I - Achando-se o juiz habilitado a conhecer, em sede de despacho saneador, excepção peremptória de prescrição invocada por uma das partes, deve, sob pena de ser cometida nulidade processual, designar audiência prévia, não contrariando esse entendimento o facto de as partes haverem já discutido nos articulados a referida excepção.
II - Enferma de nulidade a sentença em que exista contradição lógica entre a decisão e os seus fundamentos.
III - O ónus de impugnação obriga a parte a tomar posição definida sobre os factos, isto é, precisa ou nítida, mas não lhe impõe que motive a sua posição e/ou que contraponha ao facto que impugna ou considera falso o facto alternativo que entende ser o verdadeiro.
IV - No actual Código de Processo Civil os ónus de alegação e de impugnação incidem somente sobre os factos essenciais (e apenas parte deles no que respeita ao ónus de alegação) que constituem a causa de pedir ou as excepções; em relação aos factos instrumentais não existe ónus de alegação (a sua não alegação não preclude a possibilidade de o tribunal os considerar desde que resultem da instrução da causa) nem de impugnação (a não impugnação dos mesmos não impede a parte de na instrução da causa produzir prova destinada a demonstrar que eles não são verdadeiros).
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
AA, de nacionalidade brasileira, nascido a ../../1986, portador do Passaporte N.º ...11, emitido em 27/02/2017 e válido até 26/02/2027, por CG Porto, com o CPF N.º ...9, contribuinte fiscal número ...91, residente na Rua ..., ... ..., Portugal, intentou acção declarativa com processo comum contra A... Inc., com sede ..., EUA.
Peticionou a condenação da ré a pagar-lhe:
- a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de €49.580,06 (quarenta e nove mil, quinhentos e oitenta euros e seis cêntimos), tudo no total de €229.580,06 (duzentos e vinte e nove mil, quinhentos e oitenta e seis cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.
- quantia nunca inferior a €5000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos, também dos juros vencidos, no montante de €2.167,12, tudo no total de €7.167,12, e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.
Alega, para o efeito, os factos melhor descritos na petição inicial, assim sintetizados:
A sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições de 2011, 2012, 2013, 2014, 2018, 2020 e 2021, FIFA MANAGER FIFA (inicialmente designado Total Club Manager), nas edições de 2010 a 2014, FIFA ULTIMATE TEAM –FUT nas edições 2014, 2018 e 2020, e FIFA MOBILE, nas edições 2018 e 2020, todos propriedade da Ré.
Jamais concedeu autorização expressa, ou sequer autorização tácita, a quem quer que fosse, para ser incluído nos supra identificados jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, i.e. FIFA, FIFA MANAGER, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT e FIFA MOBILE.
Tão pouco conferiu poderes aos Clubes, para que estes negociassem a licença para o uso da sua imagem e do seu nome, especificamente para jogos electrónicos, jogos de vídeo, aplicativos, ou quaisquer outros jogos online ou offline, em qualquer tipo de plataforma.
Mais descreve os danos que, na sua perspectiva, tal situação lhe acarretou e acarreta.
Regularmente citada, a ré contestou nos moldes constantes do articulado com a referência 38116835, junto aos autos a 23/02/2021.
Nessa contestação, em síntese e entre outras excepções, a ré invocou a prescrição do direito indemnizatório que o autor pretende exercer, na medida em que já decorreram mais de três anos desde em que o autor tomou conhecimento dessa utilização (logo no ano de lançamento dos jogos FIFA em 2009), e a propositura desta ação ocorreu em 2020.
Facultado o contraditório ao autor, o mesmo alegou, no que se refere à referida excepção de prescrição, por requerimento com a referência 38756016, apresentado a 04.05.2021, que a utilização da sua imagem nos jogos FIFA se vem prolongando no tempo, na medida em que novas versões dos jogos são lançadas anualmente e a ré continua a vender as versões antigas dos seus jogos, identificando os jogos FIFA posteriores onde a sua imagem também surge, referindo que, enquanto a alegada infração continuada não cessar, não se inicia o prazo prescricional para exercício da sua pretensão indemnizatória.
Por despacho de 06.01.2022, foi admitida a intervenção nos autos de B... na qualidade de assistente como auxiliar da ré A... Inc.
Juntou a Ré acórdãos e decisões de outros tribunais versando a matéria da prescrição, tendo sempre exercido o contraditório.
Foi proferido despacho saneador que, conhecendo da invocada excepção de prescrição, julgou a mesma procedente, declarando prescrito o direito que o Autor pretendia fazer valer contra a Ré, absolvendo esta dos pedidos contra ela formulados.
Inconformado com tal decisão, dela interpôs o Autor recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“a) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados e entende o Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção dessa decisão.
b) O ora Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, entendendo que a mesma padece de vícios, no que à decisão proferida sobre a excepção de prescrição aduzida pela ré na contestação diz respeito, já que não restam dúvidas, desde logo, que a mesma é nula.
c) Com efeito, no caso dos autos, o saneador-sentença foi proferido, não tendo este sido precedido da realização de audiência prévia e sem que tenha sido feita menção à discussão de facto e de direito do mérito da causa, seja este por escrito ou oralmente.
d) Assim, tendo o tribunal recorrido optado por proferir a decisão de mérito em causa nos autos sem essa discussão de facto e de direito e sem ter consultado previamente as partes quanto a essa possibilidade, estamos perante uma nulidade processual.
e) O facto de o despacho recorrido ter sido proferido sem a consulta das partes e sem a discussão oral dos factos e direito aplicáveis aos autos, leva a que a sentença constante de tal despacho peque por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC e, seja, por conseguinte, nula, não sendo possível a sua sanação, nulidade que aqui se argui para os devidos e legais efeitos.
f) Por outro lado, resulta à saciedade que, quando ocorreu a citação da ré, ainda não se mostravam decorridos os 3 (três) anos previstos no artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil, considerada a data de lançamento das novas versões dos jogos FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer) edição de 2020, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT3 edição de 2020 e FIFA MOBILE edição de 2020 (sendo estas as datas que relevam, de acordo com o próprio entendimento do Tribunal a quo, conforme plasmado na decisão recorrida).
g) É, pois, manifesta a contradição entre o raciocínio do Tribunal a quo, quando considera que novas versões dos jogos com a imagem e o nome do Autor ainda hoje são lançadas todos os anos, que a data relevante para a apreciação da prescrição do direito do Autor é a data do lançamento dos jogos, e a conclusão de que esse direito em relação a esse mesmo jogo se encontra prescrito.
h) Deve, também por aqui, ser declarada a nulidade da sentença recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) (parte inicial) do CPC, determinando-se a consequente remessa do processo ao Tribunal a quo para que sejam, subsequentemente, seguidos os trâmites processuais decorrentes.
i) Contudo, caso assim não se entenda, o Tribunal a quo incorre ainda em manifestos erros de julgamento quanto à matéria de facto e quanto às questões de direito esgrimidas nos autos, pelas partes.
j) Desde logo, o Tribunal a quo não podia concluir que “O A alega conhecer a existência de tais jogos e da utilização indevida da sua imagem, desde Setembro de 2009, data em que pela primeira vez a sua imagem é utilizada no FIFA Manager, lançado precisamente nessa altura.”, que “…Aqui chegados é claro para este tribunal que teve o A conhecimento do seu direito em 2009, data em que com o lançamento do FIFA Manager percebeu, soube que a R. usava o seu nome e imagem no jogo.” e que “…o autor teve conhecimento do seu direito à indemnização a partir da data – final de setembro de 2009 – do conhecimento dos pressupostos que indiciam a responsabilidade civil.” – cfr. página 6 (parágrafos 4, 5 e 6) da decisão recorrida.
k) Para dar como assente que “6 - O autor soube da existência destes jogos e da inclusão da sua imagem nos mesmos, pelo menos, no ano do seu lançamento, ou seja, no final do ano antecedente ao ano da sua edição, tal como ficou a conhecer do respetivo conteúdo nesse mesmo ano.”, cfr. ponto 6 da matéria dada como assente.
l) Essa matéria factual dada como assente nunca poderia ter ocorrido, uma vez que nenhuma prova foi produzida nos autos que a suporte, havendo uma clara violação do preceituado nos artigos 410.º e 607.º, n.ºs 4 e 5, do C.P.C.
m) Isto porque em momento algum da petição inicial se mostra alegado pelo Autor que o mesmo teve conhecimento, em 2009, da inclusão da sua imagem, do seu nome e das suas características pessoais e profissionais nos jogos da ré, designadamente, no jogo FIFA Manager 2010).
n) O que o Autor alega (vide artigos 23.º e 153.º da petição inicial) é que a ré está a utilizar indevidamente a imagem e o nome do Autor, pelo menos, desde Setembro de 2009 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA Manager 2010).
