I. Não há lugar a controlo da dupla incriminação do facto, uma vez que os crimes que são imputados ao requerido se mostram incluídos no rol previsto no artº 2, nº2 da Lei nº 65/03, designadamente nas suas als. q) e s), o que significa que não cabe ao Estado requerido apreciar a existência ou não de indícios da prática dos crimes que lhe são imputados, cumprindo apenas verificar se é ou não o detido a pessoa requerida e se se verificam, ou não, os requisitos legais da pretensão de entrega.
II. Não se verificam nenhum dos fundamentos de recusa obrigatória constantes do artº11 da Lei nº65/03, nem de recusa facultativa, consignados no n.º 1 do art.º 12.º da mesma Lei, designadamente a da al. g), não só porque o mandado não foi emitido para cumprimento de pena, por um lado, como, por outro, porque foi dada a garantia de repatriamento, em caso de eventual condenação e cumprimento de pena.
III. f. A circunstância de existir sobrelotação nalguns estabelecimentos prisionais de algumas regiões de Itália – à semelhança do que sucede em Portugal e noutros países europeus, fenómeno que, para além do mais, tem características de sazonalidade - bem como a etnia do requerido, não determinam ou implicam que, forçosa e seguramente, este venha a ser sujeito a tratamento degradante e desumano.
IV. O que se mostra essencial – e, no caso, assegurado – é que os princípios e as normas que regem as instituições prisionais em Itália respeitem os mesmos princípios humanitários e legais das portuguesas, designadamente a CEDH e a Carta dos Direitos Fundamentais da EU.
V. Sendo a recusa uma faculdade, que compete ao tribunal averiguar e apenas conceder nos casos que o merecem, sob pena de “serem postos em causa os princípios de cooperação internacional a que a LMDE quis dar corpo e os valores que com essa cooperação se visam prosseguir, com destaque para a correcta administração da justiça penal” (como afirma o acórdão nº 27/12.0YRCBR.S1 do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Maio de 2012), entende-se que a análise dos factos não determina o preenchimento das razões que presidem à possibilidade prevista de recusa ou suspensão facultativa da entrega, pelo que o peticionado pelo recorrente soçobra.
Acordam em conferência na 3ª secção do Supremo Tribunal de Justiça
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I – relatório
1. Por acórdão de 15 de Maio de 2025, foi proferida a seguinte decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em deferir a execução do mandado de detenção europeu emitido pela autoridade judiciária da República da Itália contra o requerido AA, de nacionalidade portuguesa e residente em Portugal, sem prejuízo de posterior observância do disposto no art.º 5, n.º 3 da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho, de 13/6/2002.
2. Inconformado, veio o requerido peticionar a revogação da decisão recorrida, a ser substituída por outra que recuse a execução do Mandado de Detenção Europeu, com fundamento na violação dos artigos 3.° e 8.° da CEDH, e no artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Subsidiariamente, peticiona que se determine a suspensão da entrega até obtenção de garantias suficientes e específicas quanto às condições prisionais que assegurem espaço digno de detenção; cuidados médicos adequados; ausência de discriminação étnica e direito à defesa efectiva.
3. O recurso foi admitido.
4. O MºPº apresentou resposta, pronunciando-se no sentido da sua improcedência.
II – questão a decidir.
Da recusa ou suspensão da entrega do requerido, às autoridades italianas.
iii – fundamentação.
1. A decisão proferida pelo tribunal “a quo” tem o seguinte conteúdo:
A Ex.ma Sra. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal promoveu o cumprimento do mandado de detenção europeu, emitido pelo Tribunal de Cuneo, República da Itália, relativo ao requerido AA, cidadão de nacionalidade Portuguesa e atualmente residente em ..., nos termos do disposto nos artigos 15.º, n.º 1 e 16.º, n.º 1 da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, visando a sua detenção, nos termos do art.º 16.º, n.º 5 do referido diploma legal, e subsequente entrega à justiça da República da Itália, como Estado-Membro de emissão, para procedimento criminal.
Procedeu-se à audição a que se reporta o artigo 18.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, com a comparência do requerido neste tribunal, o qual, após ser esclarecido sobre a existência e o conteúdo do mandado de detenção europeu, bem como sobre o direito que lhe assiste de se opor à execução, os termos em que o pode fazer e as consequências de um eventual consentimento e sobre a faculdade de renunciar ao princípio da especialidade, declarou não renunciar a este princípio e não consentir na sua entrega às autoridades de emissão.
Pediu ainda prazo para apresentar, por escrito, a sua oposição, o que lhe foi concedido, nos termos do art.º 21.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 65/2003, de 23/8.
Na mesma diligência foi determinado que o requerido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito a detenção no estabelecimento prisional, por forma a garantir a efetivação da entrega.
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Resulta da análise dos elementos constantes do presente mandado de detenção europeu (MDE) que é imputada ao requerido a prática de crimes de roubo, rapto e detenção de arma, previstos pelos artigos 81, 61, 110, 605, 628C.1-3, todos do Código Penal italiano e artigos 2-4-7 da Lei italiana n.º 895/1967, ilícitos punidos com penas de prisão de máximo de 20 anos.
Os factos que consubstanciam tal pedido formulado pelo Estado da República da Itália são, em síntese, os seguintes:
No dia 3/3/2023, «com o objetivo de obter um lucro injusto, em cumplicidade com outros coautores do crime, entrou furtivamente na casa da vítima» [situada na via ...] «e, depois de a imobilizar violentamente com uma toalha molhada e uma arma, roubou 3500 euros e um anel de ouro».
«A pessoa procurada, com o papel de promotor e organizador, identificou o material necessário para a prática do crime e atribuiu várias tarefas a serem executadas pelos parceiros.
A pessoa procurada, antes do roubo, fez uma busca na casa da vítima e obteve informações sobre o paradeiro do dinheiro e das joias da vítima” – cf. formulário do MDE, redigido na língua portuguesa, constante dos autos (referência citius ....35).
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O requerido deduziu oposição no prazo que lhe foi concedido para o efeito, invocando o seguinte (segue transcrição):
«AA, requerido no mandado de detenção europeu, NÃO CONSENTINDO NA SUA ENTREGA AO ESTADO MEMBRO DE EMISSÃO, no caso, ITÁLIA, vem mui respeitosamente, apresentar a sua OPOSIÇÃO nos termos do artigo 21º da Lei n.º 65/2003, nos termos e com os seguintes fundamentos:
1) O Requerido não consente na sua entrega ao abrigo do MDE, o que desde logo se declara expressamente.
2) O Requerido é pai de um recém-nascido, tendo o filho nascido há cerca de 15 dias, estando por isso no exercício ativo de responsabilidades parentais e em contexto familiar delicado.
3) Pertence à etnia cigana, grupo historicamente marginalizado e alvo de discriminação em diversos contextos institucionais, incluindo os sistemas de justiça penal e prisional em vários Estados-Membros.
4) Nunca esteve em Itália, o que torna ainda mais inexplicável a emissão do MDE.
5) O MDE em causa tem como único objetivo a execução de atos de investigação (instrução), e não de condenação ou cumprimento de pena. A jurisprudência nacional e europeia admite maior exigência na avaliação da proporcionalidade e necessidade de entrega nestes casos.
6) O aqui requerente teme pela violação dos seus direitos humanos, pela sua vida, pela sua saúde, pela sua dignidade humana.
AUSÊNCIA OU INSUFICIÊNCIA DE ELEMENTOS FACTUAIS E PROBATÓRIOS
7) O Mandado de Detenção Europeu emitido pela autoridade judiciária italiana, com vista à entrega do Requerido, não contém elementos factuais e probatórios suficientes que permitam aferir, com segurança, a alegada participação do detido nos factos que lhe são imputados.
