir o recorrente, de modo meramente conclusivo, veio peticionar a redução da indemnização arbitrada.
Não tem razão o recorrente.
A este propósito, escreveu-se na douta decisão recorrida (transcrição)
De harmonia com o disposto no artigo 129º do Código Penal a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
E o normativo legal vertido no artigo 483º n.º 1 do Código Civil, por seu turno, impõe a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos, àquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
A demandante peticionou a condenação do arguido/demandado no pagamento da quantia de 5 000,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Fundamentou a sua pretensão no impacto emocional para si decorrente da ação do arguido/demandado e nas despesas realizadas com as terapias/tratamentos necessários e adequados a reverter os aludidos efeitos adversos e a contribuir para a recuperação e bem-estar futuro.
Para que estejamos perante a constituição de uma obrigação de indemnizar é necessário pois, que se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, ou seja, o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Perante a factualidade descrita, dúvidas não restam que existe um facto voluntário, no sentido de dominável pela vontade pelo arguido;
Quanto à ilicitude, está assente a violação de bens jurídicos penalmente protegidos, de que resultaram, para a demandante, os danos descritos.
No que respeita ao pressuposto da culpa, o juízo de censura pode revestir duas modalidades: as vertentes do dolo e negligência ou mera culpa (culpa stricto sensu).
No caso em apreço, como vimos releva o dolo direto como já foi descrito em, supra.
De acordo com o disposto no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, a culpa é apreciada de acordo com a diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
Por fim, o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo arguido e os danos sofridos pelos lesados também se encontra verificado, pois a ação do arguido deu causa aos aludidos e reclamados danos.
Estão verificados, no caso em apreço, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, constituindo-se o demandado na obrigação de indemnizar a demandante dos danos não patrimoniais emergentes da sua conduta ilícita.
O artigo 562.º do Código Civil estatui que a obrigação de indemnização se orienta no sentido da reconstituição da situação que existiria na esfera do lesado se não tivesse verificado o evento que obriga à reparação - nisto consiste a designada Teoria da Diferença.
Atentando a tal premissa, sempre se dirá que o dano consiste no prejuízo real que o lesado sofreu in natura, o qual se irá determinar pela diferença entre a situação real atual do lesado e aquela hipotética, em que ele se encontraria se não tivesse havido lesão, isto segundo o principio da atualidade, dado que se deve entender que se deve atender ao momento mais recente que o Tribunal possa considerar, que em regra consiste no momento do encerramento da discussão da causa - cf. Ac. RP, de 15-7-89, in CJ, T4, p. 194; Ac. STJ , de 6-10-71, in BMJ 210.º/51; Vaz Serra, in RLJ, ano 112.º, p. 327, citado no Ac. STJ, de 1-2-95, in, CJ, S, T1, p. 53.
Com relevância em sede dos danos não patrimoniais preceitua o artigo 496.º/1 do Código Civil que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Estabelece, ainda, o n.º 3 do mesmo artigo que O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º (…).
A este respeito, escrevem os Professores Doutores Antunes Varela e Pires de Lima (Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1987, 4.ª edição, p. 471, 499 e 501): A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
Nesta sede, a indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas antes oferecer-lhe uma compensação que compense o mal sofrido - cf. A. Varela, in Das Obrigações em Geral, I.º Vol., p. 560; Rui Alarcão, in Direito da Obrigações, p. 270 -, havendo ainda que ter presente que na determinação da indemnização destes danos há que ter em consideração o critério limitador estabelecido pelo artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil, ao prescrever que: “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”. Deste modo cabe ao julgador realizar um juízo de ponderação, tendo presente que a doutrina e jurisprudência já entenderam que só são suscetíveis de serem ressarcidos os danos não patrimoniais que “espelhem uma dor, angustia ou sofrimento inexigível em termos de resignação” - cf. Ac. RC de 12-6-79, In, CJ, T3, p. 892 -.
Os danos não patrimoniais relevantes são merecedores da tutela do direito, quer se opte pela formulação negativa - que inclui nesta categoria todos aqueles que não atingem os bens materiais do sujeito passivo ou que de qualquer modo não alterem a sua situação patrimonial - Cf. De Cupis, II Danno, Teoria Generale della Responsabilitá Civile, I, 2.ª Ed., Milano, 1966, p. 44 e ss., citado entre outros por Dario Martins de Almeida, in Manual de Acidentes de Viação, 2ª ed., p. 82 e ss., e Vaz Serra, in BMJ 84.º/12 em nota -, quer pela formulação positiva, segundo a qual o dano não patrimonial ou moral tem por objeto um bem ou interesse sem conteúdo patrimonial, insuscetível, em rigor, de avaliação pecuniária.