o) Ou seja, o Tribunal a quo incorre num erro grosseiro de julgamento ao assumir que o momento em que a imagem, o nome e as características pessoais e profissionais do Autor foram introduzidas pela ré pela primeira vez nos seus jogos, e isto terá acontecido em 2009, coincide com o momento em que o Autor terá tido conhecimento que a ré se encontrava a utilizar essa imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais nos seus jogos.
p) Essa interpretação/conclusão pelo Tribunal a quo é absolutamente desprovida de qualquer sentido e não encontra nenhum respaldo naquilo que se mostra alegado pelo Autor na petição inicial.
q) A ré pode ter introduzido a imagem, o nome e as características pessoais e profissionais do Autor nos seus jogos pela primeira vez em 2009 e o Autor apenas ter tido conhecimento dessa utilização 5, 10 ou 15 anos depois.
r) Com efeito, o momento em que o lesado tem conhecimento do direito à indemnização, pode ou não coincidir com o momento de ocorrência do facto ilícito e o mesmo se pode afirmar quanto ao conhecimento que o Autor teve, enquanto lesado, do direito à indemnização.
s) Ademais, o facto do Autor ou qualquer outra pessoa ter conhecimento da existência de algum dos jogos da ré, não significa que, consideradas a sua imensa diversidade e as suas respectivas edições, tenha necessariamente de conhecer todos os jogadores que estão incluídos nos mesmos, incluindo a sua própria pessoa.
t) Aliás, a verdade é que, nem a própria ré, na contestação apresentada, consegue afirmar – sem ser de forma dúbia – qual o exacto momento em que o Autor terá tido conhecimento da inclusão da sua imagem, nome e demais características nos seus jogos.
u) Apenas sendo referido, por aquela, um conjunto de suposições e presunções, sem qualquer suporte factual, consubstanciadas no facto de a ré supor que o Autor terá tido conhecimento da inclusão da sua imagem, nome e demais características, nos seus jogos, no ano de 2009, faz com que estejamos, pois, apenas perante um juízo probatório meramente assente em presunções judiciais e em regras da experiência (cfr. artigo 64.º da contestação), o qual o Autor contesta e não admite.
v) Aliás, essa argumentação, relativa à alegada prescrição, pela ré na contestação apresentada nestes autos é em tudo similar à apresentada em outras acções idênticas à presente e já foi alvo da devida apreciação por parte de Tribunais Superiores.
w) Nesse sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no que respeita a tal argumentação, que: “A apelante entende, mal, que estamos perante matéria não carecida de prova, quando é a própria que retira a sua conclusão de um juízo probatório meramente assente em presunções judiciais e em regras da experiência (art. 106.º da contestação), juízo este não admitido pelo autor, designadamente em articulado subsequente. Como é evidente, ainda que tal juízo possa (ou não) ser apropriado, o autor pode ainda produzir prova que o contrarie.” Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 7ª Secção, Processo: 4488/20.5T8ALM-B.L1, de 18.11.2023, disponível para consulta in www.dgsi.pt
x) E mais recentemente, em Decisão Singular proferida, também, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos autos de Reclamação sob o número 24974/19.9T8LSBA. L1, onde se mostra referido o seguinte quanto a essa mesma argumentação pela ré:
“(…) O artigo 5º nº1 do CPC impõe o ónus de alegação, pelas partes, dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, bem como daqueles em que se baseiam as exceções invocadas e, por força dos nºs 1 e 2 do artigo 342º do CC, cabe ao autor o ónus de provar os factos constitutivos do direito que alega e ao réu o ónus de alegar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado.
Assim, o momento do conhecimento do autor da existência dos pressupostos do seu direito não é facto essencial deste direito e com cujo ónus de alegação estivesse onerado, cabendo à ré tal ónus, já que o mesmo facto é essencial para a procedência da excepção de prescrição que invocou, por constituir o início da contagem do prazo de prescrição, nos termos do artigo 498º do CC.
Também não assiste razão à reclamante ao afirmar que os factos em causa eram factos notórios, porque muito famosos e publicitados.
De acordo com o artigo 412º do CPC, factos notórios são os que não carecem de alegação nem de prova, por serem do conhecimento geral, ou por serem do conhecimento do tribunal devido ao exercício das suas funções.
Não é o caso da existência e conteúdo dos jogos desenvolvidos pela ré, que não são do conhecimento geral de toda a gente, sendo, quando muito, conhecidos das pessoas do meio do futebol, sendo certo que o conhecimento concreto de cada uma dessas pessoas sempre dependeria de alegação e de prova.
(…)
Ora, apesar de a reclamante, em requerimentos posteriores, nas alegações do recurso interposto e nas alegações da reclamação, venha afirmar que alegou na contestação que o autor tomou conhecimento dos factos em 2011, a verdade é que tal alegação feita na contestação não mostra escorreita e clara, recorrendo a ré à alegação da “natureza notória” dos jogos e às publicações sobre os mesmos surgidas desde 2011, que o autor “não podia ignorar”, conclusão a que chega pelas regras da experiência comum, sendo certo que, se o critério é o de aplicação das regras da experiência comum, então o momento certo para decidir qual a data em que o autor teve conhecimento dos jogos será em sede de julgamento.
(…)” (negrito e sublinhado nossos)
y) Nos presentes autos, estamos, pois e também, perante meras suposições e presunções pela ré – reitera-se sem qualquer suporte factual – quanto à data em que o Autor terá tido conhecimento do lançamento dos jogos e do seu conteúdo.
z) Não podia, pois, o Tribunal a quo ter decidido com base em tais suposições presunções.
aa) Importa, pois, apurar nos autos em que data o Autor teve tido conhecimento do lançamento dos jogos e do seu conteúdo, bem como, quando teve conhecimento, enquanto lesado, do direito à indemnização e cabe, pois, à ré que alegou a prescrição a prova dos factos que a produzem – cfr. artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
bb) Por outro lado, e, também, ao contrário do que o Tribunal a quo entendeu, o conhecimento do mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito, ou seja, não há que antecipar qualquer solução jurídica e desconsiderar factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção.
cc) No caso dos autos, está contestada a existência de facto ilícito, porquanto se invoca a autorização para a utilização da imagem do jogador, assim como está contestada a existência e a quantificação do dano, sendo essencial a delimitação destes aspetos factuais para se apreciar a exceção da prescrição, atentas as diversas orientações possíveis acima expostas.
dd) Tal delimitação apenas poderá resultar da prova produzida em audiência de julgamento, cabendo, tal como já referido anteriormente, à ré que alegou a prescrição a prova dos factos que a produzem – cfr. artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
ee) Deste modo, não poderia o Tribunal a quo ter deixado de concluir, à luz das alegações vertidas na petição inicial e admitidas na contestação, que os jogos em causa continuaram a ser vendidos após o seu lançamento e foram até feitas novas versões, sendo que ainda hoje é possível adquirir as versões dos jogos da ré onde o Autor se mostra incluído (tal como se mostra confessado na contestação e dado como provado no ponto 7 da decisão recorrida), que a questão de direito consubstanciada na prescrição deveria sempre ser relegada para final, por existirem várias soluções plausíveis para a mesma e por ser essencial a produção de prova dos factos alegados pelo Autor e pela ré para apreciar essa excepção.
ff) Tanto mais que a ré se limitou a aceitar a perduração do dano pela temporalidade aduzida pelo Autor, bem como a sua manutenção no presente – conforme resulta admitido na contestação, que os jogos em causa continuaram a ser vendidos após o seu lançamento e foram até feitas novas versões lançadas anualmente (como o próprio Tribunal dá como assente nos pontos 7. e 8. Da decisão recorrida) – pelo que não podia o Tribunal a quo julgar procedente a excepção de prescrição invocada, muito menos, no despacho saneador de que se recorre.
gg) Devia, pois e ao contrário do que o Tribunal a quo decidiu, ter sido relegada para final o conhecimento da excepção de prescrição, porque é desta que se trata neste momento, por manifesta falta de elementos, e, nesse sentido, ordenado o prosseguimento dos autos para julgamento, proferindo despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, conforme previsto no artigo 596.º, n.º 2 do CPC.
hh) Assume ainda óbvia relevância, in casu, que o Tribunal a quo nunca poderia ter dado como provados supostos factos que refere terem sido admitidos por acordo, quando não o foram por terem sido impugnados, mas ainda que não o tivessem sido, nunca haveria lugar à cominação que se mostra referida na decisão recorrida de forma a justificá-la.
ii) A argumentação do Tribunal a quo, não tem o mais pequeno apoio na letra da Lei e o utilizador do Código de Processo Civil se o aplicar tal como ele está, seria apanhado de surpresa se não respondesse às excepções ou, na resposta às excepções, não impugnasse cada um dos factos alegados na contestação e, consequentemente, os factos alegados pela parte contrária fossem considerados como admitidos por acordo.