8) O MDE não veio acompanhado de impressões digitais ou exames biométricos que provem que o detido corresponde ao indivíduo procurado.
9) Entendemos, salvo melhor opinião, que o MDE carece dos elementos indiciários mínimos que sustentem a emissão do MDE, conforme o artigo 8.º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, transposto para o direito português pela Lei n.º 65/2003 é obrigatório conter, a descrição dos factos imputados, a qualificação jurídica dos mesmos, a moldura penal aplicável e os elementos indiciários mínimos que sustentem a emissão do MDE.
10) No caso em apreço, o MDE apresenta apenas uma referência genérica à prática de um ilícito, sem qualquer descrição concreta dos factos, local, data ou envolvimento específico do requerido, o que compromete gravemente o exercício do contraditório e a defesa.
11) Faz uma descrição generalizada dos factos e nem foi entregue totalmente traduzida ao requerente.
12) Aliás, naquele período, o aqui requerente não se encontrava no país em questão, mas sim a trabalhar como servente na empresa L.. .......... no período de novembro de 2022 a julho de 2023, conforme declaração de honra que se junta.
13) Assim, requer-se a este Tribunal que, ao abrigo do disposto no artigo 17.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, determine que seja solicitado à autoridade judiciária italiana o envio, com urgência, das seguintes informações complementares:
a) A descrição detalhada dos factos imputados ao requerido;
b) Os elementos de prova ou indícios que fundamentam a suspeita ou acusação.
14) Dado que o processo que decorre em Itália esta ainda numa fase instrutória ou de investigação.
15) O aqui requerente, tem sérias dúvidas sobre um julgamento justo na Itália, acredita que pode haver o risco de prisão preventiva prolongada sem acusação formal.
16) Teme a ausência de garantias processuais, tais como: a falta de direito à defesa adequada.
17) Atento ao princípio da proporcionalidade o MDE deve ser um último recurso.
18) Pode, salvo melhor entendimento, a Itália obter a cooperação do requerente por meios menos restritivos, mesmo cumprindo a medida de prisão preventiva em Portugal ou outras.
DO RISCO DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
19) A entrega do requerente à República Italiana, para cumprimento de pena ou para fins de processo penal, comporta sério risco de violação do seu direito fundamental à dignidade humana e à integridade física e psíquica, em razão das precárias condições do sistema penitenciário italiano.
20) O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), no caso Torreggiani e outros vs. Itália (2013), condenou a Itália por violação do artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), considerando que a superlotação crônica em suas prisões constitui tratamento desumano e degradante.
21) Naquele caso, verificou-se que os reclusos dispunham de menos de 3 m2 de espaço individual, além da carência de ventilação, iluminação e acesso adequado a instalações sanitárias.
22) Tal decisão foi vinculada ao mecanismo de decisão-piloto, forçando o Estado italiano a adotar medidas estruturais.
23) Ainda assim, relatórios recentes de organizações como o Comité para a Prevenção da Tortura (CPT) e o Antigone Report continuam a apontar falhas sistemáticas em diversos estabelecimentos prisionais italianos, inclusive em aspetos relacionados à:
· Superlotação e celas insalubres;
· Falta de acesso a cuidados médicos e psicológicos adequados;
· Violência institucional e suicídios em prisão preventiva.
24) Nos termos do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia nos processos C-404/15 e C-659/15 PPU, os tribunais nacionais devem verificar, caso a caso, se existem razões sérias e comprovadas para crer que o indivíduo em causa será exposto, no Estado de emissão do MDE, a um risco real de violação dos seus direitos fundamentais. (acórdão disponível em CURIA - List of results e CURIA - Case information).
25) Relatórios recentes de organizações independentes, como o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura (CPT) e a associação italiana Antigone, CONTINUAM A APONTAR FALHAS SISTEMÁTICAS em diversos estabelecimentos prisionais italianos, inclusive em aspetos relacionados à:
· Superlotação constante e sistemática, com celas que não oferecem o espaço mínimo recomendado por pessoa presa/detida (menos de 3 m2), em violação das orientações estabelecidas pelo TEDH;
· Falta de acesso adequado a cuidados médicos e psicológicos, especialmente no tratamento de doenças mentais e dependências, o que coloca em risco a integridade física e psíquica das pessoas presas ou detidas;
· Má condição sanitária, com instalações degradadas, falta de ventilação, chuveiros e acesso limitado à luz natural;
· Violência institucional e uso excessivo da força por parte de guardas prisionais, conforme documentado em investigações internas e denúncias públicas;
· Tratamento discriminatório e ineficiência na proteção de pessoas presas ou detidas em situação de vulnerabilidade, como estrangeiros, pessoas LGBTQIA+ e portadores de deficiência.
26) O Relatório Antigone de 2023, por exemplo, destaca que “a superlotação voltou a níveis críticos em diversas regiões, particularmente no sul da Itália”, e que “há falhas persistentes no respeito aos direitos dos detentos à saúde, à integridade pessoal e à dignidade humana”, para consulta: Nodo alla gola - XX Rapporto di Antigone sulle condizioni di detenzione.
27) Já o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes, na sua visita mais recente à Itália (cujo relatório foi publicado em dezembro de 2024), expressou preocupação com a persistência de práticas incompatíveis com os padrões europeus de detenção, incluindo relatos de tratamento degradante e negligência médica sistemática em determinados estabelecimentos, incluindo relatos de tratamento degradante e negligência médica sistemática em determinados estabelecimentos. Para consulta: Anti-torture Committee publishes report on ad hoc visit to Italy – CPT.
28) No relatório podemos ler um trecho que refere ”o CPT também condenou a “prática generalizada” de administração de drogas psicotrópicas não-prescritas aos detidos em Potenza, um dos quatro centros visitados. Pode-se consultar notícia no Observador: Conselho da Europa critica Itália por abusos na detenção de migrantes – Observador.
29) Indicam ainda que a situação nas prisões italianas continua preocupante, especialmente em relação à superlotação e falta de assistência médica adequada.
30) O CPT observou que as prisões italianas operavam com uma taxa de ocupação de 114% da capacidade oficial de 50.863 lugares, indicando superlotação significativa.
31) Essa situação compromete as condições materiais e o tratamento dos detidos.
32) O relatório enfatizou a necessidade de uma estratégia abrangente para abordar a superlotação e melhorar as condições materiais nas prisões visitadas, conforme documento 1 que se junta.
33) O relatório documentou casos de maus-tratos físicos e uso excessivo de força por parte de policias contra estrangeiros detidos.
34) Além disso, foi criticada a prática generalizada de administração de psicotrópicos não prescritos aos detidos, particularmente no CPR de Potenza.
35) O CPT também destacou o ambiente carcerário dos CPRs, com elementos como telas de malha metálica tripla nas janelas e áreas externas semelhantes a gaiolas, além da falta de atividades significativas para os detidos, conforme documento 2 que se junta.
36) Foram relatados casos de maus-tratos físicos por parte de agentes penitenciários, incluindo agressões em áreas não cobertas por câmaras de vigilância, conforme documento 4 que se junta.
37) Assim, podemos concluir com estes relatórios recentes do Conselho da Europa e do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura (CPT) INDICAM QUE O PROBLEMA PERSISTE, COLOCANDO QUALQUER DETENTO EM RISCO DE TRATAMENTO DEGRADANTE.
38) Além disso, HÁ UM RISCO REAL E CONCRETO de que o requerente seja submetido a tais condições caso seja extraditado.
39) De acordo com a Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia, a execução do MDE pode ser recusada se houver risco de violação dos direitos fundamentais do requerido.
40) O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) já decidiu que um MDE pode ser recusado quando houver risco de que a pessoa fique detida em condições que violem o Artigo 3º da CEDH.