Conforme prescrevem os artigos 494.º, 496.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil, o montante da compensação pelos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso - dolo, ou mera culpa do lesante -, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica deste e às demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
Atente-se, porque de particular interesse, em duas passagens, uma doutrinal outra jurisprudencial, que bem balizam o campo em que o julgador se deve mover na atribuição e ponderação do quantum indemnizatório a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais. No Ac. STJ de 16-12-93, in CJ, S., A1, T3, p. 181, pode ler-se “A indemnização por danos não patrimoniais deve ser correta, e a compensação por danos não patrimoniais deve tender, efetivamente, a viabilizar um lenitivo ao lesado, já que tirar-lhe o mal que lhe foi causado, isso, neste âmbito, já ninguém e nada consegue! Mas - “et por cause” - a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico.” No Código Civil Anotado de P. Lima e A. Varela, I. º Vol., p. 499, pode ler-se: “A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo, e não à luz de fatores subjetivos - de uma sensibilidade particularmente embotado ou especialmente requintada”.
É inquestionável que os danos não patrimoniais descritos, resultantes da factualidade assente, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito.
Atendendo à natureza do ilícito e aos sentimentos gerados na demandante em consequência dos factos praticados pelo arguido, a situação económica deste último, a modalidade e grau do dolo e a culpa, entende o tribunal fixar o quantum indemnizatório pelos danos não patrimoniais sofridos por BB no montante peticionado: 5 000,00 €, pelo que é inteiramente procedente o pedido de indemnização civil.
Sobre a indemnização fixada, tratando-se de quantias fixadas a título de danos não patrimoniais, sobre as mesmas incidirão juros de mora, à taxa legal, contados apenas desde a data de prolação do presente acórdão, já que se procedeu a uma fixação já atualizada e equitativa do valor da indemnização – artigos 805.º, n.º 3, e 806.º, n.º 1, do Código Civil (neste sentido, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002, de 9 de Maio de 2002, DR I Série A, de 27 de Junho de 2002). (fim de transcrição)
Como se pode ver desta transcrição, o Tribunal recorrido, na sua douta decisão, ao abrigo das normas citadas, fixou a indemnização à ofendida em 5.000,00€.
Vejamos.
A indemnização por perdas e danos emergente de crime é, nos termos do artigo 129º do Código Penal, “regulada pela lei civil”.
Neste contexto, a lesada terá direito a uma indemnização por perdas e danos, desde que se demonstre que o obrigado a indemnizar incorreu em responsabilidade pela prática de facto ilícito, nos termos definidos pelo artigo 483º do Código Civil, o qual estatui no seu nº1 que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigada a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da leitura do preceito resulta que são pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos o facto voluntário do lesante, a ilicitude, culpa ou nexo de imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Resultando comprovado o evento ilícito, imputável ao arguido nos termos resultantes da condenação criminal, resta apenas aferir da verificação do dano entendido como toda a ofensa de bens ou interesses protegidos pela ordem jurídica.13
O artigo 496º, nº1 do Código Civil admite a indemnização dos “danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, não merecendo protecção jurídica “os pequenos incómodos ou contrariedades, assim como os sofrimentos ou desgostos que resultem de uma sensibilidade anómala”,14confiando o legislador ao Tribunal o encargo de os calcular segundo critérios de equidade, tendo em conta “ (...) todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida”.15
Tendo em conta a factualidade dada por provada, nomeadamente o comportamento reiterado do arguido em ofender a dignidade e a liberdade de autodeterminação sexual da ofendida, com violação flagrante do princípio da confiança que resultava da coabitação e as consequências ao nível comportamental e mental que a mesma sofreu e ainda sofre e os juízos de equidade reclamados pelo legislador, parece-nos justa, adequada, prudente e equitativa, a indemnização fixada pelo Tribunal a quo a qual se mantém, improcedendo também esta conclusão do recorrente.
Em resumo, confirma-se integralmente o acórdão recorrido.
III Decisão
Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, decide julgar improcedente o recurso do arguido AA e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).
Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Maio 2025.
Antero Luís (Relator)
Maria Margarida Almeida (1ª Adjunta)
Carlos Campos Lobo (2º Adjunto)
1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.↩︎
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.↩︎
3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.↩︎
4. Sumário do acórdão de 31-01-2012, Proc. Nº 8/11.0PBRGR.L1.S↩︎
5. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª ambos in www.dgsi.pt
No mesmo sentido, Prof. Figueiredo Dias “O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187.↩︎
6. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime - Noticias Editorial, pág. 227).↩︎
7. As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” in “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, AAFDL, pág. 25-51 e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, 2000, Almedina, pág. 31-51.↩︎
8. A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra Editora, pág. 570 e seguintes).↩︎
9. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 214.↩︎
10. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril-Dezembro de 1993, pág. 186 e 187,↩︎
11. Proc. nº 202/05.3GBSXL.L1.S1, disponível em: www.dgsi.pt↩︎
12. Neste sentido também, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 421e segs.↩︎
13. Almeida Costa, Direito ..., cit., pág. 496↩︎
14. Almeida Costa, ob. cit., pág. 503↩︎
15. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, I, 4ª Edição, 1987, pág. 501↩︎