jj) Não pode funcionar aqui o ónus de impugnação de factos alegados na contestação e que se mostra previsto no artigo 587.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, pois este, como resulta da sua inserção, é restrito aos casos de admissibilidade legal de réplica previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 584.º do mesmo diploma legal e os presentes autos não comportam este articulado porque não foi deduzida reconvenção pela ré na contestação.
kk) Nem poderia ser de outro modo: sem norma legal que o preveja, não se pode aplicar uma cominação, designadamente, a prevista no artigo 574.º do Código de Processo Civil, nem pode haver uma interpretação que se traduza em criar contra a Lei, uma cominação para a falta de resposta, que iria apanhar de surpresa as partes no processo.
ll) Como se não bastasse, mais se dirá que, o Tribunal a quo, no despacho de 23-04-2021, não explicitou nem advertiu, como era necessário e em manifesta violação dos princípios da lealdade, cooperação e boa fé processuais, que a falta de resposta/impugnação teria a consequência que o Tribunal a quo extraiu.
mm) Neste sentido, chama-se à colação o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, nesta matéria, de 06 de Outubro de 2022, no processo n.º 97235/21.1YIPRT.G1, a Decisão Singular, proferida no Proc. 24974/19.9T8LSB-A.L1, de 2024-10-14 e as considerações de Urbano A. Lopes Dias, Blog do IPPC, comentário sinótico de 14/04/2015<blogippc.blogspot.com> – para os quais se remete, com particular enfase nas passagens supra transcritas – atenta a sua generosa fundamentação e porque responde taxativamente às questões no âmbito destes casos, mormente no que se reporta à alegada cominação que o Tribunal a quo aplica na decisão recorrida.
nn) O Autor não estava, pois, onerado com a impugnação dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos invocados pela ré, uma vez que a matéria de facto alegada por esta nas excepções tem-se sempre por controvertida, podendo o Autor, ainda oferecer contraprova sobre a mesma (art. 346.º do CC).
oo) Também por aqui, não podia, pois, o Tribunal a quo ter dado como provado o ponto 6. da matéria dada como provada e ter por assente que, pelo menos desde 2009, o Autor, invocante da lesão do seu direito de personalidade, adquiriu, formalmente, o direito que se propõem exercer nestes autos, por não ser legalmente admissível a cominação a que alude na decisão recorrida.
pp) E ainda tendo por referência, que a questão de direito consubstanciada na prescrição deveria sempre ser relegada para final, por existirem várias soluções plausíveis para a mesma, chegamos a outro aspecto que o tribunal a quo ignorou ostensivamente, com a decisão agora proferida e de que se recorre.
qq) Conforme resulta dos autos, a pretensão do Autor radica na violação ilícita do direito de personalidade, concretamente no direito ao nome e à imagem, e ainda no enriquecimento sem causa (enriquecimento por intervenção).
rr) O instituto do enriquecimento sem causa, no qual o Autor fundamenta o seu pedido subsidiário vem regulado nos artigos 473.º ss. do C. Civil e não podemos deixar de ter em conta que o artigo 474.º do C. Civil vem consagrar a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa.
ss) E, atenta a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, o prazo da prescrição previsto no artigo 482.º do C. Civil não se inicia enquanto o empobrecido tem outro meio ou fundamento que justifique a indemnização ou restituição – vd. neste sentido o Acórdão do TRG de 20 de maio de 2021 no proc. 6269.20.7T8PRT-A.G1 in www.dgsi.pt.
tt) Mais uma vez ao contrário do que o Tribunal a quo decidiu, nunca poderia ter operado o prazo prescricional inerente ao pedido de ressarcimento alicerçado em enriquecimento sem causa, visto que só com o trânsito em julgado da decisão que declarou prescrito o direito do Autor com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, é que se iniciará a contagem daquele prazo. Neste sentido, v. ainda Ac. Relação Évora de 22/01/1998 in Col. Jur. tomo 1, 260.
uu) Acresce ainda que, também, ao contrário do referido pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, a mesma situação pode ter diferente enquadramentos jurídicos, designadamente, em sede de responsabilidade civil extracontratual e/ou do enriquecimento sem causa.
vv) Nem há, qualquer insuficiência na alegação dos factos necessários para o preenchimento dos requisitos previstos no artigo 473.º do Código Civil, tal como bem se mostra explanado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em douto Acórdão proferido em acção idêntica à presente, de 27 de Setembro de 2022, Processo 637/20.1T8PRT.P1.S1 e disponível em www.dgsi.com, quanto a esta matéria.
ww) Está, nestes autos, suficientemente alegado pelo Autor, que a sua imagem individualizada é utilizada pela ré a nível global, pelo menos desde Setembro de 2009 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA Manager 10), sem qualquer autorização para esse efeito, sem pagar uma contrapartida comercial pela utilização da imagem do Autor nos seus jogos e os valores auferidos pela ré com a comercialização desses jogos.
xx) Teria, assim e relativamente ao pedido subsidiário baseado enriquecimento sem causa, sempre de ter sido, pelo Tribunal a quo, determinado o prosseguimento dos autos, com vista à fixação dos factos assentes e da base instrutória, para efeitos de apreciação da excepção de prescrição, aduzida pela ré, na contestação.
yy) Por tudo o que se deixa dito, não pode, pois, o Autor acompanhar a decisão sob recurso.
zz) Face a tudo o que antecede, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 3 e 4, 7.º, 8.º, 9.º-A, 131.º, 195.º, n.º 1, 410.º, 413.º, 574.º, 584.º, 587.º, 595.º, 596 n.º 2, 597.º, 607.º, nº 4, parte final e 615.º, n.º 1, alínea c) (parte inicial) e alínea d), todos do Código de Processo Civil e ainda os artigos 218.º, 306.º, 342.º, 363.º, 473.º, 474.º, 479.º, 482.º e 498.º, todos do Código Civil.
Termos em que deverá o presente recurso proceder, por provado, e, em consequência, ser declarada nula a decisão recorrida e determinada a consequente remessa do processo ao tribunal a quo, para que aí sejam, subsequentemente, seguidos os trâmites processuais decorrentes.
Caso assim não se entenda – o que não se concede e apenas se admite por mera cautela de patrocínio – sempre deve ser revogada a decisão recorrida e, em consequência, ser determinado o prosseguimento dos autos, relegando para a decisão final a apreciação da verificação da excepção de prescrição.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”.
A recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II. OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- Se ocorre nulidade processual por a decisão que julgou procedente a excepção da prescrição ter sido proferida sem que antes fosse realizada audiência prévia;
- Se a decisão é nula por excesso de pronúncia;
- Se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto;
- Se existiam nos autos elementos suficientes para o conhecimento da prescrição no despacho saneador;
- Se esse conhecimento devia ser relegado para a sentença final por ainda se mostrar controvertida a data em que o Autor teve conhecimento do facto lesivo do seu direito de personalidade;
- Não ocorrendo nenhuma dessas circunstâncias, se o direito invocado pelo Autor se acha prescrito.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Pelo tribunal recorrido foram considerados assentes os seguintes factos:
1 – A ré A... Inc., através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interactivo.
2 - O autor é um jogador de futebol profissional, nascido em 1986 no ... e que, à data da instauração dos presentes autos, jogava no ....
3 - O autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2011, 2012, 2013, 2014, 2018 e 2020; FIFA MANAGER, nas edições 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT3 2014, 2018 e 2020 e FIFA MOBILE nas edições de 2018 e 2020.
4 - As datas de lançamento destes jogos foram aproximadamente as seguintes: a) FIFA MANAGER 10: 30.10.2009, em todo o mundo; b) FIFA MANAGER 11: 29.09.2010, na Europa e 03.11.2010, nos EUA; c) FIFA MANAGER 12: 21.10,2011 na Europa; d) FIFA MANAGER 13: 26.10.2012, na Europa; e) FIFA MANAGER 14: 25.10.2013, na Europa; f) FIFA 11: 28.09.2010, nos EUA e 01.10.2010, na Europa; g) FIFA 12: 27.09.2011, nos EUA e 30.09.2011, na Europa; h) FIFA 13: 26.09.2012, nos EUA e 28.09.2012, na Europa; i) FIFA 14: 24.09.2013, nos EUA e 26.09.2013, na Europa; j) FIFA 18: 29.09.2017, em todo o mundo; l) FIFA 20: 27.09.2019, em todo o mundo; m) FIFA MOBILE: 11.10.2017, com a atualização para a temporada 2 (ano 2018) em 1.11.2017 e a atualização para a temporada 4 (ano 20) em 18.09.2019.