41) Nos termos da jurisprudência do TEDH, a ITÁLIA TEM UM HISTÓRICO DE PRISÕES SUPERLOTADAS E SEM INFRAESTRUTURA ADEQUADA, E A ENTREGA DO REQUERENTE VIOLARIA SEUS DIREITOS FUNDAMENTAIS, O QUE JUSTIFICA A NÃO EXECUÇÃO DO MDE.
42) Em suma, no pelo exposto demonstramos o seguinte:
i. Falta de consentimento à entrega: o Requerido não consente na sua entrega ao abrigo do MDE, o que desde logo se declara expressamente.
ii. Circunstâncias pessoais e vulnerabilidade agravada: o requerente pertence à etnia cigana, grupo historicamente marginalizado e alvo de discriminação em diversos contextos institucionais, incluindo os sistemas de justiça penal e prisional em vários Estados-Membros.
iii. Finalidade meramente instrutória do MDE: O MDE em causa tem como único objetivo a execução de atos de investigação (instrução), e não de condenação ou cumprimento de pena.
iv. Risco real de violação de direitos fundamentais na Itália: nos termos do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), a entrega de uma pessoa não pode ser autorizada se existir risco sério de tratamento desumano ou degradante no país requerente.
· JURISPRUDÊNCIA EUROPEIA APLICÁVEL:
i) TJUE – Acórdãos Aranyosi e Căldăraru (C-404/15 e C-659/15 PPU):
ii) Os tribunais devem suspender a execução do MDE se existirem indícios sérios, objetivos e devidamente comprovados de que há um risco real de violação de direitos fundamentais.
· RELATÓRIOS RECENTES CONFIRMAM FALHAS SISTEMÁTICAS NAS PRISÕES ITALIANAS
iii) Relatório Antigone 2023.
iv) “A superlotação voltou a níveis críticos em diversas regiões, particularmente no sul da Itália, comprometendo seriamente os direitos fundamentais dos detidos.”
“Persistem falhas na assistência médica e psicológica, acesso à higiene, ventilação deficiente e celas com menos de 3 m2 por pessoa.”
v) Relatório CPT – Conselho da Europa (2024)
vi) “Foram documentados casos de maus-tratos físicos, uso excessivo da força, e administração de psicotrópicos sem prescrição adequada em centros de detenção italianos.”
“A infraestrutura permanece inadequada, e o espaço vital oferecido em muitas celas não respeita o limiar mínimo de dignidade exigido pelo TEDH.”
Perante o exposto, requer-se a Vossa Excelência que:
I. Recuse a execução do Mandado de Detenção Europeu, nos termos do Artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e da jurisprudência consolidada do TEDH e do TJUE;
II. Subsidiariamente, solicite garantias diplomáticas à Itália, comprovando que o requerente não será detido em condições degradantes;
III. Requer-se, ainda, que Vossa Excelência promova, com caráter urgente, nos termos da jurisprudência firmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia nos processos C-404/15 e C-659/15 PPU (Aranyosi e Căldăraru), o pedido de informação complementar à autoridade judiciária emissora do MDE, de forma a esclarecer:
O estabelecimento prisional concreto onde o Requerido seria detido; As condições físicas da cela atribuída (incluindo área útil, número de ocupantes, ventilação e luz natural); A existência de garantias mínimas de dignidade e acesso a cuidados médicos adequados; Qualquer medida prevista para evitar discriminação étnica ou institucional.
IV. Face à gravidade dos factos invocados, e nos termos da jurisprudência citada, requer-se ainda que seja suspensa a tramitação do processo de execução do MDE até à receção e apreciação da resposta por parte da autoridade italiana.
V. Requer-se, ainda, que Vossa Excelência promova, com caráter urgente, o pedido de informação complementar à autoridade judiciária emissora do MDE, ao abrigo do disposto no artigo 17.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, determine que seja solicitado à autoridade judiciária, das seguintes informações complementares:
a) A descrição detalhada dos factos imputados ao requerido;
b) Os elementos de prova ou indícios que fundamentam a suspeita ou acusação; suspendendo-se a tramitação até à resposta da mesma».
*
Respondeu a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, pugnando pela improcedência da oposição à entrega deduzida pelo requerido, concluindo nos seguintes moldes:
«Assim, E CONCLUINDO, parece-me que A OPOSIÇÃO DEVERÁ IMPROCEDER, na totalidade, e que deverá ser proferida decisão de execução do presente MDE, com entrega do requerido às autoridades judiciárias italianas, para procedimento criminal, porque:
- O MDE preenche todos os requisitos, quer quanto ao seu conteúdo, quer quanto à forma, previstos no art.º 8º, nº 1 alíneas, a) a g), da Decisão-Quadro do Conselho, de 13 de Junho de 2002 (que corresponde art.º 2º, alíneas a) a g) da Lei nº 65/2003), já que dele consta, nomeadamente, a natureza e qualificação jurídica das infrações (alínea d)), bem como a descrição das circunstâncias em os factos foram cometidos, incluindo o momento, lugar e o grau de participação da pessoa procurada (alínea e), ambas da Lei nº 65/2003), que permitem o controlo pela autoridade judiciária de execução dos factos que motivaram a emissão do MDE;
- Os factos que deram origem à emissão do presente MDE integram a prática dos crimes, de roubo, sequestro de pessoa e posse de arma, previstos pelos art.ºs, 81, 61, 110, 605, 628C.1-3, todos do Código Penal italiano e art.ºs 2-4-7 da Lei italiana n.º 895/1967, e punidos com penas de prisão de máximo de, 20, 8 e 5 anos e 8 meses, respetivamente e o procedimento criminal não se encontra prescrito;
- Sendo igualmente previstos e puníveis, pelo menos, como crime de roubo qualificado, p. e p. pelos art.ºs, 210º, n.ºs 1 e 2, als., a) e b), esta com referência ao art.º 204º, n.º 2, als. e) e f), ambos do Código Penal, com pena de 3 a 15 anos de prisão, não se encontrando, também, prescrito o procedimento criminal à face da lei portuguesa;
- E não existe nenhum motivo para se recusar o cumprimento do MDE, nomeadamente, erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa do MDE.
IV - Em todo o caso, o Ministério Público não se opõe a que seja solicitada, com urgência, às autoridades judiciárias italianas a GARANTIA de que o detido, AA, com nacionalidade portuguesa, não será objeto de um tratamento desumano ou degradante no caso de este Tribunal da Relação do Porto se decidir pela sua entregue e quando for colocado num dos estabelecimento prisionais italianos.
V- Quanto ao demais requerido na oposição – conforme pontos III, IV e V da parte final do requerimento de oposição - parece-me irrelevante para a decisão a proferir, sobre a execução do presente MDE - decisão que terá de se proferida no prazo estabelecido no artigo 26º, n.º 2 da Lei n.º 65/2003, de 23/8, ou seja, 60 dias após a detenção do requerido –, não constitui motivo válido para suspensão da tramitação do processo de execução do MDE nos termos do disposto no art.º 29º, n.º 4 da Lei n.º 65/2003 ou já se encontra junto aos autos, conforme resulta do teor do MDE traduzido para língua portuguesa, com a referência ....35, pelo que deverá ser indeferido».
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Na sequência da oposição do requerido e resposta do Ministério Público proferiu-se despacho, datado de 14/4/2024 (referência citius ......46), determinando-se o seguinte (segue transcrição parcial):
«[...] Deste modo, e em obediência à jurisprudência do TJUE, com reflexos na recente jurisprudência do STJ nacional (cf. o acórdão do STJ de 19/9/2024, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt), determina-se que sejam solicitadas informações complementares à autoridade judiciária de emissão, com vista a determinar as concretas condições de encarceramento a que seria sujeito o requerido, e á obtenção de compromisso e garantia de que não será submetido, caso haja de lhe ser entregue, a tratamento degradante ou desumano, considerando, para além do mais, a circunstância de pertencer a um grupo populacional minoritário («roma», vulgo «cigano»).
Finalmente, importa ter presente que o regime jurídico do MDE, em cumprimento da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho, de 13-06-2002, permite no seu art.º 5.º que cada Estado membro de execução possa sujeitar a execução do MDE a condições, como a prevista no n.º 3, que se refere à sujeição da entrega para efeitos de procedimento penal de nacional ou residente do Estado membro de execução, à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado membro de emissão. Deste modo, e como é observado no acórdão do STJ de 9/8/2013 (consultável em www.dgsi.pt), «[...] A entrega da pessoa procurada ao Estado de emissão tem natureza temporária, é apenas para efeitos de procedimento penal (e não para cumprimento de pena) e apenas ocorrerá se o Estado de emissão prestar a garantia de que após ser ouvida, será devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que seja eventualmente condenada». Assim, solicita-se que o Estado da República da Itália preste a garantia de que a pessoa alvo do presente MDE será devolvida ao Estado membro de execução (isto é, ao Estado Português), se nisso consentir, para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativa da liberdade a que seja eventualmente condenada. Dada a natureza urgente do presente processo, solicita-se que as informações e garantias em causa sejam prestadas com a maior celeridade possível e no prazo máximo de 20 dias [...]».
A entidade judiciária de emissão do presente MDE prestou a garantia que lhe havia sido solicitada, relacionada com a devolução da pessoa alvo do presente MDE ao Estado membro de execução (isto é, ao Estado Português), se nisso consentir, para cumprimento da pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que seja eventualmente condenada, não se pronunciando, porém, quanto à garantia relacionada com as condições dignas, com respeito pelos direitos humanos, do encarceramento preventivo a que a mesma seria temporariamente sujeita.
Na sequência do despacho datado de 24/4/2025 (referência citius ......19), foi prestada nova informação pela autoridade judiciária de emissão do MDE (cf. o ofício de 7 de maio e documentos anexos – ref.ª citius ......45), promovendo a Exma. Procuradora- Geral Adjunta nos seguintes moldes:
«Do que me foi possível entender do expediente enviado pelo Tribunal de CUNEO (que traduzi diretamente de italiano para português através do Google tradutor), a Juíza de Instrução refere que, porque se está numa fase de investigação preliminar e a fase de tomada de decisão final e sua execução não serão da sua competência, não pode prestar a garantia solicitada – agora reportada, apenas, à garantia relacionada com as condições dignas, com respeito pelos direitos humanos, do encarceramento preventivo a que o requerido AA seria temporariamente sujeito -, porque “foge à competência e às funções deste juiz prestar qualquer tipo de garantia quanto à situação prisional – área de competência do Departamento de Administração Penitenciária –, cabendo à autoridade judiciária, com base no que dispõe a regulamentação do MAE e nos limites da mesma, garantir a proteção das garantias processuais indisponíveis do acusado exclusivamente no âmbito do processo jurisdicional”.
Assim, em face do informado – e apesar de não terem sido reveladas pela autoridade judiciaria italiana as concretas condições de encarceramento a que será sujeito o requerido, nem obtido o compromisso e garantia de que o mesmo não será submetido, caso lhe seja entregue, a tratamento degradante ou desumano -, tendo em conta que as autoridades judiciárias italianas já prestaram, anteriormente, a garantia da devolução da pessoa alvo do presente MDE ao Estado Português, se nisso consentir, para cumprimento da pena ou da medida de segurança privativas da liberdade a que seja eventualmente condenado o AA, parece-me que tal será suficiente para que se possa proferir decisão sobre a eventual execução do presente MDE, com entrega do requerido às autoridades judiciarias italianas».
Colhidos os vistos, seguiu o processo para conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Foi em cumprimento da Decisão-Quadro (DQ) nº 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, que a Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, publicada no Diário da República I Série - A, nº 194 de 23 de agosto de 2003, veio aprovar o regime jurídico do mandado de detenção europeu.
O objetivo que a União proclamou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias, embora as decisões sobre a execução do mandado de detenção europeu devam ser objeto de um controlo adequado, o que implica que deva ser a autoridade judiciária do Estado-Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar a decisão sobre a sua entrega (ponto 8 da DQ).
O mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado-Membro, dos princípios enunciados no n.º 1 do artigo 6.º do Tratado da União Europeia, verificada pelo Conselho nos termos do n.º 1 do artigo 7.º do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.º 2 do mesmo artigo (ponto 10 da DQ).
Como é salientado no acórdão do STJ de 9/8/2013 1, o princípio do reconhecimento mútuo é fundado na premissa de que os Estados membros confiam mutuamente na qualidade dos seus procedimentos penais nacionais, justificando uma cooperação alargada no combate ao crime que adquiriu uma dimensão nova: “expandiu-se, corporativizou-se e globalizou-se” (cf. Anabela Miranda Rodrigues, “Um sistema sancionatório penal para a União Europeia – entre a unidade e diversidade ou os caminhos da harmonização”, in RPCC, Ano 13, Janeiro-Março 2003, pág. 34).
O princípio do reconhecimento mútuo reúne as ideias de convergência e de proximidade, pressupondo o princípio da confiança mútua, que, não sendo criado por decreto, assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito (cf. António L. Santos Alves, in RMP, Ano 103, pág. 68, nota 11). Por isso, o controle indiciário da prática do crime pela autoridade judiciária do Estado da execução não tem cabimento no mandado de detenção europeu.
Nesta ordem de ideias, veio dispor o art.º 1.º da Lei 65/2003, de 23 de agosto, que:
1. O mandato de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade.
2. O mandado de detenção europeu é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho.
O princípio do reconhecimento mútuo traduz-se em que uma decisão judicial tomada por uma autoridade judiciária de um Estado membro com base na sua legislação interna será reconhecida e executada pela autoridade judiciária de outro Estado membro, produzindo efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada por uma autoridade judiciária nacional.
1 Relatado pelo Conselheiro Pires da Graça e disponível em www.dgsi.pt.
Não obstante, é possível ou imposta a recusa de execução do MDE, intervindo aqui uma reserva de soberania do Estado de execução, sendo imposta nos casos previstos no artigo 11.º do citado diploma legal ou permitida nos casos dos artigos 12.º e 12.º-A.
No presente caso, a entrega do requerido foi solicitada para efeito de prossecução de procedimento criminal por crimes de roubo, sequestro e detenção de arma, puníveis, segundo a lei do Estado membro de emissão, com penas de prisão de máximo de 20, 8 e 5 anos e 8 meses, respetivamente.
Assim, face ao disposto no art.º 2.º da Lei n.º 65/2003, de 23/8, os ilícitos imputados à pessoa procurada englobam-se no âmbito do MDE (factos puníveis, pela lei do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver por finalidade o cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses). Além disso, tratando-se de crimes previstos no nº 2 do artigo 2º da Lei 65/2003 – concretamente, crimes de sequestro e de roubo, incluídos nas alíneas q) e s) – fica dispensado o controlo da dupla incriminação.
Não se verifica, ainda, nenhum dos motivos previstos no art.º 11.º (motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu) 2 ou no n.º 1 do art.º 12.º (motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu) 3como fundamento de recusa de execução do mandado de detenção europeu.
2 Norma com o seguinte teor:
«A execução do mandado de detenção europeu é recusada quando:
a) A infração que motiva a emissão do mandado de detenção europeu tiver sido amnistiada em Portugal, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento da infração;
b) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado-Membro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado-Membro onde foi proferida a decisão;
c) A pessoa procurada for inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;
d) (Revogada.)
e) (Revogada.)
f) (Revogada.)»