5 - O FIFA ULTIMATE TEAM é um modo de jogo online dentro do jogo FIFA e não um jogo diferente.
6 - O autor soube da existência destes jogos e da inclusão da sua imagem nos mesmos, pelo menos, no ano do seu lançamento, ou seja, no final do ano antecedente ao ano da sua edição, tal como ficou a conhecer do respetivo conteúdo nesse mesmo ano.
7 - As novas versões dos jogos electrónicos FIFA e FIFA MANAGER são lançadas anualmente, permitindo atualizações semanais via internet, com a utilização da imagem e do nome do autor.
8 - Estes jogos continuam a ser difundidos e vendidos em Portugal e em todo o mundo.
9 - O autor não concedeu autorização à ré para ser incluído nestes jogos.
10 - A presente ação foi instaurada em 16 de Dezembro de 2020.
11 - A ré foi citada para os termos da presente ação em 11 de Janeiro de 2021.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Do eventual vício decorrente da falta de realização da audiência prévia.
Insurge-se o recorrente pelo facto de o saneador não ter sido precedido de audiência prévia e ter sido proferido “sem que tenha sido feita menção à discussão de facto e de direito do mérito da causa, seja este por escrito ou oralmente”, acrescentando que pelo facto de ter o tribunal recorrido optado por proferir a decisão de mérito em causa nos autos sem essa discussão de facto e de direito e sem ter consultado previamente as partes quanto a essa possibilidade”, tal circunstância gera nulidade processual.
Logo, porém, adianta que “o facto de o despacho recorrido ter sido proferido sem a consulta das partes e sem a discussão oral dos factos e direito aplicáveis aos autos, leva a que a sentença constante de tal despacho peque por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC e, seja, por conseguinte, nula, não sendo possível a sua sanação, nulidade que aqui se argui para os devidos e legais efeitos”.
Desde já se anota que o recorrente confunde realidades jurídicas totalmente distintas: a omissão de uma formalidade que a lei prescreva pode, efectivamente, consubstanciar uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil, enquanto a nulidade da sentença constitui vício intrínseco à própria sentença.
Importa, antes de mais, equacionar se a não realização da audiência equivale a preterição de formalidade legal e se tal omissão era susceptível de influir no exame e na decisão da causa[1].
Permite o n.º 2 do artigo 590.º da lei processual civil que, findos os articulados, o juiz profira despacho pré-saneador com uma das finalidades previstas nas alíneas a) a c).
Não havendo lugar a tal despacho ou concluídas as diligências do mesmo resultantes, é convocada audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins previstos nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 591.º, nomeadamente, facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa [alínea b)], ou proferir despacho saneador, nos termos do nº 1 do artigo 595.º [al. d)].
O artigo 592.º determina em que casos não há lugar a audiência prévia: nas acções não contestadas que tenham de prosseguir em obediência ao disposto nas als. b) a d) do artigo 568.º, ou quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
Prevê o artigo 593.º que nas acções que hajam de prosseguir, o juiz possa dispensar a audiência prévia, quando esta se destine apenas aos fins indicados nas als. d), e) e f) do n.º 1 do artigo 591.º - ou seja, quando se destine, apenas, a proferir despacho saneador, a determinar adequação formal, simplificação ou agilização processual, ou a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova -, caso em que, nos 20 dias subsequentes ao termo dos articulados, profere despacho nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, podendo as partes requerer a realização da audiência prévia se pretenderem reclamar do despacho na parte em que determinou adequação formal, simplificação ou agilização processual, ou identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, em conformidade com o n.º 3 do citado dispositivo.
O artigo 595.º, n.º 1 enumera os fins a que se destina o despacho saneador: a) conhecer das excepções dilatórias ou nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou, que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII pode extrair-se: “A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.
No que respeita aos seus fins, a audiência prévia tem como objeto: (i) a tentativa de conciliação das partes; (ii) o exercício de contraditório, sob o primado da oralidade, relativamente às matérias a decidir no despacho saneador que as partes não tenham tido a oportunidade de discutir nos articulados; (iii) o debate oral, destinado a suprir eventuais insuficiências ou imprecisões na factualidade alegada e que hajam passado o crivo do despacho pré-saneador; (iv) a prolação de despacho saneador, apreciando exceções dilatórias e conhecendo imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; (v) a prolação, após debate, de despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova”.
Entende Abílio Neto[2] que “a realização da audiência prévia é tendencialmente obrigatória, porquanto, por um lado, só em casos contados a lei permite que ela não se realize (art. 592.º) e, por outro, só nas hipóteses contempladas no art. 593.º fica ao critério do juiz dispensar a sua realização”.
Revertendo à situação dos autos: o processo findou com a prolação do despacho saneador que, conhecendo da excepção peremptória invocada pela Ré, julgou a mesma procedente e, por virtude dela, absolveu esta dos pedidos contra ela deduzidos.
Não se configura, assim, nenhuma das hipóteses previstas no artigo 592.º, contemplando a alínea b) do seu n.º 1 as excepções dilatórias - que deixa fora do seu âmbito de aplicação as excepções peremptórias que, como adiante se esclarecerá, contendem com o mérito da causa -, nem a situação do artigo 593.º da lei processual civil - que concede ao juiz a faculdade de dispensar a audiência prévia, destinando-se esta apenas a algum dos fins nela especificados -, concebido apenas para a hipótese das “acções que hajam de prosseguir”.
Ora, como destaca o acórdão da Relação de Lisboa de 05.05.2015[3], “não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592º, e se a acção não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da acção, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito (art. 591º, nº 1, al. b))”.
Segundo o citado acórdão da Relação de Lisboa de 05.05.2015, “a convocação da audiência prévia para o fim previsto no art. 591º, nº 1, al. b) visa assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, e, assim, evitar decisões-surpresa (art. 3º, nº 3), pelo que se nos afigura que o juiz só poderá dispensar, nestes casos, a audiência prévia, ao abrigo do disposto nos arts. 6º e 547º, se aquele conhecimento assentar em questão suficientemente debatida nos articulados”.
Como explica Lebre de Freitas[4], “quando se julgue habilitado a conhecer imediatamente do mérito da causa, mediante resposta, total ou parcial, ao pedido (ou pedidos) nela deduzido(s) (art. 595-1-b), o juiz deve convocar a audiência prévia para esse fim.
No CPC de 1961 posterior à revisão de 1995-1996, exceptuava-se o caso em que os fundamentos da decisão a proferir tivessem sido já discutidos pelas partes, não havendo insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto a corrigir e revestindo-se a apreciação da causa de manifesta simplicidade. No novo código esta excepção desaparece: o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, às partes”.
Acha-se hoje estabilizado o entendimento de que conhece sobre o mérito da causa, independentemente da solução adoptada implicar ou não o termo do processo, o despacho que aprecie qualquer excepção peremptória, designadamente, a caducidade[5].
Assim, de acordo com o exposto, exigia-se a designação de audiência prévia para concretização da finalidade prevista no artigo 591.º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil, não contrariando esse entendimento o facto de as partes haverem já discutido nos articulados a excepção da prescrição.”.
Paulo Pimenta[6] explica desta forma a necessidade de ser convocada a audiência prévia: “Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito (…).
Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria.”
O conhecimento da excepção peremptória da prescrição, sem convocação de audiência prévia, quando a lei impõe a sua realização, constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil[7].
O vício em causa, a existir, pode ser reconhecido e declarado pela instância de recurso, podendo ser suscitado por via recursiva.
Como já Alberto dos Reis[8] fazia notar, “a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente”.
E, de acordo com idêntica orientação, defendia o Prof. Manuel de Andrade[9] que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»”.
Esse é também o entendimento sustentado pelos Profs. Antunes Varela[10] e Anselmo de Castro[11] .
Afirma o primeiro que “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”, enquanto o segundo refere que “tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso (…)”.
No caso aqui em debate, a nulidade processual em causa, a ter sido cometida, estaria a coberto da decisão judicial que se lhe seguiu, que a sancionou e confirmou, pelo que o meio processual próprio para a arguir não é a reclamação[12], podendo o vício em causa ser objecto de recurso e ser declarado por esta Relação[13].
Importa, efectuado este enquadramento, indagar se, no caso em apreço, foi omitida aquela formalidade processual, que, a ter ocorrido, determinaria a dita nulidade processual.
O despacho que conheceu da invocada excepção da prescrição, começa por afirmar: “Considerando que que as partes já tomaram posição quanto a todas as questões suscitadas nos articulados, nomeadamente, quanto à exceção da prescrição (aliás, amplamente discutida pelas partes nos vários requerimentos que foram dando entrada nos autos), por dispormos já de todos os elementos necessários ao conhecimento de tal exceção perentória, decide-se dispensar nova realização de audiência prévia”.