3 Norma com o seguinte teor:
1 - A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:
a) (Revogada.)
b) Estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu;
c) Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido decidido pôr termo ao respetivo processo por arquivamento;
d) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado-Membro em condições que obstem ao ulterior exercício da ação penal, fora dos casos previstos na alínea b) do artigo 11.º;
e) Tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;
f) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado terceiro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado da condenação;
g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;
h) O mandado de detenção europeu tiver por objeto infração que:
i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses; ou
ii) Tenha sido praticada fora do território do Estado-Membro de emissão desde que a lei penal portuguesa não seja aplicável aos mesmos factos quando praticados fora do território nacional.
4 Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 14/7/2014, relatado pela Conselheira Isabel Pais Martins, consultável em www.dgsi.pt.
A pessoa procurada pode não consentir na sua entrega ao Estado membro de emissão, mas essa oposição só pode fundar-se em erro na identidade do detido ou na existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu (cf. o art.º 21.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003) – e nenhuma destas circunstâncias se verifica no caso concreto.
Como na teleologia essencial do MDE não cabe qualquer juízo de mérito sobre a decisão da autoridade judiciária de proceder criminalmente contra a pessoa procurada, não constitui causa de recusa de execução do MDE o suposto erro na apreciação das provas oferecidas pelo recorrente com vista a demonstrar não poder ter sido ele o autor dos crimes por que é pedida a sua detenção e entrega às autoridades estrangeiras. Esta matéria tem a sua sede no âmbito do próprio processo crime em que é pedida a detenção e a entrega do recorrente 4.
Mostra-se, assim, irrelevante argumentar, como faz o requerido na oposição, que «o Mandado de Detenção Europeu emitido pela autoridade judiciária italiana, com vista à entrega do Requerido, não contém elementos factuais e probatórios suficientes que permitam aferir, com segurança, a alegada participação do detido nos factos que lhe são imputados». Ou, ainda, que «o MDE não veio acompanhado de impressões digitais ou exames biométricos que provem que o detido corresponde ao indivíduo procurado», pois, como bem assinala a Exa. Procuradora-Geral Adjunta, o MDE contém a correta identificação da pessoa cuja detenção provisória se pretende e tal identificação corresponde exatamente à correta identificação do requerido AA, não existindo, por isso, qualquer erro de identidade.
É certo, porém, que poderá constituir fundamento de recusa da execução do Mandado de Detenção Europeu a violação do disposto no artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (segundo o qual «Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes»), de acordo com a jurisprudência consolidada do TEDH e do TJUE - apesar de a Decisão Quadro 2002/584/ JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002 e a Decisão-Quadro 2009/299/ JAI, do Conselho, de 26 de Fevereiro de 2009, que a altera, não contemplar nenhuma causa explícita de recusa nesse sentido, o mesmo acontecendo com a Lei n.º 65/2003 de 23/8, como bem faz notar a Exma. PGA na contestação à oposição.
No acórdão Dorobantu, de 15 de outubro de 2019 (processo C‑128/18), o TJUE afirmou que o caráter absoluto da proibição de tratamentos desumanos ou degradantes obsta a que possam sobrepor-se-lhe considerações relativas à eficácia da cooperação judiciária em matéria penal, pelo que a necessidade de garantir que a pessoa em causa não será sujeita a tais tratamentos justifica, excecionalmente, uma limitação dos princípios da confiança e do reconhecimento mútuos.
Daí que, como se assinala no acórdão do STJ de 19/9/2024 5, «Segundo jurisprudência do TJUE, perante elementos objetivos, fiáveis, precisos e atualizados que confirmem a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, nas condições de detenção no Estado-Membro de emissão, a autoridade judiciária de execução deve pedir informações complementares para verificar, de maneira concreta e precisa, se existem motivos sérios e comprovados para considerar que a pessoa objeto do mandado correrá um risco real de tratamento desumano ou degradante em caso de entrega (casos Aranyosi e Cãldãraru - processos C-404/15 e C-659/15 PPU)».
No presente caso, o requerido invoca que relatórios recentes confirmam a subsistência de falhas sistémicas nas prisões italianas (como acontece, de resto, noutros países da UE, Portugal incluído, levando recentemente o TEDH a condenar o Estado Português, no acórdão proferido no dia 22/2/2024 - caso MARQUES ÂNGELO C. PORTUGAL -, por violação, não só do art.º 3.º, mas também do art.º 13.º da CEDH 6), apontando o Relatório Antigone de 2023 que «A superlotação voltou a níveis críticos em diversas regiões, particularmente no sul da Itália, comprometendo seriamente os direitos fundamentais dos detidos» e, ainda, que «Persistem falhas na assistência médica e psicológica, acesso à higiene, ventilação deficiente e celas com menos de 3 m2 por pessoa».
5 Relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
6 Como observa Inês Almeida Costa (in «As condições das prisões portuguesas, a jurisprudência do TEDH e o seu reflexo prático» - https://www.mfalegal.pt/xms/files/VIDAJUDICIARIA_marcoabril2024_02.pdf), o parque prisional português é antigo e carente de obras de reabilitação. À falta de recursos materiais e humanos soma-se a sobrelotação crónica, que em nada contribui para a garantia de condições mínimas de habitabilidade. Por tudo isto, não raras vezes, os reclusos encontram-se alojados em condições precárias, não minimamente compagináveis com o tratamento condigno que a nossa Constituição exige, o que tem levado o TEDH a múltiplas condenações do Estado Português no pagamento de indemnizações aos reclusos. Em casos onde haja risco de violação do art. 3.º da CEDH por más condições das prisões, o Estado Requerido deve pedir mais informações e garantias ao Estado Requerente, podendo, no limite, negar o pedido de extradição por considerar que os direitos fundamentais do extraditando não seriam respeitados se o mesmo cumprisse pena em estabelecimento prisional do Estado Requerente, acrescentando que semelhante lógica pode ser aplicada, e.g., à transferência de pessoas condenadas a penas privativas da liberdade na União Europeia, ao abrigo da Decisão-Quadro 2008/909/JAI.
Analisado o teor do referido Relatório Antigone, constatamos que, efetivamente, tais deficiências são assinaladas, ali se referindo também que «o crescimento da superlotação leva a condições de detenção cada vez mais desumanas».
Contudo, e como bem salienta a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no presente caso não se comprova a verificação de um risco real e sério de violação dos direitos fundamentais do requerido AA, nomeadamente um risco efetivo de tratamento degradante e desumano, sendo entregue às autoridades judiciárias italianas para efeitos de procedimento criminal e colocado num dos seus estabelecimentos prisionais.
Com efeito, a invocação deste risco pelo requerido, na oposição deduzida, baseia-se unicamente nas informações contidas no Relatório ANTIGONE 2023 e no Relatório CPT – Conselho da Europa (2024). Ora, se é verdade que o Relatório ANTIGONE 2023 documenta, efetivamente, deficiências no sistema prisional Italiano, designadamente sobrelotação de alguns estabelecimentos prisionais, tal sucede particularmente com aqueles situados no sul da República da Itália - sendo que o requerido deveria ser entregue às autoridades judiciárias junto do Tribunal de CUNEO, situado no norte de Itália -, parecendo-nos, para além disso, que as situações mais críticas ali descritas relacionam-se com os centros de detenção de migrantes, posição em que não se encontra, naturalmente, o requerido, cidadão português e, consequentemente, da União Europeia.
Finalmente, e como se observa no acórdão do STJ de 9/8/2013, importa ter presente que “O regime jurídico do MDE, em cumprimento da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho, de 13-06¬2002, permite no seu art.º 5.º que cada Estado membro de execução possa sujeitar a execução do MDE a condições, como a prevista no n.º 3, que se refere à sujeição da entrega para efeitos de procedimento penal de nacional ou residente do Estado membro de execução, à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado membro de emissão. [...] A entrega da pessoa procurada ao Estado de emissão tem natureza temporária, é apenas para efeitos de procedimento penal (e não para cumprimento de pena) e apenas ocorrerá se o Estado de emissão prestar a garantia de que após ser ouvida, será devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que seja eventualmente condenada”.
No presente caso, o Estado da República da Itália prestou previamente a garantia de que a pessoa procurada será devolvida ao Estado membro de execução, se nisso consentir, para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativa da liberdade a que seja eventualmente condenada.
É, pois, de autorizar a entrega do requerido ao Estado membro de emissão, nos termos da condição prevista na alínea c) do art.º 13.º, da Lei 65/2003, de 23/8, tendo sido prestada previamente a correspondente garantia por aquele Estado (como aliás dispõe o n.º 3 do art.º 5.º da referida Decisão-Quadro) e não se comprovando que a sua entrega às autoridades judiciárias italianas para efeitos de procedimento criminal e subsequente colocação temporária num estabelecimento prisional colocaria, efetivamente, o requerido em risco de tratamento degradante e desumano.
2. O requerimento apresentado pelo requerido, tem o seguinte teor:
I. Objeto do Recurso
O presente recurso tem por objeto o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de maio de 2025, que decidiu pela execução do MDE emitido por Itália, com vista à entrega do recorrente para fins de investigação criminal.
O Requerente não consentiu na sua entrega, tendo deduzido oposição fundamentada nos artigos 21.° e 17.°, n.° 2 da Lei n.° 65/2003, que foi indeferida, não obstante a inexistência de garantias efetivas quanto às condições de detenção e a grave ameaça aos seus direitos fundamentais.
II. Fundamentação Jurídica
1. Violação do Artigo 3.° da CEDH e do Artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da UE
O acórdão recorrido desconsiderou prova documental e jurisprudência que apontam para um risco real, concreto e sério de o recorrente vir a ser sujeito a tratamentos desumanos ou degradantes em caso de entrega às autoridades italianas. Em particular:
· Relatórios do CPT (2024) e do Antigone Report (2023) identificam condições prisionais gravemente deficientes, nomeadamente:
i. Superlotação sistemática (taxas de ocupação de 114%);
ii. Celas com menos de 3 m2 por detido;
iii. Ausência de cuidados médicos adequados;
iv. Casos de maus-tratos físicos, violência institucional e discriminação étnica.
Estes elementos preenchem os critérios fixados pelo TJUE nos acórdãos Aranyosi/Căldăraru (C-404/15 e C-659/15 PPU) e Dorobantu (C-128/18), que impõem a suspensão da entrega quando: “existam elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados” que apontem para risco de violação do artigo 3.° da CEDH.
A decisão recorrida ignora essa exigência, mesmo após não ter sido prestada qualquer garantia suficiente por parte da autoridade judiciária italiana quanto às condições de detenção preventiva.
2. Incompletude do MDE – Violação do artigo 8.° da Lei n.° 65/2003
O MDE não cumpre os requisitos mínimos de descrição factual e indiciária:
· A descrição dos factos é genérica;
· Não existem meios probatórios mínimos, como impressões digitais ou reconhecimento fotográfico;
· O recorrente afirma, sob honra e com documentos, não ter estado em Itália no período dos factos.
Estes elementos tornam a identificação incerta e impossibilitam o exercício adequado do contraditório e da defesa, contrariando os princípios fundamentais do processo penal e do artigo 8.° da Decisão-Quadro.
3. Finalidade exclusivamente instrutória do MDE – Violação do princípio da proporcionalidade
O MDE destina-se exclusivamente à fase de investigação, não visando cumprimento de pena nem sequer acusação formal. A jurisprudência europeia e nacional impõe avaliação mais exigente nesses casos:
“A entrega com base num MDE para fins instrutórios só pode ocorrer se for estritamente necessária e proporcionada” – TJUE, C-168/13 PPU, Jeremy.
A entrega neste contexto coloca em risco a vida familiar, a estabilidade laboral e a integridade física do recorrente por atos ainda não sujeitos a controlo judicial pleno no Estado de emissão.
4. Condições pessoais e familiares do recorrente – Direito à vida familiar (art. 8.º CEDH)
O recorrente:
· É cidadão português, residente em território nacional;
· É pai de uma filha recém-nascida, cuja certidão foi junta aos autos;
· Pertence à etnia cigana, grupo vulnerável em contexto prisional europeu, como reconhecido pelo Conselho da Europa.
A entrega viola, por isso, os princípios da necessidade, proporcionalidade e proteção da vida familiar, consagrados no artigo 8.° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
III. Pedido
Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exªs doutamente supriram, requer-se que seja
1. Concedido provimento ao recurso interposto;
2. Revogado o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 15/05/2025;
3. Recusada a execução do Mandado de Detenção Europeu, com fundamento na violação dos artigos 3.° e 8.° da CEDH, e no artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia;
4. Subsidiariamente, que determine a suspensão da entrega até obtenção de garantias suficientes e específicas quanto às condições prisionais que assegurem:
I. Espaço digno de detenção;
II. Cuidados médicos adequados;
III. Ausência de discriminação étnica;
IV. Direito à defesa efetiva.
3. Apreciando.
Consigna-se que o requerido foi detido, ao abrigo do presente MDE, no dia 27 de Março de 2025.
*
O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.
É um instrumento que tem por fim o reforço da cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, suprimindo o recurso à extradição.
A Lei nº65/2003, de 23 de Agosto (que, em Portugal, passou para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho Europeu, de 13 de Junho de 2002, relativa ao Mandado de Detenção Europeu e processos de entrega entre os estados membros), aplica-se aos pedidos recebidos, que tenham origem em Estados Membros da União Europeia que, de igual modo, tenham acolhido a referida Decisão Quadro, como estabelece o artº 40 da mencionada Lei, sendo este o caso da Itália.
4. No caso vertente, haverá que começar por realçar que a motivação apresentada se mostra parca de argumentos, sendo basicamente uma repetição das questões afloradas na oposição apresentada pelo requerido, junto do tribunal “a quo”.
Sucede, todavia, que tais questões foram já por esse tribunal apreciadas e a verdade é que, no âmbito do presente recurso, o recorrente se olvida de contra-argumentar o que aí se mostra explanado, designadamente todo o raciocínio lógico, argumentativo e jurídico, que o tribunal “a quo” expôs, a respeito do que fez constar a propósito da dita oposição.
Temos, pois, que o requerimento ora apresentado, em boa medida, carece de alicerces que o suportem, pois sendo o recurso um remédio jurídico, cabe ao recorrente apresentar as suas razões de discórdia quanto ao decidido, avançando argumentos que convençam o tribunal de apelo do erro que imputa à decisão.
Nada disso se mostra aqui minimamente realizado. O recorrente limita-se a voltar a insistir no que já tinha dito, sem rebater e demonstrar a existência de um mal, que cumpra remediar. Não basta afirmar o erro, há que demonstrá-lo….
5. Pela nossa parte, não nos sendo apresentadas as razões de discordância, antes se afirmando tão somente a mesma e não sendo possuidores de dons divinatórios, resta-nos concluir que não vislumbramos qualquer erro que cumpra rectificar, face à clareza e à solidez do que se mostra exposto pelo tribunal “a quo”.
Assim, e desde já, damos a nossa plena adesão ao conteúdo da decisão ora posta em crise, por subscrevermos na íntegra o seu conteúdo, pelo que a damos aqui por reproduzida, realçando e aditando tão somente o seguinte, no que toca aos pontos da motivação apresentada:
a. 1. Violação do Artigo 3.° da CEDH e do Artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da UE
O acórdão recorrido desconsiderou prova documental e jurisprudência que apontam para um risco real, concreto e sério de o recorrente vir a ser sujeito a tratamentos desumanos ou degradantes em caso de entrega às autoridades italianas.