Calcorreando os autos, constata-se que, a 23.04.2021, foi proferido despacho que determinou que fossem as partes notificadas para se pronunciarem sobre a necessidade da realização da audiência prévia.
Ambas as partes reclamaram a realização da diligência em causa (a Ré, a 17.05.2021 e o Autor, a 26.05.2021).
Perante essa posição das partes, foi, a 6.01.2022, proferido o seguinte despacho: “Considerando o expressamente requerido pela R. no requerimento de 17/05/2021 quanto à realização de audiência prévia, o Tribunal procede ao seu agendamento para o dia 02/02, pelas 15.00 horas.
A audiência prévia terá como objecto a discussão das excepções invocadas pelas partes nos respectivos articulados”.
Na data designada, realizou-se a audiência prévia, e sendo mandatários das partes questionados “se pretendiam tomar posição sobre qualquer questão suscitada nos autos”, os mesmos responderam negativamente, como consta da respectiva acta.
Nesse acto foi proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses[14].
Ora, tendo sido designada audiência prévia para discussão das excepções invocadas pelas partes, e tendo esta se realizado com essa finalidade, foi concedida às mesmas a possibilidade de discutirem todas as excepções suscitadas, incluindo, naturalmente, a própria excepção da prescrição.
Neste contexto, revogada a decisão que julgou os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para conhecerem da acção proposta pelo Autor, ora recorrente, devendo os autos prosseguir na sequência do determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça, não faria qualquer sentido designar, de novo, audiência prévia, pois esta já tivera lugar com a finalidade de facultar às partes a discussão de todas as excepções suscitadas nos articulados.
Por conseguinte, tendo a audiência prévia sido realizada expressamente com aquele fim, tendo, assim, sido facultada às partes a possibilidade de discussão das excepções suscitadas, incluindo a da prescrição, não houve omissão da diligência em causa, pelo que não foi cometida qualquer nulidade processual.
2. Da invocada nulidade da sentença.
Imputa o recorrente à decisão de que recorre vício de nulidade que reconduz à previsão da alínea c), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Alega, para tanto, o recorrente existir “manifesta a contradição entre o raciocínio do Tribunal a quo, quando considera que novas versões dos jogos com a imagem e o nome do Autor ainda hoje são lançadas todos os anos, que a data relevante para a apreciação da prescrição do direito do Autor é a data do lançamento dos jogos, e a conclusão de que esse direito em relação a esse mesmo jogo se encontra prescrito”.
Segundo o n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.
Tal como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[15], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[16].
No primeiro segmento da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º enquadra-se o vício da sentença em que ocorra oposição entre os seus fundamentos e a decisão. A nulidade resultará dos próprios termos da sentença e está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos artigos 154.° e 607.°, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil, de fundamentar as decisões e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Esta oposição é a que se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir.[17]
Não se cuida, no vício contemplado na referida alínea, de indagar se existe contradição/oposição entre a decisão que julga a matéria de facto e os fundamentos que a motivaram, como sucede na hipótese delineada pelo anterior artigo 653.º da lei adjectiva, mas antes de averiguar se essa oposição ocorre entre a decisão que aprecia a matéria controvertida e os fundamentos quer de facto, quer de direito que contribuíram para essa mesma decisão.
Numa perspectiva silogística da sentença, a decisão nela contida deve estar numa relação lógica e coerente com as respectivas premissas, que a hão-de anteceder, sendo aquela o resultado natural decorrente das mesmas.
Isto é, “a decisão tem como antecedentes lógicos os fundamentos de direito (premissa maior) e os fundamentos de facto (premissa menor), não podendo o sentido da decisão achar-se em contradição ou oposição com os fundamentos, o que sucede sempre que na construção da sentença os fundamentos expressos pelo juiz, necessariamente, haveriam de conduzir a uma solução de sentido antagónico: a proposição final (conclusão) revela-se incompatível com as proposições logicamente antecedentes (fundamentos), o que traduz um vício de raciocínio. A nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão”[18].
Configura-se a nulidade tipificada no citado preceito quando “o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”[19].
Ou seja: “…se os fundamentos invocados conduzem logicamente, não ao resultado expresso da decisão, mas a resultado oposto ou pelo menos diferente, em última análise a decisão carece de fundamento”[20].
Precisa, também a propósito do vício em análise, Lebre de Freitas[21]: “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”
A contradição denunciada pelo recorrente não existe, pelo menos de forma a poder configurar a patologia tipificada no citado artigo 615.º, n.º 1, c) do Código de Processo Civil, concluindo a decisão recorrida que o termo inicial do prazo de prescrição tem lugar com o conhecimento do lesado (Autor) de que a sua imagem e nome estão a ser, sem o seu consentimento, usados em jogos comercializados pela demandada, sendo, para o efeito, juridicamente irrelevantes os sucessivos lançamentos de novos jogos ou a actualização dos já existentes.
Pode, com efeito, ler-se na decisão objecto de impugnação: “...temos que o A. alega que a ré está a utilizar indevidamente a sua imagem e o seu nome desde 2009, nos vários jogos que foi lançando desde então, acrescentando que apesar de lançados jogos todos os anos, os antigos continuam a ser difundidos e vendidos, em Portugal e em todo o mundo, pelo que o dano que alega ter sofrido é de natureza continuada, duradoura, ocorrendo como que uma renovação contínua do dano, não se iniciando, a seu ver, a contagem do prazo prescricional enquanto a alegada infração continuada não cessar.
Ora, afigura-se-nos juridicamente irrelevante a circunstância de que novos jogos sejam lançados a cada ano ou atualizados e repostos no mercado jogos anteriormente comercializados, porquanto a alegada lesão dos direitos de personalidade do autor já se mostra consumada com o uso abusivo da imagem e do nome do jogador/autor a partir do momento em que o jogo é lançado no mercado sem consentimento do autor, cabendo ao lesado, ora autor, a partir do seu conhecimento, reagir judicialmente para obter a tutela jurídica dos mesmos.
O A alega conhecer a existência de tais jogos e da utilização indevida da sua imagem, desde Setembro de 2009, data em que pela primeira vez a sua imagem é utilizada no FIFA Manager, lançado precisamente nessa altura, alegação que, de resto, não se estranha não só atendendo à sua condição de jogador de futebol mas também à geração a que pertence, como é do conhecimento geral, este tipo de jogos é bem conhecido pela comunidade profissional respetiva, sendo os próprios jogadores da geração do aqui A., não raro, consumidores, eles próprios, de tais jogos no seus tempos livres.
Aqui chegados é claro para este tribunal que teve o A conhecimento do seu direito em 2009, data em que com o lançamento do FIFA Manager percebeu, soube que a R. usava o seu nome e imagem no jogo, sem que o A. a tivesse autorizado a tal, sendo evidente que o que se seguiu, ou seja, o continuar dessa utilização do nome e imagem do A. nos jogos que ia e vai lançando anualmente, mais não é do que o desenvolvimento, a continuação e, provavelmente, o aumento da extensão do dano já verificado.
O autor, enquanto lesado, sabendo e conhecendo a publicitação dos jogos com usurpação do seu nome e imagem, o que aconteceu desde 2009, sabia que tinha direito à indemnização e não cuidou de intentar a ação com o fim de se indemnizado, nos 3 anos subsequentes, esperando mais de 10 anos para interpor a presente ação. Ou seja, o autor teve conhecimento do seu direito à indemnização a partir da data – final de setembro de 2009 – do conhecimento dos pressupostos que indiciam a responsabilidade civil”.
Por conseguinte, não enferma a decisão recorrida de contradição entre ela e os seus fundamentos, não ocorrendo, por isso, vício de nulidade que a invalide.
3. Reapreciação da matéria de facto.
Insurge-se o recorrente contra a decisão relativa à matéria de facto por considerar provado – ponto 6.º dos factos provados – que “O autor soube da existência destes jogos e da inclusão da sua imagem nos mesmos, pelo menos, no ano do seu lançamento, ou seja, no final do ano antecedente ao ano da sua edição, tal como ficou a conhecer do respetivo conteúdo nesse mesmo ano.”.
Alega o recorrente que tal matéria nunca poderia ser dada como assente, não existindo prova nos autos que a sustente, sendo que “em momento algum da petição inicial se mostra alegado pelo Autor que o mesmo teve conhecimento, em 2009, da inclusão da sua imagem, do seu nome e das suas características pessoais e profissionais nos jogos da ré, designadamente, no jogo FIFA Manager 2010)”.
A decisão objecto de impugnação pelo recorrente foi proferida em sede de saneador, ou seja, após os articulados das partes.
Neste contexto, apenas podem ser julgados provados os factos em relação aos quais haja no processo elementos probatórios que produzam prova plena ou quando haja acordo das partes, expresso ou ficto, resultante, nomeadamente, do incumprimento do ónus de impugnação.
Para se opor à pretensão do Autor, a Ré excepcionou a prescrição do direito de que aquele se arroga titular.
A prescrição visa salvaguardar a segurança e a estabilidade das relações jurídicas, garantindo ao beneficiário da mesma a possibilidade de, decorrido certo tempo fixado na lei, recusar o cumprimento que lhe venha a ser exigido, conforme assegurado pelo artigo 304.º do Código Civil quando determina que “uma vez completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito.“
Segundo Pedro Pais de Vasconcelos[22], “ a prescrição é um efeito jurídico da inércia prolongada do titular do direito no seu exercício, e traduz-se em o direito prescrito sofrer na sua eficácia um enfraquecimento consistente em a pessoa vinculada poder recusar o cumprimento ou a conduta a que esteja adstrita. Se o credor, ou o titular do direito, deixar de o exercer durante certo tempo, fixado na lei, o devedor, ou a pessoa vinculada, pode recusar o cumprimento, invocando a prescrição. “
De acordo com o n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil, “O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso”.
E o n.º 1 do artigo 482.º do mesmo diploma legal dispõe que “O direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável [...]”.
Como resulta dos aludidos normativos, o conhecimento pelo lesado “do direito que lhe compete” é elemento fundamental para a determinação da prescrição, iniciando-se o prazo prescricional com esse conhecimento.
A factualidade considerada assente pelo tribunal recorrido mostra-se assim fundamentada: “Articulando o objeto do litígio com a matéria de facto alegada nos articulados, considerando as admissões vertidas na petição inicial, o não cumprimento do ónus de impugnação especificada, no que respeita à matéria que se segue, e os documentos juntos aos autos [...]”.
Não existindo nos autos documentos que façam prova plena quanto à matéria tida por assente, a decisão recorrida ter-se-á amparado no que o tribunal a quo considerou ter sido admitido por acordo e por não cumprimento do ónus de impugnação especificada.
A prescrição constitui excepção peremptória de direito material cuja alegação e prova recai sobre a parte contra a qual o direito pretende ser exercido por quem dele se arroga titular, como decorre do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil.
No caso específico da prescrição, incumbe, pois, ao Réu alegar na contestação os pressupostos da mesma, incluindo o conhecimento do lesado do direito que lhe compete.
No que concerne ao que nos autos está em discussão, era sobre a Ré, que excepcionou a prescrição, que incidia o ónus de alegar, para poder provar, os factos integradores da prescrição, ou seja, o decurso do prazo prescricional sem que o Autor haja providenciado pelo exercício do direito de que reclama titular, o que, naturalmente, pressupõe que tenha a mesma de demonstrar em que data teve o autor teve conhecimento de que o seu nome e imagem era utilizados nos jogos que a demandada comercializa.
Nenhum ónus recai sobre o Autor de na petição inicial alegar factos impeditivos ou excludentes da prescrição, embora o possa fazer, antecipando a possibilidade da sua invocação em sede de contestação.
Tal como nada obsta que, em resposta à matéria da excepção deduzida, possa o Autor alegar factos que o desfavoreçam e possam ser aproveitados pela parte demandada.
No caso dos autos, alegou o Autor na petição inicial:
- “O Autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), pelo menos nas edições 2011, 2012, 2013, 2014, 2018 e 2020; FIFA MANAGER, pelo menos nas edições de 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014; FIFA ULTIMATE TEAM – FUT, pelo menos nas edições de 2014, 2018 e 2020, e FIFA MOBILE nas edições de 2018 e 2020; todos propriedade da Ré”: artigo 9.º;
- “ ...a Ré está a utilizar indevidamente a imagem e o nome do Autor, pelo menos, desde Set/2009 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA Manager 2010)”: artigo 23.º;
- “...a utilização indevida da imagem, nome e demais caraterísticas do Autor ocorre, pelo menos, desde Outubro de 2009 (mês de lançamento do jogo de vídeo FIFA MANAGER 2010) até aos dias de hoje: artigo 153.
Em nenhum destes segmentos, ou em qualquer outra parte do mesmo articulado, o Autor especifica em que data teve conhecimento dos factos lesivos do seu direito, e cuja reparação reclama. E, não lhe sendo exigível tal alegação, nenhuma consequência se pode extrair dessa falta de concretização.
A Ré, que, defendendo-se por excepção, invocou a prescrição, ciente, naturalmente, das dificuldades da prova directa da data em que o Autor tomou conhecimento da utilização do seu nome e imagem em jogos pela mesma comercializados, alega na sua contestação (artigo 32.º) que “O autor sabia ou não podia desconhecer a data (pelo menos o ano) em que os jogos foram lançados, tal como conhecia o respetivo conteúdo”, para logo acrescentar que “...porque o autor afirma – em dezembro de 2020 (no mês em que instaurou a presente ação) – utilizar o seu tempo livre para jogar videojogos, como expressamente divulgou em story4 publicada na sua página de Instagram em https://www.instagram.com.../”, juntando o respectivo print, onde consta “Jogo vídeo game e a noite vejo uma série ou assisto um jogo”, em resposta à pergunta “E você jogador? Como tem usado o seu tempo livre?”, juntando ainda print do perfil público da sua página Facebook, com o post “Fechado com o ...!”, alegações que nada atestam acerca da data em que o Autor tomou conhecimento dos jogos em que eram utilizados os seu nome e imagem.
Do mesmo modo, não colhe o argumento da “notoriedade dos jogos FIFA” invocado pela Ré, que nada demonstra quanto ao enquadramento temporal do conhecimento do Autor dos jogos em a sua imagem e nome eram usados, nada impedindo que, apesar da alegada notoriedade, deles haja tomado conhecimento em data posterior ao seu lançamento. Ou seja: o conhecimento do jogo e do seu conteúdo, por muita notoriedade que lhe possa ser atribuída, não tem necessariamente de ser contemporâneo do seu lançamento ou das edições subsequentes.
Assim, do alegado na petição inicial, designadamente nos seus artigos 9.º, 23.º, 107.º e 153.º, nada se pode extrair quanto à data efectiva do conhecimento pelo Autor dos jogos com utilização do seu nome e imagem, nem deles se retira admitir o Autor que esse conhecimento ocorreu no ano 2009.
Não é, assim, de aceitar ter o Autor admitido na sua petição inicial haver tomado conhecimento dos jogos e da inclusão da sua imagem nos mesmos “pelo menos, no ano do seu lançamento, ou seja, no final do ano antecedente ao ano da sua edição, tal como ficou a conhecer do respetivo conteúdo nesse mesmo ano”, para justificar a matéria fixada no ponto 6.º como provada, pois na petição inicial não há admissão da referida realidade factual.
Resta saber se se verifica a existência de não cumprimento do ónus de impugnação especificada, como consta da motivação da decisão impugnada.
Retira-se do acórdão desta Relação (e Secção) de 9.01.2025[23], a propósito de situação em tudo similar à que nestes autos se discute:
“O que é o ónus de impugnação? É o dever de tomar posição definida perante os factos, para impedir que estes se considerem confessados (artigo 574.º do Código de Processo Civil).
A parte sobre a qual recai esse ónus não pode remeter-se a meias palavras, a posições dúbias ou de meias-tintas, que deixam dúvidas sobre o que realmente ele entende sobre os factos carecidos de impugnação. É isso o que significa tomar posição definida, ou seja, assumir em relação ao facto uma posição esclarecida, precisa ou nítida.
Todavia, esse ónus já não reclama que a parte contraponha ao facto que impugna ou considera falso outro facto, o facto que entende ser então o verdadeiro. Por outras palavras, o ónus de impugnação é um ónus de tomar uma posição clara sobre o facto carecido de impugnação, não um ónus de motivar a sua posição e/ou de contrapor aos factos impugnados os factos que a seu ver correspondem à verdade.
Escreveu Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, volume III, 4.ª edição, reimpressão, pág. 50, a propósito do artigo 494.º do Código de Processo Civil então vigente que ditava que o réu deve tomar posição definida quanto aos factos articulados na petição:
«O que quer isto dizer? Quer dizer que, perante os factos articulados pelo autor na petição inicial, o réu não pode ficar numa atitude de silêncio, de indiferença ou de passividade; tem de se pronunciar sobre eles, tem de declarar se os aceita como exactos, ou se os repele como contrários à verdade. Se nada disser, entende-se que os admite como verdadeiros».
Nas palavras de Antunes Varela J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, 1985, pág. 314, «o réu, ao elaborar a contestação, tem que tomar posição definida perante os factos narrados pelo autor, como fundamento da sua pretensão. Não pode remeter-se a uma posição cómoda de silêncio ou inércia. Pelo contrário, tem que declarar, no articulado da sua defesa, se aceita esses factos como reais, ou se os repele como inexistentes».