3. Finalidade exclusivamente instrutória do MDE – Violação do princípio da proporcionalidade
O MDE destina-se exclusivamente à fase de investigação, não visando cumprimento de pena nem sequer acusação formal. A jurisprudência europeia e nacional impõe avaliação mais exigente nesses casos:
“A entrega com base num MDE para fins instrutórios só pode ocorrer se for estritamente necessária e proporcionada” – TJUE, C-168/13 PPU, Jeremy.
A entrega neste contexto coloca em risco a vida familiar, a estabilidade laboral e a integridade física do recorrente por atos ainda não sujeitos a controlo judicial pleno no Estado de emissão.
Bem ao inverso do que o recorrente afirma, o tribunal “a quo” pronunciou-se extensamente sobre tais questões, afirmando, designadamente:
É certo, porém, que poderá constituir fundamento de recusa da execução do Mandado de Detenção Europeu a violação do disposto no artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (segundo o qual «Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes»), de acordo com a jurisprudência consolidada do TEDH e do TJUE - apesar de a Decisão Quadro 2002/584/ JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002 e a Decisão-Quadro 2009/299/ JAI, do Conselho, de 26 de Fevereiro de 2009, que a altera, não contemplar nenhuma causa explícita de recusa nesse sentido, o mesmo acontecendo com a Lei n.º 65/2003 de 23/8, como bem faz notar a Exma. PGA na contestação à oposição.
No acórdão Dorobantu, de 15 de outubro de 2019 (processo C‑128/18), o TJUE afirmou que o caráter absoluto da proibição de tratamentos desumanos ou degradantes obsta a que possam sobrepor-se-lhe considerações relativas à eficácia da cooperação judiciária em matéria penal, pelo que a necessidade de garantir que a pessoa em causa não será sujeita a tais tratamentos justifica, excecionalmente, uma limitação dos princípios da confiança e do reconhecimento mútuos.
Daí que, como se assinala no acórdão do STJ de 19/9/2024 5, «Segundo jurisprudência do TJUE, perante elementos objetivos, fiáveis, precisos e atualizados que confirmem a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, nas condições de detenção no Estado-Membro de emissão, a autoridade judiciária de execução deve pedir informações complementares para verificar, de maneira concreta e precisa, se existem motivos sérios e comprovados para considerar que a pessoa objeto do mandado correrá um risco real de tratamento desumano ou degradante em caso de entrega (casos Aranyosi e Cãldãraru - processos C-404/15 e C-659/15 PPU)».
No presente caso, o requerido invoca que relatórios recentes confirmam a subsistência de falhas sistémicas nas prisões italianas (como acontece, de resto, noutros países da UE, Portugal incluído, levando recentemente o TEDH a condenar o Estado Português, no acórdão proferido no dia 22/2/2024 - caso MARQUES ÂNGELO C. PORTUGAL -, por violação, não só do art.º 3.º, mas também do art.º 13.º da CEDH 6), apontando o Relatório Antigone de 2023 que «A superlotação voltou a níveis críticos em diversas regiões, particularmente no sul da Itália, comprometendo seriamente os direitos fundamentais dos detidos» e, ainda, que «Persistem falhas na assistência médica e psicológica, acesso à higiene, ventilação deficiente e celas com menos de 3 m2 por pessoa».
Analisado o teor do referido Relatório Antigone, constatamos que, efetivamente, tais deficiências são assinaladas, ali se referindo também que «o crescimento da superlotação leva a condições de detenção cada vez mais desumanas».
Contudo, e como bem salienta a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no presente caso não se comprova a verificação de um risco real e sério de violação dos direitos fundamentais do requerido AA, nomeadamente um risco efetivo de tratamento degradante e desumano, sendo entregue às autoridades judiciárias italianas para efeitos de procedimento criminal e colocado num dos seus estabelecimentos prisionais.
Com efeito, a invocação deste risco pelo requerido, na oposição deduzida, baseia-se unicamente nas informações contidas no Relatório ANTIGONE 2023 e no Relatório CPT – Conselho da Europa (2024). Ora, se é verdade que o Relatório ANTIGONE 2023 documenta, efetivamente, deficiências no sistema prisional Italiano, designadamente sobrelotação de alguns estabelecimentos prisionais, tal sucede particularmente com aqueles situados no sul da República da Itália - sendo que o requerido deveria ser entregue às autoridades judiciárias junto do Tribunal de CUNEO, situado no norte de Itália -, parecendo-nos, para além disso, que as situações mais críticas ali descritas relacionam-se com os centros de detenção de migrantes, posição em que não se encontra, naturalmente, o requerido, cidadão português e, consequentemente, da União Europeia.
Finalmente, e como se observa no acórdão do STJ de 9/8/2013, importa ter presente que “O regime jurídico do MDE, em cumprimento da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho, de 13-06¬2002, permite no seu art.º 5.º que cada Estado membro de execução possa sujeitar a execução do MDE a condições, como a prevista no n.º 3, que se refere à sujeição da entrega para efeitos de procedimento penal de nacional ou residente do Estado membro de execução, à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado membro de emissão. [...] A entrega da pessoa procurada ao Estado de emissão tem natureza temporária, é apenas para efeitos de procedimento penal (e não para cumprimento de pena) e apenas ocorrerá se o Estado de emissão prestar a garantia de que após ser ouvida, será devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que seja eventualmente condenada”.
No presente caso, o Estado da República da Itália prestou previamente a garantia de que a pessoa procurada será devolvida ao Estado membro de execução, se nisso consentir, para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativa da liberdade a que seja eventualmente condenada.
b. 2. Incompletude do MDE – Violação do artigo 8.° da Lei n.° 65/2003
O MDE não cumpre os requisitos mínimos de descrição factual e indiciária:
· A descrição dos factos é genérica;
· Não existem meios probatórios mínimos, como impressões digitais ou reconhecimento fotográfico;
· O recorrente afirma, sob honra e com documentos, não ter estado em Itália no período dos factos.
Estes elementos tornam a identificação incerta e impossibilitam o exercício adequado do contraditório e da defesa, contrariando os princípios fundamentais do processo penal e do artigo 8.° da Decisão-Quadro.
De igual modo, também aqui, o tribunal “a quo” se pronunciou sobre tal questão, ao inverso do que o recorrente afirma, designadamente:
A pessoa procurada pode não consentir na sua entrega ao Estado membro de emissão, mas essa oposição só pode fundar-se em erro na identidade do detido ou na existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu (cf. o art.º 21.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003) – e nenhuma destas circunstâncias se verifica no caso concreto.
Como na teleologia essencial do MDE não cabe qualquer juízo de mérito sobre a decisão da autoridade judiciária de proceder criminalmente contra a pessoa procurada, não constitui causa de recusa de execução do MDE o suposto erro na apreciação das provas oferecidas pelo recorrente com vista a demonstrar não poder ter sido ele o autor dos crimes por que é pedida a sua detenção e entrega às autoridades estrangeiras. Esta matéria tem a sua sede no âmbito do próprio processo crime em que é pedida a detenção e a entrega do recorrente 4.