Para Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, 2015, volume II, pág. 145:
“ na contestação «deve o réu tomar posição definida (que não especificada por cada um deles) perante os factos que constituem a causa de pedir pelo autor invocada na petição» (cf. o nº 1 do art. 574º). O réu ou demandado não podem remeter-se a uma atitude passiva (de não pronúncia) sobre os factos articulados pelo autor. Daí não se segue que tal impugnação careça de ser motivada (fundamentada), através de uma contra-versão dos factos alegados pelo autor, bastando para satisfação daquele ónus a mera negação expressa do ou desses factos”.
Segundo Montalvão Machado/Paulo Pimenta, in O Novo Processo Civil cit., págs. 172-173, há impugnação válida quando:
«o réu rejeita a veracidade dos factos aduzidos pelo autor, seja porque constituam puras inverdades, seja porque não tenham ocorrido da forma alegada, seja porque, simplesmente, os desconhece (não tendo obrigação de os conhecer).»
Para Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa, 3.ª edição, 2013, pág. 101, esse ónus é satisfeito quando:
«o réu afirma a inocorrência do facto alegado pelo autor ou a verificação de outro facto com ele incompatível. Mas se estiver em dúvida sobre a realidade de determinado facto, a manifestação dessa dúvida basta para constituir impugnação, desde que não se trate de facto pessoal ou de que ele deva ter conhecimento, valendo como admissão no caso contrário».
Para Paulo Pimenta, in Processo Civil Declarativo, 3.ª edição, 2024, pág. 205, o ónus de na contestação o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor significa que:
«o réu não pode remeter-se a uma atitude passiva, não se pronunciando sobre os factos articulados pelo autor, devendo, isso sim, impugnar os factos que não reconheça ou não aceite. Tal impugnação não carece, porem, de ser motivada, através de uma contraversão dos factos articulados pelo autor. Basta a mera negação expressa do ou dos factos alegados. Se o réu não tomar posição sobre aqueles factos, entende-se que os admite como exactos.»
Para Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, pág. 647, o ónus de impugnação significa que:
«o réu não pode remeter-se a uma atitude passiva, não se pronunciando sobre os factos articulados pelo autor, devendo impugnar os factos que não reconheça ou não aceite como verdadeiros. Tal impugnação não carece, porem, de ser motivada, através de uma contraversão dos factos articulados pelo autor, bastando a mera negação expressa de factos alegados na petição (…).»
Como se vê, é unânime a posição segundo a qual o réu só tem de tomar uma posição clara sobre os factos alegados pelo autor, afirmando se os aceita ou os impugna, por os considerar não verdadeiros ou os desconhecer, não sendo eles pessoais. Ao invés, esse ónus do autor não exige que ele contraponha aos factos alegados pelo autor que considera não verdadeiros, a versão dos factos que na sua opinião são os verdadeiros, nem, tão pouco, que motive a sua posição, alegando porque os considera falsos ou donde retira a falsidade desses factos”.
Na resposta à contestação da Ré, em que esta excepciona, nomeadamente, a prescrição, afirma o Autor [artigo 4.º]: “O Autor contesta todos os factos articulados pela ré, que alegadamente servem de suporte às peticionadas excepções, porquanto, ou não são verdadeiros ou é falsa a interpretação que lhes é dada pela ré”, acrescentando logo a seguir [artigo 5.º]: “E, bem assim, impugna todos os documentos juntos e que lhe servem de sustentação, porquanto deles não se extraem as consequências pretendidas pela ré”.
Não se limitou, pois, o Autor a enquadrar juridicamente a figura da prescrição, enquanto excepção invocada pela Ré, e a pugnar pela sua improcedência, tomando antes posição definida acerca dos factos por esta alegados como fundamento da invocada prescrição, incluindo a data em que o demandante teve conhecimento que o seu nome e imagem eram utilizados em jogos comercializados pela demandada, sustentando não serem eles verdadeiros.
O facto essencial que serve de suporte à excepção peremptória da prescrição invocada pela Ré é o de que o Autor sabia, ou devia saber, mais de três anos de propor a acção, que aquela utilizava o seu nome e imagem em jogos que comercializava; todos os demais factos articulados pela Ré em torno da convocada prescrição são meramente indiciários ou instrumentais.
Socorremo-nos, de novo, das considerações tecidas no citado acórdão desta Relação, de 9.01.2025: “No actual Código de Processo Civil o ónus de impugnação incide somente sobre os factos essenciais que constituem a causa de pedir, leia-se, por aplicação ao autor do ónus de impugnar os factos alegados pelo réu na contestação em sede de defesa por excepção, sobre os factos essenciais que constituem a excepção.
Isso é assim porque nos termos do artigo 5.º, n.º 1, atinente ao dever de alegação, as partes apenas estão oneradas com o dever de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, e nos termos do n.º 1 do artigo 574.º, que consagra o ónus de impugnação, ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, esclarecendo a parte final do n.º 2 que a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.
Em conformidade com essa restrição dos deveres de alegação e do ónus de impugnação aos factos essenciais, permite o n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, que além dos factos articulados pelas partes, o juiz possa considerar «os factos instrumentais que resultem da instrução da causa».
Daí que se possa ler em Paulo Pimenta, loc. cit., pág. 207, o seguinte: «face ao nº 1 do art. 5º, o ónus de alegação do autor na petição inicial limita-se aos “factos essenciais que constituem a causa de pedir”. Daqui resulta, além do mais, não haver preclusão quanto a factos (essenciais) complementares ou concretizadores dos inicialmente alegados. E mais resulta não haver ónus de alegação nem, tão pouco, preclusão quanto a factos instrumentais. É na base disto que o nº 1 do artigo 574º reconduz o ónus de impugnação do réu aos “factos que constituem a causa de pedir”.»
E em Ferreira de Almeida, loc. cit., pág. 146, o seguinte:
«A estatuição do nº 2 do artº 574º (admissão por acordo dos factos não oportunamente impugnados) encontra-se umbilicalmente ligada à da al. a) do nº 2 do artº 5º (oficiosidade da consideração dos factos instrumentais resultantes da instrução da causa). O 1º e o 2º segmentos do nº 2 daquele primeiro preceito - devidamente reportados e conjugados com a aludida oficiosidade - devem ser interpretados em ordem à admissibilidade da prova da veracidade/verosimilhança ou da inveracidade/ inverosimilhança dos factos instrumentais, independentemente da impugnação ou não impugnação dos correspondentes factos essenciais. Com efeito, como resultado da actividade instrutória, pode ser processualmente adquirida, não só a provada “inveracidade” de um facto instrumental não impugnado, como também a prova da “veracidade” de um facto instrumental incompatível com a admissão por acordo de um facto essencial não impugnado. A eventual preclusão dessa prova (por força de um pressuposto efeito cominatório/probatório) quando o correspondente facto essencial não houvesse sido impugnado poderia redundar numa decisão final segundo uma verdade meramente formal em detrimento da sempre almejada verdade material. Assim, se adquirido no processo um dado facto instrumental considerado inverídico, não pode o mesmo “servir de base à inferência do correspondente facto essencial, pelo que não pode dar-se por processualmente adquirido (por admissão) esse facto essencial.»
Ao fazer esta afirmação o autor está a acompanhar a posição de Miguel Teixeira de Sousa expressa no blog do IPPC, na entrada de 21/01/2015, no endereço electrónico https://blogippc.blogspot.com, que discute a questão de saber como compatibilizar a não impugnação dos factos essenciais alicerçados em presunções decorrentes de factos instrumentais com a possibilidade de na instrução da causa se vir a apurar um facto instrumental incompatível com o facto essencial não impugnado. Teixeira de Sousa defende ali o seguinte:
«-Se o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC – que, recorde-se, permite a aquisição de factos instrumentais durante a instrução da causa - não tem nenhuma relevância para a conjugação da primeira e segunda partes do n.º 2 do art. 574.º CPC, então pode concluir-se que apenas factos instrumentais alegados por uma das partes e que não tenham sido impugnados pela contraparte podem vir a ser dados como não provados;
- Pelo contrário, se o estabelecido no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC releva para a interpretação do art. 574.º, n.º 2, CPC, então há que concluir que, durante a instrução da causa, pode ser adquirida não só a prova da não veracidade de um facto instrumental não impugnado, mas também a prova da veracidade de um facto instrumental incompatível com a admissão por acordo de um facto essencial não impugnado.
A conjugação da não impugnação do facto essencial com a não preclusão da prova da não veracidade do facto instrumental também não impugnado pode ser entendida no sentido de que aquela não impugnação preclude esta prova, ou seja, de que a não impugnação do facto essencial - e, portanto, a sua admissão por acordo - preclude a prova da não veracidade do facto instrumental. Nesta interpretação, o disposto no art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC só é aplicável se o correspondente facto essencial tiver sido impugnado; se assim não suceder, a prova da não veracidade do facto instrumental encontra-se precludida, pelo que nada pode afastar a admissão por acordo do facto essencial.
É discutível que esta seja a melhor forma de conjugar aqueles elementos legais. O principal argumento que pode ser aduzido contra aquela solução é o de que a preclusão da prova da não veracidade do facto instrumental quando o correspondente facto essencial não tenha sido impugnado conduz à decisão do processo segundo uma verdade formal ou, até talvez melhor, a uma decisão contra veritatem. Foi adquirido no processo que o facto instrumental não é verdadeiro e que, portanto, este facto não pode servir de base à inferência do facto essencial; ainda assim, mantém-se adquirido para o processo o correspondente facto essencial, mesmo na hipótese de não ter sido provado nenhum outro facto instrumental do qual se possa inferir a sua verdade.
Um outro argumento contra aquela solução é retirado da possibilidade da aquisição de factos instrumentais durante a instrução incompatíveis com o facto essencial (art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC). Este preceito permite que o juiz considere os factos instrumentais que resultem da instrução da causa: esses factos instrumentais são certamente os factos que provam algum dos factos essenciais alegados pelas partes; mas, segundo parece, nada impede que o juiz também possa considerar factos instrumentais que provem a não veracidade de um facto essencial invocado pela parte e não impugnado pela contraparte.
Do exposto decorre que a primeira e a segunda partes do n.º 2 do art. 574.º CPC devem ser conjugadas no sentido de que a prova da não veracidade do facto instrumental é admissível tanto quando o correspondente facto essencial tenha sido impugnado, como quando este facto não tenha sido impugnado; dito de outro modo: o art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC é aplicável qualquer que tenha sido a posição da parte quanto ao facto essencial alegado pela outra parte, isto é, mesmo que, nos termos no art. 574.º, n.º 2 1.ª parte, CPC, esse facto essencial deva considerar-se admitido por acordo por falta de impugnação.
Além disso, do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC resulta a possibilidade da aquisição de factos instrumentais contrários a factos essenciais alegados pelas partes. Não há nenhum motivo para se entender que os factos instrumentais que podem ser adquiridos durante a instrução da causa só possam ser aqueles que confirmem factos essenciais alegados pelas partes; também estão sujeitos à mesma regra de aquisição factos que contrariam esses factos essenciais.
Assim, em função da prova realizada, o juiz pode considerar, por exemplo:
- A prova do rastro de travagem, apesar de este não ter sido alegado pelo autor; em concreto, o juiz pode dar como provada a velocidade excessiva do veículo alegada por aquela parte com base neste facto adquirido durante a instrução da causa;
- A prova de uma deficiência mecânica no veículo, apesar de este facto não ter sido alegado pelo réu; com base nesta prova, o juiz pode dar como não provada a negligência do condutor, mesmo no caso de o réu não ter impugnado este facto essencial.
Se assim é, pode então concluir-se que os factos instrumentais adquiridos durante a instrução da causa permitem tanto uma prova positiva ou confirmatória de um facto essencial alegado, como uma prova negativa ou infirmatória de um facto essencial invocado e não impugnado (e, portanto, admitido por acordo). O actual processo civil português permite que se considere não provado um facto essencial não impugnado e, portanto, admitido por acordo: isso é o que sucede quando, apesar de o facto essencial não ter sido impugnado, for dado como provado um facto instrumental incompatível com aquele facto essencial.
Até agora considerou-se apenas o caso em que o réu não impugna nem o facto essencial, nem o facto instrumental alegado pelo autor. Os resultados adquiridos também valem, no entanto, para duas outras hipóteses:
– Aquela em que o autor alegou o facto essencial e o facto instrumental, mas o réu impugnou apenas este facto (situação correspondente à segunda hipótese referida no n.º 2); se for provado um facto instrumental incompatível com o facto essencial não impugnado, há que considerar este facto como não provado;
– Aquela em que o autor só alegou o facto essencial e em que o réu não o impugnou; também nesta situação, a não impugnação do facto essencial e a correspondente admissão por acordo não impedem que este venha a ser considerado não provado se for demonstrado um facto instrumental incompatível com a sua verdade.»”.
Em todo o caso, no caso em apreço, em que os factos alegados pela Ré para amparar a invocada prescrição são, quase na totalidade, meramente instrumentais, tendo os mesmos, como se viu, sido objecto de impugnação relevante por parte do Autor, a matéria constante do segmento impugnado – ponto 6.º, dado como assente – não pode considerar-se provada, permanecendo facto controvertido, sobre a qual deve recair produção de prova.
Procede, nesta parte, o recurso relativo à matéria de facto, eliminando-se dos factos dados como assentes o constante do ponto 6.º.
4. Matéria de direito.
Em sede de despacho saneador, após os articulados das partes, foi apreciada a excepção peremptória da prescrição, julgando-se procedente a mesma.
De acordo com o n.º 1 do artigo 595.º do Código de Processo Civil,
“1 - O despacho saneador destina-se a:
a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória [...]”.
Nestas hipóteses, contendo os autos os elementos necessários à apreciação das excepções suscitadas pelas partes ou que devam ser apreciadas oficiosamente, ou do mérito da causa, sem necessidade de mais provas, deve esse conhecimento ter lugar em sede de despacho saneador; nos demais casos, estando essa apreciação dependente de prova a produzir, esse conhecimento deve ser relegado para momento ulterior, após realização do julgamento, com a produção da prova para o efeito necessária.
No que aqui se discute, controvertido ainda se encontra o facto relativo à data em que o Autor teve conhecimento do direito que lhe compete, ou seja, data em que soube que a Ré, sem o seu consentimento, utilizava o nome e a imagem do Autor em jogos que comercializava.
Esse facto, determinante para o conhecimento da invocada excepção da prescrição, com a alteração da decisão relativa à matéria de facto e eliminação do ponto 6.º dos factos dados como assentes mantém-se controvertido, e, como tal, dependente de averiguação em instrução do processo, submetido a produção de prova de cujo resultado dependerá a decisão a proferir quanto à referida excepção peremptória.
Nestas circunstâncias, deve ser revogada a decisão que julgou procedente a referida excepção, relegando-se o seu conhecimento para final, produzida prova em julgamento, e em conformidade com o resultado dessa actividade probatória.
E devendo os autos prosseguir para esse efeito, o julgamento será unitário, com a apreciação também dos danos que o Autor alega ter sofrido em consequência da actuação da Ré.
………………………………
………………………………
………………………………
Custas: a cargo da apelada – artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Notifique.
Porto, 4.06.2025
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
António Paulo Vasconcelos
Álvaro Monteiro
_________________________________
[1] Artigo 195.º do Código de Processo Civil.
[2] “Novo Código de Processo Civil – Lei n.º 41/2013 – Anotado”, “Ediforum – Edições Juídicas, Ldª”, pág. 216.
[3] Processo n.º 1386/13.2TBALQ.L1-“, www.dgsi.pt.
[4] ”A Acção Declarativa Comum à Luz do CPC de 2013, Coimbra Editora, 3ª ed., pág. 172.
[5] Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, Almedina, pág. 185, Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, págs.403, 404, Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, págs. 159, 160.
[6] “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs.. 231, 232.
[7] E não nulidade da sentença nos termos que o recorrente sustenta.
[8] “Comentário ao Código de Processo Civil”, II, págs. 507, 508.
[9] “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 183.
[10] “Manual de Processo Civil”, 1985, pág. 393.
[11] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, 1982, pág. 134.
[12] Citados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.06.2011 e da Relação de Lisboa, de 04.06.2009.
[13] Neste sentido, cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 11.01.2011, proc.º 286/09.5T2AMD-B.L1, e acórdãos da Relação do Porto de 24.04.2012, proc.º 10336/11.0TBVNG-B.P1 e de 11.05.2015, proc.º 440/07.4TVPRT-B.P1, todos em www.dgsi.pt.
[14] Decisão confirmada por acórdão desta Relação, na sequência de recurso interposto pelo Autor, e posteriormente revogado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que declarou a competência internacional dos tribunais portugueses.
[15] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[16] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[17] Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, página 246.
[18] Acórdão do STJ, 07.05.2008, processo nº 3380/07, www.dgsi.pt.
[19] Alberto dos Reis, ob. cit., vol. V, pág. 141; cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, ob. cit., pág. 690.
[20] Anselmo de Castro, ob. cit., pág. 142.
[21] “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333.
[22] “Teoria Geral do Direito Civil ”, 7.ª edição, pág. 327.
[23] Processo n.º 2160/20.5T8PNF.P2, www.dgsi.pt.