Mostra-se, assim, irrelevante argumentar, como faz o requerido na oposição, que «o Mandado de Detenção Europeu emitido pela autoridade judiciária italiana, com vista à entrega do Requerido, não contém elementos factuais e probatórios suficientes que permitam aferir, com segurança, a alegada participação do detido nos factos que lhe são imputados». Ou, ainda, que «o MDE não veio acompanhado de impressões digitais ou exames biométricos que provem que o detido corresponde ao indivíduo procurado», pois, como bem assinala a Exa. Procuradora-Geral Adjunta, o MDE contém a correta identificação da pessoa cuja detenção provisória se pretende e tal identificação corresponde exatamente à correta identificação do requerido AA, não existindo, por isso, qualquer erro de identidade.
c. 4. Condições pessoais e familiares do recorrente – Direito à vida familiar (art. 8.º CEDH)
O recorrente:
· É cidadão português, residente em território nacional;
· É pai de uma filha recém-nascida, cuja certidão foi junta aos autos;
· Pertence à etnia cigana, grupo vulnerável em contexto prisional europeu, como reconhecido pelo Conselho da Europa.
A entrega viola, por isso, os princípios da necessidade, proporcionalidade e proteção da vida familiar, consagrados no artigo 8.° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
O direito à vida familiar é um direito que assiste a qualquer cidadão português, assim como o de ser progenitor.
Não obstante, do mesmo não decorre a absoluta impossibilidade de um cidadão ser detido e mesmo de cumprir pena de prisão, como aliás resulta expressamente do artº 27 nº2 da CRP, desde que reunidas as condições aí previstas, como sucede no presente caso.
De igual modo, a circunstância de um cidadão pertencer a uma etnia, seja ela cigana ou outra, não altera o princípio constitucional acima exposto e não viabiliza uma impossibilidade de detenção, seja porque razão for, por tal circunstância.
Dir-se-á que é manifesto que existem, na sociedade em que nos inserimos, pessoas ou grupos mais vulneráveis em contexto prisional, quer por razão das suas etnias, quer por muitas outras, designadamente idade, sexo, condição física, incapacidades, debilidades psíquicas, etc, mas de tal circunstância não surge o impedimento da sua detenção, mas tão somente o esforço acrescido, por parte das instituições, de apoio, a que tais vulnerabilidades sejam ultrapassadas. A mera invocação da pertença a uma etnia e do facto de ser pai não é motivo de recusa da entrega quando, para além do mais, o repatriamento para cumprimento de pena em Portugal se mostra garantido.
6. Em síntese temos então que:
a. A pessoa procurada pode não consentir na sua entrega ao Estado membro de emissão, nos termos previstos no artº 21 da Lei nº 65/03, mas essa oposição só pode fundar-se no erro na identidade do detido ou na existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu.
b. A entrega requerida foi solicitada para efeito de prossecução de procedimento criminal por crimes de roubo, sequestro e detenção de arma, puníveis, segundo a lei do Estado membro de emissão, com penas de prisão de máximo de 20, 8 e 5 anos e 8 meses, respectivamente.
Assim, face ao disposto no artº 2 da dita Lei, os ilícitos imputados à pessoa procurada englobam-se no âmbito do M.D.E. (factos puníveis, pela lei do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses).
c. Para além do mais, no caso vertente, não há lugar a controlo da dupla incriminação do facto, uma vez que os crimes que lhe são imputados, de roubo e de sequestro, se mostram incluídos no rol previsto no nº2 do mencionado artigo, designadamente nas suas als. q) e s).
d. Significa isto que não cabe ao Estado requerido apreciar a existência ou não de indícios da prática do crime que é imputado ao ora recorrente, cumprindo apenas verificar se é ou não o detido a pessoa requerida e se se verificam, ou não, os requisitos legais da pretensão de entrega.
e. Não se verificam nenhum dos fundamentos de recusa obrigatória constantes do artº11 da Lei nº65/03, nem de recusa facultativa, consignados no n.º 1 do art.º 12.º da mesma Lei, designadamente a da al. g), não só porque o mandado não foi emitido para cumprimento de pena, por um lado, como, por outro, porque foi dada a garantia de repatriamento, em caso de eventual condenação e cumprimento de pena.
f. A circunstância de existir sobrelotação nalguns estabelecimentos prisionais de algumas regiões de Itália – à semelhança do que sucede em Portugal e noutros países europeus, fenómeno que, para além do mais, tem características de sazonalidade - bem como a etnia do requerido, não determinam ou implicam que, forçosa e seguramente, este venha a ser sujeito a tratamento degradante e desumano.
Na verdade, dir-se-á que tratando-se a Itália de um país europeu, de direito e democrático, pertencente ao chamado 1º mundo, em que as prisões são sujeitas – como decorre, aliás, do relatório que o recorrente invoca – a inspecções, por entidades autónomas do estado, as imperfeições do sistema mostram-se abertas a escrutínio público, o que será a maior garantia de, a existirem concretamente situações anómalas, estas serem sanadas.
Em bom rigor, diga-se, atendendo ao facto de que qualquer instituição, por mais rigorosos que sejam os princípios que a regem, estar sempre dependente da actuação humana – isto é, das pessoas que a fazem funcionar – mostra-se uma pura abstracção a procura de obtenção de uma garantia pura, abstracta e universal, de que alguém não possa vir a sofrer algum tratamento incorrecto, no decurso de uma detenção. Essa garantia é humanamente impossível, seja em Itália, seja em qualquer outra parte do mundo.
O que se mostra essencial – e, no caso, assegurado – é que os princípios e as normas que regem as instituições prisionais em Itália respeitem os mesmos princípios humanitários e legais das portuguesas, designadamente a CEDH e a Carta dos Direitos Fundamentais da EU.
g. Como se afirma no acórdão do STJ, proc. nº 107/23.6YRGMR.S1, 5.ª secção, relator Consº Lopes da Mota, de 26-07-2023, in https://www.dgsi.pt:
Na verdade, o Tribunal de Justiça da UE (acórdãos C-123/08, C-388/08, C-261/09 e C-42/11) tem interpretado a Decisão-Quadro relativa ao MDE salientando que:
(a) Decisão-Quadro 2002/584/JAI, como resulta, em particular, do seu artigo 1.º, bem como dos considerandos 5 e 7 do preâmbulo, tem por objecto substituir a extradição entre os Estados-Membros por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias das pessoas condenadas ou suspeitas, baseado no princípio do reconhecimento mútuo;
(b) este princípio implica que os Estados-Membros são, em princípio, obrigados a cumprir o mandado de detenção europeu;
(c) o reconhecimento mútuo não implica, no entanto, uma obrigação absoluta de execução do mandado emitido, pois que o sistema da Decisão-Quadro, como resulta do seu artigo 4.º, deixa aos Estados-Membros a possibilidade de permitir às autoridades judiciárias competentes decidirem não entregar a pessoa procurada, nas situações em que se verifique um motivo de recusa, com base em regras comuns (causas de recusa obrigatória e facultativa).
7. Sendo a recusa uma faculdade, que compete ao tribunal averiguar e apenas conceder nos casos que o merecem, sob pena de “serem postos em causa os princípios de cooperação internacional a que a LMDE quis dar corpo e os valores que com essa cooperação se visam prosseguir, com destaque para a correcta administração da justiça penal” (como afirma o acórdão nº 27/12.0YRCBR.S1 do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Maio de 2012), entende-se que a análise dos factos não determina o preenchimento das razões que presidem à possibilidade prevista de recusa ou suspensão facultativa da entrega, pelo que o peticionado pelo recorrente soçobra.
iv – decisão.
Pelo exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pelo requerido AA e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
Sem custas (por aplicação do art. 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, segundo o qual o processo de extradição é gratuito. Tendo em conta a natureza e as finalidades do processo de execução do MDE, que substitui a extradição nas relações entre os Estados-Membros da União Europeia, e não havendo norma idêntica na Lei n.º 65/2003, deverá aplicar-se esta disposição).
Dê imediato conhecimento ao TRP do teor deste acórdão, informando que ainda não transitou em julgado.
Lisboa, 4 de Junho de 2025
Maria Margarida Almeida (Relatora)
António Augusto Manso
José Carreto